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A música dos signos: Da lógica de John Deely à semiose de António Damásio Luís Carmelo Universidade Autónoma de Lisboa Índice 1 Introdução 1 2 Predizer e retrodizer a semiótica 2 3 A semiose de O Sentimento de Si 22 4 Conclusões 38 "Ela (a música) não nos confiava nem o tempo nem o eterno, mas produzia o movimento; ela não afirmava nem o vivido nem o conceito, mas constituía o acto de razão sensível" G.Deleuze (ao evocar François Châtelet) 1 1 Introdução J.Deely referiu-se, há alguns anos, à consci- ência do uso sígnico como um "milagre"que deve ter ocorrido, pela primeira vez, "no mo- mento em que o homem, para além de usar gestos naturais para exprimir fome, raiva ou medo, terá também captado a noção de 1 Péricles e Verdi-A filosofia de François Châtelet, Estratégias Criativas,Vila Nova de Gaia,1997:27. que este gesto possuía a virtude de signifi- car"(1995:141). As possibilidades de ilimi- tada selecção e interpretação de interfaces capazes de ligar conceitos empíricos, dados do recordar, ou objectos do mundo através de sinais, grafos arbitrários, registos inven- tados ou sintomas naturais estaria assim em marcha. É talvez por essa mesma razão que o autor havia de concluir que aquilo que, de facto, define uma "linguagem não é exacta- mente o uso de palavras, (ou) o uso de signo convencionais; é (antes) o uso de qualquer signo, qualquer que ele seja, que envolva o conhecimento ou a consciência de significa- ção"(1995:141). Note-se que a significação e a comunicação surgem, nesta análise, en- volvidas por um princípio fundacional inti- mamente ligado à consciência. Curiosamente, o cruzamento da leitura desse texto de J.Deely, ’A relação da Ló- gica com a Semiótica2 , com as recentes in- vestigações no âmbito das neurociências - acerca da interacção entre os diversos ní- veis da consciência e dos seus ’sis’ -, so- bretudo na recente obra de António Damá- sio, o Sentimento de Si - surgida na sequên- 2 Acerca da obra de J.Deely, ver nota 11 e 12.

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A música dos signos:Da lógica de John Deely à semiose de António

Damásio

Luís CarmeloUniversidade Autónoma de Lisboa

Índice

1 Introdução 12 Predizer eretrodizera semiótica 23 A semiose deO Sentimento de Si 224 Conclusões 38

"Ela (a música) não nos confiava nem otempo nem o eterno, mas produzia o

movimento; ela não afirmava nem o vividonem o conceito, mas constituía o acto de

razão sensível"G.Deleuze (ao evocar François Châtelet)1

1 Introdução

J.Deely referiu-se, há alguns anos, à consci-ência do uso sígnico como um "milagre"quedeve ter ocorrido, pela primeira vez, "no mo-mento em que o homem, para além de usargestos naturais para exprimir fome, raivaou medo, terá também captado a noção de

1 Péricles e Verdi-A filosofia de François Châtelet,Estratégias Criativas,Vila Nova de Gaia,1997:27.

que este gesto possuía a virtude de signifi-car"(1995:141). As possibilidades de ilimi-tada selecção e interpretação deinterfacescapazes de ligar conceitos empíricos, dadosdo recordar, ou objectos do mundo atravésde sinais, grafos arbitrários, registos inven-tados ou sintomas naturais estaria assim emmarcha. É talvez por essa mesma razão queo autor havia de concluir que aquilo que, defacto, define uma "linguagem não é exacta-mente o uso de palavras, (ou) o uso de signoconvencionais; é (antes) o uso de qualquersigno, qualquer que ele seja, que envolva oconhecimento ou a consciência de significa-ção"(1995:141). Note-se que a significaçãoe a comunicação surgem, nesta análise, en-volvidas por um princípio fundacional inti-mamente ligado à consciência.

Curiosamente, o cruzamento da leituradesse texto de J.Deely, ’A relação da Ló-gica com a Semiótica’2, com as recentes in-vestigações no âmbito das neurociências -acerca da interacção entre os diversos ní-veis da consciência e dos seus ’sis’ -, so-bretudo na recente obra de António Damá-sio, o Sentimento de Si- surgida na sequên-

2 Acerca da obra de J.Deely, ver nota 11 e 12.

2 Luís Carmelo

cia deO Erro de Descartes3, fez-nos pensarnuma possível e ulterior reflexão que rele-vasse a importância da génese profunda doacto de significar e, portanto, da própria se-miótica. Quer se queira quer não, a verdadeé que a própria ideia de signo, independente-mente das múltiplas definições e convulsõesa que possa estar sujeita, não resiste ao factode que é, ela mesma, atravessada por proces-sos mentais de grande complexidade, aindaque aparentemente quasi-instantâneos na or-dem dofluxo do acontecer. Nesta medida,como T.Sebeok afirmou, um dos grandes ob-jectivos da semiótica, enquanto parte de umateoria unificada da cognição humana, seriao de ligaro grande abismo("the yawninggulf") existente entre a química e a biologiados neurões com a "maximally viable theoryavaible"(1991:54).

Numa altura dominada pelas novas signifi-cações ciberespaciais, pela euforia construti-vista, pelos aparelhamentos que sublimam ataumaturgia5 perdida através da instantanei-dade arfetactual e ainda pelorizomasocial,é talvez altura de regressarmos à prospecçãode alguns mecanismos fundadores e matrici-

3 O Erro de Descartes-Emoção, razão e cérebrohumano, Publicações Europa-América, Lisboa, 1995eO Sentimento de Si- O corpo, a emoção e a neurobi-ologia da consciência, Publicações Europa-América,Lisboa, 2000.

4 Semiotic in the United States, Indiana UniversityPress, Indianapolis and Bloomington,1991

5 Referência à aspiração salvífica a mundos per-feitos que caracterizou as fases norteadas por gran-des códigos, fossem escatologias de natureza di-vina, fossem neo-escatologias de natureza racional. Este é o tema deAnjos e Meteoros(L.Carmelo,Ed.Notícias, 1999) e, em parte, deÓrbitas da Moder-nidade(L.Carmelo, Ed.Notícias, no prelo) e deLa Re-présentation du réel dans des textes prophétiques dela littérature aljamiado-morisque(L.Carmelo, Uni-versiteit Utrecht, Utrecht).

ais que nos possamre-abrir campos de dis-cussão e perspectivas. Até porque o esvaeci-mento de certas aplicações semióticas euro-peias, sobretudo da tradição continental, nosaconselham a perseguir novas rotas e hori-zontes. O cruzamento de saberes pode e deveser um poderoso tubo de ensaio para uma taloperação. Nessa linha de ideias, é propósitodeste ensaio interligar uma metodologia teó-rica da fundação e modalização da própriasemiótica com aquilo que é um consequentequase lógico dessa metodologia: a descriçãosemiótica do funcionamento da mente e dasrelações que esta tece com arealidade, talcomo surge exposta emO Sentimento de Side António Damásio.

2 Predizer eretrodizerasemiótica

2.1 Heraclito, Hipócrates eJ.Deely

Enquanto área do saber, a semiótica podesempre ser predita ouretrodita. Predizerremete-nos para uma origem - ainda que in-certa - a partir da qual é possível aceder auma premonição. Por outro lado,retrodizer,tal como Borges no-lo ensinou emKafka ysus precursores6, remete-nos para a desco-berta de uma génese passada e quasi-originalque, de qualquer modo, se possa vir a tornarprefiguradora de um facto actual relevante,na presente circunstância o que existe de pro-fusamente semiótico no recente livro de An-tónio Damásio,O Sentimento de Si.

No caso da predição, temos sobretudo a

6 ’Otras Inquisiciones’(1952) inProsa completa,Narradores de Hoy/Bruguera, Barcelona,1980:226-228.

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A música dos signos 3

tradição profética de marca semítica e grega,centrada no texto7; no segundo caso, o da re-

7 Em La représentation du réel dans des tex-tes prophétiques de la littérature aljamiado-morisque(L.Carmelo,1995:32-85) tentámos determinar umquadro global de permanências do profético semítico-ocidental, durante as suas grandes fases. Qualquer de-limitação rigorosa de fases históricas é sempre proble-mática, embora, no caso concreto, o nosso propósitode categorizaçãotivesse como fundamento pôr emevidência tão-só a permeabilidade das característicasdo profético bem como a sua evolução. A nossa abor-dagem permitiu-nos entrever o género profético comoum largo rio que, ao longo do tempo, soube man-ter as suas correspondências entre os sinais visíveisdo mundo (ocorrências, factos, desafios de tempora-lização, etc) e uma instância superior e anterior, nãomanifestável e ausente, mas garante da ideia de sig-nificado e de futura perfectibilidade e salvação. Poroutras palavras, um sistema de controlo da significa-ção e, portanto, do aparecer (o que é válido objectiva-mente para toda a tradição metafísica).

Neste âmbito, a codificação escatológica - ao regu-lar diversa mas univocamente a doutrina dos fins úl-timos da humanidade - é particularmente importantepara a legibilidade do próprio acto profético, até por-que este se realiza na transgressão da narrativa, isto é,no futuro. Em termos gerais, e numa perspectiva mo-dalizadora das tradições textuais proféticas, podemosafirmar que o código escatológico se manifesta tenu-emente num período profético inicial (pelo menos atéao Exílio), aperfeiçoa-se durante a fase dos Apocalip-ses (a partir do séc.II a.C. até ao séc.II d.C.); é revo-lucionado com a revelação cristã - com a entrada daescatologia na história - e acaba por sofrer uma ree-dificação inovadora com a revelação islâmica. Paraalém da legibilidade do futuro que se prende com oelemento escatológico, o acto profético consistiu tam-bém, e sobretudo, num diálogo entre o homem e adivindade. Nestedrama, a relação entre ambos os ac-tantes começa por ser a de uma aparente simultanei-dade na comunicação directa e na premonição. Apóso Exílio, a consciência de negligência humana face àintençãodivina materializada pelos profetas torna-senum dado decisivo; gera-se então uma intensificaçãododrama, enquanto significativamente se recopila emescritatoda a mensagem profética oralmente acumu-lada. O “período apocalíptico” é, com efeito, um re-

trodição, temos basicamente o desafio hipo-crático, centrado no corpo (e na medicina).Um e outro destes campos, embora aparen-temente muito diferentes, correspondem aáreas profundamente semióticas, já que tra-tam de realidades que estão em vez de outrasausentes, desocultando-as ou não, através decomplexos processos de rede onde se joga oudisputa a convenção, a designação, a obser-vação, a conjectura, o querer-dizer, o signifi-cado - ou a sua imponderabilidade - e ainda

sultado do aprofundamento destedrama: agora, o ho-mem precisa de ver Deus e de apreender o além, noseuaqui-agora. Entramos, deste modo, num períodocaracterizado pela ficcionalidade da observação, i.e.,pela tangibilidade do significado sempre, no entanto,intangível e indescritível. Contudo, odramaque con-substancia esta relação entre o agenciamento signifi-cante e um agente magistral e significativo parece su-bitamente dissuadir-se por via da emergência da re-velação cristã: Deus aparece subitamente na terra (nolado de cá, onde as formas expressivas são surpreen-didas pela revelação doconteúdotornado visível, ma-nifestado,encarnado) à medida dos próprios homense, de certa forma, a comunicação homem-Deus e oanúncio tornam-se de novo em algo directo, imedi-ato, como se fosse instantâneo (tal como havia ocor-rido durante asimulaçãonarrativa do período profé-tico inicial ou como havia sido reflectido, por exem-plo, nas narrações épico-míticas gregas da fase ditapré-filosófica). De qualquer modo, no caso cristão -e no islâmico com algumas homologias parcelares -o dramaacabaria por ressurgir nas próprias estrutu-ras que a revelação passa a vaticinar para dar corpo àgrandeParúsia, i.e., à promessa doeschatón. É destemodo que odramada espera entra em cena na sig-nificação ocidental, atavés das suas mais variadas co-dificações (milenária ou chiliástica, entre muitas ou-tras). Esta semiose divina pré-moderna é ainda activaem alguns pioneiros do alvor moderno, como ThomasHobbes no seuLeviatãe acabará por ser reactivada,sob outros moldes, nos programas modernos das no-vas escatologias racionais (ideologias e algumas uto-pias ancoradas na experiência, enquanto mecanismosde controlo do futuro) como tentámos situar emAnjose Meteoros(1999).

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um leque diversificado de inferências acercado conhecido e do desconhecido.

Até ao limiar da modernidade, depois so-bre outras formas, o profético sempre pre-disse um tempo ainda ausente - ou uma ocor-rência a vir - e fê-lo em nome de entida-des superiores universais, ou tão-só em nomedas circunstâncias imediatas que exigiam rá-pida interpretação e resposta. O proféticofoi, pois, tendencialmente escatológico, nocaso do mundo semítico, ou rotineiro e cir-cular8, no caso do mundo grego. No pri-meiro, a semiose divina fez do significadoúltimo uma imaterialidade de que os even-tos ou as coisas eram o lado observável. Porisso a convenção era tácita e a peça visí-vel dessa imaterialidade teve quase semprea forma de livro ou de letra, se se preferir.No segundo, aapodeixis(demonstração) e a

8 Num conhecido fragmento (o no93) atribuídoa Heraclito por Plutarco (emDos Oráculos da Pito-nisa - 11/604A - in J.Cavalcante de Souza, Org -Ospensadores Pré-Socráticos, Nova Cultural, S.Paulo -1991:60, e em G.Kirk, J.Raven,M.Schofield -Os fi-lósofos pré-socráticos, Fundação Calouste Gulben-kian, Lisboa - 1994:217-218), pode ler-se: "O senhor,cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta,mas manifesta-se por sinais". Trata-se de um elo-gio a Apolo que releva a harmonia entre o sinal e oLogos, numalógica em que a obscuridade ambíguado estilo délfico parece privilegiar uma concomitân-cia entre aquilo que significa, a coisa que é signifi-cada e, por fim, a mediação sibilina que se exerceentre ambas. Por outras palavras, como F.Cornfordafirmou: "A afirmação de Heraclito de que era umprofeta com uma visão única assenta na convicção deque oLogos, o pensamento que orienta todas as coi-sas, se encontra dentro dele, bem como na Natureza".Esta postura denuncia uma sabedoria e uma interpre-tação reversíveis entre conhecido e desconhecido, vi-sível e invisível, que se deixam guiar por uma cir-cularidade que podia ser comum a todos os homens,desde que estes "tivessem tão-somente almas para acompreender"(1952:243-4)

pistis(prova/convicção) andaram quase sem-pre de mãos dadas, o que acabava por reflec-tir, como P.Tunhas salientou, uma maneirade pensar subjacente que "se define pela ade-rência natural do conhecimento ao conhe-cido"(1999:13)9. Esta "aderência", ou adap-tação terá permitido ao médico hipocráticopassar facilmente do visível ao invisível, ouseja, declarar que aquilo que "escapa à visãodos olhos é apanhado pela visão do espírito",ou que aquilo que "é invisível para o olho"é"visível para a razão"(ibid.:44/5). Esta rever-sibilidade entre o observável (as partes dife-renciadas observáveis) e o desconhecido - evice-versa - parece deixar o jogo semióticomuito mais a nu, muito mais dissecado, atéporque nessejogar-seconstitutivo, a suspen-são e o espaçamento entre as partes do corpoparecem já, de algum modo, fazer lembrara J.Derrida a sua futura noção dedifférance,assim como o seu exercício prático: a des-construção.

Neste remoto labirinto da letra e docorpo10, a semiótica parecia querer começar

9 O autor estabelece um contraste entre "a maneirade pensar da passagem"que "recusa a exterioridade doconhecimento ao conhecido"(ibid.:13), "a maneira depensar do abismo"que consiste "na determinação deobjectos exteriores"e , por fim, "a maneira de pen-sar do limite"que se define pela intenção de pensaro desconhecido (sem todavia o poder determinar).O pensamento da evidência, o grego na sua maio-ria, baseia-se na primeira "maneira de pensar", para oqual o verosímil e a verdade supõem "o mesmo habi-tus"(Hipócrates e a arte da medecina,org.Maria LuísaC. Soares, Colibri/Forum de Ideias, Lisboa,1999)

10 Refira-se que para certos autores, a importânciade Hipócrates na fundação de um prospectar semió-tico é imenso, já que, no seu agir, faz-se a passagemdo signo mitológico e divino (a correspondência e aspermutas entre a presença do homem como visível eos deuses como invisíveis, o que ocorre na épica gregapré-filosófica, por exemplo) para o signo reversível

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A música dos signos 5

a esboçar uma silhueta onde a predição e aretrodiçãose harmonizassem, ou, pelo me-nos, se adequassem uma à outra. A próximaetapa já iria ser vivida no seio dagrande casada lógica, embora o sistema de oposições eas suposições dogmáticas hipocráticas já aanunciassem.

Sem jamais se referir ao corpo dos mé-dicos hipocráticos e à extensíssima tradiçãoprofética, John Deely publicou, há algunsanos, na revistaSemiotica11, o texto de umaconferência realizada em Toronto12 sob o tí-tulo: ’A relação da Lógica com a Semió-tica’. Esse texto, como o próprio autor refe-riu, condensa "uma visão sinóptica do desen-

que se abre a um novo tipo de experiência do provávele do obsrvável. Como António Caeiro afirmou, nesteúltimo caso, "visível e invisível são aqui a superfíciee o interior do corpo,objectos ambos, homogéneos,da mesma experiência cognoscitiva"(1999:128,n.18;obra citada na nota anterior). Esta importância é par-tilhada por U.Eco: "Hipócrates encontra a noção deindício nos médicos que o antecederam. Alcméon dizque "das coisas invisíveis e das coisas mortais têm osDeuses imediata certeza, mas aos homens cabe pro-ceder por indícios"(1994:26). Nas práticas médias hi-pocráticas, existe um "código, mas não unívoco. Osintoma fornece instruções para a sua avaliação emcontextos diversos."(ibid.:26). Deste modo, o pró-prio signo particular se converte num uso pragmáticoque se insere num contexto mais geral e pragmáticoda vida (AA VV Enciclopédia Einaudi: 31-Signo,in Signo, Imprensa Nacional - Cada da Moeda, Lis-boa,1994)

11 Revista da IASS, Walter de Gruyter & Co.,Berlin/Walter de Gruyter, Inc., Hawthorne, No 36 -1/2,1982:193-265.

12 "The Relation of Logic to Semiotics"no âmbitodo primeiro Summer Institute for Semiotic and Struc-tural Studies, realizado no Victoria College da Uni-versidade de Toronto, Junho, 1980. Edição portu-guesa do texto (que utilizamos para fins citacionais),Introdução à semiótica-história e doutrina, Funda-ção Calouste Gulbenkian/Serviço de educação, Lis-boa, 1995.

volvimento semiótico", estabelecendo um"horizonte conceptual"para o "movimento"edando a ver como este "realmente integrae alicerça a cultura ocidental"(1995:XVII).Para além dessa evidência, o texto de J. De-ely é também, porventura, um dos que me-lhor retrodiza história da própria semiótica,enquanto dispersa e silenciosa área do sa-ber que os modernos estatuíram com epítetoabsolutamente autónomo. E se o autorre-trodiz de facto a semiótica, por outro lado,através das escolhas que faz, parece também,ainda que involuntariamente, querer assina-lar e predizer a futuraanatomia semióticadeAntónio Damásio.

A análise de J.Deely, aliás como as de U.Eco sobre as continuidades do saber semió-tico13, abre-se a múltiplas tradições e jamaisse remete ao autismo que tantas vezes obli-tera (e obliterou) o que, à partida, não pro-cede de determinados mundos fechados oufiliações. A diferença entre os dois auto-res é que o segundo tem privilegiado a no-ção de signo como peça arqueológica da pes-quisa semiótica, enquanto J. Deely optou an-tes pela lógica (na versão retrospectiva de"actividade interpretativa própria do entendi-mento, constituída por signos e seus instru-mentos"14) como objecto principal a perse-

13 Por exemplo, entre outros,Trattato di semio-tica generale, 1975, Bompiani,Milano; AA VVEn-ciclopédia Einaudi: 31-Signo(ver obra na nota ante-rior); Lisboa, ou sobretudo,Segno, 1973, IEI,Milanoe Sobre os espelhos e outros ensaios,Difel, Lisboa-1989/Sugli specchi e altri saggi, 1985 Bompiani, Mi-lano.

14 A definição a que J.Deely recorre é da autoria doluso-borgonhês Garcez Poinsot (formado em Coim-bra em 1605), autor que é fundamental - na análisede Deely - para o ponto de viragem que a semióticaestabelece entre a sua existência ainda silenciosa noseio da escolástica e o patamar autónomo moderno.

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guir na sua indagação. A escolha tem comoponto de partida principal (ou de "focagem")osAnalíticos Anteriorese osAnalíticos Pos-teriores do Organon aristotélico15, emboradevidamente situados numa longa tradição16,e permite identificar os continuadores deumamuda"teia semiótica"(1995:14) que seprojecta num período que vai da Idade Médiaao alvor moderno, tendo sempre como baseessencial os conteúdos (ou o labirinto de tra-

O autor é também o tradutor de Poinsot: John ofSt.Thomas,Ars Logica (1632), Tractatus de signis:The Semiotic of John Poinsot, Berkeley of CaliforniaPress, 1985.

15 Nome bizantino atribuído à compilação dos tra-balhos lógicos de Aristóteles e onde se integramAsCategorias(termos ou objectos de apreensão),DaInterpretação(ou Periérmeneias -sobre as proposi-ções),Analíticos Anteriores(formas comuns a qual-quer processo de raciocínio),Analíticos Posteriores(aplicação do raciocínio e do pensamento à experi-ência),Tópicos(provas dialétocas e demonstrativas)e Elencos Sofísticos("que trata do desmascaramentode argumentos especiosos- J.Deely18-19; cf. edi-ção portuguesa doOrganon,1985 - I/II -,GuimarãesEditores, Lisboa e S.Everson,Aristote on Percep-tion,1997,O.U.P.,Oxford/New York).

16 A larga tradição que inscreve a "teia semió-tica"emergente, no seio da grande casa da lógica,baseia-se num diagrama de I. Bochenski onde pon-tuam duas linhas paralelas que partem de Zenão deEleia (464/60) e que se reunem com Zenão de Cí-tio (336/35-246/43). A do lado esquerdo inclui, emvia descendente, Sócrates (ob. 399), Platão (428/27-348/47), Aristóteles (348-322) e Teofrasto (287-286);a do lado direito inclui, também em via descendente,Os sofistas antigos, Euclides de Megara (c. 460), Di-odoro Crono (ob. 307) e Filon de Megara. De Zenãode Cítio, a linha descendente unifica-se e propaga-sea Crisipo de Soli (281/78-208/05) e daí a três escolasfundamentais: a peripatética, a estóica e a megáricae os subsequentes sincretismos. É no quadro destediagrama que as obras referidas do Organon aristo-télico constituem "ponto de focagem"e de referênciafundamental, sobretudo ao longo da Idade Média e noRenascimento.

duções dos conteúdos) dosAnalíticos. Poroutras palavras: a lógica do século XII e XIII- e até, por exemplo, ocurriculum de estu-dos da Universidade de Alcalá em meados doséculo XVII - continuam a estabelecer umacontínua e persistente ligação entre osAnalí-ticos Anteriorese a lógica chamada ’formal’,tratando-se aí da coerência interna do pensa-mento; e entre osAnalíticos Posteriorese alógica chamada ’material’, tratando-se aí da"correspondência entre as formas de pensa-mento e as formas do mundo real"(ibid.:37).Ao fim e ao cabo, organismo e ligação entreorganismo e experiência a concentrarem emsi o topic das discussões seculares em tornodos signos, da representação e da comunica-ção. É este o trajecto proposto por J.Deely;um trajecto que faz da semiótica uma habi-tante bem comportada da grandecasada ló-gica, até que um futuro devir defilha pródigaa acabasse por convocar, um dia, para outrosdesafios e problemas.

2.2 A longas transições de umlegado

Na transição para a Idade Média, J.Deely re-fere a importância de Porfírio17, mas, em pri-meiro lugar, de Boécio (480-524) - "figuraque estabelece a ponte entre a tradição ló-gica grega e o seu desenvolvimento no Oci-dente- por ter sido tradutor para Latim, entreoutras obras, doOrganon, cuja versão terásobrevivido pelo menos até meados do sé-culo XII. Neste longo período, dito detrevas

17 Referência aIsagoge - Introdução às categoriasde Aristótelesde Porfírio, obra escrita no século IIId.C. e que constitui uma fragilíssima ponte entre aspeças lógicas de Aristóteles e o mundo latino, devidoao facto de ter sido escrita em Grego (Guimarães Edi-tores, Lisboa,1994).

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A música dos signos 7

a Ocidente, saliente-se a importância do Ca-lifado Omáiada de Córdova na tradução sis-temática dos textos clássicos gregos. Estessó viriam a ser conhecidos e traduzidos (oure-traduzidos18) na Europa latina, também apartir do século XII, na altura em que as uni-versidades ocidentais iam emergindo (algu-mas seguindo programas e modelos oriun-dos das grandes madrasas -madáris- do Is-lão fatimida ou abássida19). Santo Agostinho(397-426), quase contemporâneo de Boécio,é uma outra parte da ponte que liga o mundoantigo à Idade Média. O autor empreendeuma imensa crítica à Antiguidade (A Cidadede Deus) e deixa no ar, para o futuro, aideia de que existe um género de signos noseio do qual os signos linguísticos propria-mente ditos constituem espécie (abrindo es-paço para que esta espécie possa, um dia, vira ser entendida, em certos meios, como "mo-delo semiótico por excelência"20. Contudo,a reiterada prescrição de uma semiose inde-xical de natureza divina sobrepôs-se às fun-ções significativas, à divisão dos signos (na-turais/convencionais) e à sua própria defini-ção de signo como algo que, "para além daimpressão que produz nos sentidos, traz, em

18 Sobre as relações entre as traduções de Gregopara o Árabe e do Árabe para o Latim, ver Daniel,NormanThe cultural Barrier - Problems in the Ex-change of Ideas, Ed.Un.Press, Edinburgh, 1975.

19 Madrasah(pluralmadáris) significa local de es-tudo em Árabe. Como matriz de universidades eu-ropeias, notem-se as influências exercidas pela Uni-versidade fatimida de al-Azhar do Cairo e pela Ni-zâmiyyah de Bagdad. Sobre o assunto, ver C.Glassémadrasa inDictionnaire Encyclopédique de l’Islam,Bordas, Paris, 1989.

20 U.Eco in Enciclopédia Einaudi: 31-Signo, inSigno, Imprensa Nacional - Cada da Moeda, Lis-boa,1994:33.

consequência, qualquer outra coisa ao pen-samento"21.

Seguindo a tradição estóica, Santo Agos-tinho inclui nesta definição a mente do pró-prio intérprete como terceiro correlato da se-miose22, já que o signo surge (como entidadeque representa) nos sentidos em vez de algoausente (objecto), levando a mente a pro-duzir "qualquer outra coisa"(chamemos-lhe,com todo o risco, umpré-interpretante23).Para J. Deely, Santo Agostinho propagará atéà actualidade o que designa por "alta semió-tica"(1995:24), embora um projecto consis-tentemente semiótico ainda necessitasse, en-tre outras condições, de agrupar ou comple-mentar "os meios internos de cognição"e "osmeios externos de comunicação"numa pers-pectiva que fosse a de uma "doctrina sig-norum24"(ibid.:29), liberta da indexicalidadedivina pelo menos no sentido da abertura in-

21 Tradução constante em J.Deely (Livro II deDoc-trina Christiana-1995:23/24)

22 Sobre o assunto, cf. W.Noth,Hanbook of Se-miotics, Indiana Un.Press, Bloomington/Indianapolis,1995:16/7.

23Sobre a noção de interpretante, a que nos iremosreferir mais tarde, registe-se a sua inserção na defini-ção de signo de C.Peirce: "A sign, or representamen,is something which stands to somebody for somethingin some respect or capacity. It addresses somebody,that is, creates in the mind of that person an equi-valent sign, or perhaps a more developed sign. Thatsign which it creates I call the interpretant of the firstsign. The sign stands for something, its object. Itstands for that object, not in all respects, but in re-ference to a sort of idea, which I have sometimes cal-led ground of the representamen"(1978,II:135/2.228);Charles SandersPeirce,Collected Papers of CharlesSanders Peirce, VolsI/II,III/IV e VIII, The BelknapPress of Harvard University Press, Cambridge, Mas-sachusetts, 1978.

24 Expressão utilizada por Garcez Poinsot para de-signar "análise semiótica"no seuTractatus de signis(1632) (J.Deely,1995:79).

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terpretativa ao provável, ao impreciso, ao in-definido.

Esta transição estará já a operar-se, numprimeiro momento, ao longo da disputa en-tre os defensores dos universais e os nomi-nalistas. J.Deely chega a referir-se aos parti-dários do nominalismo, como Guilherme deOckham25, mas deixa em branco os partidá-rios dosUniversalia sunt in rebus, de queAnselmo de Cantuária é expoente, talvez porter sido o criador de um turbulento e rígido"quadrado semiótico"que dizia correspondera modelos de Aristóteles e de Boécio26 (otrajecto vai-se confirmando). O segundo mo-mento, que é o único relevante para esta tran-sição, segundo J.Deely, ocupa a Secção 5 dasua obra, entitulada "Em direcção à consci-ência semiótica’. O período definido é deli-mitado pelas datas de 1350 a 1650 e é con-siderado pelo autor como "terra incognita",dada a parca investigação que o mesmo temmerecido por parte da historiografia filosó-fica (e semiótica). É talvez por isso queJ.Deely acaba por encontrar em Portugal eem Espanha, no final dosséculos de ouroibéricos, sobretudo à volta das academias deCoimbra, Salamanca e Alcalá de Henares,um conjunto de marcos fundamentais que,na sua opinião, definem uma atitude funda-

25 Curiosamente, J.Deely, embora para denunciarum preconceito originado por deficiências historio-gráficas, cita C.Peirce para se referir a Guilherme deOckham, confirmando a necessidade de libertar a in-dexicalidade divina absoluta conatural à escolástica:"Com Ockham, que morreu em 1347, pode dizer-se que o escolaticismo atingiu o ponto culminante.Depois dele, a filosofia escolática mostrou tendênciapara se separar do elemento religioso..."(1995:73).

26 Sobre o quadrado semiótico de Santo Anselmo,cf., M.Beuchot, ’Le carré de Saint Anselme et le carréde Greimas’ in Lire Greimas, Org.E.Landowski, Pu-lim, Limoges

cional para a semiótica. A discussão acesae "diária"sobre a natureza dos signos - assimnos é apresentado o ambiente nessas acade-mias - terá então levado um conjunto de au-tores a justapor à reprodução secular da tra-dição lógica sumulista27 uma reflexão pro-priamente semiótica, com um notável graude autonomia. Entre esses autores, um é por-tuguês, Pedro da Fonseca (1528-1599), au-tor deInstitutionum dialecticarum libri octo(1564) e o outro é o luso-borgonhês, Gar-cez Poinsot (1589-1644), autor doTracta-tus de signis28 (1632) que J.Deely diz ser"espanhol"(1995:74) e que W.Noth diz ser"português"(1990:20-21). Questões filipi-nas, creio.

As inovações de Fonseca centram-se naaplicação de uma terminologia completa-mente "nova e inequívoca"no quadro da es-colástica, e na explícitadesconfiançaem re-lação à tradicional divisão dos signos for-mais (em convencionais e naturais) que vi-nha de Santo Agostinho29. Deste modo, o

27 Entre as três tradições da lógica aristotélica quedominavam na Europa pós 1200, a vetus, a nova ea moderna, foi esta última também chamada sumu-lista ou terminista, que se tornou no texto-tradição dalógica no período da Renascença. Incluía lógica for-mal (Analíticos Anteriores) e ainda o estudo de ter-mos (Categorias), proposições (Perhermenias) e raci-ocínio (Construção de proposições em argumentos -cf. J.Deely,1995:43-67).

28 John of St.Thomas, Ars Logica(1632), trans-lation J.Deely, Tractatus de signis: The Semiotic ofJohn Poinsot, Berkeley of California Press, 1985 (de-finição de signo e divisões, pgs. 25-27).

29 Na linha da tadição, o autor divide os signosem instrumentais - "aqueles que são representadosàs faculdades cognitivas assim que são reconhecidospor estas e, também, quando conduzem ao reconhe-cimento de outras coisas, como pegadas de animal,fumo ou rugas na testa- e em formais que, por sua vez,ainda podem convencionais ou naturais. Estes "são

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autor prescreve, na sua divisão dos signos,duas grandes linhas, ou seja, por um lado, asformas ou ideias mentais através das quais aexperiência é estruturada e, por outro lado,qualquer dado ou objecto da experiência dossentidos que possa ser tomado como signo.Para além disso, Fonseca tentou ainda definiro papel exacto da representação no âmbitoda significação: "(...)significar é nada maisdo que representar alguma coisa a uma fa-culdade cognitiva. Mas uma vez que tudo oque representa alguma coisa é um signo dacoisa representada, acontece que tudo o quesignifica alguma coisa é o seu signo". Parao autor, as noções, portanto, equivalem-se eequiparam-se, mas são devidamente diferen-ciadas. O longo e penoso caminho para amodernidade passa por esta mesma consci-ência da diferença nocorpo observado. Jáo dizia Montaigne no início do seu segundovolume dosEssais: “Nous sommes tous delopins (pedaços) et d’une contexture si in-forme et diverse, que chaque pièce, chaquemoment fait son jeu. Et se trouve autantde différence de nous à nous-mêmes, que denous à autrui” (1995:2230).

aqueles que significam a mesma coisa para qualquerpessoa, tais como gemidos e risadas. Os signos con-vencionais são aqueles que significam através de umaintenção humana socialmente estruturada, tais comopalavras e as letras e também aqueles que as pessoasusam, tais como a hera e o cipreste". O interessanteé a nota de dúvida deixada por Fonseca, no própriomanuscrito, dando a entender que a divisão dos sig-nos formais não reflecte suficiente propriedade"(cit.in J.Deely,1995:66-72)

30 Montaigne,M.,Essais, 1995:II, Folio Gallimard,Paris

2.3 Poinsot e Locke: a chave doaparecer semiótico

As inovações de Poinsot vão mais além.Partindo da constatação de que os habitu-ais textos de lógica se tornaram "compli-cados"(J.Deely,1995:75), dada a crescentee meteórica discussão acerca da noção designo - o que não deixa de ser um motivo in-teressantíssimo -, o autor acabou por decidirjustapor (prefaciar) a um seu texto de lógica,o textus summularum, aquele que viria a sero Tractatus de signis. Para Poinsot, a própriainterpretação lógica era apenas um modo ouuma forma particular de interpretação, en-quanto a interpretação "em si mesma"deveriasobretudo ser "coextensiva com a vidacogni-tiva31 dos organismos". Independentementedesse facto de clara autonomização semió-tica, Poinsot acrescentava ainda que a ló-gica, ao "alcançar as suas formas específicasde interpretação", o fazia "inteiramente atra-vés de signos"32. Esta clarareorientaçãodatradição interpretativa (baseada - não o es-queçamos - no já histórico legado da lógicasobretudo material) conduz Poinsot a defi-nir signo, não como algo à partida "apreen-dido", mas como algo que traz "alguma ou-tra coisa além de si mesmo à percepção deum organismo"(...) o que é "exactamente (omodo) como as ideias funcionam dentro damente"(...), i.e., "trazem à mente algo maisdo que elas próprias"(ibid.:77). Na traduçãodo original do texto (também da autoria deJ.Deely, 1985) pode ler-se mais detalhada-mente: "Thus ’making cognizant’ has widerextension than does ’representing’, and ’re-presenting’ more than ’signifying". For tomake cognizantis said of every cause con-

31 Sublinhado nosso.32 Cit. in J.Deely,1995:76.

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curring in the production of knowledge; andso it is said in four ways, namely, effectively,objectively, formally, and instrumentally"33.

Esta definição liberta o aparecer do signoface a qualquer ideia previamente cristali-zada na mente. Aliás, Poinsot, nessa mesmalinha, acaba também por superar a divisãoentre "ens reale"e "ens rationis"34 (experi-ência dependente ou não da mente), já queambas as ordens partilham inevitavelmenteuma mesma dimensão humana (quer isto di-zer que ’fumo’ pode querer dizer ’fogo’, oque é natural parauns, mas o fumo podetambém, paraoutros - e o outro é tambémjá a consciência de uma diferença essen-cial - significar ’ritualização divina’, o quenão era natural paraos primeiros). Por fim,indo muito para além de Fonseca no seuTratado, o luso-borgonhês, não apenas de-limita o campo da significação e o campoda representação, como os separa irredutivel-mente. Defende o autor que um objecto poderepresentar-se a si mesmo e pode também re-presentar um outro. Contudo, considerar umsigno de si mesmo seria pura contradição,razão pela qual um signo só o é se for um

33Cit in D.Clarke, Jr, Sources of Semiotic- Readings with Commentary from Antiquity tothe Present, Southern Illinois University Press,cardbondale/Edwardsville,1990:35-40.

34 Na tradição escolástica, oens(origem da expe-riência) dividia-se emreale (independentemente damente - categorias, substâncias e acidentes) eratio-nis (dependente da mente - conceptual e perceptivo- J.Deely,1995:35-37). Para o conceptualismo, pró-ximo de S. Tomás de Aquino (1225-1274) e de Pe-dro Abelardo (1079-1142), que foi entendido comuma espécie de síntese entre o nominalismo e o re-alismo, os universais (as grandes abstracções anteri-ores à experiência) eram vistos como dependentes damente humana, embora os conceitos elaborados men-talmente tivesse origem em semelhanças "betweenthings of a common form"(W.Noth, 1990:18).

signo de algumaoutracoisa (só Peirce, maistarde, entenderá o contrário, ao entrever opensamento como séries ilimitadas de signosque representam outros signos, no quadro deuma sequência ininterrupta). O raciocínio dePoinsot, no entanto, é dilucidado através deuma tríade, veiculada por uma distante tra-dição latina de Boécio (o trajecto cumpre-se), segundo a qual existe sempre (1) umacausa ou fundamento (alguma característicade um ente); (2) a relação ela-mesma - in-dependente - que está acima do ente e, porfim, (3) aquilo com que a coisa se relacionaatravés do seu fundamento (oterminusda re-lação). Para Poinsot, o signo é, pois, apenasa relação, independentemente dos termos edos atributos do agente.

Sintetizando: a consciência de que existeuma relação independente do agenciamentoe dos processos que conduzem à significa-ção, a convicção de que o signo terá de pro-duzir mentalmente algo mais do que o seusimples aparecer e, finalmente, a recusa deuma realidade prévia ou adquirida à semiosefazem de Poinsot umpré-modernoque aca-bará por ter, segundo J.Deely, influência emJ.Locke.

De facto, na sua conhecida divisão dos sa-beres, J.Locke separa aparentemente o co-nhecimento especulativo (coisas da naturezaque estão na base do entendimento especu-lativo - descendência doEns reale) do co-nhecimento prático (as coisas tal como são,devido ao pensar e ao agir humanos - des-cendência doEns rationis), mas, no fundo,essa divisão conflui no conhecimento geral(no topo do seu diagrama), até porque ambosos conhecimentos particulares se interpene-tram na experiência, o que corresponde auma visão que, como vimos, já havia apare-cido inscrita noTractatus de signisde Poin-

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sot. No lado inferior do diagrama, surge en-tão a semiótica como um novo saber, enten-dido na acepção de umamediaçãoque sepropõe descrever e elucidar os meios atravésdos quais "o conhecimento, tanto especula-tivo como prático, é adquirido, elaborado epartilhado"35. Eis como das estruturas deconteúdo dosAnalíticosse acaba por chegar,por vias ainda que tortuosas e algo silencio-sas, à instituição quasi-moderna de saberes,onde - e tal deve sublinhar-se - já figura au-tonomamente a própria semiótica. O trajectoparece cumprir-se.

Mas continuemos. A concepção de signode Locke, baseada na tradição da tríade, con-templa ’ideias’, ’coisas’ e ’palavras’; as pri-meiras no vértice, e as outras duas na base.Nesta sintaxe, as ideias, na linha de Poinsot,não correspondem jamais a um adquirido36

35 O diagrama que traduz este despertar autónomoda semiótica, após séculos de uterino convívio na casada lógica, situa a conhecida divisão das ciências deLocke do seguinte modo: por baixo, a semiótica ("dosmeios através dos quais o conhecimento, tanto espe-culativo como prático, é adquirido, elaborado e parti-lhado"); ao meio, à esquerda, a área "especulativa"(decoisas que são o que são por natureza); ainda ao meio,à direita, a área "prática"(das coisas que são o quesão devido ao agir e pensamento humano"e, por fim,em cima, o conhecimento. Este losango surge depoisdisposto, em estrutura profunda, substituindo semi-ose por conhecimento (ligação entre experiência e asrelações sígnicas) e, no lado inferior, a semiótica en-quanto conjunto de "reflexões sobre o papel dos sig-nos na estruturação da experiência e na revelação danatureza e da cultura ao nosso conhecimento"(cit. inJ.Deely,1995:80-84).

36 Para o filósofo inglês, as ideias simples deriva-vam de sensações e reflexões (ou seja, da experiên-cia própria, externa e interna), logo nenhuma abstrac-ção poderia ser-lhes anterior. O uso do cérebro, paraLocke, é, pois, nesta linha, o uso, simples ou com-plexo, de uma escolha permanente e claramente au-tónoma: “At it is in the motions of the body, so it is

(ou a uma reflexo realista da coisa represen-tada), mas antes a uma condensação selectivade atributos, elaborados a partir da obser-vação das coisas. Por consequência, Lockepostula uma ligação arbitrária entre coisas epalavras e, portanto, a estas - e a outros sig-nos - mais não resta do que traduzir as ideiassimples e complexas que, por sua vez, se ge-ram umas às outras na mente humana. Nestetipo de descrição sígnica, tudo se torna rela-cionalmente independente (na linha tambémde Poinsot) e auto-construtor. Como U. Ecoreflectiu emO Signo(1981:11637), bastaria"substituir à noção de ideia - de Locke - a deuma unidade semântica, identificada não namente humana, mas no tecido da cultura quedefine as próprias unidades de conteúdo"e ocampo semiótico estaria prestes a enunciar-se. Poder-se-ia antes dizer, como veremosmais adiante, que a identificação das "unida-des semânticas"(ou das formas de conteúdo)resultará mais de uma interacção entre osprocedimentos da mente humana e o "tecidoda cultura", do que apenas dojogoproporci-onado por este último38.

in the thoughts of our minds: where anyone is suchthat we have power to take it up, or lay it by, accor-ding to the preference of the mind, there we are at li-berty”(...)“And if I can, by a like thought of my mind,preferring one to the other, produce either words orsilence, I am at liberty to speak or hold my peace.And as far as this power reaches, of acting or not ac-ting, by the determination of his own thought prefer-ring either so far is a man free”. ’Essay ConcerningHuman Understanding’ in Modern Philosophy - AnAnthology of Primary Sources, 1998: 262-270, Hac-kett Publishing Company,Inc.,Indianapolis/R.Ariew-E.Watkins(org.)/Cambridge.

37 Segno, Istituto Editoriale Internazionale, Milano,1973; ed.ut.:O signo, Presença, Lisboa, 1981.

38Sobre a relação entre genoma e cultura no seuimpacto sobre a consciência nuclear e alargada, verA. Damásio,2000:232.

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A dupla Poinsot-Locke (1632 é o ano sim-bólico do nascimento do segundo e o anoda publicação doTratadodo primeiro) pre-figura, em última instância, para J.Deely, oque considera ser o despontar de "uma novalinha na antiga tradição- e conclui: "a preo-cupação básica - da semiótica - é com aquiloque é o que é independentemente do homeme, em segundo lugar, com as coisas que sãoproduzidas pelo homem e dele dependem.Na semiótica, a preocupação é com ambosigualmente"(1995:82). Locke é, deste modo,situado na historiografia semiótica como oponto de chegada de uma longa tradição,cuja herançasigilosa e próxima se chamaPoinsot, e deixa de ser o simplespioneirosolitário que redescobriu, um dia, por sor-tilégios indescortináveis e inefáveis, o étimoda palavra semiótica.

2.4 A modernidade, as invençõese as segmentações

Com o despontar da era moderna, com vi-mos emÓrbitas da Modernidade39, vai apa-recendo um novo tipo de sujeito autónomo,filtrado por Hume e Kant como um verda-deiro sujeito construtor, imaginativo e capazde desmontar a velhacápsulano seio da qualos data coincidiriam, como que por magiaalgo adquirida, com a natureza primeira domundo. Inicia-se então a montagem; o di-agrama tornado em sujeito; a edificação daauto-representação. O “homem” - surgidodo colapso da representação clássica, comoFoucault salientou - é um ser que agora co-nhece e redesenha as categorias e, nessa redecomplexa, passará a reconfigurar-se. “Como

39 Luís Carmelo,Órbitas da Modernidade, Edito-rial Notícias, 2000: Parte I, Cap.II (no prelo).

os sucessores de Kant rapidamente obser-varam, a única maneira pela qual podía-mos compreender o eu transcendental eraidentificá-lo com o eu pensável mas incog-noscível que é um agente moral - o eu nume-nal autónomo” (R.Rorty,1999:21440). Esseagente moral que liga sobretudo a vontade àacção, partindo sempre da análise da expe-riência, define-se a si próprio como único,emergente, subitamente aparecido e auto-reconhecido. Nada melhor do que regressarao autor das Críticas para o ilustrar: “Ora nóstemos somente uma única espécie de ser nomundo, cuja causalidade é dirigida teleolo-gicamente, isto é, para fins”(...)”Esse ser é ohomem, mas considerado como númeno; oúnico ser da natureza, no qual podemos re-conhecer, a partir da sua própria constitui-ção, uma faculdade supra-sensível (aliber-dade) e até mesmo a lei da causalidade como objecto da mesma e, que ele pode propora si mesmo como o fim mais elevado (o bemmais elevado do mundo)” (1998:40041)

Ao lado do surgimento deste homem mo-derno - de acordo com a conhecida tesede Foucault emLes Mots et les choses42 -surge também a linguagem, não já como umaamálgama de signos inseridos numa teo-semiose motivada, mas sobretudo enquantoentidade complexa, autotélica e reflexiva quese tornará, também, em objecto privilegiadodo saber. Mais do que referir ou indexica-lizar a perfectibilidade metafísica, os signospassam agora a constituir-se como interfa-ces aparentemente autónomos que retalham

40 Consequências do pragmatismo, 1999,InstitutoPiaget, Lisboa

41 1790, Crítica da Faculdade do Juízo,1998,I.N.C.M., Lisboa (& 83/B398/1998:400).

42 As palavras e as coisas,1988,Edições 70, Lisboa(Edição original 1966).

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o imponderável das expressões e dos con-teúdos e disputam os sentidos do ser per-dido (tudo isto sob a crença da novíssima’cultura’). As linguagens (e as metalingua-gens) tornar-se-ão, de qualquer maneira, aolongo da modernidade já consumada, numdos objectos mais intrigantes de pesquisa, atal ponto que acabarão mesmo por se instituirenquanto alvo preferido das grandes pergun-tas - e dos motivos epistémicos - da actuali-dade43.

43 O surgimento do homem e das linguagens gerana arte literária o aparecer de um novo tipo de per-sonagens que corresponde aos novos paradigmas daera moderna. O jogo da intersubjectividade so-cial em que estes novos personagens são produzi-dos centra-se no que U.Eco, emApocalípticos e in-tegrados(1970,Perspectiva,SãoPaulo), designou, nasequência doOtras Inquisiciones(1952) de J.Borges,como constituindo a “civilização do romance”, con-traposta ao estádio pré-moderno, baseado na actua-lização sempre repetitiva da ’estrutura do mito’: “Opúblico (no estádio pré-moderno) não pretendia sa-ber nada de absolutamente novo, mas simplementeouvir contar, de maneira agradável, um mito, reper-correndo o desenrolar conhecido, no qual se podiacomprazer, todas as vezes, de modo mais intenso emais rico”(...)”Era também assim que funcionavamas narrativas plásticas e pictóricas das catedrais góti-cas ou das igrejas renascentistas e contra-reformistas.Narrava-se, muitas vezes, de modo dramático e con-turbado o já acontecido. A tradição romântica “(...)”oferece-nos, ao contrário, uma narrativa em que o in-teresse principal do leitor é deslocado para a impre-visibilidadedo que acontecerá, e portanto, para a in-venção do enredo, que passa para primeiro plano. Oacontecimento não ocorreu antes da narrativa: ocorreenquanto se narra, e, convencionalmente, o próprioautor não sabe o que sucederá”. Também no texto‘De las alegorias a las novelas’, inserido no livro deJ.L.BorgesOtras Inquisiciones(1952), termina do se-guinte modo: “Tratemos de entender, sin embargo,que para los hombres de la Edad Media lo sustantivono eran los hombres sino la humanidad, no los indi-viduos sino la especie, no las especies sin el género,no los géneros sino Dios. De tales conseptos (cuya

Por fim, se a modernidade descobriu o su-jeito e as linguagens como alvosnarcísicosdo novo olhar, também decidiu segmentar eautonomizar irredutivelmente os saberes, domesmo modo que, ao inventar as outras erashistóricas e a própria ’história científica’, ela- a modernidade - se descobriu subitamentecomomoderna(como se sabe, ’moderna’ eratambém o nome da lógica sumulista ou ter-minista dominante no Renascimento - puracoincidência).

É neste novíssimo quadro que a antiga ló-gica - já no limiar do século XX - acabapor se autonomizar face à grandecasa dascasasque sempre foi a filosofia e, nessaaventura, terá perdido para sempre a com-panhia da metafísica, da ética e,apenasem parte, da própria semiótica. No seutrajecto, a nova lógica descobriu renova-dos campos de aplicação, ligados sobre-tudo às matemáticas, ao cálculo e, maistarde, ao processamento de dados, num de-vir que inicialmente ligou Boole, Frege, Pe-

más clara manifestación es quizá el cuádruple sistemade Erígena) ha procedido, a mi entender, la literaturaalegórica. Esta es fábula de abstracciones, como lanovela lo es de individuos. Las abastracciones estánpersonificadas; por eso, en toda alegoría hay algo no-velístico.Los individuos que los novelistas proponenaspirán a genéricos (Dupin es la Razón. Don SegundoSombra es el Gaucho); en las novelas hay un elementoalegórico.El pasage de alegoría, de especies a indivi-duos, de realismo a nominalismo, requirió algunos si-glos, pero me atrevo a sugerir una fecha ideal. Aqueldía de 1382 en que Geoffrey Chaucer, que tal vez nose creía nominalista, quiso traducir al inglés el verspode Bocaccio ‘E con gli occulti ferri Tradimenti’ (‘Ycon hierros ocultos las Traiciones’), y lo repetió deeste modo: ‘ The smyler with the knyf under the cloke(‘El que sonríe, com el cuchillo bajo la capa’). El ori-ginal está en el séptimo libro de laTeseida; la versiónen elKnightes Tale.” (J.Borges, 1952,Otras Inquisi-cionesin Prosa completa,1980-II:270)

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ano e Russell, mas que também soube re-por "novas temáticas em tópicos habitual-mente"seus (H.Putman,1988:7144). Por ou-tro lado, também no âmbito de afirmaçãodo estudo autónomo das linguagens, a lin-guísticaautorrevelou-see o seu propósito foio de fazer abstracção da materialidade dasmanifestações da linguagem "para depreen-der formas independentemente da substân-cia"(A.Jacob,1984:1045). Outras tendênciasdiversificadas, mais ou menos notacionais,perseguiram gramáticas secretas universaise é U.Eco quem ironiza o facto: "(...) éainda a posição aristotélica, várias vezesproposta, dos Modistas medievais a Port-Royal, de Port-Royal a Estaline, de Esta-line a Chomsky e a todos os linguístas em-penhados em estabelecer, ao nível fonoló-gico ou gramatical, os universais da lingua-gem". Também a filosofia, quem sabe sepor ter visto a suagrande casaa despovoar-se, decidiu desenvolver esforços em tornode uma nova e segmentada disciplina: a fi-losofia da linguagem. Esta situar-se-ia emrelação estreita com a "ciência da lingua-gem por excelência, a linguística, e às ex-tensões semióticas que a ultrapassam sempremais"(A.Jacob,1984:15)

2.5 A dispersa semiótica e odevir interactivo anunciado

No segundo capítulo deCaleidoscopios -La filosofia occidental en la Segunda mitaddel siglo XX46 (2000:53-59), Ignacio Izuz-

44 AA VV Enciclopédia Einaudi - 13 Lógica Com-binatória in Lógica, Imprensa Nacional - Casa da Mo-eda, 1988, Lisboa.

45 Introdução à Filosofia da linguagem, Rés,1984,Porto.

46 Alianza Editorial,Madrid,2000

quiza traça um interessante perfil da filoso-fia dos últimas décadas e fá-lo preceder poruma descrição das duas heranças a Leste ea Oeste do Atlântico. A herança continentalé descrita através da sua orientação "marca-damente historiográfica", baseada num "re-conhecimento substantivo"da história e sem-pre aberta a "respostas positivas"e a teoriasque se transformam em verdadeiros "edi-fícios ou sistemas"teóricos (Descartes, He-gel, por exemplo). Por outro lado, o au-tor refere a apetência europeia pela gene-ralidade e, portanto, pela abertura à tradi-ção metafísica, o que induz a abordagenstais como a "estrutura da realidade", a "ac-ção moral", o "sujeito", ou ainda "o sen-tido realidade última". Por seu lado, a he-rança anglo-saxónica é descrita como per-meável ao empirismo (de Locke a Hume)- e também ao pragmatismo no caso norte-americano -, às oposições ao idealismo con-tinental (Moore e Russell, por exemplo) ea uma especial atenção à linguagem "ordi-nária"e ao positivismo lógico. Para alémdisso, a tradição Anglo-saxónica "descon-fia das pretensões generalistas"e interessa-semais pela "história de um problema"(numaperspectiva nominalista) do que pela históriaem geral.

Esta nítida separação de tendênciaspermitir-nos-á compreender melhor as"canonizações"(Harold Bloom) semióticasque precedem e sucedem o limiar do séculoXX. Para começar, situemos os dois grandesCanonssemióticos - não vamos, agora eaqui, reentrar na clarificação dos termossemiótica/semiologia47 - que aparecem,

47 De qualquer maneira, e como também su-geriu A.Fidalgo (Semiótica: a lógica da comu-nicação,Estudos em Comunicação, UBI-Covilhã,1998:15), cremos que J.Trabant (Elementos de semió-

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respectivamente, nos Estados Unidos e naSuíça, ou seja, C. Peirce (1839-1914) e F.Saussure (1857-1913). Passemos a carac-terizar sucintamente o que os diferencia(o que não é pouco para uma síntese tãoapertada48):a)Saussure centra-se na tradição da palavra eda voz. Entende socialmente a comunicação,mas sempre através dessa instância dupla-mente psíquica que é a "marca"de um some um "conceito"(significante e significado).Peirce, um lógico na sua origem, centra-senuma ideia de semiose ilimitada corporizadapelo pensamento e mediada pela comunica-ção intersubjectiva (entre crença e dúvida).b)Saussure (e quase toda a tradição que lhesegue; veja-se o caso ’formal’ de L. Hjelms-lev) nega uma perspectiva pansemiótica, li-mitando o âmbito da "nova ciência"a "umaparte da psicologia social e, por conseguinte,da psicologia geral"(1995:4449), enquantoPeirce recusa todo o psicologismo e defendeum campo ilimitado de aplicação para a se-miótica.c)A estrutura diáctica do signo saussureanodefine uma estratégia mentalista (de que a re-alidade, ela-mesma, se ausenta) e privilegiamatricialmente os signos linguísticos; en-quanto Peirce entende o signo como "séries

tica, Presença, Lisboa, 1990:13) responde sintetica-mente e bem à questão, independentemente da ques-tão institucional que o próprio saber semiótico pressu-põe. Segundo o autor, é a (variada) tradição filosóficae a tradição linguística (e literária, acrescentaríamos)que estão no cerne da divisão entre uma semiologiaoriginalmente saussureana e a expressão mais ambi-valente - semiótica -, hoje em dia tácita e geralmenteestatuída como designação epstémica.

48 Sobre esta questão, cf. E.P. Coelho,Os universosda crítica, Ed.70, Lisboa, 1987: 501.

49 Curso de linguística geral, PublicaçõesD.Quixote, Lisboa,1995.

de interpretantes50"ad infinitum51, no quadrode uma sequência ininterrupta de interacções(através da figura do representamen) que sedesencadeia entre a realidade (objecto) e osprocedimentos mentais (os interpretantes).d)Saussure estabelece conexões entre actospotenciais e actuais no quadro da instituiçãoda língua (sempre dentro de parâmetros lin-guísticos e determinadas pela noção de ’du-pla articulação’), enquanto Peirce define ca-tegorias (Firstness, Secondness e Thidness)de aplicação geral e universal.e)Saussure, por fim, numa palavra, retoma olegado exegético e metafísico da letra e davoz (veja-se a crítica de J.Derrida emDe laGrammatalogie52), enquanto Peirce retomaa tradição pragmática da observação conti-nuista docorpo (de que a primeira metá-fora semiótica é o próprio "sintoma equí-voco"hipocrático, sempre entrevisto na suarelação com o/um contexto).

As tradições que se formam até à actuali-dade, Anglo-saxónica (a) e continental (b),prolongando maleavelmente ambos osCa-nons, também podem ser resumidas do se-guinte modo:a) Ao lado de Husserl53 e Heidegger, Witt-

50 Obra citada na nota 23 - 1978,II:303/2.292.51 "A sign, or representamen, is something which

stands to somebody for something in some respect orcapacity. It addresses somebody, that is, creates in themind of that person an equivalent sign, or perhaps amore developed sign. That sign which it creates I callthe interpretant of the first sign. The sign stands forsomething, its object. It stands for that object, not inall respects, but in reference to a sort of idea, which Ihave sometimes called ground of the representamen".Obra citada na nota 23- 1978,II:135/2.228.

52 De la Grammatologie, Ed.Minuit, Paris, 1967.53 Sobre a semiótica filosófica de Husserl, veja-se

a óptima síntese de A.Fidalgo emSemiótica: a lógicada comunicação, Estudos em Comunicação, Univer-sidade da Beira Interior, Covilhã,1998: 31-43.

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16 Luís Carmelo

genstein é um dos três grandes marcos dopensamento da primeira metade do século,com incidência especial no mundo anglo-saxónico. De entre as suas duas grandes fa-ses - a doTratado lógico-filosófico(1921 -centrado nomapping, enquanto relação ló-gica entre realidade e linguagem) e a domi-nada pelasInvestigações Filosóficas(1953 -centrada nos jogos de linguagem e na ideiade significado como uso realizado no seio dalinguagem corrente54) - é esta última que in-fluencia a produção teórica inglesa que, porsua vez, dá uma particular atenção à análiseda ’linguagem ordinária’ (grupo de Oxford;G. Ryle, P.Strawson55 e J.Austin, autor da fa-mosa ’teoria dos actos de fala’56). Nos EUA,

54 Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Fi-losóficas, Fundação Calouste Gulbenkian/Serviço deeducação,Lisboa,1985.

55 Ao contrário do que Russell considerara osignificado de um nome a sua própria referência,P.Strawson defendeu que o significado de uma pala-vra não era "como pretendía Russell, el objeto a quese refiere esa palabra, sino aquello a lo que se refiereel hablante cuando usa esa pabra. Es decir, el signi-ficado de una palabra debe encontrarse en el uso quedella se hace"(I.Izuzquiza,Caleidoscopios - La filoso-fia occidental en la Segunda mitad del siglo XX,Ali-anza Editorial,Madrid,2000).

56 Quando falamos, segundo Austin, somos con-temporâneos de três actos que, no entanto, se desen-rolam e significam no tempo: a) Actos locutórios (aofalar, para além do que se comunica, existe uma fona-ção, a aplicação de normas e, daí, a consecusão - in-certa - de um sentido e de uma referência, i.e., o dadoético), b) perlocutórios (ao falar levamos a cabo umacto de zizer qualquer coisa "in saying", seja informa-ção, resposta, intenção, sentença, crítica ou dscrição,tudo o que se oponha ao acto fónicio de simplesmenteafirmar) e b) perlocutórios (ao falar, também geramosefeitos, quer sobre nós quer sobre os nossos interlo-cutores; -Quand dire c’est faire, Seuil,1971; ed. ing.Original:1962. Para a elaboração da teoria dos ’Ac-tos da fala’, há que realçar o empenho de um colegade Austin, H.Grice, partidário de que comunicação e

C. Morris, já em 1938, tenta estabelecer a se-miótica entre as ciências como uma autênticameta-ciência (atribuindo-lhe três dimensões,a sintáctica, a semântica e a pragmática57),mas todo o seu trabalho acaba por reflectiraquilo que com o passar do século se podeconsiderar o ’paradigma Peirce’ (o consensoabrange figuras como A. Whitehead, B. Rus-sell, M.Fisch, ou o criticismo de G.Hartmane, nas últimas décadas, explodiu em asso-ciações, congressos e publicações específi-cas sobre o autor58). Embora muito criticadahoje em dia, não deve esquecer-se nesta bre-víssima referência, a tradição americana daBehavioral semiotic(C.Ogden59, I.Richards,J.Watson, B.Russell60, etc), embora seja, de

significado são consanguíneos porque se processamno tempo, e também o norte-americano J. Searle.

57 Foudations of the Unity os Science. Towardan International Encyclopedia of Unified Sci-ence,1938,CUP,Chicago.

58 "(...) in short: the Peircean paradigm is nowfirmly regnant"(T.Sebeok,Semiotic in the United Sta-tes, Indiana University Press, Indianapolis and Bloo-mington, 1991).

59 "The effects upon the organism due to any sign,which may be any stimulus from without, or any pro-cess taking place within, depend upon the past historyof the organism, both generally and in a more precisefashion. In a sense, no doubt, the whole past history isrelevant: but there will be some among the past eventsin that history which more directly determine the na-ture of the present agitation than others. Thus whenwe strike a match, the movements we make and thesound of the scrape are present stimuli. But the exci-tation which results is different from what it wouldbe had we never struck matches before."(C.Ogdenand I.Richards,The meaning of meaning, Harcourtand Brace, N.York, 1923:139-40; cit. in D.Clarke,Jr. Sources of SemioticsSouthern IllinoisUniversityPress, Carbondale (1990:85)

60 "Generally, when you hear na object-word youunderstand, your behaviour is, up to a point, thatwhich the object istelf would have caused. This mayoccur without any ’mental’ intermediary, by the ordi-

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A música dos signos 17

facto, a aventura da lógica do século XX quemelhor define transversalmente a linguagem,o método e os propósitos da semiótica anglo-saxónica (entre muitos outros, R.Carnap61,W.Quine62; a intencionalidade comunicaci-

nary rules of conditioned reflexes, since the word hasbecome associated with the object. In the morningyou may be told ’breakfast is ready’, or you may smellthe bacon. Either may have the same effect upon youractions. The associations between the smell and thebacon is ’natural’,that is to say it is not a result ofany human behaviour. But the associations betweenthe word ’breakfast’ and breakfast is a social matter,which exists only for English-speaking people. This,however, is only relevant when we are thinking ofthe community as a whole."(An Inquiry into Meaningand truth, Allen and Unwin, London,1940:67; cit. inD.Clarke, Jr. Sources of SemioticsSouthern Illinoi-sUniversity Press, Carbondale (1990:88)

61 "The technical term ’intension’, which I use hereinstead of the ambiguous word ’meaning’, is meantto apply only to the cognitive or designative mea-ning component. I shall not try to define this compo-nent. It was mentioned earlier that determination oftruth presupposes knowledge of meaning (in additionto knowledge of facts); now, cognitive meaning maybe roughly characterized as that meaning componentwhich is relevant for determination of truth. The non-cognitive meaning components, although irrelevantfor questions of truth and logic, may still be very im-portant for psychological effect of a sentence on a lis-tener, e.g., by emphasis, emotional associations, moti-vational effects."(’Meaning na d Synonymy’ in Natu-ral Languages, Apendix D of Meaning and Necessity,University of Chicago Press, Chicago, 1947:235; cit.in D.Clarke, Jr.Sources of SemioticsSouthern Illinoi-sUniversity Press, Carbondale (1990:103).

62 "Uma forma básica para as frases da ciênciapode ser representada como "Fa"em que "a"está nolugar de um termo singular referindo-se a algum ob-jecto, de entre aqueles que existem segundo a teoriacientífica em questão, e "F"está no lugar de um termogeral ou predicado. A frase "Fa"é verdadeira se e so-mente se o objecto satisfazer o predicado. Não se develer o tempo do verbo na predicação "Fa"; qualquerdatação relevante deve antes ser integrada nos termos

onal de H. Grice63 e J.Bennett64; ou até a"Convenção65"de D.Lewis), assim como oempirismo britânico e a tradição pragmáticaque vem de William James e Charles SandersPeirce66.

representados por "F"ou "a". (Filosofia e Linguagem,Asa, Lisboa,1995 :31).

63 "Explicitly formulated linguistic (or quasi-linguistic) intentions are no doubt comparatively rare.In their absence we would seem to rely on verymuch the same kinds of criteria as we do in thecase of nonlinguistic intentions where there is a gene-ral usage."(...)"context is the criterion in settling thequestion of why a man who has just put a cigarettein his mouth has put his hand in his pocket; rele-vance to na obvious end is a criterion in settling whya man is running away from a bull"(H.Grice, ’Mea-ning’ in Philosophical Review66 (1957:377-388 cit.in D.Clarke, Jr.Sources of SemioticsSouthern Illinoi-sUniversity Press, Carbondale (1990:172).

64 "I prefer to reserve the terms ’meanings’ and’language’ to communications-systems which mani-fest individual intentions to communicate. Intentionalbehaviour is attuned to the particular circumstancesas wired-in displays frequently fail to be: displaysoften occur in the absence of observers, or the ab-sence of suitable observers, or more often than theyare needed, and so on. The relatively blind andmechanical look of most display behaviour puts agreat behavioural gulf between it and the employmentof a communication-system which reflects individu-als’intentions to communicate"(Linguistic Behavior,Cambridge University Press, Cambridge,1976:138).

65 Noção de convenção: "A regurality R inthe behavior of members of a population P whenthey are agents in a recurrent situation S is aconvention if and only if, in any instance of Samong members of P - (1)everyone conforms R;(2) everyone expects everyone else to conform toR; (3) everyone prefers to conform to R on con-dition that the others do, since S is a coordinationproblem and uniform conformity to R is a coordi-nation equilibrium in S"(D.Lewis,Convention, Cam-bridge UniversityPress,Cambridge,1969:36-37).

66 Sobre a origem e desenvolvimento do prag-matismo norte-americano, verO Pragmatismo. DePeirce a Davidson, Asa, Lisboa, 1993.

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Contudo, ao lado da semiótica geral, ésobretudo na sua versão aplicada que aAmérica semióticatem dado frutos semequiparação na sua congénere continental,o que, aliás, está de acordo com o anti-generalismo nominalista da (supracitada)análise de I. Izuzquiza. O livro de T.Sebeok,Semiotics in the United States(199167) édisso um óptimo exemplo. Para além do as-pecto historiográfico, mesclado com um tomeclético biográfico-romanesco, a obra exem-plifica os campos de aplicação da semióticaamericana nos últimos anos. Limitar-nos-emos, agora e aqui, a divulgar parte daextensalista de T.Sebeok que fala por si:"Semiotics of the body artefacts"(ibid:83),semióticas da cultura (ibid:50), da antro-pologia (ibid:52), da arqueologia (ibid:51);"semiophysics"(R.Thom - ibid:48), "phar-macosemiotics"(ibid:32); semiótica damedicina (H.Shands; E.Baer, M.Blois etc,ibid:33-4), "urbain semiotics"(ibid:33),"legal semiotics"(ibid:43), "notationalsystems"(ibid:44); semióticas do design(ibid:42), semiótica do turismo (ibid:41),etnometodologias (ibid:40); semióticasvisuais variadas e do cinema (ibid:39-42),semiótica da música (ibid:41), semióticasda arte em geral (ibid:42-7), semióticasdo texto (ibid:38); estratégias narrativas(ibid: 39), semiótica do teatro e espectáculo(ibid:39), "endosemiotics"(estudo do "neuralcode", "metabolic code", "immune code"e"genetic code- ibid:109); "semioimmu-nology"(ibid:107), quinésica (ibid:111),proxémica (ibid:110), cibersemióticas(ibid:113-122), "biosemiotics"(ibid:109),"microsemiotics"(ibid:110), "zoosemio-

67 Indiana University Press, Bloomington and Indi-anapolis.

tics"(ibid:113), "phytosemiotics"(ibid:112),"mycosemiotics"(ibid:112), etc.b) No lado continental, refira-se o dina-marquês L. Hjelmslev que desenvolveu a no-ção de ’continuum’ (mening) e dividiu, deforma inovadora, substância e forma em ex-pressão e conteúdo, embora tivesse limitadoo agregado estritamente formal à dimensãodo signo. Negando a pansemiose e mantendoum grande enfoque linguístico, na tradiçãosaussureana, L.Hjelmslev, a par de um de-senvolvimento lógico-glossemático assinalá-vel, haveria de deixar para R. Barthes a hipó-tese de repensar a sua criativa ideia de "cono-tação"68. R.Barthes fez da conotação os seusmitos69, o que, para alguns autores, corres-pondeu a uma refundação semiótica conti-nental. O estudo de R.Barthes provou que asconotações eram programadas socialmente econstituíam uma larga operação de controlo,fosse na linguagem cinematográfica, na cu-linária, nas reportagens sobre os escritoresem férias, ou até na ligeireza automóvel.Foi a fase do "émerveillement"como o pró-prio R.Barthes definiria em 1974 (1985:12-1570). Depois, seguiu-se a fase mais estrutu-ral, onde (se) chegou a acreditar que a "se-miologia"podia ser dotada de atributos cien-tíficos, até que a terceira fase acabou por secentrar definitivamente no local de eleiçãopassional de R.Barthes: o texto. Aliás, na

68 Conotação, ou forma de conteúdo de um signo,cuja forma expressiva deriva de um outro signo: emminha frente ’o rosto de Maria Calas’/ ’o espanto ea dor’/ ’aquelaária do Puccini’ ...e assim por diante(Prolègomenes à une théorie du langage, Les Editi-ons du Minuit, Paris, 1968:144-157)

69Mythologies,1957,Seuil, Paris.70 Publicado no texto de abertura deL’aventure sé-

miologique- que contém osÉléments- Ed. du Seuil,Paris,1985:7-14.

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A música dos signos 19

Lição71 (inaugural da cadeira de semiologialiterária do Colégio de França - Janeiro de1977-1997:28/9), o autor reservou para a se-miótica (diga-se, para a "semiologia") o pa-pel de rasura ou debricolage em crise, aoafirmar que a linguística se estava a descons-truir devido à sua crescente formalização (edesvirtuação) e que essa mesma desconstru-ção era o próprio "nome da semiologia".

Durante os anos 60 e 70, a psicanálisetambém rondou ocorpus privilegiado deeleição continental: o texto (Lacan e não só),enquanto Derrida insistia no caracter descen-trado das estruturas ou na denúncia da me-tafísica do significado e Kristeva repunha odialogismo, agora sob a forma de intertex-tualidade. A semiótica vivia na exegese dotexto e, muitas vezes, na dissimulação poé-tica das múltiplas análises radicalmente au-totélicas. Do outro lado, ogrupo de Entre-vernes, a Escola de Paris, entre outros, ten-tavam repor o ’quadrado semiótico’ e discor-rer ao longo de percursos narrativos e mode-los actanciais, para além de terem chegadoa definir institucionalmente um dicionário72.Há muito poucos anos, obalançoda escolaapareceu numa publicação -Lire Greimas73

-, resultado de uma reunião entre os antigosdiscípulos de A. Greimas. Na sua comuni-cação, simbolicamente designada ’Et main-tenant ?’, J.Geninasca afirmava: - "s’il estvrai que les obstacles qui ont brisé les élansdes débuts sont de nature épistemologique,c’est l’épistemologie de la sémiotique qu’il

71 Edições 70, Lisboa,1997.72 A.Greimas/J. Courtés,Dictionnaire raisonné de

la théorie du langage, Classiques Hachette, Paris,1979.

73 Lire Greimas, Org.E.Landoeski, 1997, Pulim,Limoges

faut changer pour échapper à immobilismede ces vingt dernières années"(1997:53).

Este imobilismo continental (sobretudofrancês e de raíz estrutural) foi um facto.Mas, de qualquer modo, trata-se de um imo-bilismo que adveio de uma análise holista dotexto e que não soube, a tempo - quem sabe? -, escutar (ou comunicar com) as versõesaplicadas e interdisciplinartes tão em vogado outro lado do Atlântico74. Seja como for,é possível que as saídas para as semióticasdo texto se estejam, hoje em dia, aproces-sar nos cibermundos, no hipertexto e nou-tras logotecnias, dando talvez cumprimentoà profecia de J. Derrida, segundo a qual, àmorte do livro, sucederia uma real idade daescrita75.

Ao contrário de umcerto autismo con-tinental dominante, U.Eco e J.Derrida sãodois praticantes da semiótica universal queaprenderam, há muito, ajogar nas váriasbandas dos oceanos. A desconstrução en-controu aliados noutros mundos e em áreasmuito diversas76 e, por outro lado, os suces-

74 Não é por acaso que T. Sebeok afirmou já noinício da década de noventa: "American semioticianstend to be skeptics - in the moderate sense, like Hume,of suspending the claim of Knowledge, not, at leastnot often, in the radical sense of suspending belief.There remain, to be sure, plenty of dogmatics - forinstance, the Paris School semioticians, engaged in apursuit they habitually refer to as "le projet sémioti-que", and their epigones in the Western Hemisphere -but they constitute but a sporadic rear guard, hackingaway a minor tradition"(1991:117; obra citada na nota4)

75Em De la Grammatologie(Ed.Minuit, Paris,1967) J. Derrida invocava a cibernética, as teorias ma-temáticas e a teoria da informação para referir quea escrita é virtual e não fenomenal, conseguindo sermais original do que as formas (fenomenais) para quesupostamente evoca.

76 T.Sebeok fala em "avalanche of explicity or im-

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sivos livros de U.Eco, após a edição ame-ricana deA Theory of Semiotics(197677),passaram a igualmente a constituir mate-rial permanentemente disponível para refle-xão (T.Sebeok,1991:32). As noções dadif-férance e de desconstrução78, aplicadas àquestão identidade/alteridade, em J. Derrida,e as preocupações perceptivas de U.Eco noseu último grande ensaio79 (ligando "tiposcognitivos"e "conteúdos nucleares"aos pro-blemas da iconicidade, do esquema kanti-ano e domapping do primeiro Wittgens-tein) constituem temas candentes da semió-tica contemporânea queporventurasuplan-tam a memória de uma auréola imobilistaque, ainda hoje, continua a contagiar umcerta suspeita face à semiótica, em algunsmeios80.

É evidente que ambas as margens doAtlântico procedem de ambientes diversos erecortam nocontinuumda reflexão semióticauniversos também diferentes. Tal não consti-tui drama, nem tão pouco é dramática a frasecom que T.Sebeok abre o seuSemiotics in

plicity semiotic works"ligados ao "poststruturalism(’deconstruction, grammatology",etc). Quanto a ou-tras áreas, veja-se o caso de E.Laclau (no âmbito po-lítico), por exemplo (1991:31-34; obra citada na nota4)

77 Original:Tratatto di Semiotica generale, Bompi-ani, Milano, 1975.

78 A noção de différance é introduzida emMargensda filosofia, Rés, Porto,s/d (original 1972)

79Kant e l’ ornitorinco, Bompiani, Milano, 1997.80 Bom exemplo dessa suspeita, geralmente

proveniente do desconhecimento da "aventura se-miótica"como fenómeno integrado, ou integrável,reflecte-se na polémica entre R. Scruton e U.Eco, aquel originou um texto essencial sobre a própria con-tinuidade semiótica (’Signos, peixes e botões - notassobre semiótica, filosofia e ciências humans’ in So-bre os Espelhos e outros ensaios, Difel, Lisboa,1989(Sugli specchi e altri saggi,1985, Bompiani, Milano)

the United States: "Semioticians are, at leastin regard to this deficiency, in full agreement:that no comprehensive (let alone "complete")treatise - or even a handy compendium - de-aling with the history of semiotics as yetexists"(1991:1). Este caracter não-monista,fragmentado, disperso é possivelmente maisenriquecedor, criativo e até estimulante doque qualquer mundo fechado sobre si pró-prio e hipertrofiado. É talvez por isso queYou-Zheng Li tenha afirmado que a semió-tica, pelo menos no seu campo de aplicabi-lidade, "(...) is apre-scientificor a semanti-cally preparative procedure for the later, ge-nuinely scientific, treatments in a field. In theinteraction between semiotics, natural scien-ces and social sciences today, it seems to bethe case that semioticsneedsnatural sciencesand is neededby social sciences while suchscientific tasks as positive judgments and lo-gical inferences provided by normal scien-tific procedures do not need to be includedinto the field of semiotics"(1996:87)81.

Este devir interactivo parece estar pre-sente, ou pelo menos é explicitamente ape-lativo, no último livro de António Damásio,O Sentimento de Si. Sem jamais se assumircomo da esfera semiótica, a obra define, noentanto e de modo aberto, um conjunto or-denado de fenómenos neurais que dizem di-rectamente respeito a aspectos constitutivosdo signo, da significação e da representação,mas não só. A leitura da obra parece retrodi-zer e predizer um certo ambiente semióticode modo:a) evidente, tendo em conta o actual incre-mento da tradição americana, envolvida queestá nas áreas endossemióticas e noutras re-lativas ao estudo da mente;

81 Sublinhado (neste caso, Itálico) nosso.

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A música dos signos 21

b) latente, tendo em conta a temática do úl-timo grande ensaio de U.Eco que é sempre,enquantotopic, um sinal dos tempos do sa-ber semiótico;c) necessário, tendo em conta a actual dene-gação da ideia de representação que os cons-trutivismos estão a levar a cabo, a propósitodas novas ficcionalidades e do ciberespaço.d) remoto, tendo em conta a longa tradiçãoque vem de Aristóteles aos modernos, pas-sando por Poinsot e Locke, entre outros, eque reiterou nas suas temáticas o estudo doorganismo e das suas capacidades de racio-cínio sempre em relação com a experiência:e) interessante, no sentido de inquirir se o -admitamo-lo - indeferimento da linguagemverbal e das escritas (na linha doDa Inter-pretaçãoaristotélita, de Santo Agostinho ede Saussure) não tem afinal homologias comfenómenos mentais determinados;f) actual, porque pemite aproximarmo-nosde questões dominantes das discussões se-mióticas dos últimos anos: identidade, des-contução, cognição, linguagens, etc (verquadro estatístico abaixo)g) fundamental, para que a comunidade cien-tífica possa pensar/repensar a própria noçãode signo, já que - e independentemente de asemiótica contemporânea a ter posto sucessi-vamente "em causa82- ela passa inevitável e

82Disse U.Eco que a semiótica contemporânea "pôsem causa a noção de signo"(1989:344 - obra citadana nota anterior). Talvez tenha antes posto o eclé-tico legado da noção de signo em jogo e, nesse jogo,ou decidiu privilegiar a noção puramente significante;ou acedeu à transparência entre este e o seu correlatosignificativo; ou decidiu não aceitar que uma figurapresente pudesse remeter para uma outra ausente; oufoi até capaz de submeter a regras e modelos rígi-dos o universo do(s) sentido(s); ou decidiu ainda quequalquerusopodia ser um signo, remetendo para sipróprio e simultaneamente para o espaço dito não-

irredutivelmente por processos mentais que atradição semiótica nomeou das formas maisdíspares (enquanto ligação entre, pelo menosa ...paixão da alma/coisas e factos, Sémai-nómenon/Tugchánon, Verbum mentis/Res,Intellectus/Res, Conceptus/Res, Nominalessence/Thing, Sinn/Bedeutung, Interpre-tante/objecto, Significatum/Denotatum83).

Finalmente, para aferirmos de modo maisobjectivo acerca dostopic (ou aboutness)que ocupam os semióticos actuais (para me-lhor aclarar o ’ambiente semiótico’ em quevivemos), procedemos a um breve estudoestatístico relativo aos temas das reuniõescientíficas, realizadas durante dois anos,isto é, entre Abril de 1996 e Abril de 1998.A fonte é o IASS-AIS Bulletin Newsletter(17-1 e 2/199784) e o Semiotics around the

sígnico. Mas sobretudo, e é esse o espaço sígnicoque parece querer impor-se sobre a névoa dasvan-guardasalgo cansadas, o signo passou a ser defini-tivamente definido "como tudo o que pode ser inter-pretado"(ibid.:362) e seja tomado pelo intérprete en-quanto tal. Ou não era já nesta linha de ideias quePeirce disse o homem era um signo ?

83 De realçar que, apesar de estas designações se-rem homológicas, elas são apenas isso, pois o grau desemelhança entre cada par diferenciado é amiúde re-duzido. De qualquer maneira, existe uma mesma rea-lidade ou preocupação que estes diagramas todos per-seguem: a significação como produto mental, comoum momento activo ou passivo da consciência (nu-clear ou alargada). Respectivamente, Aristóteles, Es-tóicos, Santo Agostinho, Abelardo, Ockham, Locke,Frege, Peirce e Morris. Saussure e Hjelmslev fariamcorresponder significado e conteúdo com estruturasvazias,porque, nesses autores, a correspondência é in-trasígnica, i.e., apenas se traça com com o significantee a expressão, respectivamente. As substâncias nãorecortadas formalmente pelos signos não são contem-pladas no seucorpoespecífico.

84 IASS-AIS Bulletin Newsletter(17-1 e 2/1997)e Semiotics around the World/ IASS-AIS Bulle-tin,Annual,1995/1996,ISSS, Vienna.

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World/ IASS-AIS Bulletin(Anual 95 e 96).Das 172 reuniões científicas inventariadas,em segundo e em quarto lugar, abundamas questões relacionadas com o raciocínio(’reasoning’) e a mente, assim como coma cognição e as linguagens. A tradiçãoligada ao texto converte o tema ’língua eliteratura’ em primeiro lugar, por causa dainevitável dominante continental (18 contra7 americanas - Canadá e México incluídos).De realçar ainda o papel crescente dasreflexões sobre questões da identidade e,por outro lado, sobre os os cibermundos ea internet. Por fim, deve referir-se que oitem ’semiótica da cultura’ abrange temasdemasiado diversificados (antropologia,folclore, local, cultura propriamente dita,pelo que não tem a relevância que o ter-ceiro lugar parece indiciar). Todos estesdados reforçam as nossas alíneas conclu-sivas, nomeadamente as primeiras três econvidam-nos, desde já, a seguir para a se-gunda parte deste ensaio em que passamos aanalisar a semiose (porventura involuntária)de António Damásio, emO Sentimento de si.

Quadro estatístico das reuniões científicasde semiótica, entre 4/96 a 4/98

1- 24 Língua e literatura (18 Europa,7América,2 resto do mundo)

2- 21 Mente e "reasoning"(10 Europa,9América,2 resto do mundo)

3- 19 Semióticas da cultura (13 Europa, 6América)

4- 17 IA, linguagens e cognição (5 Eu-ropa,10 América, 2 resto do mundo)

5- 15 Cibermundos e internet (6 Europa,7América,2 resto do mundo)

6- 10 Identidade/Alteridade (6 Europa,4América)

7- 9 Semióticas visuais (4 Europa, 4América, 1 resto do mundo)

8- 9 Semiótica geral (7 Europa, 2 Amé-rica)

9- 6 Gender (1 Europa, 5 América)

10- 6 Política (4 Europa, 2 América)

3 A semiose deO Sentimento deSi

3.1 O duplo problemaA obra de António Damásio é dominada pelaquestão da consciência e pela demanda deuma quase inevitávelante-câmaraou terrade ninguémque estabelece as suas própriascondições de possibilidade, geração e funci-onamento. O problema da ligação entre ascadeias da consciência de si e do mundo en-volvente (dos objectos), desenvolvida entrediversos níveis e aferida até à luz de algunsassumidos mistérios, é colocado, de início,sob a forma de duas perguntas que hão-deorientar toda a ulterior pesquisa presente emO Sentimento de si:a) Como é que o cérebro humano "engen-dra"o que, desde logo, se designa como"imagens de um objecto"(2000:28), ou seja,tudo o que possa ser representado, ou "quese dê a conhecer"no desenrolar do processode consciência"(ibid:39) ?

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A música dos signos 23

b) Como é que, por outro lado, o cérebro"produz o sentido de si no acto de conhe-cer esse objecto"(ibid:29) ? Ou seja, se éverdade que a mente é dominantemente ocu-pada por imagens que correspondem a "per-cepções externas", ou a percepções "daquiloque se recorda"(ambas representações de ob-jectos), ela é igualmente ocupada por umasegunda e simultânea presença que significaa própria indexicalidade do sujeito, enquanto"proprietário das coisas imaginadas".

As duas questões norteadoras do problemada consciência surgem, deste modo, comoverdadeiros índices que estabelecem a con-tiguidade entre algo que designa (os níveiscomplexos da consciência que determinamque sejam nossos os objectos e a ideia de si)e algo designado (o sentido depertençadosujeito consciente e, por outro lado, os ob-jectos que nele se apreendem ere-figuram).

Por outro lado, sob o ponto de vista me-todológico, o autor coloca este duplo pro-blema da consciência em função de "doisactores principais", a saber, oorganismo("aquele dentro do qual acontece a consci-ência- ibid:39) e oobjecto", mas tambémem função de um terceiro que define comosendo a própria "relação mantida por estesactores ao longo das suas interacções natu-rais"(ibid:39). Este facto é semioticamenterelevante pois salvaguarda a autonomia e aindependência da própria relação, enquantoentidade específica e não apenas instrumen-tal, em relação aos eventos e mecanismosque possa de algum modo evocar. Esta pos-tura, a nível sígnico, iniciara-se historica-mente, de modo tácito, como vimos, comPoinsot e Locke e iria tornar-se em apanágio

das descrições contemporâneas dos actos deinferência85.

Por fim, para além da definição de objecti-vos e da clarificação do método, António Da-másio caracteriza a situação e o âmbito par-ticular em queO Sentimento de Siemerge,de acordo com aquilo que designa por "cincopontos de partida"(ibid:37/8), a saber:a) que alguns "aspectos dos processos deconsciência podem ser relacionados com aoperação de regiões e sistemas específicos docérebro", tornando-se assim possível a deso-cultação da "arquitectura neural"que suportaa consciência. Este facto irá, cada vez mais,tornar-se fundamental, tendo em vista a dilu-cidação de conceitos eventualmenteadquiri-dosem áreas do pensamento que careçam deprovas fundadas nos procedimentos internosda mente;b) que a consciência e a vigília, por umlado, e a consciência e a atenção, por outrolado, correspondem a realidades que "podemser separadas", o que, no segundo caso, es-tabelece curiosos laços com o expresso no&408 das Investigações Filosóficasdo se-gundo Wittgenstein86: "a proposição ’eu te-nho a percepção de que...’ não diz que euestou consciente, mas sim que a minha aten-ção está a ser usada desta e daquela ma-neira"IF,417;c) que consciência e emoção são insepará-veis;d) que a consciência não é "monolítica"(jáque, como se verá, coexistem no nossoapa-relho construtordo si e do mundo, diversi-

85 "...o signo é sempre semioticamente autó-nomo em relação aos objectos a que pode ser refe-rido"(U.Eco,Segno, Istituto Editoriale Internazionale,Milano, 1973;O signo, Presença, Lisboa, 1981:150.

86 Obra citada na nota 54.

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ficados tipos de consciência e os correspon-dentes sis);e) que a consciência não deve ser expli-cadatout court a partir de funções cogniti-vas como a linguagem, memória ou a razão,sobretudo, porque, como o autor defende, as"primeiras formas de consciência"hão-de terprecedido e precedem ainda quaisquer "infe-rências e interpretações". Quer isto dizer quefazem parte da transição biológica que pos-sibilitou e possibilita as próprias inferênciase interpretações. Neste sentido, qualquer te-oria da consciência, ao reorientar o seu ob-jecto, deverá explicar "o fenómeno simples efundamental que ocorre perto da representa-ção não consciente do organismo".

Este desvio de perspectiva é particular-mente interessante, já que, no curso do seudesenvolvimento ulterior, decerto que irácontribuir para uma maior elucidação de da-dos que permitam situar a questão do emer-gir semiótico e da própria significação (queé, por outras palavras, o emergir de toda apossibilidade inferencial e, portanto, das seg-mentações das unidades culturais ou de con-teúdo numa dada comunidade; do mesmomodo que só existe verdadeiramente consci-ência, quando já existe representação alguresfigurada no organismo).

3.2 Componentes semióticos (oupré-semióticos

87

Os signos são interfaces que se propagamno acontecer e, portanto, na temporização

87 A designação "Pré-semióticos"abrange os pro-cessos ligados, directa ou indirectamente, às modali-dades pré-inferenciais descritas no aparelho concep-tual deO Sentimento de Si).

ética88 do mundo. Os signos correspondemsempre a uma chamada, a um aviso, a algoque veicula à consciência um conjunto de da-dos. Como C.Peirce referiu: "it is a vehi-cle conveying into the mind something fromwithout. That for which it stands is cal-led object; that which it conveys, itsme-aning; and the idea to which it gives rise,its interpretant. The object of representa-tion can be nothing but a repesentation ofwhich the first representation is the inter-pretant"(1978,I:338:17189). Um signo gerasempre outros signos, no quadro de umasequência que é simultânea e concomitanteao contacto do intérprete com novos "vehi-cles"oriundos do mundo exterior ou do re-cordar.

No final de O Sentimento de Si, no"Apêndice-Notas Sobre a Mente e Sobreo Cérebro", são minuciosamente descritosos componentes do que podemos descrevercomo processos semióticos (e substancial-mente pré-semióticos), isto é, os elementosseparáveis, discretos, que agem, ou atravésdos quais agem os processos de significaçãoe de comunicação que operam no e atravésdo organismo. Façamos a devida visita gui-ada:

3.2.1 Representações

A noção é equiparada à de imagem men-tal ou de padrão neural. Segundo oautor, trata-se de um uso "convencio-

88 O tempo pode ser considerado "como aquiloque conduz ao homem”, ou, ao invés, considera-seo “homem como o criador do tempo” (I.Prigogine,ONascimento do tempo, Ediçõs 70, Lisboa, 1999:21),constituindo o primeiro o tempo émico e o segundo otempo ético.

89 Obra citada na nota 23.

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A música dos signos 25

nal e transparente"que significa "padrãoconsistentemente relacionado com algumacoisa"(ibi.:364). O aparecer pressupõe sem-pre um ensimesmamento e, por outro lado,uma relação independente e autónoma comum outro ausente, cujapresençanão é menosimportante para a identidade do queaqueleque aparece. Esta teia decorre de uma ope-ração deJanus- a própria representação, nasua evidência e "transparência- e é por issoque a singularidade de uma presença é sem-pre uma evocação de múltiplas presenças, ouseja, dealgo mais para além dela(era estaoutra mais valia de Poinsot, e mais tardedo próprio Peirce, na definição de signo,lembremo-nos).

Para Peirce, "the word representa-tion"significa "the operation of a sign orits relation to the object for the interpreterof the representation. The concret subjectthat represents I call a sign or a represen-tamen"(1978,I:285/1.540). Se a relaçãosurge aqui um pouco unidireccionada para apresença, diga-se que, logo a seguir, no seutexto, o autor, ao contrapor signo e repre-sentação, acaba por abrir a ’evidência’ e anecessidade da representação a um conjuntoilimitado de possíveis: "By a sign I meananything which conveys any definite notionof an object in any way, as such conveyersor thought are familiarly known to us"e "andI define a representamen as being whateverthat analysis applies to".(ibid.,I:285/1.540).

Para António Damásio, a representação ésobretudo o surgir de um em vez do ou-tro, independentemente do caracter da sua fi-guração (imagem, mapa ou padrão neural),numa constante manobra de acessibilidadesentre níveis da consciência e a sua ânte-câmara profunda. Nesta medida, o ausentee o presente conformam-se reversivelmente

com o próprioestar-em-marchada consciên-cia, não se constituindo nunca como elemen-tos estáticos que se pudessem anular mutua-mente. De qualquer modo, o conhecimento,no despertar da consciência, acaba por sem-pre por decorrer, como veremos, de uma se-riação algo determinista e redutora do previ-amenteconhecido.

Ainda no âmbito desta discussão sobre arepresentação, o autor deO Sentimento deSi afirma não ser apologista de qualquer "fi-delidade", leia-se iconicidade90, entre a es-fera das representações - seja de padrõesneurais e das correspondentes imagens men-tais - e dos objectos que elas dinamicamente"evocam"(ibid:365). Para além das incer-tezas inevitáveis que a questão da iconici-dade pode postular, o certo é que AntónioDamásio caracteriza o aparecer das figurascomo fruto de um processo de permanenteinteracção. Quer isto dizer que, por exem-plo, "os padrões neurais e as corresponden-tes imagens mentais"são sempre simultane-amente criações mentais e produtos "da re-alidade externa que desencadeia essa cria-ção"(ibid:366). As figuras criadas nunca são,portanto, uma cópia do objecto real que, "em

90 A definição de ícone poderá, portanto, assumirduas interpertações: uma cognitiva, vista na sua na-tureza pura, primária, como potencialidade de “like-ness” e uma, relativa ao ser, que C.Peirce traduziucomo sendo a disponibilidade, também potencial, dequalquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. Quandofalamos de capacidade anterior, falamos de tudo o quenos povoa sem que, no momento, esteja activo ou sejaactual; por outras palavras, ao referirmo-nos a capa-cidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, atudo o que é potencial em nós, seres humanos. Esteconjunto de potenciais corresponde ao que C.Peircedesigna por “firstness”, do mesmo modo que tudo oque é actual e está agora, neste momento, a ocorrer,corresponde ao que o autor designa por “secondness”(U.Eco,1987:84 - obra citada na nota 78)

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termos absolutos", nunca chegaremos a co-nhecer.

Este princípioa-realista, segundo o quala mente humana já não é mais "o espelhoda natureza"(R.Rorty91) persegue a pragmá-tica contemporânea e devolve à hibridaçãosujeito-objecto, descrita emO Sentimento deSi, o quê e o quemdas representações. Aprópria produção de sentidos, enquanto seg-mentação dos sememas operada num dadoe mediato contexto, torna-se, também ela,numa dupla operação entre mundo e sujeito,como aliás considerou, há alguns anos, J.-M.Linkenberg: "le sens provient d’une inte-raction entre les stimuli et les modèles. Cequi suppose un mouvement double, qui vadu monde au sujet sémiotique et de celui-ci au monde"(1996:10192). Transparênciarelacional, acessibilidades de dados e inte-racção objecto-organismo, eis como podería-mos sintetizar o procedimento da representa-ção tal como é descrita emO Sentimento deSi.

3.2.2 Imagem

O semema ’imagem’ é muito reiterado aolongo da obra de António Damásio, masé sempre utilizado na única acepção de"imagem mental"(2000:361) e é entendidotambém como sinónimo de "padrão men-tal"(ibid:361). A imagem, nesta medida, édefinida como uma representação, consci-ente na perspectiva da "primeira pessoa", ounão consciente de todo93, "construída com

91 Referência ao livro de 1979,Philosophy and theMirror of Nature, Princeton,N.J.:Princeton UniversityPress.

92Précis de sémiotique générale, De Boeck Univer-sité (Essais-points), Paris,1999

93 Acrescenta A. Damásio que "existe uma enormedesproporção entre o grande número de imagens que

a moeda corrente de cada uma das modali-dades sensoriais: visual, auditiva, olfactiva,gustativa e somatossensorial94", referindo-seesta última a "vários sentidos: tacto, mus-cular, temperatura, dor, visceral e vestibu-lar"(ibid:362). As imagens, geralmente edi-ficadas a partir de correspondências entrere-figuraçõesde objectos e "modos de reacçãodo organismo"(ibid:366), "ilustram proces-sos e entidades de todos os géneros", abs-tractos ou concretos, bem como o seu agire respectivo cronotopo.

A.Damásio conclui que o processo desig-nado por mente - "quando as imagens men-tais se tornam nossas devido à consciência-pode ser considerado como "um fluxo contí-nuo de imagens, muitas das quais se revelamlogicamente interligadas. O fluxo move-separa a frente no tempo, depressa ou devagar,de forma ordeira ou sobressaltada e, algumasvezes, avança não apenas numa sequênciamas em várias."(...)"O pensamento é uma pa-lavra aceitável para traduzir um tal fluxo deimagens". (ibid:362/3) Deste modo, a tem-poralidade da mente e o papel do ininterruptofluxo surgem associados ao próprio compo-nente discreto que necessariamente o inte-

são constantemente geradas e que competem umascom as outras, e a janela, relativamente pequena, atra-vés da qual as imagens se tornam conscientes - a ja-nela através da qual as imagens são acompanhadaspela sensação, imagética também, de que estamos aapreendê-las e de que lhe estamos a prestar a devidaatenção"(2000:364). A este propósito consltar tam-bém a secção "Jogar às escondidas"(ibid.:49).

94 "É uma cobinação de subsistemas, cada umdos quais transmite para o cérebro sinais acerca doestado de diversos aspectos do corpo". Apesar dediversificados, "trabalham em paralelo e em exce-lente cooperação a fim de produzirem em cada mo-mento, a múltiplos níveis do sistema bervoso cen-tral"(...)"mapas incontáveis de várias dimensões doestado do corpo"(A.Damásio,2000:179/80).

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gra e que A.Damásio designa por "símbolo",tal como Husserl no caso das ’representaçõesindirectas’: "Qualquer símbolo com que pos-samos pensar é uma imagem, sendo bem pe-queno o resíduo mental que não é consti-tuído por imagens mentais. Até os sentimen-tos"(...)"são imagens", estas de tipo somatos-sensorial (ibid:363).

A semiose é aqui implicitamente assumidacomo um processo de sucessivas actualiza-ções que a consciência nos devolve, a par-tir das representações geradas e transpos-tas em imagens sucessivas e indeterminada-mente sobrepostas que traduzem, quer os es-tados originários e não conscientes onde or-ganismo e objecto interagem, quer a nossaprópria apropriação desse processoilimitadoem curso.

3.2.3 Padrões neurais

Ao lado das imagens, propriamente ditas, A.Damásio atribui grande pertinência à carto-grafia protagonizada pelos padrões neurais.A definição é clara: "Padrões de activida-des neurais"são representações, apenas aces-síveis na perspectiva da terceira pessoa, quepodem ser encontradas, "através dos actu-ais métodos da neurociência, nos córticessensoriais quando eles estão activos"(...)"emcorrespondência"(ibid:361/2) com uma dadapercepção (visual, auditiva, ou outra). Es-tes padrões resultam de "convenções do cé-rebro"e baseiam-se na selecção momentâneados neurónios e circuitos utilizados na inte-racção organismo-objecto".

Os padrões neurais estão na origem dasimagens mentais, são o seu alicerce forma-tivo, a sua ante-câmara significativa. O seuaparecer encerra o paradoxo de uma formade expressão que a experiência da visibili-

dade não pode descodificar, mas que, por ou-tro lado, é essencial para a arquitectura dasimagens, essas sim acessíveis. São figurasque transitam, ao reconfigurar-se sob a formade futuras imagens. Como o autor refere,"os dispositivos sinalizadores localizados emtodas as estruturas do corpo"(...)"ajudam aconstruir os padrões neurais que cartogra-fam- a todo o momento - a interacção do or-ganismo com o corpo"(ibid:365).

Os padrões neurais constituem a cartogra-fia omnipresente e primeira, a partir da qualo levantamento selectivo do visível - e por-tanto, do jogo semiótico - se torna (ou se tor-nará) possível.

3.2.4 Mapas

Esta noção corresponde a um outro tipo depadrão do mesmo género que o neural, em-bora com especificidades. Trata-se de um"padrão relacionado com um objecto", ori-ginado pelo contacto entre os fotões (par-tículas de luz) e a retina que, por sua vez,determina a formação, por parte das célulasnevosas activadas nesse mesmo padrão, de"um mapaneural transitório". A correspon-dência entre objecto e mapa não é ponto porponto, daí que a figura não seja "necessari-amente fiel"(ibid:366/7). Os mapas consti-tuem, pois, um produto dodesigninterno docérebro que, de modo algo autotélico, desen-volve etrabalhacom modelos próprios.

3.2.5 Realidade e quadro referencial

Como referimos, na obra de António Da-másio, as imagens mentais "surgem de pa-drões neurais ou de mapas neurais, forma-dos em populações de células nervosas (ouneurónios) que constituem circuitos ou re-

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des".(367) Por outro lado, as imagens men-tais representam sempre a re-figuração deinteracções previamente verificadas entre oorganismo e um objecto e, no constituir-sedesse processo, o autor considera que:

"o objecto é real, as interacções são reaise as imagens também são".

Independentemente deste facto referencialassumido, o texto deO Sentimento de Sire-lembra, logo no passo seguinte e de modoalgo concessivo, que "a estrutura e as pro-priedades da imagem que acabamos por versão -afinal - construções do cérebro desen-cadeadas por um objecto"(ibid:366). Nesteponto, António Damásio, embora considereque a mente não é um espelho da realidadee que as iconidades não constituem opera-ções simplesmente miméticas e especulares,acaba, no entanto, por aceitar a explícitarealidade-referencialdo objecto, das ima-gens e das interacções, no que, aliás, corres-ponde à base metodológica triádica inicial daobra (organismo-objecto-relação, enquantoactores principais). Como J. Searle afir-mou: "A distinção entre realidade e aparên-cia não pode aplicar-se à genuína existênciada consciência, pois, se aparentemente souconsciente,sou consciente"(...)"mas não po-demos descobrir que não temos mentes, queelas não contêm estados mentais conscien-tes, subjectivos..."(1997:12095), embora estasubjectividade implícita seja sempre, comoacima se viu, um produto de hibridação, masque, de qualquer modo, não deixa de operar-se na primeira pessoa que a consciência pos-sibilita, segundo uma sintaxe de fluxo contí-nuo de imagens.

Independentemente da necessária e tá-

95 Mente, cérebro e ciência, edições 70, Lis-boa,1997.

cita realidadeatribuída ao triângulo objecto-interacção-imagem, convém acrescentar que"os símbolos com que possamos pensar",voltando a citar a passagem mais expli-citamente semiótica de António Damásio(ibid:636), não representam nunca um ob-jecto ou um referente. Como U. Eco dei-xou registado emO Signo, apenas existe actode referência, "se o código lhe atribuir omesmo interpretante que atribui a certos ob-jectos considerados como signos ostensivosque significam a classe de objectos a quepertencem (classe que constitui não um ob-jecto mas um significado)"(1981:155/5696).Por exemplo: levanto a garrafa - signo os-tensivo - e peço mais uma cerveja. O códigoforneceráeventualmente(o provávele inde-finido define sempre o lugar mais profundoda semiose) o mesmo interpretante - "theidea to which it gives rise, itsinterpretant"(C.Peirce,1978,I:338:17197) - aos agentesque partilham o acto comunicacional, de talmodo que estes acabam, ou não, por associar’o braço no ar e a pertinência das minha mãosegurando a garrafa’ a uma mesma classe outipo de significado em jogo.

Isto pode tambémeventualmentepassar-se no âmbito das imagens mentais, se o có-digo fornecer ao intérprete da sua própriaconsciência (é na sede da consciência que asimagens se tornam nossas) um interpretanteque coincida com um dado conceito empí-rico. Cada conceito empírico - ‘ uma árvore’,‘ um choupo’ - "constitui o produto de umamemória de semelhanças” (J.Gil,1984:8098)e “significa uma tematização da percepçãode feixes estáveis de aparências”. Ao trans-

96 Obra citada na nota 23.97 Obra citada na nota 23.98 Gil, Fernando,Mimésis e negação, Imprensa Na-

cional - Casa da Moeda, Lisboa, 1984.

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A música dos signos 29

formar as semelhanças em identidades, “oconceito torna possível o pensamento, a me-morização e a antecipação”; por outro lado,e porque “a percepção de semelhanças formaum dispositivo independente com uma es-pontaneidade própria (a construção do con-ceito liberta-a das coisas) emerge daí a possi-bilidade permanente de uma derrapagem emrelação ao sensível” (ibid.:82/3).

Seja como for, um acto referencial, pe-las razões aduzidas, é sempreeventuale so-bretudo propenso a "derrapagens"(talvez porisso mesmo, antecipando já uma questão in-teressantíssima deO Sentimento de Si, o serhumano adore contemplar, ainda que invo-luntariamente, o seu próprio cérebro comoum exemplar e único "contador de histó-rias"). Realidade e/ou ficção, eis talvez aquestão.

3.3 Circuitos comunicacionaisdescritos

A obra de António Damásio expõe circuns-tanciadamente o imenso "jogo de relações daconsciência"(2000:40) que possibilita às fi-gurações do objecto e do si o seu sucessivoaparecer e comunicação, ao longo do corpo.Neste jogo estão presentes diversas entida-des, curiosos tipos de relato das consciênciase da sua ante-câmara, não esquecendo aindao próprio dom das ficcionalidades que o au-tor entende como o verdadeiro cerne de umaantiga aparência filosófica: a intencionali-dade. Sigamos, pois, esta intriga profundado organismo que é também o diagrama po-tencial da nossa semiose.

3.3.1 Entidades

Começamos pelas diversas entidades queprotagonizam as operações comunicacionaisque se desenrolam a vários níveis, nome-adamente a um primeiromicro-nível, entreorganismo/objecto/proto-si; a um segundonível, entre o ’si nuclear’ da consciência dita"nuclear"e as imagens do proto-si e do ob-jecto (traduzidas do nível anterior) e, porfim, a um terceiro nível, o da sequência, oudo "filme-no-cérebro"que pressupõe o eclé-tico ’si-autobiográfico’, próprio da consciên-cia "alargada", numa estreita relação com oimpacto ininterrupto dos dados provenientesda consciência nuclear, a saber, as sucessi-vas imagens de interacções entre organismoe objectos, bem como dos próprios sis mu-tantes. Esta rede comunicacional da consci-ência e seus ’sis’ está na base da própria de-finição de consciência de António Damásio,expressa em antecipação a futuras possíveispolémicas: "(...)se por consciência de si sepretende significar consciência com um sen-tido de si, então toda a consciência humanacorreponde a esse termo"(ibid.:39)

3.3.2 Proto-si: a grande antecâmara

O proto-si é definido como um "conjuntocoerente de padrões neurais- de que nãotemos consciência - "que cartografa, acada instante, o estado da estrutura físicado organismo nas suas numerosas dimen-sões"(ibid.:184). O proto-si representa per-manentemente, enquanto conjunto de pa-drões neurais consistente, o variado estadodo organismo, "a múltiplos níveis do cére-bro". (ibid.:206); Este Proto-si é porventura,segundo o autor, a base biológica do si, tal

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como foi expresso emO Erro de Descartes-1995:242-250).

Esta remota consciência de pertença fun-ciona como um conjunto de radares que vãodando conta das transformações do corpo emcontacto com o exterior e é com base nessamesma redeprimária de informações que aconsciência irá emergir.

3.3.3 Si nuclear

O si nuclear "é inerente ao relato não ver-bal de segunda ordem que ocorre sempre queum objecto modifica o proto-si"(2000:206),constituindo a tradução do que se passa nessaprévia ante-câmara. O si nuclear constituium sentido de pertença, de auto-apropriaçãoque, subitamente, na esfera do agora-aqui,reconhece que algo se está a passar. É oinício da representação que o torna possível.A sua característica base é o conhecimentoimediato de que o proto-si foi alterado e deque existe, em função disso, uma dada meta-morfose na interacção organismo-objecto.

3.3.4 Consciência nuclear

A "consciência nuclear constitui ela própriao conhecimento, directo e sem qualquer ver-niz inferencial, do nosso organismo indivi-dual no acto de conhecer"(ibid.:152) e, porsua vez, esse conhecimento nasce da "re-presentação do proto-si não consciente noprocesso de ser modificado"(ibid.:202). Esteimediatismo99 ainda não inferencial assiste

99 Contudo na secção, ’Imagens do conhecimento’,o autor contrasta esse imediatismo, caracterizado pelaausência de "verniz inferencial"com um poder infe-rencial activo, embora, claro, não-verbal, "comple-mentado"pela memória e pelo raciocínio: "Além deproporcionarem o sentimento de conhecer e o realcedo objecto, as imagens do conhecer, complementadas

à transição dos dados, de padrões neurais aimagens, e, porque estas últimas emergemem plena espontaneidade - nesta que é umaconsciência do pertinente instantâneo - nãopodem ainda considerar-se como disputáveisem pleno pelo jogo semiótico.

Para já, seja como for, é possível, pelomenos, delinear uma sintaxe constitutivada consciência nuclear que é, na sua ori-gem, um produto "estabelecido pelo ge-noma"(ibid.:232). As etapas dessa sintag-mática, descritas por António Damásio, sãoas seguintes: (ibid.:208/9); "proto-si no mo-mento inaugural; objecto surgindo na repre-sentação sensorial; transformação do proto-si inaugural em proto-si modificado pelo ob-jecto".

3.3.5 O si autobiográfico

O si-autobiográfico "baseia-se em arquivospermanentes mas disposicionais das experi-ências do si-nuclear"(ibid.:206). O alicercedo si autobiográfico é constituído por "aspec-tos invariantes"da biografia de um indivíduoque se traduzem, por sua vez, na chamada"memória auto-biográfica"(memórias muitodiversas dos mais variados exemplos da ex-periência passada e também do "futuro an-tecipado"(ibid.:206). Deve dizer-se que, aolongo da utilização que o si faz destes arqui-vos, eles acabam por modificar-se ainda que"parcialmente"(ibid.:207).

"A base neuroanatómica"do si-autobiográfico é descrita a partir de um

pela memória e pelo raciocínio formam a base dasinferências não verbais que reforçam o processo daconsciência nuclear"(ibid.:215). O que significa que opoder inferencial da consciência nuclear, mais do queimediato e puro é porventura fruto de uma mediaçãoquasi-instantanista. Fica a dúvida.

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modelo que comporta, de um lado, um "es-paço imagético"e, do outro lado, um "espaçodisposicional"(254/377100). No primeiro,ocorrem explicitamente as "imagens detodos os tipos sensoriais. Algumas destasimagens constituem conteúdos mentaismanifestos que a consciência nos permiteexperienciar enquanto algumas imagenspermanecem não conscientes"(ibid.:377).No segundo, estão presentes "as disposiçõesque contêm a base do conhecimento e osmecanismos através dos quais as imagenspodem ser construídas durante o recordar,através dos quais os movimentos podem sergerados, e através dos quais o processamentode imagens pode ser facilitado"(377)

O si autobiográfico é a consciência de per-tença que age em nós como a montagemdo grande filme, podendo inserir-se na cor-rente sintagmática os paradigmas mais diver-sos (explícitos, artefactuais, memoriais, ins-trumentais e todos os outros que se colam nafita, oriundos do agora-aqui da consciêncianuclear). O si-autobiográfico é permeável àrede interpretativa e às inferências que os có-digos determinam ou sugerem e, nesse mo-vimento de comunicação e significação, en-volve eventualmente as dimensões dooutrona sua singularidade.

3.3.6 Consciência alargada

É a consciência ligada directamente ao si-autobiográfico que António Damásio assimtraduz: "é a preciosa consequência de duascontribuições que a possibilitam: primeiro,a capacidade de aprender e, consequente-mente, de reter miríades de experiências pre-

100 Trata-se do mesmo modelo que o A.Damásio jáutilizara "para reflectir sobre a relação entre as ima-gens menatis e o cérebro"(ibid.:253).

viamente conhecidas através da consciêncianuclear. Segundo, a capacidade de reactivaresses registos de tal modo que, enquanto ob-jectos, também eles possam gerar ’um sen-tido de si’ e, consequentemente, ser conheci-dos.101"(ibid.:228/9)

O funcionamento desta consciência nãoé muito diverso do da consciência nuclear,já que, em ambas, se processam "múltiplasgerações do si nuclear aplicado não só ao’objecto-que-está-para-ser-conhecido’ comotambém ao eternamente re-evocado e com-plexo conjunto de memórias pessoais queconstitui o si-auto-biográfico"(ibid.:229)

Por outro lado, o autor confirma o papelda cultura, junto à consciência alargada, noseio da qual o si autobiográfico está neces-sariamente envolvido num processo conco-mitante e ininterrupto de inferências semióti-cas: a consciência alargada "é posta em mar-cha pelo genoma, mas a cultura pode influ-enciar o seu desenvolvimento individual deforma significativa"(ibid.:232)

3.3.7 Os relatos

Cada nível da consciência e/ou dos sis quelhes estão associados est(ão)á ligado(s) a umdeterminado tipo de enunciação. Esta nãosignifica sempre a produção de uma mensa-gem corpórea e legível, nem tão pouco ní-tida, ou sequer verbal. A linguagem doslinguístas surge, neste aparelho conceptual,como algo não necessário para definir os ní-

101 Por outras palavras:"A consciência alargadasurge a partir de dois truques. O primeiro requer aformação gradual de memórias de muitos exemplos,de uma classe de objectos: os objectos da biografiado organismo e da nossa própria vida, tal como se de-senrolaram no passado pessoal, iluminados pela cons-ciência nuclear"(ibid.229)

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veis da consciência e, por outro lado, comoalgo que sucede inevitavelmente as opera-ções primeiras e constitutivas da consciên-cia. Por outras palavras, a linguagem dos lin-guístas é considerada, aqui, de modo consis-tente e coerente, como um relato de terceiraordem.

Nessa linha de ideias, pode dizer-seque existe uma perfeita concordância comJ.Deely, quando este afirma que "a lingua-gem, no sentido em que é específica da es-péciehomo sapiens, nada mais é do que ocomponente ’irreal’ da semiose"(1995:135),sendo este definido como elemento "depen-dente da cognição", (ibid.:134) em contrastecom os elementos ou componentes reais quelhe são independentes.

Passemos, então, à enumeração dos rela-tos.

3.3.8 Relato da primeira ordem

São relatos não legíveis conscientemente,mas que, ao traduzirem-se, trazem à super-fície a figuração permanente do proto-si emestado de metamorfose e também, ao mesmotempo, o estado das interacções organismo-objecto. Por outras palavras, pode dizer-seque a "cartografia das consequências relacio-nadas com o objecto surge em mapas neuraisde primeira ordem que representam o proto-si e o objecto"(2000:201)

É curioso que o corpodetenhaumaescritanão visível, do mesmo modo, passe a alego-ria, que, segundo a corrente da filosofia dasformas simbólicas, na tradição que vem deE.Cassirer a S.Langer, parece evocar a antigae inacessívelescrita experiencialda huma-nidade que, por sua vez, só se tornou visívelatravés da tradução do seu material arquetí-pico para o nível do mito, da arte e da trans-

cendência, - primeiras macro-actividades daconsciência universal e, portanto, da consci-ência de si da espécie.

3.3.9 Relato da segunda ordem

As representações imagéticas de segunda or-dem incluem o objecto prestes a modificaro proto-si, em interacção com o organismo,assim como as "modificações subsequentesdo proto-si"(ibid.:201). É uma escrita quemarca o súbito despontar da consciência nu-clear. Este tipo de relato da relação cau-sal entre o objecto e o organismo só podeser captado em mapas neurais de segundaordem"(ibid.:201). O mais interessante éque este relato tem como atributo o facto deser um "relato não verbal"e, por outro lado,como que reflecte "o organismo surpreen-dido no acto de representar"(ibid.:202). An-tónio Damásio chega a utilizar a feliz me-táfora do "coro grego"(ibid.:202) para acen-tuar a ideia de que este relato não verbalde segunda ordem age como "um explica-tivo", ou como um "comentário"oriundo doagora-aqui, sendo, desse modo, incorporadono permanente fluxo de imagens e de "sím-bolos"que constituem o pensamento.

Este tipo de relato é "supra-regional"(ibid.:213) e é gerado por di-versificadas estruturas cerebrais e nãoapenas por uma (ibid.:209), constituindoa primeira escrita acessível onde estãografadosos registos do acontecer do corpoe das suas circunstâncias autotélicas dehibridação.

3.3.10 Relato da terceira ordem

O relato de terceira ordem, ou seja, a capa-cidade - entre outras - de natureza verbal e

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A música dos signos 33

todos os seusdeferimentos, pode iniciar-selogo que a representação se inicia, ou seja,a partir do emergir dos enunciados de se-gunda ordem. Conforme a designação es-colhida por António Damásio assinala, o re-lato desta "terceira ordem"constitui uma tra-dução, no tempo, das figuras que se gerama partir da submersão de dados que ocorremna consciência nuclear: "No caso dos sereshumanos, a narrativa não verbal de segundaordem pode ser convertida imediatamenteem linguagem"(...)"Poder-lhe-íamos chamara narrativa de terceira ordem".

Por outras palavras ainda: para além dahistória que "significa o acto de conhecer e oatribui ao recém-forjado si nuclear, o cérebrohumano também forja uma versão verbal au-tomática dessa mesma história"(ibid.:217).Um autênticomise en abîmede enuncia-ções, aparentemente virtuais umas em rela-ções à outras, mas funcionando todas elasatravés de vasos comunicantes, onde o níveldito comumse poderia chamar: ’tradução’;um rumorejar de signos que mais se pode-riam entender como passagensentre dimen-sões significantes e significativas, mas quenunca se tornam mutuamente estanques. Atradição logotécnica, muito baseada na aber-tura doDe Interpretaçãode Aristóteles, emSanto Agostinho e em Saussure, encontraneste ecletismo plural de relatos, sobrepos-tos e desencadeados por movimentos de in-terface, um sério revés. A linguagem surgeassim como uma capacidade, mas não maiscomo uma condição formante de caracte-rísticas matriciais em relação à consciência.Como António Damásio quase conclui: "Ossis auto-biográficos- permeáveis a todos osrelatos - "apenas podem surgir em organis-mos dotados de uma capacidade substancial

de memória e raciocínio, mas, uma vez mais,a linguagem não é essencial"(ibid.:230).

3.3.11 As histórias do cérebro

Já antes nos referimos ao comentário de An-tónio Damásio, segundo o qual o cérebro éum exemplarcontador de histórias. Comefeito, no seio desta teia de relatos que mu-tuamente se ampliam e que - a todo o mo-mento - desencadeiam na consciência fluxosde interpretantes, é natural que os conteúdoslatentes e a imaginação conotativa se acabempor tornar reprodutíveis.

É nesta medida que, como refere o au-tor, "contar histórias precede a linguagem", oque é até, "afinal, uma condição para a (pró-pria) linguagem"(...)"que pode ocorrer nãoapenas no córtex cerebral, mas noutros lo-cais do cérebro, quer no hemisfério direito,quer no esquerdo"(ibid.:221). Toda a tradi-ção, baseada na filosofia daconsciênciaeque sublinha o importante papel da intenci-onalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty,Lévinas, etc), para além de outras formasde ênfase à intencionalidade, enquanto prá-tica filosófica, são interpretadas por Antó-nio Damásio como uma consequência destaverificação simples: a capacidade do cére-bro em contar histórias. Diz o autor: esse"dizer respeito a", exterior ao cérebro, temexactamente "como base a tendência natu-ral do cérebro para contar histórias, o queocorre sempre da "forma mais espontâneapossível"(ibid.:221). Aliás, na discussão queas Luzes empreenderam, no século XVIII,em torno do problema da representação (DeHume a Kant), já a imaginação surge comouma entidade autónoma e transformadoradas interacções entre o representado e o re-

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presentante102. É até possível que as noçõesde ’conotação’ e de ’semiose ilimitada’, de-senvolvidas na semiótica moderna, possamtambém ter como base esta predisposiçãohumana para onarrar-se, do mesmo modoque alguns teóricosconceptuaiscontinuama insistir em separar uma pretensa ’semió-tica da comunicação’ de outra pretensa ’se-miótica da significação’, a partir de um parâ-metro chamado precisamente - ’intencionali-dade’ J.-M. Klinkenberg,1996:71/3103).

C.Giannetti também sublinhou de formainteressante o facto biológico e comunica-cional que alicerça estefazer-narrativoquese arrasta imparavelmente na mente (propo-nho que se lhe chame o mito deShahra-zâd104): "Enquanto o corpo permanece imó-vel a mente pode empreender as mais surpre-endentes viagens."(...)"A investigação destacapacidade de abstracção do cérebro humanoconstitui um dos objectivos fundamentais da

102 Veja-se emÓrbitas da Modernidade: "A repre-sentação, para Foucault, deixa, portanto, de ser “umlugar de origem” inquestionável para passar a ser ummero “efeito” (ibid,:352). A produção desse efeito, oumelhor, dessa construção, é produto do século XVIIIe pode ser ilustrado num jogo dialógico que une, en-tre outros, Hume a Kant. O primeiro dos autores con-tém duas inovações que, para António Marques, per-mitem antever o palco vivo da própria modernidade,a saber: a ausência de “referência externa na avalia-ção da objectividade” (1988:233) e ’uma certa ideiade necessidade dos produtos ficcionais’"(L.Carmelo,Ed.Notícias,no prelo)

103 Obra citada na nota 91.104 Nome em Árabe da narradorainsaciávelque,

no limite entre a vida e a morte, melhor ilustrou estenarrar-sede nós próprios em ’Alf laylah wa laylah’(Mil e uma noites), recolha de contos orientais, deorigem indiana em grande parte (a partir dos contosjâtaka) queviajarampara a Pérsia por volta do séculoIII/IX, durante o apogeu do Califao Abássida de Bag-dad, o que haveria de possibilitar um trânsito imensoentre Oriente e Ocidente da aliciante narrativa.

neurociência."(...)"Para isso, as células cri-aram um sistema de comunicação baseadoem fibras conectoras (projecções dendríticase axionais), que estabelecem o nexo de cadaneurónio com um número de células vizi-nhas que pode chegar até dez mil. Estes nóspoderiam alcançar a incrível quantidade demil biliões de conexões interneurais em cadacérebro"105.

3.4 SemioseA semiose é a acção sígnica. Por ou-tras palavras, a semiose traduz-se pelareprodução permanente de interpretantes,ou ainda, como referiu Peirce, o cria-dor do termo: "The object of represen-tation can be nothing but a repesentationof which the first representation is the in-terpretant"(1978,I:338:171106). Para o co-fundador da pragmática norte-americana eprimeiro patrono da semiótica contemporâ-nea, a vida mental corresponde, como U.Eco afirmou, "a uma imensa cadeia sígnicaque vai dos primeiros interpretantes lógicos(conjecturas elementares)"(...) "aos interpre-tantes lógicos finais. Estes são os hábitos,as disposições para a acção"(1981:145). Noquadro do fluxo ininterrupto de imagens -de "símbolos- que integram o pensamento,um interpretante é sempre considerado comoum aditamento cognoscitivo estimulado pelosigno inicial; e este fluxo ou processo in-cessante de reactivação sígnica que unere-presentamen/ objecto/ interpretantes, reflec-tindo, na linguagem de António Damásio(salvaguardando a dimensão da sua aborda-gem que privilegia a ideia de si na definição

105 ’Trespassar a pele: o teletrânsito’ in Ars telemá-tica, Relógio d’água,Lisboa(1998:120/1)

106 Obra citada na nota 23.

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da consciência) o processo que unea car-tografia do(s) objecto(s)/ a cartografia do(s)si(s)/ o fluxo de "símbolos"(imagens), acabapor corresponder à própria designação da ac-ção sígnica, ou seja, da semiose.

Vamos tentar analisar, nas duas alíneasque se seguem, o momento e o modo comoa semiose, enquanto processo ilimitado deinferênca e significação no tempo, se ini-cia. Começamos pelo emergir da consci-ência e continuaremos, depois, na senda da"emoção"e dos caminhos que a conduzem ao"sentir", já no âmbito da consciência.

3.4.1 Do emergir da consciência

António Damásio parte do princípio que "aconsciência surge quando conhecemos"e que"só podemos conhecer quando também re-presentamos a relação entre objecto e orga-nismo"(ibid.:179 e 191). Por outras pala-vras, "a consciência emerge quando esta his-tória primordial - a história de um objectoque modifica o estado do corpo de formacausal - pode ser contada usando o voca-bulário universal e não verbal dos sinais docorpo"(ibid.:51), i.e., quando é possível re-presentar, num mapa de segunda ordem, oproto-si a ser modificado (como reflexo deuma nova interacção entre objecto e orga-nismo). A lógica seguida aponta para umaequiparação entre o "tornado consciente"e o"conhecido pelo organismo"(ibid.:57), em-bora no acontecer do processo seja necessá-rio pôr em evidência o objecto que, numadada fracção desse acontecer (ou agir síg-nico), foi codificado por sinais adequados aonível do proto-si, cartografo no emergir nu-clear e, por fim, transposto para (e no) o fluxodo pensamento. Neste sentido, o irromperda consciência dá-se "quando os dispositi-

vos de representação do cérebro geram umrelato imagético e não verbal de como o es-tado do organismo é afectado pelo processa-mento de um objecto, e quando este processoresulta no realçar da imagem do objecto cau-sativo, colocando-a, de forma saliente, numcontexto espacial e temporal"(ibid.:200)

Como A.McHoul avançou, não é possívelimaginar a figura dos signos, em abstracto,de maneira esquemática, fora da acção cor-rente das representações e da corrente detemporização prática. Cada objecto será pro-cessado e realçado através de imagens, massem que se possa sequer imaginar que a essaimagem corresponderia um "definitve mea-ning", ou a uma espécie detelos, ou aindaa uma qualquer desocultação determinável.É nesse sentido dinâmico, a par da descri-ção dos procedimentos em fluxo, descritospor António Damásio, que o autor tambémdefine semiose: "This is no more and noless than the discovery that the indefinite-ness of meaningin principle"(...)"itself me-ans that actual semiosic effets must alwaysbe producedin practice."(1996:11107). Sea consciência (se) desperta na abrupta sur-presa dos relatos de segunda ordem - por viade uma necessária representação -, abrindocampo ao território do conhecido, então étambém a partir daí que as primeiras inferên-cias e abduções não verbais se desencadea-rão. No entanto, é sobretudo no quadro dosi-autobiobráfico (sendo que este necessitado ímpeto do si nuclear, como modo de per-manenteactualização) e no âmbito da mon-tagem implícita aos múltiplos recursos dis-posicionais e imagéticos da consciência alar-

107A.McHoul, Semiotic Investigations - Towardsna Effective Semiotics1996,University of NebraskaPress, Nebraska

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gada que "os símbolos"com que pensamosiniciam, de facto, a sua aventura significa-tiva.

Fica contudo a pergunta: não existirão li-nhas de tendência, na segmentação docon-tinuum, que codifiquem as imagens presen-tes à consciência nuclear e que acabem porinfluenciar as primeiras inferências e inter-pretações conscientes ? Em caso afirma-tivo, ainda que parcialmente, poder-se-ia di-zer que, no emergir da própria consciêncianuclear, já existem traços de predisposiçõesinferenciais, ainda que latentes.

Nesse caso, o despontar semiótico coinci-diria praticamente com o próprio emergir daconsciência.

3.4.2 Da "emoção"ao "sentir"na consci-ência

A importância que António Damásio atribuià emoção e à ’consciência do sentir’ é deci-siva. Aliás, esse facto é logo ponderado numdos cinco pontos de partida deO Sentimentode Sie atravessa todoO Erro e Descartes.A causa profunda de tal atitude pode radi-car numadramáticatomada de consciênciado filogenia humana. Com efeito, do mesmomodo que o autor é incisivo quanto à anterio-ridade da consciência face à linguagem (ver-bal), também, não o é menos quanto à anteri-oridade da emoção face à própria consciên-cia: "Durante o processo evolutivo, a emo-ção surgiu, provavelmente, antes do desper-tar da consciência, e aparece em cada umde nós como resultado de indutores que nemsempre reconhecemos conscientemente. Poroutro lado, é no teatro da mente conscienteque os sentimentos produzem os seus efeitosmais importantes e duradouros"(ibid.:57)

Não apenas a emoção nos surge aqui do-

tada de um residual aspecto fundador, como,por outro lado, as imagens somatossensoriaisque consubstanciam os sentimentos nos sur-gem como as que mais resistem ao efémerodo fluxo imagético (ou da semiose ilimitada),através do qual pensamos. Estabelecida cla-ramente a hierarquia emoção-consciência-linguagem, passemos agora a analisar comé que o processo de transição da emoção ao"sentir"na consciência se opera, tal como édescrito emO Sentimento de Si(ibid.:323/4):a) Indutores de emoção e o organismo inte-ragem;b) A figura do objecto que interferiu numprimeiro momento (reconhecida ou não, tor-nada ou não consciente) é processada, o queacaba por activar regiões neurais que, demodo adequado, logo respondem à "classeparticular do indutor"manifestada;c) As regiões indutoras da emoção desenca-deiam, por sua vez, respostas em direcção aocorpo e ao cérebro;d) Os mapas neurais de primeira ordem re-presentam as modificações em questão: ossentimentos emergem nesta fase:e)"O padrão de actividade neural", nas re-giões de indução de emoção, é agora ape-nas cartografado em estruturas mentais neu-rais de segunda ordem. As modificaçõesno proto-si também são cartografadas nomesmo relato de segunda ordem.

O relato de segunda ordem enuncia, destemodo, uma relação entre duas representa-ções - a de uma ’emoção como objecto’ -e a do ’proto-si’ afectado -, acabando poradequar-se à sintaxe do fluxo de pensamentoque estava e estará sempre em curso (até àmorte). As primeiras relações descritas naante-câmara da consciência apresentam con-tornos de comunicação sinalética e ainda nãopropriamente semiótica (sígnica), porque ba-

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sicamente põem em jogo entidades regidaspor códigos rígidos (seriando respostas sem-pre adequadas para estímulos também deter-minados) e, por outro lado, porque, em prin-cípio, essas mesmas entidades não têm aindasequerpoder para os discutir. O processa-mento não é aindadefinidopelo indecibili-dade do improvável e do impreciso, mas an-tes regido pela aparente previsibilidade dosprogramas.

Apenas em e), na figuração já da segundaordem, tem lugar, como se viu, uma primeriarepresentação ainda não totalmente consci-ente desse primeiro circuito deante-câmara.O segundo leque de representações, de factoum conjunto de meta-representações da ante-rior interacçãosinalética, corresponderá en-tão ao emergir da consciência (neste caso soba forma de reconhecimento de um objecto-emoção e do correspondente cartografar daafectação do proto-si). Mantém-se, no en-tanto, a questão: se o "estado de emoção"é"desencadeado e executado de forma nãoconsciente"(ibid.:57), entre indutores e orga-nismo, não existirão traços dessa primordialrelação - em grande parte de natureza sinalé-tica - que se projectem, de seguida, no modocomo oaqui-agorada consciência nuclearestrutura as suas figuras ? Este facto é degrande importância, na medida em que a se-miótica se institui e se inicia noespaçointer-pretativo (e não no espaço doprograma, noseio do qual as partes agem de modocego)que está em pleno a operar-se na transiçãode dados da consciência nuclear para a cons-ciência alargada, ficando portanto em aberto- conforme o tom afirmativo ou não da res-posta - se o signo se assume como passagem(entre níveis, sem grandes fronteiras entre osseus componentes), ou se se assume antescomo ruptura entre o que aparece e o que é

irrevogavelmente vestígio mudo desse apare-cer significante.

Seja como for, a primeira hipótese, ada passagem, parece-nos mais conjectural-mente próxima da realidade descrita porAntónio Damásio e mais próxima tambémda teorização contemporânea da semiótica.Diga-se que o autor deO Sentimento de Si,prefere amiúde, ao registo denotativo do ci-entista, a amplitude da metáfora, provavel-mente para traduzir o intraduzível e para res-ponder ao irrespondível; ouçamo-lo a esterespeito: "O comportamento que observa-mos num organismo"resulta de uma "conco-mitância de linhas melódicas em cada uni-dade de tempo escolhida para observação".Alguns componentes estão sempre presen-tes, enquanto "outros estão apenas presen-tes durante determinados períodos de actua-ção". De qualquer maneira, e apesar da plu-ralidade, "o produto comportamental de cadamomento é um todo integrado, uma fusão decontribuições comparável à fusão polifónicaduma actuação orquestral"(ibid.:111). É estaideia de intregração indicível - e não de sis-tema fechado e determinado - que nos levaa crer que a primeira semiose criada no or-ganismo é já uma inscrição reprodutível designos (e de interpretantes), cuja essência éa passagem ao fluxo de figuras do que es-tas evocam (e retêm), sem que uma abismadofosso entre elas se materialize.

Nesta medida, a semiose deve afirmar-secomo uma história em curso, como uma ac-ção de concomitância de muitos trânsitos enão como uma geografia irreal e estática dossignos onde os seus componentes, de modoautofágico, se apagassem ou anulassem mu-tuamente. Tal como A. McHoul acançou:"For traditional linear history"(...)"the pre-sent is no more than a gap between the origin

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and the fulfillment of its purpose: the end(the future)"(...)"But this gap is not nullity,it is the "historically discontinuous space inwhich we find ourselves: constituted by theyet-to-be, the undecidable, the unforeseea-ble, the unpannable, the aleatory. And it isprecisely this dimension of history"(...)"thatno semiotics has yet embraced"(1996:10108)

A acção, por si só, o uso inferencial da ac-ção, torna-se, deste modo, na própria signifi-cação. Ou seja, no produto corrente de todaa semiose.

4 Conclusões

Vimos que as grandes temáticas da semióticase iniciaram em torno dos sortilégios da vi-sibilidade da letra e do corpo, acabando porprodigalizar-se na ante-câmara da lógica, du-rante muitos séculos, ao debater-se com duasideias-chave: a discussão da questão da co-erência interna do pensamento (e, portanto,dos processos mentais inerentes) e a questãoda correspondência entre as formas de pen-samento e as formas do mundo real (ou seja,entre organismo e objecto). Estetopic du-plo evoluiu lentamente sob o manto da lógicaformal e material e, já em Locke, através dadefinição das ciências práticas e especulati-vas, acabou por abraçar uma mediação ini-cial e explícita da espistemologia semiótica.Interessante, na análise de J.Deely, é o trân-sito ibérico e português desse longo trajectosemiótico que se haveria de projectar, maistarde, sobretudo no mundo anglo-saxónico,numa área muito influenciada pela lógica epelo corpo (na perspectiva comportamentale cognitiva, evoluindo, mais recentemente,para a interdisciplinaridade com áreas cien-

108 Obra citada na nota anterior.

tíficas de ponta) e, no mundo continental,através da recuperação da tradição da letra(em procedimentosdominantesque parecemter-se esgotado, há uns anos, na era do pós-estruturalismo e da emergência desconstru-tiva).

Os recentes cruzamentos entre ambas asmargens do Atlântico, o neo-pragmatismo,as influências de Derrida e de Eco, as diver-sas vagas de fadiga da modernidade, as vagasmodistas ligadas às ciências comunicacio-nais, assim como todo o novíssimo ’universodas áreas de quase imediação109’, a partir doqual os recentes construtivismos insistem emprovocar a tradição da representação, atra-vés da apologia dohomem-novo-virtual, vie-ram criar condições para novas reflexões esobretudo perspectivas. Para um tal auto-cumprimento epistémico, parece-nos funda-mental definir, nos tempos que correm, umareferência mínima, a partir da qual, de modoaté errante, se possa discutir - pelo menosna área semiótica - acerca do rizoma actualde manifestações. Essemodeloou referên-cia mínima, como prefiro designá-lo, podebem ser encontrado(a), numa parte decisiva,nas actuais investigações das neurociências,cujo objecto é a própria "arquitectura neu-ral que suporta a consciência", e de que éexemplo-exemplar (passe o pleonasmo in-tencional)O Sentimento de Side António

109"O que basicamente domina esta nova época é oque designamos por ‘áreas de quase imediação’ e queincluem: (1) a ficcionalidade da experiência corpori-zada pelos média; (2) a área de propagação ciberespa-cial; (3) o agir livre do sujeito impelido por um desejoinstantanista; (4) a compulsão interactiva circundanteface ao sujeito e, por fim, (5) a propriocepção, ou seja,os novos limites que advêm da expansão do sujeitotecnológico"; (L.Carmelo,Órbitas da Modernidade,Ed.Notícias,Lisboa - no prelo).

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Damásio. Esta necessidade vital pode serjustificada por dois motivos fundamentais:

Ter em consideração que qualquer noçãode signo é sempre transversal aos procedi-mentos da mente e não há nada que possaabstrair-nos desse facto, sobretudo porqueo agenciamento comunicacional, neste pla-neta, continua a ser o humano e não outro;

Demover as tendências que estão a des-locar para os artefactos construídos à ima-gem do cérebro humano (e/ou à imagemda expansãoutópica do cérebro humano)os novos modelos de avaliação dos mundospossíveis (a questão já havia sido abordadapor C.Metz110, há muitos anos, a propósitoda montagem soviética, mas, hoje em dia,repõe-se já numa dimensão outra, até porqueos aparelhamentos e o devir instantanista es-tão a criar uma euforia construtivista radical,incapaz de entender que todo o seu enunciaré também e unicamente um produto do emer-gir da consciência humana).

Tendo com base este primeiro aponta-mento conclusivo, passamos agora em re-vista alguns aspectos relevantes e tambémconclusivos que atravessam a ligação inter-disciplinar que desejamos ver acentuada, abreve trecho, entre a semiótica e as neuroci-ências.

110 O texto referido corresponde a uma entrevistade F.Hoveyda e de J.Rivette a C. Metz, publicadaemCahiers du Cinema, no 94, 04/1959 e aborda cri-ticamente a ’montagem rei’, a partir da contraposi-ção língua/ linguagem e da segmentação provenientedas "atracções"eisensteinianas. Contudo, a questãode fundo equacionada por Metz, a dos modelos doreal, põe o problema do artefacto, entendido na me-dida de umamatriz do próprio real-perceptivo en-quanto inequívoca inversão falaciosa de termos. Otexto encontra-se igualmente publicado sob o títuloA significação no cinema, Editora Perspectiva, SãoPaulo,1972: 45 e seguintes)

4.1 Mistérios, abduções ,sobrevivência

É curioso o modo como o conhecido se deixapermeabilizar pelo conhecimento, emO Sen-timento de Si. Por um lado, as propostasencaixam-se e vão-se equilibrando com todaa lógica que advém da prévia experimen-tação laboratorial, mas, por outro lado, auma abundância de potenciais abduções quesucedessem induções normais e explorató-rias, parece antes corresponder uma caldeadaenunciação de mistérios, isto é, de questõesque permanecem ainda sem resposta (a ques-tão já havia sido explicitada noPostsrcip-tum de O Erro de Descartes111). O próprionovo mundoproposto em torno do Proto-si,com todo o encantamento, enigma e atrac-ção que o mesmo pressupõe para osleigos-e para além de toda sistematização já avan-çada - ainda parece estar envolto numa espé-cie de aura misteriosa, própria do expressi-onismo cinematográfico alemão: o "Fugidiosentido de si"(ibid.:42); "as raízes profundasdo si"(ibid.:43); o mundo anterior à primeira"prestidigitação"da consciência (ibid.:199),etc.

Para além deste metaforizar doen-canto da descobertae da sistematização do’totalmente-desconhecido’ (ibid.:263), An-tónio Damásio deixa sobretudo bem assina-lado, ao longo da sua obra, as questões aindairrespondíveis como integrantes do próprioprocesso de relação entre o conhecimento eo conhecido, a saber:

O modo ainda desconhecido de como asimagens emergem a partir dos padrões neu-rais (ibi.:367). Será que o chamado "fac-tor intraorganísmico C"(J.Deely,1995:172),

111 Mais concretamente na secção "Uma nota sobreos limites actuais da neurobiologia"(1995:262-265).

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entendido como "factor que nos tornaconscientes de algo que ele mesmo nãoé"(ibid.:173), poderá abrir alguma luz aoenigma ?

O "binding problem"(ibid.:379), ou aquestão - ainda também não desvendada -de como é que a "organização anatómica"das"zonas de convergência"pode servir de basepara o tipo de imagens integradas e unifica-das de que temos conhecimento nas nossasmentes"?

Finalmente, a própria hipótese que levaAntónio Damásio a fundar o proto-si(ibid.:184 e seguintes) centra-se no facto deo organismo, ao ser representado no cérebro,ter em atenção o que designa por "sobrevi-vência"ou "manutenção da vida"(ibid.:42/3-tema do capítulo V). O facto de constituir"proposta"(ibid.:185) e nãotese112, mantéma questão ainda no limiar do conhecido, oque, de qualquer modo, não deixa de nosconduzir a uma inevitável associação comuma das ideias filosóficas mais centrais doséculo XX: a ’sorge’ (acura) que surge noSer e Tempo113 de Heidegger como sendo,ela mesma, a constituição ontológica do serhumano114.

Seria interessante levar a cabo uma sis-112O autor chega mesmo a referir: "A questão do

que poderá dar ao cérebro um meio natural para ge-rar a referência singular e estável a que chamaos sipermanece sem resposta"(ibid.:162)

113 Ser e Tempo (I/II-1997,Vozes,Petrópolis), apare-cido em 1927

114 "Esta lógica é retomada do seguinte modo, nofinal do Ser e Tempo (1997,2-II:235): “Os agora pas-sam e os agora que passaram constituem o passado.Os agora advêm e os agora que advirão delimitamo futuro”. Ou seja, na temporalidade irreparavel-mente humana, convertida num sentido ontológico do“sorge” (cuidar de), o futuro tornar-se-á sempre nopilar fundamental, já que é a única instância que seantecipa à morte, sendo, portanto, capaz de enqua-

tematização dosdesconhecidose verificar,em termos semióticos, como é que eles con-tribuem para a tradução dos ’sentidos daverdade’ laboratorial em texto. Constitui-rão eles um pano de fundo de perfectibi-lidade, ou um painel de controlo remotode poder, contra o qual a ciência deseja-ria erigir - o que António Damásio designa,em O Erro de Descartes, como sendo - "oplano"de "grande escala"do "cérebro produ-tor de mente", i.e., o plano que conseguisseenvolver, porventura numa tentação holista,as "descrições tanto do nível microestrutu-ral"como do "nível macroestrutural"do cére-bro ? (1995:264)

4.2 Representação inevitável e aintersubjectividade

A representação surge, emO Sentimento deSi, como uma instância necessária e funda-mental na comunicação e na significação queocorre no/e através do organismo. É na re-presentação que se inicia a consciência, oreconhecimento115 e o significado e é tam-bém no seio da representação que é possível

drar e ratificar a finitude."(L.Carmelo,Anjos e Mete-oros,Ed.Notícias, Lisboa,1999:114/5)

115 Para U.Eco, emKant e l’ Ornitorinco, o reco-nhecimento através da representação desdobra-se en-tre o ’Tipo Cognitivo’ (baseado no conceito empíricoe influenciado pela cultura) e o ’Conteúdo Nuclear’(conjunto de interpretantes): "Da un lato stiamo par-lando di un fenomeno di semiosi perceptiva (TC) edall’altro di un fenomeno di accordo comunicativo(CN). Il TC - che non si vede e non si tocca - è soltantopostulabile in base ai fenomeni del riconoscimento,dell’identificazione e del riferimento felice: il CN in-vece rappresenta il modo in cui intersoggettivamentecerchiamo di chiarire quali tratti compongano un TC.Il CN, che riconosciamo sotto forma d’interpretañti,si vede e si toca- e questa non è soltanto una meta-fora, dato che tra gli interpretanti del termine cavallo

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repor-se, a cada momento, uma ideia de su-jeito (e de auto-apropriação subjectiva) quenão se dilui no objecto, embora com ele in-teraja em processo de aberta e permanentehibridação.

O actual construtivismo, como J. Bra-gança de Miranda sublinhou,joga coma crítica da aparência e sobretudo darepresentação como "verdadeirabêtenoire"(1998:193116). A "ontologia constru-tivista"critica a representação e a imagemcomo "reflexos parciais e incompletos,senão mesmo errados, do mundo e danatureza"(...)"como se o humano não re-sultasse de um ’salto’ no natural contra onatural"(ibid.:203). A "incompletude"da re-presentação, nesse sentido, seria colmatadaatravés da "criação de um mundo - virtual -interior, construído peça a peça, e alargadosegmento a segmento". Esta mistificaçãoque apontaria para a denegação delirante darepresentação pode ser sintetizada através darelação que S. Schmidt estabelece entre, porum lado, o meio (que define como "oikos-meio gerado e mantido pelos humanos deforma informacional "através da percepção,a sensomotricidade, a cognição, a memória,a emoção e a acção"comunicativa ou não- 1998:134117) e o próprio novo mundoadulado pelos construtivismo - o ciberes-paço: "o ciberespaço perfeito não tolerariadistinção alguma entre virtualidade e ac-

stanno anche tanti cavalli scolpiti in bronzo o in pie-tra"(U.Eco,1997:116)

116 Da interactividade. Crítica da nova ’Mime-sis’ tecnológicain Ars Telemática - Telecomunica-ção e Ciberespaço (Org. C.Gianetti), Relógio d’Agua,Lisboa,1998:179-236.

117 Ciber como Oikos ? Ou: Jogos sériosin ArsTelemática - Telecomunicação e Ciberespaço (Org.C.Gianetti), Relógio d’Agua, Lisboa,1998:129-162.

tualidade"; deste modo, "já não permitirianenhum cruzamento físico entre o mundointerior e o exterior"e, por consegiunte, "nãoseria mais do que uma duplicação do nossooikos, carecendo de qualquer interesse".

Por outras palavras: tal como António Da-másio, no seuO Sentimento de Si, inter-preta a intencionalidade filosófica ao nívelda neutralização husserliana, ou da ficciona-lidade potencial pura, como vimos, tambémo construtivismo actual deveria transpor assuas narrativas, a sua recriação de sujeito ede mundos possíveis no sentido da metanar-ração, mas cujamatrix inevitavelmente per-tence ao único eexemplarcontador de histó-rias do universo: o cérebro. Ou, pelo con-trário, será já o cyborg a prefiguração deuma utopia capaz de se tornar no modelodo actual cérebro, cujos neurónios, apesarde tudo, formam "10 triliões de sinapses"esão ligados por circuitos (cabos dos axónios)de "centenas de milhares de quilómetros"(A.Damásio, 1995:262) ? E se tal paradoxal-mente ocorresse, acabaria a própria repre-sentação ? Ou ocyborg-systemdeixaria deestar em vez de alguma coisa, ou denada?

Sem qualquer tipo de ambiguidade, a obrade Damásio é, de facto, clara quanto à per-sistência de uma instância subjectiva, assimcomo do aparecer nesta de figuras sempreactualizáveis sob a forma "trasparente"de re-presentações: "Quer as pessoas gostem, quernão,todosos conteúdos mentais são subjec-tivos e a força da ciência provém da capa-cidade de verificar a consistência de mui-tas intersubjectividades individuais". Estamáxima epistemológica que liga a necessi-dade deverificar-representarà intersubjec-tividadeencontra ecos fortíssimos no prag-matismo de Peirce que, como vimos, ajustaa permanenteevoluçãoda ’crença’ e da ’dú-

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vida’ àevoluçãoda comunidade intersubjec-tiva de saberes, embora essa tradição - queporventura se inicia no limiar moderno emLeibniz118 - encontre também eco no Hus-serl das "Conferências de Paris- "o ser emsi primeiro, que antecede e sustenta toda aobjectividade mundana, é a intersubjectivi-

118 A busca ou a necessidade de uma prática deintersubjectividade foi um passo necessário para aemergência do que pode caracterizar-se como um su-jeito que abrisse as portas à modernidade. O perspec-tivismo de Leibniz, entre outras contribuições, poráem andamento essa empresa, segundo a qual, os pon-tos de vista se ordenam de acordo com um desígniode perfeição global. Quer isto dizer que, vivendo ahumanidade no melhor dos mundos, toda a expres-são emanada, seja por que acto for, acabará semprepor contribuir para o “jogo de argumentos e contra-argumentos” (A.Cardoso, ’Leibniz e o racionalismomoderno’ in Descartes, Leibniz e a modernidade,1998: 311- 342, Colibri, Lisboa), transformando-se a verdade “em sistema” (ibid.:341) e, sobretudo,convocando-se para o centro da racionalidade um di-alogismo que estende o domínio de cada sujeito a umoutro. Esta abertura tornar-se-á fulcral para própriodevir da modernidade: “...each substance expressesthe whole series of the universe according to the pointof view or relation proper to it. From which it hap-pens that they agree perfectly; and when we say thatone acts upon another, we mean that the distinct ex-pression of the one acted upon is diminished, andthat of the one acting is augmented, in conformitywith the series of thoughts involved in the notion.For although every substance expresses everything,in common usage we correctly attribute to it only themost evident expressions in accordance to its relationto us.”(...)”All these things are consequences of thenotion of an individual substance, which contains allits phenomena in such a way that nothing can hap-pen to a substance that does not come from its depths,though in conformity to what happens to another, des-pite the fact that the one acts freely and the otherwithout choice". (’Letters to Arnauld’ -1686 - in Mo-dern Philosophy - An Anthology of Primary Sources1998 b : 208 - 225, Hackett Publishing Company, Inc., Indianapolis / R.Ariew - E. Watkins (org.)/ Cam-bridge.

dade transcendental, o conjunto de móna-das que se reparte em diversas formas deassociação"(1992:50119) -, em D. Davidson(para quem a intersubjectividade e a inter-pretação constituem a "base do pensamento-I.Izuzquiza,2000:103120) e em muitos outros.Como E. Levinas diria: não é apenas comoindivíduos "de um género que os homens es-tão juntos"(1982:70121).

4.3 O tempoDez para um, no melhor dos casos, e dez milpara um, no pior, eis a escala que separa arealidadecomunicacional verificada nos cir-cuitos que ligam os neurónios darealidadeda primeira representação correspondenteque emerge na consciência nuclear (pondo anu mutações no proto-si e re-figurando umadada relação quasi-actual entre organismo eobjecto). Ou seja, o desfasamento e o diferi-mento temporais são, no mínimo, radicais eaparentemente nulos. António Damásio ex-plicita: "Os neurónios são activados e dispa-ram em apenas alguns milionésimos de se-gundo, enquanto que os acontecimentos deque temos consciência na nossa mente ocor-rem na ordem de dezenas, centenas e milha-res de milésimos de segundo"ibid.:154).

O atraso da consciência em relação à ocor-rência primordial, verificada na sua ante-câmara, é por mais evidente: "Na altura emque a consciência nos ’é entregue’ para umdeterminado objecto, os respectivos meca-nismos do nosso cérebro têm estado a traba-lhar há uma eternidade,medidade122 na pers-

119 Conferências de Paris, Edições 70, Lisboa,1992.

120 Obra citada na nota 46.121 Ética e infinito, Edições 70, 1982, Lisboa.122 Presumivelmente devido a gralha, "medi-

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pectiva temporal de uma molécula - se asmoléculas pensassem, claro. Estamos sem-pre atrasados para a consciência, mas comotodos nós sofremos do mesmo atraso, nin-guém repara."(ibid.:154). Dir-se-ia estarmosantes em face de uma espécie de ’princí-pio stroboscópico’ ou dePlateau, aplicadoagora, não à conformidade entre a nossa re-tina e um dado movimento de imagens dis-cretas, mas sim à conformidade sugeridapela aparência das ocorrências em conexãocom as suas diferidasre-figurações. Por ou-tras palavras: oactual é sempre um diferi-mento, enquanto opresenteé já - e sempre- um território cindido, nada absoluto, e quetraz em si o vestígio de um irrevogável e in-tangível passado (ainda que recente). Nãohá, pois, no quadro da semiose, significan-tes apeados dos seus significados fixos e pré-determinados; a representação existe, é evi-dente, mas moldada pelo descontínuo e pelosempre-diferido aparecer das figuras, de quea consciência nos permite a respectiva apro-priação.

Passemos, no entanto, a algumas outrasquantificações: "A ideia de que a consciên-cia chega atrasada, em relação à entidade quea inicia, é apoiada pelas experiêcnias de Ben-jamim Libet sobre o tempo que um estímulodemora a tornar-se consciente. O atraso é decerca de quinhentos milésimos de segundo.Claro que é curioso que possamos posicionaro nosso si mental entre o tempo celular, porum lado, e, por outro, o tempo que a evolu-ção demorou a trazer-nos até onde estamos".De qualquer modo, diga-se em abono dossentidos plausíveis da verdade, o ser humanovive na medida dos seus próprios limites, no-

dade"(colocado por nós em itálico) deve ser lido como"medida".

meadamente nos limites relativos ao tempoético: "não conseguimos imaginar correcta-mente quaisquer remotas escalas de tempo".Se, para além de outras formas, o ser hu-mano também recorta docontinuumdos con-teúdos disponíveis o seu próprio tempo pos-sível - e não aquele que existiria, ou existeficcionalmente, para além da sua subjectivi-dade e do seuoikos- conformemo-nos coma escala em que a própria semiose ocorre,onde há acomodamentos e "previsibilida-des"face ao futuro imediato (ibid.:176),onde a percepção nunca é perfeita por-que construtora de "ajustamentos"(ibid.:177)e onde existem naturais "memórias dofuturo"(A.Damásio,1995:266). Sobretudo,repetamo-lo: o fluxo do pensamento move-se "para a frente no tempo, depressa oudevagar, de forma ordeira ou sobressaltadae, algumas vezes, avança não apenas numasequência mas em várias". (ibid.:361).

Poderá ainda vir a existir uma semióticado tempo, assente em parâmetros laboratori-ais das neurociências ? De qualquer modo,apesar dos nexos temporais que nos levaram,ao longo de séculos, a tematizar o fim, oprincípio e outros sintomas de coerência for-çada ou de consciência de crise, estabeleça-se, pelo menos, o que ainda une a epistemo-logia semiótica, i.e., a noção de signo, depu-rada pela leitura de António Damásio e esti-mulada pela metodologia de John Deely:um signo é sempre um correlato, ou um in-terface, em que intervêmfiguras que sãosegmentações de conteúdo, peças de signi-ficação e, por outro lado, experiências sen-síveis, corpos significantes, dimensões ex-pressivas que são amalgamado(a)s no cursodo tempo diferido da consciência, atravésde uma relação produtora de sentidos, pro-vocada pelo impacto entre essasfigurase o

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fluxo de fundo das imagens ou símbolos comque pensamos. O código, nas suas variadasfacetas (genoma e cultura), selecciona essessentidos, separa os sememas e tenta repor asempre instável ordem que é própria da inde-cibilidade da mente, cujo sortilégio último éa sobrevivência e a ’sorge’.

Por fim, cabe-nos perguntar: estaremosainda a tempo para contratualizar o nosso le-gado de signo com as neurociências, no queimagino poder vir a ser um desafio interdisci-plinar baseado no modelo laboratorial destase em abduções comuns, tendo como objec-tivo a sistemática reactualização dos meca-nismos com que comunicamos, significamose estruturamos o mundo?

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