a multifuncionalidade do item agora em tiras de … · da puc-mg, pelos envios de ... esta pesquisa...

83
Rivaldo Capistrano de Souza Júnior A MULTIFUNCIONALIDADE DO ITEM AGORA EM TIRAS DE QUADRINHOS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2005

Upload: duongque

Post on 13-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Rivaldo Capistrano de Souza Júnior

A MULTIFUNCIONALIDADE DO ITEM AGORA EM TIRAS DE QUADRINHOS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO

Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

2005

Rivaldo Capistrano de Souza Júnior

A MULTIFUNCIONALIDADE DO ITEM AGORA EM TIRAS DE QUADRINHOS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como parte dos

requisitos para obtenção do grau de Mestre em

Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação do

Prof. Dr. Johnny José Mafra.

Belo Horizonte

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2005

FICHA CATALOGRÁFICA

Souza Júnior, Rivaldo Capistrano S729m A multifuncionalidade do item agora em tiras de quadrinhos: da gramática

ao discurso / Rivaldo Capistrano Souza Júnior. Belo Horizonte, 2005. 82f. Orientador: Johnny José Mafra Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. Bibliografia

1. Lingüística funcional 2. Gramática comparada. 3. História em quadrinhos. I. Mafra, Johnny José. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.85

Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC

MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:

_______________________________________________________

Profa. Dra. Maria da Penha Pereira Lins (UFES)

_______________________________________________________ Profa. Dra. Vanda de Oliveira Bittencourt

(PUC MINAS)

_______________________________________________________ Prof. Dr. Johnny José Mafra – Orientador

(PUC MINAS)

Belo Horizonte, 08 de abril de 2005.

Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras

PUC MINAS

AGRADECIMENTOS

A meu orientador, Prof. Jonnhy José Mafra, pela orientação paciente e, também, por respeitar meu ritmo de trabalho e minhas limitações; À professora Penha Lins, cuja competência contribuiu e contribui para minha formação acadêmica, pelo estímulo e pelas valiosas sugestões; À professora Vanda de Oliveira Bittencourt, por ter me introduzido no universo da Gramaticalização; À Vera Mageste e demais funcionários da Secretaria do curso de pós-graduação em Letras da PUC-MG, pelos envios de documentos e pelo pronto atendimento; À Alcione Gonçalves, pelas palavras de incentivo e por compartilhar comigo as angústias de se terminar uma dissertação; À Araceli Covre, pelo incentivo e pelas constantes fiscalizações; Aos meus pais, Rivaldo e Ilza, e minha avó, Olinda, pelo incentivo, colaboração e compreensão.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................10 CAPÍTULO PRIMEIRO – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS.......................................................13 1.1 A lingüística funcional...........................................................................................................13 1.1.1 Acepções dos termos gramaticalização e discursivização...............................................18 1.1.2 Princípios que configuram a gramaticalização................................................................25 1.1.3 Gramaticalização de conectores......................................................................................26 1.1.4 Trajetórias de gramaticalização e de discursivização de agora.......................................29 1.2 Gêneros e tipos textuais.........................................................................................................31 1.2.1 O gênero tira de quadrinhos.............................................................................................34 CAPÍTULO SEGUNDO – REVISÃO DA LITERATURA.......................................................42 2.1 Visão diacrônica....................................................................................................................42 2.2 Visão sincrônica.....................................................................................................................43 CAPÍTULO TERCEIRO – METODOLOGIA E “CORPUS”....................................................49 3.1 Natureza do corpus................................................................................................................49 3.2 Metodologia de análise..........................................................................................................51 3.3 A construção do humor nas tiras do Gatão............................................................................52 CAPÍTULO QUARTO – A MULTIFUNCIONALIDADE DO AGORA NAS INTERAÇÕES DE GATÃO DE MEIA IDADE..................................................................................................58 4.1 AGORA dêitico temporal......................................................................................................58 4.1.1 Ampliação temporal.........................................................................................................59 4.2 AGORA juntivo.....................................................................................................................61

4.2.1 Relações de causalidade..................................................................................................62 4.2.2 Relações de contrajunção................................................................................................63 4.2.2.1 relação de ressalva....................................................................................................64 4.2.2.2 relação de contraste...................................................................................................65 4.2.2.3 relação de contra-expectativa...................................................................................66 4.2.3 Conector de seqüencialização.............................................................................................67 4.3 Marcador discursivo..............................................................................................................69 4.3.1 Conector de subtópicos....................................................................................................71 4.3.2 Introdutor de digressão....................................................................................................72 4.3.3 Redirecionar de tópicos...................................................................................................74 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................78

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – p. 35 Figura 2 – p. 38 Figura 3 – p. 40 Figura 4 – p. 49 Figura 5 – p. 52 Figura 6 – p. 54 Figura 7 – p. 55 Figura 8 – p. 56 Figura 9 – p. 56 Figura 10 – p. 58 Figura 11 – p. 60 Figura 12 – p. 60 Figura 13 – p. 61 Figura 14 – p. 62 Figura 15 – p. 63 Figura 16 – p. 64 Figura 17 – p. 65 Figura 18 – p. 66 Figura 19 – p. 67 Figura 20 – p. 68 Figura 21 – p.69 Figura 22 – p. 71 Figura 23 – p. 73 Figura 24 – p. 74 Quadro 1 Modelos formalista e funcionalista – p. 15 Quadro 2 Estilos conversacionais – p. 53 Quadro 3 Agora temporal – p. 61 Quadro 4 Agora com função de ressalva – p. 64 Quadro 5 Agora com função de contra-expectativa – p. 67 Quadro 6 Contraste de crenças – p. 72

RESUMO

Este trabalho propõe averiguar, com base no paradigma da gramaticalização

e da discursivização, no âmbito da lingüística funcional, o estatuto

gramatical-discursivo do item agora em suas funções dêitico-temporal,

juntivo e discursivo, nas tiras de quadrinhos de Gatão de meia idade, de

Miguel Paiva. Os pressupostos teóricos adotados partem do princípio de que

a língua, a fim de atender às necessidades sócio-comunicativas de seus

usuários, é dinâmica e se adapta a pressões internas e externas ao sistema.

LINHA DE PESQUISA: Variação e mudanças lingüísticas

PALAVRAS-CHAVE: agora, gramaticalização e discursivização

Um novo José JOSIAS DE SOUZA Calma, José. A festa não recomeçou, a luz não acendeu, a noite não esquentou, o Malan não amoleceu. Mas se voltar a pergunta: e agora, José? Diga: ora, Drummond, agora Camdessus Continua sem mulher, continua sem discurso, continua sem carinho, Ainda não pode beber, ainda não pode fumar, cuspir ainda não pode, a noite ainda é fria, o dia ainda não veio, o riso ainda não veio, não veio ainda a utopia, o Malan tem miopia, mas nem tudo acabou, nem tudo fugiu, nem tudo mofou. Se voltar a pergunta: e agora, José? Diga: ora, Drummond agora FMI.

Se você gritasse, se você gemesse, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Malan nada faria, mas já há quem faça. Ainda só, no escuro qual bicho-do-mato, ainda sem teogonia, ainda sem parede nua, para se enconstar, ainda sem cavalo preto, que fuja a galope, você ainda marcha, José. Se voltar a pergunta: Jose, para onde? Diga: ora, Drummond, por que tanta dúvida? Elementar, elementar. Sigo pra Washinton. E, por favor, poeta, Não me chame de José. Me chame Joseph. Folha S. Paulo

10

INTRODUÇÃO

Estudos desenvolvidos numa perspectiva lingüística, como os de Risso (1993),

Martellota (1998) e de Lins (2004), demonstram que o item agora, primitivamente um

dêitico temporal, cujo papel é situar eventos em um dado período de tempo, vem sendo

utilizado, sobretudo na língua oral, ora com um valor juntivo, já que lhe cabe unir

proposições, estabelecendo relações semânticas entre elas, ora com um valor discursivo,

uma vez que atua na organização do discurso.

Em relação aos significados assumidos, esse item segue uma trajetória, que parte do

sentido mais concreto para um sentido gradativamente mais abstrato. Neste estágio, passa a

desempenhar não só uma função não-adverbial, apontando para um referente que não

apresenta mais noção originária locativo-temporal, como também uma função típica de

marcador discursivo.

Em vista disso, a fim de investigar a extensão dos novos usos do item agora e a

relação desses novos usos com o gênero textual em que figura, decidimos averiguar o seu

comportamento em tiras de quadrinhos do Gatão de meia idade, de Miguel Paiva.

Neste trabalho temos, portanto, por objetivo realizar uma análise, com base no

paradigma da gramaticalização e da discursivização no âmbito da lingüística funcional

contemporânea, das funções do item agora nas tiras do Gatão. A perspectiva teórica

adotada parte do princípio de que a língua, a fim de atender às necessidades sócio-

comunicativas de seus usuários, é dinâmica e se adapta a pressões internas e externas que

interagem continuamente.

De um modo mais específico, pretendemos:

11

a) mostrar aspectos da evolução do vocábulo, a partir de sua fase latina, a fim de

conhecer um pouco mais sua origem;

b) examinar os contextos atuais de seu emprego como forma adverbial e como

formas gramaticalizadas e discursivizadas;

c) detectar e analisar as diferentes correlações interclausulares por eles indicadas;

d) averiguar os diferentes papéis por eles exercidos nos níveis discursivo;

e) demonstrar uma possível relação entre determinados empregos de agora e o

gênero textual “tiras de quadrinhos”.

Esta pesquisa apóia-se no paradigma da gramaticalização e da discursivização, nos

moldes em que é tratado por Heine et al. (1991), Hopper e Traugott (1993), Martellota,

Votre e Cezario (1996), Castilho (1997) e Martellota e Votre (1998)

No aspecto textual-discursivo, buscamos auxílio nas propostas de lingüistas

preocupados com a progressão tópica (Koch et. al., 1993 e Fávero, 1996) e com a

organização da conversação (Marcuschi, 1986 e Silva & Macedo, 1996).

Também serão feitas considerações em relação ao gênero textual “tiras de

quadrinhos”. Para isso, levamos em conta considerações teóricas de Marcuschi (2000) e

Mendonça (2002).

As principais hipóteses a serem tratadas neste estudo são:

1. A expressão locativo-temporal do item agora o expõe ao processo de

gramaticalização/discursivização, pois é comum, em qualquer língua natural, a utilização

de entidades mais concretas para expressar funções ou significados mais abstratos, processo

que, conforme mencionou-se acima, vem atingindo o advérbio agora, que, de um sentido

locativo-temporal, vem sofrendo uma abstratização, cujo nível pode ser tão alto, que teria

resultado no enfraquecimento de sua acepção temporal .

12

2. Agora, em sua função dêitica, passa por uma ampliação da referência temporal do

momento presente para futuro ou para passado, pela função de conector e pela atuação no

discurso.

3. Nas tiras de quadrinhos, o item agora apresenta o mesmo comportamento e

exerce as mesmas funções que na conversação, ou seja, parte da enunciação, passa pelo

enunciado e chega ao discurso.

Este trabalho está dividido em quatro capítulos:

No primeiro capítulo, expomos os pressupostos básicos da lingüística funcional, a

fim de explicar como ocorrem os processos de gramaticalização e de discursivização. Por

último, apresentamos, também, a fundamentação teórica sobre gêneros discursivos e tipos

textuais, a fim de melhor caracterizar as tiras de quadrinhos.

No segundo capítulo, como ponto de partida, buscamos de maneira breve uma

abordagem histórica com o intuito de compreender o processo diacrônico que levou a

expressão latina hac hora ao item agora, no português atual. Em seguida, categorizamos

esse item levando em conta visões da tradição gramatical e perspectivas lingüísticas

contemporâneas.

No terceiro capítulo, descrevemos os procedimentos metodológicos utilizados nesta

pesquisa e caracterizamos o corpus.

No quarto capítulo, analisamos a trajetória de agora, considerando suas funções e

seus significados nas tiras de quadrinhos.

13

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.1 A lingüística funcional

Neste sub-capítulo, objetivamos, de maneira breve e didática, revisitar as noções

formalistas (modelos estruturalista e gerativista) e funcionalista de estudos da língua.

No estruturalismo, abandona-se o comparativismo gramatical, centrado na evolução

histórico-diacrônica, e assume-se um estudo descritivo-sincrônico do sistema da língua. A

língua, no estruturalismo, era concebida como um sistema de unidades e relações, cujas

características dependiam essencialmente de sua natureza coletiva, social. Seu caráter

descritivista era totalmente compatível com o caráter geral da ciência no início do século:

analítico e centrado na observação empírica. Saussure expõe claramente essa concepção no

seguinte trecho do Curso de Lingüística Geral (1993: 17):

“Mas o que é língua? Para nós, ela não se confunde com linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.”

Além de conceber a língua como um produto social, os estruturalistas não

pretendiam dedicar-se ao estudo da faculdade da linguagem. Assim Câmara Jr. (1974: 23-4)

se refere ao campo de estudo da Lingüística:

Não lhe cabe depreender que elementos mentais e que estímulos condicionaram para a humanidade um rudimento de linguagem, que lhe permitiu construir a representação do seu mundo exterior e interior, e desenvolver uma e outro por meio do auxílio mútuo que se emprestaram.

14

Nem lhe interessa, a rigor, a linguagem em si mesma, considerada como uma faculdade abstrata do homem. O seu objeto (já aqui se frisou antes) é o estudo dos sistemas de linguagem, ou línguas (...)

Deslocando o centro de interesse do social para o mental, Chomsky passou a

focalizar a língua como um tipo de conhecimento tácito, específico, o qual todo ser humano

é capaz de dominar desde a infância. Assim, a teoria gerativa se concentra na mente, no

conhecimento inconsciente da língua.

Um dos pressupostos da sintaxe gerativa é o de que a Gramática é uma teoria da

competência do falante/ouvinte, e não uma teoria do desempenho. Estudar a competência

equivale a construir um modelo de conhecimento implícito, uma hipótese sobre o saber

interiorizado que todos os falantes possuem. Como conseqüência, propor uma gramática é

produzir um sistema finito de regras que expliquem o conhecimento intuitivo do falante na

produção e interpretação de um conjunto finito de frases de sua língua.

Segundo Chomsky (1971), no uso convencional, o termo gramática é “uma

descrição ou uma teoria de uma língua, um objeto construído por um lingüista. Para os

gerativistas, o estudo da gramática tem como objeto de investigação os estados da

mente/cérebro que fazem parte do comportamento lingüístico real ou potencial e dos

produtos desse comportamento. Assim, ocupa-se da inteligência do leitor, dos princípios e

dos processos acionados para atingir o conhecimento de uma língua.

Chomsky (op. cit.) define como seu objeto de estudo o conhecimento da Língua-I

(interna), representação da competência do falante. Já para os estruturalistas, o objeto de

estudo é a Língua-E (externa), ou seja, o produto do desempenho.

A concepção funcionalista dos estudos lingüísticos admite que uma língua natural

nunca é estática e acabada. Tomada sincronicamente, a gramática de qualquer língua exibe,

15

simultaneamente, padrões regulares, rígidos, e padrões que não são completamente fixos,

mas fluidos. Entende-se por gramática funcional a que analisa a relação existente entre a

gramática de uma dada língua e sua instrumentalidade de uso.

Daí, numa perspectiva funcional, a simples descrição da estrutura não é suficiente.

A descrição deve incluir referências ao falante, ao ouvinte e ao contexto sociocultural em

que as sentenças ocorrem.

Para os funcionalistas, a gramática não é somente um organismo gerado por fatores

cognitivos inatos; o funcionalista valoriza, principalmente, os imputs, os quais exercem um

papel relevante na estruturação da linguagem. Desta forma, não podemos considerar que a

gramática obedece a uma estruturação de ordem exclusivamente inata.

Castilho (1997) admite a existência de uma sintaxe funcional, que se refere à

competência comunicativa do falante, parte da semântica e do discurso e contextualiza a

língua na situação social.

Leech (apud Neves, 1997: 49) apresenta sistematização dos pressupostos teórico-

metodológicos da lingüística formal e funcional:

QUADRO 1 – Modelos formalista e funcionalista

FORMALISTA (o exemplo é Chomsky)

FUNCIONALISTA

Linguagem como fenômeno mental Linguagem como fenômeno primariamente social

Os universais lingüísticos são explicados como herança lingüística genética comum da espécie humana

Os universais lingüísticos são explicados como derivação da universalidade dos usos da linguagem nas sociedades humanas

Aquisição da linguagem: capacidade inata humana

Aquisição da linguagem: desenvolvimento das necessidades e habilidades comunicativas

Estudo da língua como sistema autônomo Estudo da língua em relação com sua função social

16

Leech liga as diferenças entre as duas abordagens a diferentes modos de encarar a

natureza da linguagem: para os formalistas é um fenômeno mental; para os funcionalistas é

um fenômeno social.

Por outro lado, Nascimento (1990) ressalta que, embora formalismo e

funcionalismo tratem do mesmo fenômeno, ou seja, a língua, seus pressupostos, objetos-

modelos, metodologia são diferentes, mas não totalmente independentes. Para ele, o

lingüista não deve só privilegiar uma descrição exterior da língua, mas também estar atento

aos elementos que a constituem.

Dillinger (1991, apud Moura Neves, 1997: 50) também afirma que formalistas e

funcionalistas, de fato, estudam fenômenos diferentes que envolvem o mesmo objeto;

assim, um estudo não exclui o outro, sendo ambos complementares e igualmente

necessários.

Neste trabalho, toma-se como suporte teórico o paradigma da lingüística funcional

contemporânea, segundo o qual, a língua, instrumento de interação social, é um organismo

dinâmico e maleável, que se adapta continuamente às necessidades comunicativas dos seus

usuários. Assim, no intuito de melhor se expressar, no desejo de ser enfático, entre outros

fatores, o sujeito “molda” a língua aos seus propósitos comunicativos. Nessa moldagem,

atuam processos como o da gramaticalização e o da discursivização.

Para o funcionalismo, a gramática1 de uma língua não é concebida apenas como

sistema de regras fixas e acabadas, mas também como um sistema formado por um

1 É de Hopper (1987, apud Cunha, Oliveira e Martelotta, 2003: 50) a noção de “gramática emergente”, no sentido de que a gramática está num contínuo fazer-se, pois novas estruturas gramaticais são desenvolvidas à medida que surgem necessidades comunicativas não preenchidas e necessidades de dar conta de conteúdos para os quais não existem designações lingüísticas adequadas.

17

conjunto de regularidades decorrentes de pressões de uso, cuja estrutura está num contínuo

processo de variação e adaptação, como atestam Martellota et al. (1996: 11):

“... a gramática de uma língua natural nunca é estática e acabada: tomada sincronicamente, a gramática de qualquer língua exibe, simultaneamente, padrões regulares, rígidos, e padrões que não são completamente fixos, mas fluidos. Por alguma razão, certos padrões novos se estabilizam, o que resulta numa reformulação da gramática. Nesse sentido, a gramática é um “sistema adaptativo”: enquanto sistema, é parcialmente autônoma mas, ao mesmo tempo, é adaptativa na medida em que responde a pressões externas ao sistema.”

Essa noção de gramática de cunho funcionalista difere do estruturalismo, que

concebe a língua como um sistema estável de unidades e relações, e do gerativismo, que

interpreta a língua como atividade mental.

Este trabalho fundamenta-se, portanto, nos pressupostos do funcionalismo, cuja

abordagem integra o estudo da língua paralelamente ao estudo da situação comunicativa,

como se pode ler em Moura Neves (1997:15):

“Por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global da interação social. Trata-se de uma teoria que assenta as relações entre as unidades e as funções das unidades têm prioridades sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível às pressões de uso.”

O funcionalismo se preocupa, então, com o estudo do uso da língua em situação

comunicativa, e os estudos de base funcionalista procuram explicar de uma forma

interligada os componentes sintático, semântico e pragmático.

18

É nessa concepção de gramática como estrutura maleável que o paradigma da

gramaticalização e da discursivização é recuperado a fim de explicar a variação e a

mudança, bem como a estabilização do sistema lingüístico.

1.1.1 Acepções dos termos gramaticalização e discursivização

Segundo Paiva (2002), pode-se entender que gramaticalização2 possui duas

significações básicas: a de paradigma e a de processo. Na acepção de paradigma, explicita

uma mudança lingüística relativa tanto ao grau de vínculo forma/função, quanto ao grau de

desgaste/manutenção de formas e construções gramaticais. Na acepção de processo,

designa um processo diacrônico e um continuum sincrônico através do qual palavras léxicas

mudam de estatuto e adquirem o status de formas gramaticais.

Conforme Heine et al. (1991 – apud Neves, 1997 e Poggio, 2002), o termo

gramaticalização, como se conhece hoje, tem suas origens, na China, no século X. No

século XVIII, filósofos franceses (Condillac e Rouseau) admitiam que o vocábulo abstrato

e a complexidade gramatical se desenvolviam a partir de um vocábulo anterior, concreto e

individual.

No século XIX (Alemanha e Estados Unidos), a gramaticalização, sem se adotar

esse nome, foi vista como tema de estudos de gramática comparada. Nessa época, destaca-

se o trabalho de Franz Bopp (1816 apud Poggio, op. cit), que apresentou exemplos de

mudança de itens lexicais em auxiliares, afixos e/ou flexões. Merece atenção, ainda, o

2 Neste trabalho, o termo gramaticalização é empregado em seu sentido amplo e abrange os processos de gramaticalização e de discursivização, processos investigados pela lingüística funcional.

19

trabalho do neogramático Georg von der Gabelentz (1891, apud Poggio, op. cit.). Para ele,

a gramaticalização é o resultado de uma tendência ligada à facilidade de articulação e outra

ligada aos traços distintivos. Uma segunda idéia de Gabelentz é a de que a mudança

lingüística não é concebida como linear, mas constitui um processo em espiral.

No século XX, Antoine Meillet, fundador dos modernos estudos lingüísticos sobre

gramaticalização, foi o primeiro a empregar, em seu artigo, L’évolution des formes

grammaticales (1982)3, o termo gramaticalização para indicar “l’attribution du caractère

grammaticale à un mot jadis autonome.”4

Para ele, as línguas seguem uma espécie de desenvolvimento em espiral: elas criam

novas formas para novas idéias; algumas palavras perdem sua força expressiva e passam a

sofrer nova concorrência, sendo substituídas por outra forma, e assim o ciclo se repete

indefinidamente.

Em seu artigo, Meillet descreve processos por meio dos quais surgem novas formas

gramaticais:

1) analogia – formação de novos paradigmas, a partir de paradigmas já existentes;

2) gramaticalização – passagem de uma palavra autônoma a elemento gramatical.

Enquanto a analogia não reorganiza o sistema da língua, ou seja, apenas

proporciona a renovação de formas, a gramaticalização cria novas formas e ocasiona

transformação no sistema, ao introduzir categorias para as quais não existiam expressões

lingüísticas.

3 A primeira edição desse artigo é de 1912. 4 A atribuição do caráter gramatical a uma palavra outrora autônoma.

20

Meillet afirma que, na transição de mots principaux (itens lexicais) a mots

accessoires (itens gramaticais), há graus intermediários. Pode-se observar tal transição

como um continuum. Os mots accessoires apresentam um aumento na freqüência e um

esvaziamento do valor expressivo.5

Desta forma, a gramaticalização, segundo Meillet, é um processo de constituição de

formas gramaticais por degradação de palavras antes autônomas.

J. Vendryès (1950), em artigo intitulado “Les transformations morphologique”, cita

Meillet, mas não emprega o termo gramaticalização. Para Vendryès, há duas tendências que

dominam as mudanças de uma língua:

1) a analogia, a criação de novas palavras, a partir de um modelo que lhe é conhecido;

2) a passagem de palavras plenas a palavras vazias.

Em 1968, Benveniste, discípulo de Meillet, repete o que este havia dito, em 1912, a

respeito da gramaticalização de verbos auxiliares. Benveniste criou o termo auxiliarização

para nomear a passagem de um verbo pleno a verbo auxiliar. Também empregou os termos

criação (quando a mudança diz respeito ao desaparecimento de categorias gramaticais ou

ao surgimento de novas formas) e renovação (quando as categorias são renovadas).

(Poggio: 2002 p. 67)

Kurylowicz (1965 – apud Castilho, 1997: 29) define gramaticalização como a

ampliação dos limites de um morfema que avança de um item lexical a forma gramatical ou

de um status menos gramatical para um mais gramatical. Segundo o autor, o item lexical,

ao gramaticalizar-se, perde substância semântica e fonológica e passa a comportar-se como

morfema livre ou preso.

5 Meillet ilustra esse processo com o verbo francês être, que de um verbo pleno, assume um sentido locatico, passa a verbo de ligação e, finalmente, desemboca na função de verbo auxiliar, indicando tempo e aspecto. Assim, tem-se: Je suis celui que suis – Je suis chez moi – Je suis malade – Je suis part / Je suis allé.

21

De acordo com Castilho (1997), até 1970, a gramaticalização foi vista como parte

da lingüística diacrônica, como meio de analisar a evolução lingüística, de reconstrução da

história de uma língua ou grupo de línguas, ou de relacionar estruturas lingüísticas atuais

com estruturas mais antigas. Posteriormente, os estudos de gramaticalização se voltam a

uma melhor compreensão da gramática sincrônica, já que as abordagens estruturalistas e

gerativistas não se preocupavam com a relação entre domínios cognitivos (como espaço,

tempo, modo, etc.) e estruturas lingüísticas.

A partir dos estudos de Givón, (apud Castilho op. cit.), nos inícios da década de 70,

surge uma nova perspectiva de análise. Givón, retomando e modificando o slogan de

Hodge “a sintaxe de ontem é a morfologia de hoje”, declara, no trabalho Historical syntax

and synchronic morfology, que “a morfologia de hoje é a sintaxe de ontem, mais tarde esse

slogan é transformado em “a sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem.” (Cf.

Castilho 1997).

Assim, até 1970, os lingüistas operavam com dois módulos lingüísticos: o léxico e a

gramática. Mas Givón, ao declarar que a sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem,

delineia a gramaticalização, na perspectiva do funcionalismo, agregando um novo módulo

lingüístico: o do discurso.

Segundo Hopper e Traugott (1993: 1-2), o termo “gramaticalização” pode ter dois

significados: 1) pode estar relacionado ao estudo da língua que observa a possibilidade de

as fronteiras entre categorias serem discretas e a interdependência da estrutura e uso de

elementos fixos e menos fixos na língua; 2) pode estar relacionado ao processo que torna

elementos da língua mais gramaticais ao longo do tempo.

Para Martellota et al. (1996), a gramaticalização é entendida como um processo de

mudança que consiste na passagem de um item lexical a um item gramatical ou na

22

passagem de um item menos gramatical a um item mais gramatical. Assim, quando um

item se torna mais gramatical, passa a assumir posições mais fixas na cláusula, tornando

seu uso mais previsível; quando se torna menos gramatical, assume “funções relacionadas

ao processamento do discurso, perdendo as restrições gramaticais típicas de seus usos

originais...” (Martellota, Votre e Cezario: 45-46)

Esses autores ressaltam que o processo de gramaticalização é unidirecional, pois os

itens lexicais e construções sintáticas passam a assumir funções gramaticais e, uma vez

gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Ao final, o elemento

lingüístico se torna previsível e regular, pois sai do nível da criatividade (nível individual)

para o das restrições gramaticais (nível pragmático-discursivo).

Segundo Martellota et al. (p. 53-4), o processo de gramaticalização percorre vários

níveis: o cognitivo, o pragmático, o semântico e o sintático.

a) Nível cognitivo – a gramaticalização segue a tendência de usar elementos do mundo

concreto para o mundo abstrato. O elemento do léxico é mais concreto que o da gramática.

b) Nível pragmático – a gramaticalização envolve uma intenção do falante em usar algo

conhecido do ouvinte para fazê-lo entender o que quer expressar, portanto, utiliza-se de

conceitos mais próximos da realidade do falante/ouvinte para expressar novas idéias que

surgem no decorrer do processo comunicativo.

c) Nível semântico – a gramaticalização, como processo de mudança ocorrida no léxico,

envolve o conhecimento por parte dos interlocutores dos significados de origem das

palavras envolvidas; caso contrário, o sentido novo corre o risco de não ser detectado pelo

ouvinte.

23

d) Nível sintático – a gramaticalização ocorre em contextos que a estimulem, aspectos

sintáticos não só propiciam a gramaticalização, como também são responsáveis pelos

caminhos da mudança.

Para Castilho (1997: 31), a gramaticalização é o trajeto no tempo real ou no tempo

aparente empreendido por uma forma lingüística, ao longo do qual ela muda de categoria

sintática (= recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações

semânticas e fonológicas, deixa de ser uma forma livre, e até mesmo desaparece, como

conseqüência de uma cristalização extrema.

A discursivização (pós-gramaticalização ou pragmatização, para alguns teóricos) é o

processo de mudança que leva determinados itens a perderem função lexical, passando a

assumir funções mais voltadas para a orientação da interação. Constitui um movimento que

parte da gramática para o discurso, assumindo caráter mais pragmático e interativo.

Para Castilho (1997: 60), a discursivização “é o uso discursivamente de itens

lexicais”. Trata-se de um processo em que um item gramatical perde suas propriedades

gramaticais e constitui-se numa categoria discursiva. É um processo distinto da

gramaticalização, pois atua num campo mais vasto do que a gramática, marcando as

relações entre os participantes ou entre os participantes e seu discurso.

Segundo Martellota (1998: 64), “a discursivização leva o item a adquirir função de

marcador discursivo, modalizando ou reorganizando a produção da fala, quando a sua

linearidade é momentaneamente perdida, ou servindo para preencher os vazios ou

interrupções por essa perda da linearidade”.

Para esse lingüista, a gramaticalização gera operadores argumentativos, elementos

que assumem um valor mais textual, apontando para algo que já foi dito ou que ainda será,

ou que ligam partes do discurso atribuindo-lhes uma relação argumentativa. São mais fixos

24

na cláusula e têm função básica de organizar internamente o texto e não fazer referências a

fatos do universo biossocial. Podem, ainda, indicar estratégias interativas, mas apresentam

menor grau de pragmaticidade e de subjetividade.

Martelotta et al. (1996: 61) consideram que os marcadores discursivos têm como

função primária “reorganizar a linearidade das informações no discurso, quando essa

linearidade é momentaneamente perdida por motivos diversos como insegurança ou falhas

de memória, e , apenas subsidiariamente, para organizar as relações textuais”.

De acordo com Vincent et al. (apud Martellota et al., 1996: 73), a discursivização

tende a levar elementos lingüísticos a assumirem as seguintes características:

a) asseguram um ritmo dinâmico aos enunciados que são emitidos em intervenções longas;

b) constituem elementos repetitivos no discurso e não têm valor relacional;

c) normalmente, ocorrem no fim de um sintagma prosódico;

d) tendem a ser fracos e a apresentar redução fonética.

Martellota (1998: 65-6) afirma que os marcadores discursivos desempenham

funções voltadas para viabilização do processamento da fala no contexto de improviso e

para a recepção por parte do ouvinte.

Assim, os marcadores discursivos não estão primariamente a serviço da organização

lógica interna ao texto, função desempenhada pelos operadores argumentativos, mas se

relacionam às limitações cognitivas impostas ao processamento do discurso, sua função é,

portanto, de natureza mais interacional.

Diante disso, neste trabalho o termo “marcador discursivo” se aplica a elementos

com função mais pragmática ou interacional (discurso), ou seja, são elementos que

25

organizam a fala dos interlocutores; por sua vez o termo “operadores argumentativos” se

aplica a elementos que possuem uma função mais textual, como a de conexão lógica das

informações.

De acordo com as definições apresentadas, a gramaticalização e a discursivização se

relacionam a um processo de mudança na estrutura lingüística. Isso é motivado por

necessidades de ordem interacional e cognitiva dos usuários da língua, os quais, para

transmitirem seus objetivos comunicativos, fazem uso de formas já disponíveis no sistema

e atribuem a elas novos significados e funções.

1.1.2 Princípios que configuram a gramaticalização

Hopper (1991 – apud Omena & Braga, 1996: 78) estabelece cinco princípios

básicos como deflagradores do processo de gramaticalização/discursivização. São eles:

a) Layering (estratificação) – segundo esse princípio, há coexistência de formas com

funções correspondentes. Dentro de um domínio funcional, surgem novas camadas e as

camadas antigas não desaparecem necessariamente, passando a coexistir e a interagir com

as novas.

b) Divergência – preconiza que quando uma determinada forma lexical se gramaticaliza,

passando a clítico ou afixo, sua forma original pode permanecer como elemento autônomo,

estando sujeita às mesmas mudanças de qualquer outro item lexical. 6

c) Especialização – se refere ao estreitamento das possibilidades de escolha 6 A noção de divergência pode se confundir com a noção de estratificação. Segundo Omena & Braga (p. 80), a noção de estratificação diz respeito a diferentes formas lexicais codificarem uma mesma categoria de um domínio funcional, enquanto a divergência se aplica ao fato de que uma mesma forma fonológica com diferentes estatutos gramaticais, isto é, a uma forma que, segundo os contextos, funciona ora como item lexical, ora como item gramatical.

26

d)Persistência – está ligada ao fato de que, com o processo de gramaticalização, uma forma

derivada mantém vestígios do significado original.

e) Descategorização – as formas, ao se gramaticalizarem, tendem a perder ou neutralizar as

características de sua classe, como marcadores fonológicos e privilégios sintáticos.

1.1.3 Gramaticalização de conectores

Segundo Hopper & Traugott (1993: 177), no processo de gramaticalização, há um

continuum unidirecional ao longo do qual ocorrem mudanças de categoria.

Diacronicamente, os elementos conectores se originaram a partir de itens lexicais ou de

outros elementos menos gramaticais, como os advérbios e as preposições:

“Clause linkage markers have their sources in nouns, verbs, adverbs, pronouns, case morphemes (including prepositions and postpositions), derivational affixes…”7

Inicialmente, ocorre uma extensão da referência dêitica de entidades no mundo

extra-lingüístico para o estabelecimento de relações anafóricas ou catafóricas de SN e de

proposições. Os elos conectores surgem da necessidade de ser claro e informativo, de

fornecer direções ao ouvinte para interpretação da relação funcional entre as cláusulas e

para marcar fronteiras sintáticas.

Paiva (2002) relaciona a esse percurso de gramaticalização o desenvolvimento de

embora a partir da expressão in bona hora > em boa hora, oposta a em má hora, como

exemplifica o texto de Gil Vicente (apud Paiva):

7 “Marcadores de ligação entre cláusulas têm sua origem em nomes, verbos, advérbios, pronomes, morfemas de caso (incluindo preposições e posposições), afixos derivacionais...”

27

“Paio Vaz, se queres gado, dà ó demo essa pastora Paga-lho seu, vá-se embora/ou má hora/

E põe o teu em recado” (Gil Vicente)

De uma expressão, usada na época medieval, com o sentido de em boa hora, o item

embora passou a ser usado como advérbio com verbos ir, vir, mandar, até chegar à

conjunção concessiva (Embora cansado, prosseguiu viagem). Assim, numa escala de

abstratização crescente, ocorreu a passagem de um sentido mais concreto para o menos

concreto.

Heine et al. (1991, apud Lins 2004), ao demonstrarem que existe uma estreita

relação entre as noções de espaço e de tempo, propuseram a seguinte escala ilustrativa do

processo de gramaticalização de conectores:

TEMPO

ESPAÇO

TEXTO

Segundo Lins (2004), elementos que indicam espaço, por transferência metafórica,

passam a ser empregados como indicadores temporais e, posteriormente, como

organizadores do espaço textual, havendo a possibilidade de ocorrer um percurso do espaço

externo diretamente para o espaço textual.

De acordo com o esquema proposto, podemos ressaltar que a passagem da noção de

espaço para a noção de tempo pode ou não acontecer, pois a orientação espacial pode

passar diretamente ao texto.

28

A escala proposta por Heine et al. (apud Lins) ilustra que, numa trajetória de

abstratização crescente, os elementos de organização interna do texto são provenientes da

gramaticalização de noções espaciais e de dados temporais.

Coelho (2001), em sua dissertação de mestrado, ilustra esse mecanismo de mudança

com a passagem do item onde, que inicialmente tem sentido de espaço físico, evoluindo

para espaço virtual, assumindo também o sentido de tempo, até atingir um nível de

abstratização em que não se percebem as noções de espaço nem de tempo. Essa trajetória

dos usos do onde segue o esquema abaixo:

ESPAÇO FÍSICO>ESPAÇO VIRTUAL (=em que)>TEMPO (=quando)>TEXTO (=o qual)

/DISCURSO

Além da pressão por informatividade, a reanálise, mecanismo que atua no eixo

sintagmático, é outro mecanismo de mudança na reorganização do enunciado. Por exemplo,

no Inglês, o elemento that, de pronome catafórico, na primeira oração abaixo, se transforma

no conectivo that, na segunda oração, por um processo de reanálise: (Lins, 2004)

I said that: John is coming > I said that John is coming

O mesmo ocorreu na formação do futuro do presente do português, em que dois

vocábulos formais foram interpretados como um único elemento: amar hei > amarei.

29

1.1.4 Trajetórias de gramaticalização e discursivização de agora

O item agora, forma de estatuto adverbial, passa por um processo de mudança

lingüística e adquire estatuto de operador argumentativo. Sua origem remonta à noção de

espaço, inclusa no pronome demonstrativo hac. Sua significação de neste momento faz

referência ao pronome demonstrativo neste, pois, no seu uso latino, já se relacionava a uma

função locativa temporal.

Em exemplo citado por Martelotta (1998: 95), podemos constatar, no português

arcaico, o uso do item agora com um valor tanto espacial quanto temporal:

“Giflet, eu nom soõ rei Artur, o que soíam chamar rei aventuroso pólas boas que havia. Mas que me agora chamar per meu direito nome, chamar-me-á mal-aventurado e mizquinho.

Posteriormente, em português, agora atua como dêitico temporal, exercendo a

função de situar eventos a que se refere em um dado período de tempo, como no exemplo

abaixo:

1. morro agora está bom, está calmo à beca, está tudo calmo. Mas em (hes) um ano atrás esse morro virou um <inf> Deus me livre.8

O valor temporal do agora inclui também uso mais amplo, podendo fazer referência

a um período de tempo que não se restringe ao momento da fala:

2. Agora está muito bom o morro (“Ele”) está ótimo, está bom demais.

8 Os exemplos de 1 a 4 foram extraídos de Lins (2004)

30

No exemplo acima, embora o agora ainda seja empregado em seu uso canônico,

adverbial, ocorre uma abrangência de tempo que inclui passado e futuro próximos.

O item agora, além de expressar circunstância temporal, passa a exercer função na

classe dos conectores e dos operadores discursivos, conforme os exemplos 3 e 4:

3. É, muita gente vai, agora eu não vou não. Tem uns dois ou três ano que eu não entro naquela quadra da vila pra nada.

No exemplo 3, agora, ao se voltar para conexão de idéias no enunciado, assume

novo valor, “que emerge de contextos determinados em que um sentido novo pode ser

inferido do sentido primeiro – é o mecanismo de pressão de informatividade” (Lins, 2004).

4. É, isso não acontece na Europa, não é? Você estava mostrando, assim, uma série

de coisa, a gente não lembra, (est) não é? E a mulher chega na Europa, entra num (hes) boteco, que ela bem entender, na América, vai ver um filme de sexo sozinha. E nem por isso, ninguém, agarra a mulher ali (risada). Respeito é muito maior, não é? (est). Agora, (nós não) é diferente, não é? Aquele negócio que eu estava falando, nós temos (hes) só quinhentos ano, não é? Até o homem adivinhar isso, não é?

No exemplo 4, agora assume função mais pragmática, voltada para a construção

textual-interativa. Agora redireciona o tópico conversacional, pois “o informante parece

querer dar finalização ao assunto e o faz com uma estrutura introduzida por agora.” (Lins,

2004)

Podemos constatar, portanto, que esse item vem cumprindo a trajetória de

gramaticalização de conectores: (espaço) tempo > texto > discurso.

31

1.2 Gêneros e tipos textuais

Os atuais estudos sobre gêneros textuais9 se reportam aos estudos de Bakhtin, cujo

ensaio “O problema dos gêneros do discurso” é ponto de partida para outras reflexões.

Para Bakhtin (1997: 301) toda prática social ou individual de linguagem se organiza

em conformidade com um gênero do discurso:10 o querer dizer do locutor se realiza na

escolha de um gênero, e essa escolha é determinada em função da especificidade de uma

dada esfera de comunicação verbal, das necessidades de uma temática, do conjunto

constituído de parceiros, etc.

Os gêneros, na visão desse autor, se constituem historicamente e se caracterizam por

tipos diferenciados de conteúdo, de estilo verbal e de formas composicionais específicas.

Desta forma, cada esfera de atividade social, devido a sua função sócio-ideológica, formula

na/pela interação verbal determinados gêneros de discurso específicos. Esse repertório

particular de cada esfera se diferencia e cresce à medida que ocorrem as transformações

sociais, o que confere ao gênero um caráter de mudança e de relativa estabilidade.

Essa variedade e heterogeneidade dos gêneros dificulta uma classificação. No

entanto, Bakhtin, ao estudar a natureza dos enunciados nas diferentes esferas de

comunicação, e numa releitura da noção de gêneros ligada à literatura e à retórica, agrupa-

os em primários (simples) e secundários (complexos). De acordo com o teórico russo, os

gêneros primários, como a conversação e a carta pessoal, “são constituídos em

9 Neste trabalho, utilizamos a noção de gênero textual, trilhando a concepção bakhtiniana, para referirmo-nos a eventos comunicativos, construídos historicamente, que se encontram em uso em determinada esfera social, com finalidades próprias, e construídos a partir de modelos pré-existentes. 10 A terminologia usada por Bakhtin é flutuante: ora utiliza gêneros do discurso, ora gêneros de texto. Isso acontece, na visão de Bronckart (1999, p. 143), pela evolução interna da obra e pelas inúmeras traduções.

32

circunstâncias de comunicação verbal espontânea” (p.281); os gêneros secundários, como o

romance, o teatro, o discurso científico, etc, “aparecem nas circunstâncias de uma

comunicação cultural (principalmente escrita), mais complexa e relativamente mais

evoluída” (idem).

Bakhtin não formaliza tipologias. O agrupamento em gêneros primários e

secundários está assentado em um princípio sócio-histórico. Os gêneros primários,

constituídos na comunicação espontânea, são absorvidos e reelaborados pelos gêneros

secundários.

Bronckart (1999), inserido na corrente sócio-interacionista e apoiando-se em

pressupostos teóricos baktinianos, enfoca a linguagem como meio pelo qual os

participantes de uma dada comunidade lingüística interagem. A adoção de uma posição

interacionista leva em conta, no processo sócio-histórico, as estreitas relações entre os

gêneros e as atividades humanas.

Para esse autor (1999: 75), texto é “toda unidade de produção de linguagem situada,

acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação)”. Como todo texto

se inscreve, necessariamente em um gênero, adotou-se a expressão gênero de texto. Assim,

a fim de escapar a confusão terminológica, Bronckart esclarece suas definições:

“Enquanto, devido à sua relação de interdependência com as atividades humanas, os gêneros são múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser identificados por suas características lingüísticas específicas. Essas duas propriedades parecem estar estreitamente relacionadas, pois, se as espécies de segmentos são em número limitado, isso se deve ao fato de atualizarem subconjuntos de recursos de uma língua natural, que são finitos ou limitados. Esses diferentes segmentos que entram na composição de um gênero são produto de um trabalho particular de

33

semiotização ou de colocação em forma discursiva e é por essa razão que serão chamados de discursos, de agora em diante. Na medida em que apresentam fortes regularidades de estruturação lingüística, consideraremos que pertencem ao domínio dos tipos; portanto, utilizaremos a expressão tipo de discurso para designa-los, em vez da expressão tipo textual.” (p. 75-76)

No trecho acima, o autor faz referência ao fato dos gêneros serem compostos por

segmentos que, por utilizarem de recursos da língua, são, conseqüentemente, limitados ou

finitos. Tais segmentos são denominados, na visão de Bronckart, de tipos de discurso, os

quais, na visão de Marcuschi (2002: 22), são definidos como tipos textuais e tomados como

constructos teóricos “definidos pela natureza lingüística de sua composição. (...) e que

abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação,

exposição, descrição, injunção.”

Ainda segundo Marcuschi (op. cit.), para a identificação de tipo textual predomina a

identificação de seqüências lingüísticas típicas como norteadora. Narrativa: caracteriza-se

pela presença de organizadores temporais. Descritiva: predominam as seqüências de

localização, caracterizam-se, também, pelo emprego de verbos de estado e de adjetivos.

Expositivos: caracterizam-se por enunciados analíticos, com verbos no presente do

indicativo. Argumentativo: caracterizam-se pelo emprego de técnicas argumentativas e

estratégias de persuasão (confronto, comparação, analogia, etc) e pelo emprego de

enunciados avaliativos. Injuntivos: caracterizam-se pelo uso de formas verbais no

imperativo ou no infinitivo. Dialogal: caracterizam-se por serem segmentos estruturados

em turno de fala.

Marcuschi (op. cit.) usa a expressão gênero textual para se referir a:

34

“...uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdo, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (p. 22-3)

Os gêneros textuais têm características típicas que abrangem aspectos externos,

sócio-comunicativos, e aspectos internos, formais e lingüísticos (tipos textuais). Estes

atuam como elementos organizadores e, muitas vezes, determinam o gênero em questão.

Pode-se dizer, então, que os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sócio-

comunicatico e discursivo) e os tipos textuais fundam-se em critérios internos (lingüísticos

e formais).

Os gêneros textuais devem ser estudados/descritos a partir de suas características

lingüístico-textuais e de suas características discursivas, as quais respondem pelas

condições de produção e de circulação do gênero na sociedade.

1.2.1 O gênero tira de quadrinhos

Segundo Iannone e Iannone (1994), as histórias em quadrinhos (HQs) eram

publicadas nos jornais dominicais, na forma de tablóide e, inicialmente, tinham um

conteúdo cômico (comics), pois combinavam piadas e situações engraçadas envolvendo

crianças e suas fantasias. O surgimento de novos desenhistas e o crescente interesse econômico

dos donos de jornais por novidades fizeram com que essa arte seqüencial se tornasse diária e

tomasse o formato de faixa horizontal, composta por três ou quatro quadros, a que se chama

tira. Seu conteúdo passou a criação de suspense, presente no último quadro da tira, o que

obrigava o leitor a comprar o jornal no dia seguinte. Surgem, então, as tiras diárias.

35

Eisner (2001) define as HQs como uma forma de arte seqüencial, cuja característica

é utilizar-se da sobreposição de recursos icônicos e verbais na feitura de seu texto. Esses

recursos icônicos não são, segundo o autor, meramente ilustrativos de fragmentos da

história. Pelo contrário, fazem parte constitutiva da mesma, já que, em grande parte, o

desenrolar das ações na trama narrativa é exercida por meio do desenho.

Podemos atestar essa interdependência entro o visual (imagem) e o texto escrito na

figura abaixo:

FIGURA 1 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

No primeiro quadro da figura 1, o personagem Gatão, ao procurar ser notado pelas

personagens femininas, adota uma postura de conquistador, a qual é desfeita por meio da

inserção de um segundo quadro sem palavras, em que as personagens mudam suas

expressões fisionômicas deixando transparecer o descontentamento com a presença do

personagem masculino. É imagem que dá continuidade ao fluxo da narrativa, preparando o

leitor para fim da narrativa de humor.

36

Como operação básica do processo narrativo, os balões, espaços delimitados por

diferentes tipos de linhas curvas ou retas, indicam seqüência temporal, mudança locativa,

etc. Geralmente ligados ao personagem das tiras por um apêndice, incorporam o texto à

imagem, e seu contorno pode indicar fala, pensamento, cochicho, sensações de medo,

cólera, etc. É o uso dos balões que permite, no mesmo desenho, atribuir a cada personagem

o que ela diz e o que pensa11, diferentemente do cinema (Cf. Quella-Guyot, p. 12). Esse

recurso gráfico indica, portanto, o turno de fala dos personagens sobre um determinado

tópico discursivo. Embora, normalmente, não ocorra sobreposição de turnos, pode haver

assaltos a eles.

Isso ocorre, segundo Lins (2004), porque o diálogo entre os personagens parece

estar no entremeio do oral com o escrito12. O gênero HQs e as tiras se aproximam bastante

do texto falado, pois constituem um texto que é planejado para parecer não planejado,

procurando evidenciar a espontaneidade da conversação informal.

Assim, embora o tema e os aspectos lingüísticos sejam produtos de um

planejamento prévio, o que faz com que, nos diálogos dos personagens, não se percebam

truncamentos ou repetições, características da conversação, pode-se encontrar, nas HQs e

nas tiras, outros elementos responsáveis pela organização do texto falado tais como: turno

conversacional, tópico discursivo, marcadores conversacionais, registro de onomatopéias,

etc.

Como mais um recurso da narrativa, as legendas ou letreiros são responsáveis pela

introdução do discurso do narrador. São comumente empregados no início da história, ou

11 Quando diversos personagens falam ou pensam a mesma coisa, o balão tem mais de um apêndice e se chama balão-uníssono. 12 Isso faz com que, na visão de Bakhtin, as HQs e as tiras de quadrinhos constituam um gênero discursivo secundário, pois são produzidos na interface oral/escrita.

37

no decorrer dela, ligando um quadro a outro.Além disso, no sistema narrativo dos textos em

quadrinhos, a presença de certos caracteres tipográficos tem a função de economizar

palavras no que diz respeito à expressão de sensações, emoções, etc dos personagens e do

narrador. Por exemplo, uma lâmpada acesa indica uma idéia brilhante; cobras e lagartos

representam palavras obscenas; uma fumacinha que sai da cabeça dos personagens pode

indicar raiva, aborrecimento.

De temática diversificada, que vai desde sátira a aspectos econômicos e políticos do

país a forma de informação e entretenimento, as tiras13, de acordo com Mendonça (2002),

podem ser dividas em dois tipos:

a) tiras-piada, em que o humor é obtido por meio de estratégias discursivas

utilizadas nas piadas de um modo geral, como a possibilidade de dupla interpretação, sendo

selecionada pelo autor a menos provável;

b) tiras-episódio, nas quais o humor é baseado especificamente no desenvolvimento

da temática numa determinada situação, de modo a realçar as características das

personagens.

No corpus em análise, predominam as tiras-episódio. A temática gira em torno das

aventuras e desaventuras do Gatão, representante de um novo homem que, pressionado

pelas mudanças no comportamento feminino, busca compreender o novo papel da mulher

na sociedade.

Construído a partir de um quadro ou de uma seqüência de mais de um quadro, que

narram um determinado fato ou acontecimento por meio da conjugação de dois códigos

13 A expressão “tiras de quadrinhos” será usada, neste trabalho, para se referir a unidades narrativas, contadas na forma de desenhos, geralmente delimitados por linhas formando quadrados ou retângulos, e de diálogos. Para Mendonça (2002), as tiras, de menor extensão e de caráter sintético, são um subtipo de histórias em quadrinhos

38

(verbal e não-verbal), esse gênero se assenta, fundamentalmente, no tipo textual dialógico e

narrativo, sem, contudo, deixar de lado a heterogeneidade tipológica, propriedade de todos

os gêneros. Isso pode ser observado nas figuras abaixo em que aparecem outras seqüências

textuais:

FIGURA 2 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Na figura 1, as seqüências lingüísticas são sustentadas pelo objetivo de defender

uma tese, “homem e mulher não se entendem”. Ocorre, portanto, predomínio do tipo

textual argumentativo.

Gryner (2000), a partir da análise se seqüências textuais da modalidade oral,

delineou categorias, identificando os enunciados constituintes da seqüência argumentativa,

como sendo:

1) posição (ponto de vista) – asserção básica cujo conteúdo será defendido pelo

locutor;

2) justificação – geralmente introduzida pelos conectivos porque e que, funciona

como explicação de qualquer parte dos constituintes (posição, exemplificação, evidência

formal, conclusão ou coda)

39

3) sustentação: núcleo da argumentação, defesa do ponto de vista do locutor, que

pode ser apresentada de duas maneiras:

a- evidência formal: apresentação de um ou vários aspectos particulares

b- evidência empírica: exemplificação, ilustração através de fatos concretos

4) conclusão: fecho da argumentação, confirmação da posição defendida pelo

locutor com base nas provas apresentadas;

5) coda: asserção que expressa a atitude do locutor. É a “moral da história”.

Com base nos constituintes acima descritos, propomos uma descrição simplificada a

fim de melhor caracterizar a tira em análise:

1) posição: asserção básica, que apresenta o ponto de vista a ser desenvolvido. É,

em geral, conforme Gryner (op. cit.), o primeiro constituinte da seqüência, apresentando

forma declarativa com verbo no indicativo.

No primeiro quadro da tira, o personagem Gatão introduz seu ponto de vista:

“Homem e mulher não se entendem mesmo!”

2) justificação: explicita causas e motivos do ponto de vista. Aparece após a posição

e é introduzida pelos conectores porque, que, pois. Normalmente, vem logo após a posição.

No segundo quadro da tira, a fala do Gatão explicita a justificação. A conexão do

segundo enunciado ao primeiro é feita de forma implícita pelo conectivo pois:

“Um fala uma língua o outro fala outra língua...”

3) sustentação: evidências apresentadas que sustentam o ponto de vista a ser

defendido;

4) conclusão: é o fecho, término da argumentação. Pode-se apresentar por meio de

uma declaração, geralmente introduzida pelos conectivos portanto, em vista disso, etc; por

40

meio de enunciados que ratificam a posição e por meio de enunciados que apresentam um

posicionamento.

O último quadro da tira não só apresenta evidências, por meio da exemplificação,

como também coincide com o término da argumentação. A fim de marcar esses

constituintes e melhor caracterizar o tipo textual argumentativo, podemos reescrever os

enunciados da tira a seguinte forma: “Homem e mulher não se entendem mesmo(posição),

POIS um fala uma língua (justificação), o outro fala outra língua. POR EXEMPLO, minha

ex-mulher só sabia dizer não na minha língua” (sustentação e conclusão).

FIGURA 3 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Nos três primeiros quadros, um narrador onisciente situa o clima de sedução. A

função narrativa e sua seqüencialização temporal são marcadas em grande parte por meio

do desenho. Ocorrem os seguintes tipos textuais:

1) descritivo (Vestígios de sedução, sinais de uma noite de amor e sexo de um

homem moderno, livre e desquitado...), marcado por meio de seqüências lingüísticas que

caracterizam o clima de sedução;

41

2) expositivo (“A música sensual estabelece o clima de conquista, de mútua atração

entre dois corpos excitados...”, “As roupas caem, revelando o frêmito selvagem do desejo

incontrolável, do prazer imenso...”, “É ele, o nosso herói, mostrando seu lado sensível, seu

savoir-faire”, maracdo pela exposição dos fatos e pelas constatações;

3) injuntivo (“Não liga, amor, isso acontece”), sinalizado pela prescrição de

comportamento.

4) argumentativo - no último quadro, o personagem Gatão, a fim de manter sua

imagem de homem viril, atribui à personagem feminina a responsabilidade de seu fracasso

sexual. Ele, ao tentar se explicar, defende a tese de que a culpa não é dele.

Segundo Mendonça (op. cit.), a preferência pelo gênero tira de quadrinhos parece

ocorrer por dois fatores: economia de espaço e acesso à narrativa completa numa mesma

edição. Normalmente localizadas nos “cadernos” dos jornais, as tiras, destinadas a um

público bastante heterogêneo, também, aparecem em gibis, boletins informativos de

empresas pública e privadas, publicações voltadas para o lazer educativo de crianças e em

revistas dirigidas ao público adolescente e ao público feminino.

É com base nessa descrição realizada que procuraremos entender o comportamento

do item agora no gênero tira de quadrinhos.

42

2. REVISÃO DA LITERATURA

2.1 Visão diacrônica

O item agora, do latim ao português atual, por um processo de sonorização, sofreu a

seguinte mudança: hac hora > ac ora > agora14. Surgido da re-análise da expressão latina

hac (= por aqui) hora, sendo hac um dêitico espacial, que expressa proximidade em

relação ao falante. Segundo Martelotta (2004: 107), embora o vocábulo agora revele, em

sua etimologia, origem espacial, no português arcaico, já funcionava como circunstanciador

temporal. Neste exemplo, citado pelo autor, verifica-se o uso do item agora tanto com um

valor espacial como temporal:

“... ca agora he o mês de feuereyro e toda esta terra de Capadocia he cuberta de geada e de friu e nõ há em ella folhas uerdes ne flores nenhûas..

Câmara Jr. (1975: 122) afirma que, no sistema de advérbios temporais, o advérbio

latino nunc possuía a acepção de “neste momento”. Nunc foi substituído, no latim vulgar,

regionalmente, pela locução ablativa hac hora, ou apenas pelo ablativo hora. Ac hora e

hora originaram, no português, respectivamente, agora e ora. De acordo com Câmara Jr.,

nunc formava uma série temporal tripartida com antes – “num momento anterior a este” – e

depois – “num momento seguinte”. E se opunha, ainda, a então – “não neste momento”. O

autor salienta que antes e depois também podem ter referenciais locativos, além dos

temporais.

14 Desde a época clássica, a aspirada /h/ desapareceu, tornando-se um sinal gráfico sem valor fonético. Por isso, nas línguas neolatinas, não há /h/ aspirado. A pretensa aspiração do h francês, segundo o Doutor José Augusto de Carvalho, em héros, por exemplo, é para evitar a elisão, e só ocorre em contextos em que há a possibilidade de confusão com outros itens lexicais: les héros não se confunde com les zeros por causa disso.

43

Tendo em vista, então, que a origem do agora remonta à noção de espaço, constata-

se que esse item vem cumprindo a trajetória espaço > tempo > texto.

2.2 Visão sincrônica

As gramáticas da língua portuguesa não apresentam uma análise satisfatória e

abrangente para o item agora, pois não contemplam seus múltiplos usos. O que se observa

é que essas gramáticas não estão preocupadas com as funções discursivo-pragmáticas, por

isso, o agora se enquadra apenas na classe dos advérbios.

Cunha e Cintra (1985), por exemplo, caracterizam o agora, primeiramente, como

advérbio de tempo e, posteriormente, juntamente com os itens afinal, então, mas, etc.,

como palavra denotativa de situação. Embora esses dois autores não apresentem exemplos

de agora como palavra denotativa de situação, apenas pelo primeiro exemplo “Desculpe-

me... Mas sente-se mal?”15, supõe-se que se trata de um operador discursivo. Os próprios

autores reconhecem a dificuldade em classificar o agora e outros itens exclusivamente na

classe dos advérbios: “... tais palavras não devem ser incluídas entre os advérbios. Não

modificam o verbo, nem o adjetivo, nem outro advérbio. São por vezes de classificação

extremamente difícil. Por isso, na análise, convém dizer apenas: ”palavra ou locução

denotadora de exclusão, de realce, de retificação”, etc”.16

Para Rocha Lima (1999), os advérbios são vistos apenas como modificadores do

verbo, servindo para expressar as várias circunstâncias que cercam a significação verbal. O

agora está inserido na classe dos advérbios de tempo.

15 P. 541 16 p. 241

44

Bechara (1999: 290) aponta para o fato de que a grande variedade semântica que

caracteriza a classe dos advérbios dificulta uma classificação mais precisa: “constituindo o

advérbio uma classe de palavra muito heterogênea, torna-se difícil atribuir-lhe uma

classificação uniforme e coerente”. Entretanto, Bechara não tece mais considerações em

relação a essa variabilidade.

Por outro lado, Perini (1996: 342) comenta o caráter multifuncional de alguns

advérbios. Diz o autor que “a definição de advérbio, se for possível, deverá ser formulada

em termos de funções” e que “sob o rótulo de advérbio se esconde uma variedade

irredutível de classes”.

Pereira (1933) já havia observado, dado o caráter multifuncional de alguns

advérbios, a trajetória de advérbio em conjunção. Ele subdivide, quanto ao valor sintático, a

classe dos advérbios em simples e conjuntivos. São simples os que só têm função de

advérbio (aqui, hoje, talvez, etc) e conjuntivos os que acumulam na frase o papel de

conjunção (onde, quando, como, enquanto, etc).

Segundo Almeida (1999) tanto ora quanto agora exercem o papel de conjunção:

“Agora é forma derivada da locução latina “hac hora” (=nesta hora), e ora da palavra latina “hora”. Note-se que hora, com h, indica o período de tempo de 60 minutos, ao passo que ora, sem h (não obstante ter procedência igual à de hora), é advérbio, que não raro funciona como conjunção.” (p. 318, § 526)

O item agora, quando repetido, também funciona como conjunção:

Agora lhe pergunta pelas gentes De toda a Hispéria última, onde mora; Agora pelos povos seus vizinhos; Agora pelos úmidos caminhos. (ibid, p. 318)

Ilari et al. (1996) apresentam uma nova proposta de classificação dos advérbios, os

quais são subdivididos em advérbios de constituinte, de sentença e de discurso. Desta

forma, alguns advérbios se aplicam tanto a sentença quanto ao discurso:

45

“Alguns ‘advérbios’, particularmente os dêiticos, podem aplicar-se a unidades cujas dimensões ultrapassam não só os limites dos constituintes, como também da sentença. Encontramos, por exemplo, advérbios como agora, aplicado a segmentos de amplitude e natureza lingüística diferentes.” (ILARI et al., 1996, p. 84)

Os exemplos a seguir foram arrolados por Ilari et al.:17

1) “Por enquanto não [têm esses problemas de juventude] porque... as mais velhas estão

entrando agora na adolescência.

2) “Então é um corre-corre realmente, não é? ... Agora eu assumi também uma secretaria de

APM... lá no colégio das crianças, então tenho muita tarefa também fora de casa, não é?

3) “- Agora que estão todos maiores, quer dizer, cada um fica mais ou menos responsável

por si.

- já se cuidam

- de higiene, de trocar de roupa, todo esse negócio. Quer dizer, já é alguma coisa que eles

fazem porque...

- Ajuda demais, né?

- Já ajudam bem.

- Agora, tem sempre [...] numa família grande há sempre um com tarefa de supervisor... por

instinto, não é por obrigação.”

Em 1, o agora possui um viés semântico equivalente a “nesse período”. Já em 2, o

agora se vincula a toda sentença e possui uma referência temporal mais ampla. Inicia-se em

algum ponto do passado, tem continuidade no presente e, provavelmente, continuará no

futuro. Finalmente em 3, a segunda ocorrência do item agora abarca uma seqüência

17 p. 85

46

discursiva mais ampla, pois introduz um novo momento no discurso que se distingue do

anterior por uma mudança de tópico e de orientação discursiva.

Neves (2000) comenta a ampliação do valor temporal que o advérbio agora pode

apresentar. Segundo ela, o advérbio agora não só exprime momento ou período fisicamente

delimitado mas também uma abrangência temporal que inclui um passado ou futuro:

“Os advérbios não ligados a escalas concretas de medição, como AGORA, não exprimem momento ou período fisicamente delimitado; apresentam variação de abrangência que pode reduzir-se a um mínimo (pontual), mas pode abranger um período maior ou menor, não só do presente, mas também do passado ou do futuro, desde que toque o momento da enunciação ou se aproxime dele.” (Neves, 2000: 259)

A partir disso, constata-se que, segundo a autora, o tempo em questão é não-

cronológico, sem ligação com o calendário. Para ilustrar os traços semânticos das

circunstância de tempo de agora, a autora arrola os seguintes exemplos18:

1) “Só AGORA é que a senhora se lembrou disso?” = neste momento

2) “Estava dizendo um matuto, na venda, que Aparício anda AGORA com mais de

duzentos homens.” = na época atual

3) “Mas vamos passar AGORA à parte principal do nosso programa.” = neste

momento ou período, prolongando-se para o período imediatamente seguinte a este)

4) “E AGORA houve uma mula que tenha parido?” = no momento/período

imediatamente anterior a este

5) “A vida da gente é esta mesma que está aqui e o melhor é acabar com ela. E

AGORA aparece menino novo, para ainda mais me sucumbir.” = nos últimos

tempos

18Neves, 2000: 266.

47

Risso (1993), a partir de dados do projeto NURC, se propõe a investigar o agora

enquanto unidade de âmbito textual. Segundo a autora, nesse caso, o agora se diferencia da

classe dos advérbios porque:

não é desencadeado pela fórmula interrogativa “quando?” ou desde quando?”.

“L1 ... agora eu assumi também... uma:: secretaria de APM...

Quando você assumiu também uma secretaria de

APM?

Agora (:Atualmente).”

não é parafraseável por equivalentes como “atualmente”, “neste momento”.

“L1 como artista... no piano... não é? Agora:: o Luís... o de

seis anos

L2 ahn ahn

L1 ele::... desde pequenino ele é ((vozes ininteligíveis))

Desde pequeno o Luís gosta... da história do homem...”

não é passível de enquadrar-se como foco de orações clivadas – ponto que configura sua

condição de elemento pragmático-textual.

Agora:: o Luís... desde pequeno gosta... da história do homem...

(*) É agora que o Luís desde pequeno gosta da história do homem.

Risso (1993) descreve, em seu trabalho, as funções do agora, levando em conta o

tipo de articulação (intertópica ou intratópica). Para ela, “como operador da coesão no

âmbito textual, agora particulariza-se por sua condição de elemento não-integrante da

48

estrutura sentencial”19. Ao analisar as funções de agora na abertura e encaminhamento de

tópicos, a autora identificou pontos no plano das relações textuais, como:

“A propriedade remissiva do marcador no estabelecimento das relações internas no texto”

(p. 54)

“A propriedade de refletir a instância da enunciação a partir de dados de natureza

essencialmente pragmática.” (p. 55)

“A configuração de uma situação discursiva ego-cêntrica, ou seja, o agora tende a “orientar

o discurso para o que um dado falante vai dizer, a partir do que ele mesmo disse” (p. 55)

Podemos constatar, pelos estudos de Risso (1993) e de Ilari et al. (1996), que o item

em análise se associa a significados progressivamente mais abstratos, partindo da noção de

tempo e desembocando na categoria de organização textual/discursiva. Essa trajetória foi

descrita por Heine et al (1991), conforme esquema abaixo:

ESPAÇO > (TEMPO) > TEXTO

De acordo com essa visão, a gramaticalização documenta um processo linear e

unidirecional segundo o qual determinados itens lexicais passam a assumir novo estatuto

como elemento gramatical, passando a ficar mais regulares e mais previsíveis.

19 1993: 38

49

3. METODOLOGIA E “CORPUS”

3.1 Natureza do corpus

Nosso trabalho consiste na análise de um corpus formado por 15 tiras, publicadas

no livro Gatão de Meia Idade, volumes 1 e 2. Ao todo são 566 tiras, entretanto, foram

selecionadas, de acordo com nossos objetivos, apenas aquelas em que há ocorrência do

item agora. O volume 1 é composto por onze tirinhas, o 2, por cinco.

O personagem principal das tiras é um homem quarentão, de classe média, designer,

que se apresenta em uma das tiras:

FIGURA 4 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Lins (2004) traça, em sua tese de doutorado, o perfil deste personagem

a) Identificação

Quarentão em crise

Cabelo longo, amarrado em rabo de cavalo

Descasado

Moderno

50

b) Cenário em que atua

Em casa

Nos bares

c) Características atitudinais

Angustiado por causa da idade

Descontraído, charmoso, irreverente com as mulheres

Ocupado em entender o universo feminino

Perplexo perante os novos tempos

Miguel Paiva, ao apresentar na contra-capa do livro seu personagem, tece as

seguintes considerações:

“Mutante, ambíguo, moderno, ele vive alguns terríveis conflitos com a própria idade – mas é capaz de se divertir como um adolescente quando sai com os amigos. Amou os Beatles e os Rolling Stones, e no entanto exibe agora, sem o menor constrangimento, vícios hyppies e namoradas tão jovens. Assim é o nosso herói, o Gatão de meia idade: retrato preciso e bem humorado das contradições de nosso tempo.”

A opção pelas tiras do Gatão de Meia Idade se fez pela própria temática. Miguel

Paiva, ao retratar o universo de um profissional liberal, quarentão, descasado e com uma

filha pré-adolescente, utiliza uma linguagem mais próxima do registro falado informal.

Além disso, as tiras de quadrinhos se aproximam bastante da conversação do dia-a-

dia, o que permite analisá-las tomando como parâmetro pesquisas feitas a respeito da

conversação.

51

Segundo Marcuschi (1985:15), as cinco características básicas da conversação são a

interação entre pelo menos dois falantes, a ocorrência de pelo menos uma troca de falantes,

a seqüência de ações coordenadas, execução numa identidade temporal e o envolvimento

numa “interação centrada”.

Por outro lado, os diálogos das tiras, quando aparecem, apresentam características

tais como cada personagem fala na sua vez, o que não favorece a sobreposição de vozes e

assaltos aos turnos; normalmente não há casos de hesitação ou correção; são raros, também,

os casos em que aparecem marcadores conversacionais de início, meio ou fim (cf. Macedo

e Silva, 1996), como bem, bom, tá?, né?.

Neste trabalho, portanto, os diálogos presentes nas tiras de quadrinhos serão tratados

como uma espécie de simulação de textos conversacionais, já que se situam num continuum

lingüístico, pois se realizam por meio escrito, mas buscam reproduzir a fala.

3.2 Metodologia de análise

Na análise dos usos de agora nas tiras de quadrinhos do Gatão de Meia Idade,

foram utilizados textos especializados, sobretudo de cunho funcionalista, e textos que

versam sobre gramaticalização e discursivização de conectores e operadores discursivos.

Com fins de análise, a partir da observação dos dados selecionados, procuramos

distribuir o item agora em três traços básicos: com valor de dêitico temporal, com valor

juntivo e com valor discursivo.

52

3.3 A construção do humor nas tiras do Gatão20

As tiras de quadrinhos, na sua representação icônica e verbal dos fatos, constituem

um interessante objeto de análise das relações entre linguagem e sociedade, uma vez que

refletem valores culturais. No caso das tiras do Gatão de Meia Idade, as atitudes e posturas

de seu personagem retratam a mudança no comportamento e na sexualidade do homem

maduro, traduzindo o perfil do homem dos anos 90: “o Gatão saiu da realidade para a

ficção, onde (sic) se tornou espelho desses famosos anos 90.” 21

Perdido diante das transformações que a emancipação feminina causou, o Gatão

busca compreender a mulher atual. Na tira da figura 5 abaixo, um grupo de homens procura

adequar seu comportamento ao novo momento sócio-histórico:

FIGURA 5 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

20 Embora não seja tema central de nosso trabalho, a abordagem do processo de construção de humor nas tiras do Gatão de Meia Idade visa ao enriquecimento da análise do corpus. 21 PAIVA, Miguel. Gatão de Meia Idade. v.1 contra-capa

53

As crises, as angústias e os prazeres do Gatão, retratados de uma forma irônica nas

tiras de Miguel Paiva, são uma importante estratégia que leva à produção do humor.

Buscaremos, numa perspectiva de análise interacional, neste subcapítulo, descrever as

estratégias lingüístico-discursivas responsáveis pela produção do humor.

Lins (2002), com base na Sociolingüística Interacional, busca, em seu trabalho,

explicar como se produz o humor nas tiras de quadrinhos. Para essa lingüista, a situação de

interação criada22, ou seja, o modo como o autor gerencia seus personagens, pondo-os a

atuarem de modo a romper com as estruturas de expectativas ativadas, é o gatilho que

desencadeia o humor. Nas tiras do Gatão, a mudança de comportamento quanto aos papéis

sexuais é uma importante estratégia para deflagração do humor.

Segundo,Tannen (1990), Coulthard (1991) e Lins (1997), enquanto as mulheres,

normalmente, usam a língua para se integrar, os homens a utilizam como instrumento de

ação. O quadro abaixo procura sintetizar os estilos conversacionais que predominam na fala

dos homens e das mulheres.

QUADRO 2 - estilos conversacionais

Homem Mulher

Exercer o controle da conversa Estabelece e mantém a conversa

Domina a conversa É solidária na conversa

Tende a dar conselhos Incentiva o outro a falar

Assertivo Não-assertivo

Exibe conhecimento e habilidades Compara experiências

22 Segundo Lins (p. 53), a abordagem da situação de interação envolve não só a análise do comportamento verbal dos personagens, mas também dos movimentos impostos pelo desenrolar da conversação dentro da interação, tendo em vista os cenários, a postura dos personagens, os modelos culturais e a situação social do momento em que a interação é realizada.

54

Em algumas tiras, o Gatão assume um estilo conversacional e um comportamento

previstos para o homem, como na tira da figura abaixo:

FIGURA 6 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Podemos observar três mulheres conversando num bar. A primeira personagem fala

de sua vida pessoal, exprimindo sua dificuldade de entender os homens (“Homem é tudo

igual!”); as outras, com o objetivo de serem solidárias a ela, utilizam a linguagem do

relacionamento. As mulheres tendem a ser mais cooperativas em seus discursos, para isso

desenvolvem um estilo interativo/solidário. Em geral, sentem a necessidade de compartilhar

detalhes da vida pessoal, o que, de certo modo, reforça as relações de amizade, já que, de

acordo com Lins (1997), falar de intimidades cria igualdade, comprometimento mútuo e

lealdade e, por isso, ser fundamental a idéia de “melhor amiga”.

Além disso, o fato de se olharem diretamente no rosto revela um comportamento

tipicamente feminino, pois as mulheres, normalmente, “prendem seus olhares nos rostos

umas das outras (às vezes olham para o outro lado), ao passo que os homens fitam outros

lugares do aposento e, de vez em quando, se olham entre si”. (Tannen, 1990, p. 250)

55

Pelo comportamento dos homens na tira em análise, podemos verificar que seu

estilo interacional é marcado pela independência/ prestígio. Normalmente, não expressam

sentimentos íntimos, fraquezas, pois isso comprometeria sua imagem de durão. A figura

abaixo corrobora essa visão:

FIGURA 7 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Ao narrar suas aventuras amorosas, o Gatão procura manter a face de conquistador,

mas, na verdade, ele confessa ao leitor que tudo não passou de invenção. O Gatão procurar

manter a fachada ante o amigo.

O humor, nas tiras do Gatão de meia idade, advém, muitas vezes, do fato de atribuir

à mulher um estilo conversacional e um comportamento tipicamente masculinos, como

ilustram as figuras 8 e 9:

56

FIGURA 8 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

FIGURA 9 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Na figura 8, a personagem feminina, depois de transar com o Gatão, imediatamente

se arruma para sair. É ela que domina a situação, pois diz que vai embora e não quer

envolvimento:

“Foi ótimo. Mas tenho que ir embora!”

Na figura 9, mais uma vez, a mulher tem o controle. O Gatão, ao dizer que não

pensa em sexo no primeiro encontro, começa adotando uma fala feminina e se surpreende

com a atitude da mulher, que assume a imagem do dominador:

57

“Acho que me enganei de pessoa... Desculpa, tchau!!”

Embora os estudos sobre a relação entre linguagem e gênero apontem para o fato de

que os homens possuem uma linguagem mais direta, mais assertiva dada a necessidade de

demonstrarem poder, dominação, nas tiras analisadas é a mulher que assume um estilo

masculino, decidindo o que deve fazer e tendo o controle da situação. É essa inversão de

estilos que rompe com as expectativas, já que se espera homem agindo como homem e

mulher agindo como mulher, que faz o humor nas tiras.

58

4. A MULTIFUNCIONALIDADE DO AGORA NAS INTERAÇÕES DE GATÃO DE

MEIA IDADE

No caso específico do que se propõe aqui, o desafio é o exame do estatuto sintático,

semântico e discursivo-textual do item originalmente instanciador de tempo, agora, nas

tiras do Gatão de Meia Idade.

Observaremos o deslizamento de sentido que ocorre com esse item, o qual, numa

trajetória de crescente abstratização, passa do sentido + concreto para o sentido + abstrato.

Analisaremos o item agora em suas funções dêitica (exofórico), juntiva e discursiva.

4.1 AGORA DÊITICO TEMPORAL

O agora, na função de dêitico temporal, é identificado, neste trabalho, da mesma

forma que os gramáticos e o senso comum o consideram. É visto como advérbio de tempo e

apresenta os seguintes traços [+referência presente], [+circunstanciação verbal] e

[+mobilidade], como na figura 10:

FIGURA 10

Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

59

Agora atua como um dêitico temporal prototípico.23 Equivale semanticamente a

“neste momento”, “no momento presente”, que nos remete ao tempo presente da ação

enunciativa. Na função dêitica, pode ser mudado de posição na estrutura do sintagma sem

alterar o sentido do mesmo, podendo, desta forma, assumir a posição que pode ser inicial,

medial ou final.

Identificamos como dêiticas (exofóricas) as instâncias nas quais agora faz uma

remissão demonstrativa temporal e indica uma proximidade em relação ao momento exato

da enunciação. Portanto, nos enunciados em que aparece o agora, só podemos entender

completamente o que está sendo dito se estivermos presentes no momento da fala ou se

reconstituirmos as circunstâncias da enunciação. Para COSTA (1990:16), a exata

localização do falante no momento da fala seria o “ponto dêitico”, isto é, o ponto espacial e

temporal em que o falante está situado seria o ponto-dêitico da enunciação.

4.1.1 Ampliação temporal

Conforme atesta Moura Neves (2000), o item agora pode assinalar ampliação do

momento pontual da fala para um contexto maior. No caso das tiras das figuras 11 e 12,

agora, acompanhado de até, aproxima um período de tempo anterior ao momento da fala,

assinalando que a situação descrita não mudou.

23 Tomamos, neste trabalho, o conceito de protótipo estabelecido por Neves (1997, p. 138): “O protótipo é o membro que ostenta o maior número das propriedades mais caracteristicamente importantes, e todos os demais membros devem ser classificados de acordo com o grau de semelhança com o protótipo, ou seja, de acordo com a distância do ‘pico prototípico’”.

60

FIGURA 11

Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

FIGURA 12

Fonte: Gatão de meia idade, volume1

Nas figuras 11 e 12, agora, que pode ser parafraseado por “momento”, parece

desempenhar uma função durativa, reforçada pelo item até, que marca um limite no tempo,

ou seja, a situação descrita nas tiras em análise não mudou até o presente momento da

enunciação.

Quando agora prototípico perde o traço [referência presente], esse item pode

adquirir o traço [+ referência passada] ou [+ referência futura].

Esse uso, vinculado a um fato que ainda está para acontecer, pode ser observado na

tira da figura a seguir:

61

FIGURA 13 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

No primeiro quadro da tira, o Gatão, após um dia de trabalho, faz planos para noite.

O item agora marca o início de ações a serem realizadas, podendo ser parafraseado por “em

seguida” ou “daqui a pouco”. Além de expressar [+ referência futura], esse item relaciona

contraste entre tempo passado x tempo futuro, o que pode ser comprovado no esquema que

segue:

QUADRO 3 – Agora temporal

Antes Agora

Trabalho no escritório

Daqui a pouco, tomar banho e cair na noite

Esse uso de agora, ao relacionar ações passadas e futuras, na tira 4, parece indiciar o

caminho para a re-análise em juntivo.

4.2 AGORA JUNTIVO

O item agora, na função de conector, apresenta-se com o sentido mais abstratizado

sem, contudo, deixar seu traço característico de [+ referência presente]. Assim, agora perde

62

o traço [+mobilidade], pois serve para unir proposições, e adquire o traço [+fixação]. Nesse

contexto, o agora atua no nível mais gramatical em relação à função sintática e exerce

funções conectivas no texto, passando a funcionar como recurso para organização das

idéias e a ser responsável pela progressão textual. No nível semântico, manifesta-se

basicamente estabelecendo relações de causalidade e de contrajunção.

4.2.1 Relações de causalidade

Segundo Fávero (1992), “a relação de causalidade (...) é expressa pelas construções

que a gramática chama de causais, conclusivas e consecutivas”. Essa relação de causalidade

pode ser observada na figura 14:

FIGURA 14

Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Levando-se em consideração que a noção semântica implícita na fala da

personagem indica conclusão, já que os conectores conclusivos introduzem afirmações,

pois a conclusão é uma conseqüência lógica de uma premissa, podemos reescrever a fala da

personagem da seguinte forma: Meu pai dormiu, portanto posso ver “A volta dos mortos

vivos”. Assim, dentro de uma visão geral, “argumento portanto tese”.

63

Conforme o explicitado acima, pode-se inferir que a relação de causa/conseqüência

conduz ao sentido de conclusão. Pode-se, também, constatar essa relação

causa/conseqüência na tira da figura 15, abaixo:

FIGURA 15

Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Agora propicia a junção de enunciados, promovendo uma relação de causalidade,

que se viabiliza semanticamente em: “não tem mais ninguém lá fora”, cujo segundo

enunciado,“posso voltar a trabalhar”, indicia para uma relação de causa/conseqüência.

4.2.2 Relações de contrajunção

Para Fávero (1992: 56), a contrajunção “designa o tipo de junção que articula

seqüencialmente frases cujos conteúdos se opõem”. Azeredo (2000: 249), ao tratar do valor

contrastivo das conjunções adversativas, atribui a elas valor semântico de oposição de dois

conteúdos e de quebra de uma expectativa24. No seu valor juntivo de contrajunção, com

base na análise do corpus, pode-se afirmar que o item agora estabelece basicamente

relações de ressalva, de contraste e de contra-expectativa.

24 Para ilustrar o valor de quebra de expectativa, Azeredo lista o seguinte exemplo: “O lutador era magrinho, mas derrubava todos os seus adversários”.

64

4.2.2.1 Relação de ressalva

Na função de ressalva, agora introduz uma noção semântica de restrição: uma

primeira proposição (p), tomada como verdadeira, será delimitada pela segunda proposição

(q), como se pode observar na figura 16:

FIGURA 16

Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Podemos observar que agora, semanticamente, distancia-se de sua significação

temporal prototípica e passa a exercer a função de um elemento juntivo, unindo segmentos

que se complementam. No último quadro da figura 16, o Gatão menciona que “é duro ser

abandonado por mulher”; em seguida ele ressalta que “ser abandonado pela ex-mulher é

humilhante”. Esse último seguimento introduzido pelo item agora indicia para uma idéia de

ressalva. Isso pode ser observado no esquema que segue:

QUADRO 4 – Agora com função de ressalva

Proposição p Agora Proposição q

“ser abandonado por mulher é duro”

Agora = só que “ser abandonado pela ex-mulher é humilhante”

65

4.2.2.2 Relação de contraste

Na figura 17, agora vem acompanhado do item mas. Com o sentido mais

abstratizado do que o sentido original (adverbial), sua função, na tira, parece conferir uma

característica de adversidade, sem perder vestígios de seu sentido primitivo. Esse valor

adversativo é marcado pela oposição temporal passada (casado) X presente (solteiro)25,

conforme se verifica nos diálogos abaixo:

FIGURA 17 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Com base na análise da figura acima, podemos constatar que agora não se configura

num conectivo prototípico totalmente gramaticalizado, pois guarda resquícios de seu valor

dêitico.

25 Essa sobreposição semântica, conforme o conceito de estratificação (camadas) proposto por Hopper, é típica do processo de gramaticalização do qual estamos tratando.

66

4.2.2.3 Relação de contra-expectativa

Neste uso, o item agora marca uma cláusula, cujo conteúdo semântico quebra a

expectativa em relação ao curso normal dos acontecimentos. Na tira da figura 18, o ouvinte

cria toda uma expectativa em relação ao que o falante poderia ter deixado subentendido em

seu discurso, agora propicia a quebra de expectativa:

FIGURA 18

Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Nos diálogos acima, agora marca uma cláusula, cujo conteúdo contrasta com a

estrutura de expectativa do enquadre social. O que ocorre na tira é a idéia de contra-

expectativa em relação ao contexto, pois se cria toda uma expectativa em relação ao

comportamento de um homem ideal para se casar: um cavalheiro, pronto para ajudar nas

tarefas, como carregar compras, consertar uma pia, etc e a ocorrência de agora quebra essa

expectativa. Sua função na tira é marcar elo referencial entre tempo/espaço da enunciação;

elo referencial entre o que está sendo dito e a situação de interação; e elo referencial entre a

situação criada, com função de operador discursivo.

67

Na tira em análise, no quarto quadro, ocorre a negação de uma pressuposição,

decorrente do fato de o personagem Gatão não agir de acordo com a estrutura de

expectativa criada pela personagem feminina da tira. O esquema abaixo ilustra isso:

QUADRO 5 - Agora com função de contra-expectativa

Expectativa Pressuposição Agora Constatação

Ele é gentil, prestativo

È provável que seja o homem ideal para se

relacionar

Ele não quer nada sério

4.2.3 Conector de seqüencialização

Na função de seqüenciador, agora adquire traço [+conector de seqüencialização] e

estabelece uma relação de continuidade entre as informações do enunciado. Sua função é,

nas tiras, é marcar a relação de sucessão temporal dos eventos. Nessa função, agora pode

ser parafraseado por “em seguida”, “a seguir”.

FIGURA 19

Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Na figura 19, agora funciona como conector de seqüencialização. A namorada do

Gatão dá instruções acerca de como despi-la; e quando ela utiliza agora, este propicia a

68

continuidade dessas instruções, que devem ser seguidas. A função de agora é a de elo

continuativo, nas seqüências das ações a serem executadas pelo personagem Gatão ao

despir a namorada.

Podemos constatar que o emprego de agora, na tira analisada, relaciona-se a um

sentido mais ampliado que o sentido dêitico. Sua função é de servir como referencial de

tempo/seqüência na enunciação. Marcuschi (1986), ao tratar de marcadores

conversacionais, pressupõe elo referencial entre os segmentos textuais anterior e posterior.

É o que se observa na tira 9.

Nas figuras 20 e 21, agora também exerce a função de seqüencializador de ações:

FIGURA 20 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

O Gatão, nos dois primeiros quadros, planeja uma ação e, para isso, utiliza-se de

seus instrumentos de trabalho para fazer um projeto. O uso do agora funciona não só como

recurso para estruturar o discurso, no sentido de marcar seqüência de ações, como também

atua como gatilho para deflagração do humor, uma vez que ele tenta realizar uma tarefa que

normalmente cabe às mulheres, relacionando idéias a princípio não relacionáveis.

69

Ao promover uma relação de coesão textual, a abstratização do sentido adverbial é

maior, embora ainda se possa identificar resíduos do sentido temporal característico de

advérbio.

FIGURA 21 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

No último quadro da figura 21, a mãe do personagem Julinho Neves, após oferecer

ao filho um copo de leite morno, como informa o narrador da tira, manda-o escovar os

dentes e, depois, ir se deitar. Agora propicia uma continuidade às ações a que o filho deve

obedecer.

4.3 MARCADOR DISCURSIVO

Agora, além de exercer a função de [+ conector], volta-se, como marcador

discursivo, para interação entre os falantes e adquire traço [+ circuntanciação discursiva] e

atua na organização de unidades tópicas. Nesta função, por meio do processo de

discursivização, agora perde restrições gramaticais, sobretudo seu uso exofórico e seu uso

juntivo, já que não integra a estrutura oracional, e passa a exercer funções voltadas para

organização de unidades discursivas, em relação a tópicos ou segmentos de tópicos.

70

Segundo Marcuschi (1989: 304), os marcadores discursivos apresentam,

formalmente, as seguintes características: operam como fatores de coesão textual,

organizando as unidades discursivas; distribuem-se em posições bastante regulares;

contribuem para hierarquizar e topicalizar argumentos; operam com características de

dêiticos discursivos; e mantêm relativa independência sintática. Neste trabalho, o termo

marcador discursivo parece exercer a função de “amarrar” textualmente as informações e

de direcionar as perspectivas do falante em relação ao assunto, direcionando o tópico

discursivo.

A noção de tópico discursivo é explicada por Koch (1992: 71) como “o assunto

sobre o qual se fala”, e, em seu caráter semântico-discursivo, é responsável pelo fluir das

informações e pela interação entre os participantes.

Segundo Koch et al. (1992) e Fávero (1998), o tópico discursivo tem duas

propriedades: centração e organicidade. A primeira diz respeito à relação de

interdependência semântica entre os enunciados. A segunda diz respeito à relação de

interdependência que se estabelece no plano seqüencial e no plano hierárquico.

O vocábulo segue uma trajetória do tipo: dêitico > fórico > marcador discursivo e

seu papel é, segundo Risso (1993: 39), de “fazer avançar o discurso para uma situação

nova, com força de ressalva, contraposição, reordenação de enfoque, desacordo,

relativamente a uma situação já posta dentro do mesmo tópico, ou no tópico anterior.”

Assim, ao viabilizar o discurso no ato de fala, permite ao falante apresentar seu

ponto de vista a respeito do que está sendo tratado e indica, também, a permanência do

turno de fala26.

26 Segundo Marcuschi (1986), turno de fala indica, na conversação, a produção de um falante enquanto ele está com a palavra.

71

4.3.1 Conector de subtópicos

Ao adquirir o traço [+ conector subtópicos], o item agora estabelece conexão entre

um subtópico e outro subtópico, ocupando a posição inicial de subtópico.

FIGURA 22 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Destaca-se, na figura acima, as crenças do Gatão, que, com 40 anos, já não acredita

nas mesmas coisas que antes. De acordo com Koch et. al. (1992), podemos visualizar o

esquema de organização hierárquica do tópico discursivo da figura 22:

Supertópico: Crenças Quadro tópico: as crenças e as fases da vida Subtópicos:

1. Crenças da infância 2. Crenças da adolescência 3. Crenças da juventude 4. Crenças da maturidade

Segmentos tópicos:

1. Crenças da infância (texto do quadro 1)

72

2. Crenças da adolescência (texto do quadro 2) 3. Crenças da juventude (texto do quadro 3) 4. Crenças da maturidade (texto do quadro 5)

Desse modo, o item agora (presente no quadro 4) estabelece a conexão entre um

subtópico (crenças da juventude) e outro subtópico (crenças da maturidade) e estabelece

uma espécie de contraposição entre os enunciados, definida pelo contraste de crenças,

conforme quadro a seguir:

Quadro 6 – Contraste de crenças

PASSADO

Tempo A

CONTRAPOSIÇÃO PRESENTE marcado pela dúvida

Tempo B

Papai Noel, Batman, Deus, estudo, revolução socialista, cinema sueco, fluminense, etc

AGORA

Parreira, Lula, astrologia

Na fala do personagem Gatão, figura 22, a transição para outro subtópico, no quarto

quadro, é marcada pelo item agora, que indicia, também, um ponto de vista diferente,

estabelecido levemente pelo contraste dos Tempos A e B. Esse uso de agora nos parece

guardar resquícios de seu uso dêitico-temporal e de seu uso juntivo.

4.3.2 Introdutor de digressão

O uso de agora como traço [+ introdutor de digressão] ocorre quando um

personagem insere um segmento tópico no interior de outro.

73

FIGURA 23 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2

Na figura 23, a filha pré-adolescente diz ao pai que menstruou. No terceiro quadro,

agora, promove uma descontinuidade na organização tópica, perturbada pela introdução de

assunto constitutivo de outro subtópico na seqüencialidade. Insere-se, nesse quadro, uma

reflexão do personagem sobre quando o assunto deveria ser abordado (na tira de 2a feira) e

não sobre o ato de menstruar em si, que representa o tópico. É provável que na tira de 2a

feira tenha aparecido a menina com a mãe conversando sobre o ato de menstruar, o que

restabeleceria a linearidade.

Temos, então, na figura em análise, o seguinte esquema: 1o quadro: tópico ficar menstruada

3o quadro: inserção sob a forma de digressão (Cf. Koch et al. 1992, Fávero 1996),

ou seja, há ocorrência de um segmento tópico no interior de outro segmento tópico em

desenvolvimento, num esquema do tipo A-B-A. O que implica a retomada do tópico em

momento posterior, o que já é sinalizado na tira.

74

Além de sinalizar a abertura de um sub-tópico, parece ter a função de modalizador,

pois marca a incerteza, a insegurança do Gatão em relação à situação, já que, no segundo

quadro, percebemos, por meio de sua expressão fisionômica, que ele não sabe como agir.

4.3.3 Redirecionador de tópico

O uso de agora como traço [+ redirecionador de tópico], nas tiras em análise, ocorre

quando um personagem deixa de lado o tópico principal ou sub-tópico sobre o qual discorre

para dar explicações, fazer comentários, apresentar um ponto de vista ou uma opinião do

sobre o que está sendo tratado.

FIGURA 24 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1

Agora, na tira em análise, opera uma reorientação discursiva, identificando, a partir

de diferentes expectativas geradas, a relação dos personagens com o seqüenciamento

temático do fluxo de informações.

75

De acordo com as análises realizadas, agora, na função de marcador discursivo, é

responsável pelo gerenciamento dos tópicos conversacionais, marcando a conexão e o

redirecionamento dos tópicos.

76

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos descrever e explicar, com base na trajetória de mudança

e de variação característicos dos processos de gramaticalização e de discursivização, a

multifuncionalidade do item agora nas tiras de Gatão de meia idade.

Essa trajetória relaciona-se às extensões de usos e funções desse item, que remete a

sua origem etimológica, hac hora, cuja noção é a de locativo-temporal, fundada pelo

demonstrativo hac, e culmina na indicação de relações discursivas. Nesse sentido, frisamos,

segundo Hopper, o conceito de camadas, segundo o qual o surgimento de novos sentidos

não põe fim ao mais antigo, podendo coexistir e interagir, dentro de um contexto

determinado.

Nosso corpus, formado por 15 tiras, sendo 4 ocorrências de agora com função

temporal, 8 com função juntiva e 3 com função discursiva, caracteriza-se pela utilização

das linguagens icônica e verbal. Produzido na interface oral/escrita, o texto das tiras,

segundo Lins (2004), busca reproduzir a conversação espontânea, pelo uso do diálogo e

pelo uso de estratégias interacionais, mas seu texto é fruto de um planejamento prévio tanto

do tema quanto dos aspectos lingüísticos. “É um texto para ser lido, mas como objetivo de

se fazer escutar, o que inclui dentro dessa questão do continuum fala-escrita”.

Nesse sentido, quanto à influência do gênero textual, pudemos verificar que o maior

número de ocorrências foi de agora exercendo a função juntiva, o que nos parece

evidenciar uma maior aproximação do texto das tiras do Gatão de meia idade da escrita

mais planejada, haja vista, nessa função, a presença dos monólogos nas tiras. Além desse

aspecto, não foram observados em nosso corpus ocorrências de funções anafóricas ou

77

catafóricas, como no exemplo “Agora no sábado”, comuns à conversação. Também não

encontramos estruturas mais amplas com o item agora como: agora veja, essa agora, cujo

valor expressa irritação. Isso, a nosso ver, parece reforçar a aproximação dos textos das

tiras de Miguel Paiva do texto escrito.

A análise das tiras, também, nos permitiu verificar que:

1) Em seu valor dêitico temporal, agora veicula relação de proximidade temporal

do fato evocado com a fala dos personagens, assinalando o tempo da enunciação, e tende

marcar uma abrangência temporal que inclui não só o traço de [+referência presente] como

também traços de [+referência passada] ou de [+referência futura]. Nessa função, ocorre a

permanências dos traços [+circunstanciação verbal] e [+mobilidade].

2) Em seu uso juntivo, há perdas de traços prototípicos como [+circunstanciação

verbal] e [+mobilidade] e o item agora apresenta função de [+conector de

seqüencialização] e passa a incidir sobre enunciados, estabelecendo relações lógicas. Essas

relações parecem ser relações de causa/conseqüência e relação de contrajunção, que se

estabelece por ressalva, contraste e contra-expectativa.

3) Como marcador discursivo, agora parece atuar na organização do discurso e

apresenta as seguintes variações: conector intratópicos e redirecionador de tópico. Na

função de conector intratópico, nas tiras analisadas, agora, além de contribui para

organização do tópico discursivo, propicia ocorrência de um contexto ambíguo que sugere

uma relação de oposição no tempo, assinalando o princípio da Persistência, proposto por

Hopper.

Em nossa pesquisa, não tivemos pretensão de esgotar o assunto. Pretendemos,

apenas, evidenciar, por meio das análises, o comportamento do item agora nas tiras de

quadrinhos do Gatão de meia idade.

78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. (trad. Anna Rachel Machado, Péricles da Cunha). São Paulo: EDUC, 1999. CÂMARA JR, Joaquim Matoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975. CASTILHO, Ataliba de. A gramaticalização. In: Revista de estudos lingüísticos e literários. Universidade Federal da Bahia, n. 19, 25-64, mar. 1997. CHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. (trad. Francisco M. Guimarães). Petrópolis: Vozes, 1971. COELHO, Sueli Maria. Uma análise funcional do onde no português contemporâneo: da sintaxe ao discurso. Belo Horizonte: PUC-MG, 2001. (Dissertação de Mestrado) COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1990. COULTHARD, Malcolm. Linguagem e sexo. São Paulo: Ática, 1991. CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

79

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. (trad. Luis Carlos Borges). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. IANNONE, Leila Rentroia e IANNONE, Roberto Antonio. O mundo das histórias em quadrinhos. 3 ed. São Paulo: Moderna, 1994. ILARI, Rodolfo et. al. Considerações sobre a posição dos advérbios. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de (org.) Gramática do português falado. Vol. I. 3. ed. Campinas: UNICAMP / FAPESP, 1996. FÁVERO, Leonor Lopes. O processo de coordenação e subordinação: uma proposta de revisão. In: CLEMENTE, Elvo (org.). Lingüística aplicada ao ensino de português. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992, 52-61. _____. O tópico discursivo. In: PRETI, Dino (org.). Análise de textos orais. 4 ed. São Paulo: Humanitas, 1996. _____. Coesão e coerências textuais. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. GRYNER, Helena. A seqüência argumentativa: estrutura e funções. Veredas. v.4, n. 2 – jul/dez 2000. HOPPER, Paul & TRAUGOTT, Elizabeth C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. KOCH, Ingedore G. Villaça et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, Rodolfo (org.) Gramática do português falado. Campinas-SP: Ed. da UNICAMP, 1992, v. 2. pp. 359-447. LINS, Maria da Penha Pereira. Organização tópica do discurso de tiras diárias de quadrinhos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. (Tese de Doutorado em Lingüística) _____. Gramaticalização de agora. Trabalho apresentado no 10 º SILEL, Uberlândia. 2004 _____. O humor nas tiras de quadrinhos: uma análise de alinhamentos e enquadres em Mafalda. Vitória: Grafer, 2002. _____. Eles: “eu sou mais eu”, elas “eu não vivo sem você”: o estilo que faz a diferença. mimeog. Vitória, 1997. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,

80

MACHADO & BEZERRA. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. _____. Marcadores conversacionais do português brasileiro: formas, posições e funções. In.: CASTILHO, Ataliba Teixeira (org.). Português culto falado no Brasil.Campinas: Editora da UNICAMP, 1989. MARTELLOTA, Mário Eduardo, VOTRE, Sebastião Josué. Trajetórias de gramaticalização e discursivização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998 (Mimeog.). MEILLET, Antoine. L’évolution des formes grammaticales. In: Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Champion, 1982. NEVES, Maria Helena de Moura. Os advérbios circunstanciais (de lugar e de tempo). In: ILARI, Rodolfo. Gramática do português falado. Vol. II. São Paulo: UNICAMP / FAPESP, 1996. _____. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____ . Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. OMENA, Nelize Pires de & BRAGA, Maria Luiza. A gente está se gramaticalizando? IN. MACEDO, RONCARATI, MOLLICA (org.). Variação e discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. PAIVA, Maria da Conceição de. Notas de aula da disciplina Gramática e Discurso, do programa de especialização Lato Sensu em Estudos Lingüísticos da Universidade Federal do Espírito Santo, 2002. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática expositiva: curso superior. 31. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933. PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996. POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. Processos de gramaticalização de preposições do latim ao português: uma abordagem funcionalista. Salvador: EDUFBA, 2002. QUELLA-GUYOT, Didier. A história em quadrinhos. Trad. Maria Stela e Adail Ubirjara Sobra. São Paulo: Loyola, 1994.

81

RISSO, Mercedes Sanfelice. Agora... o que eu acho é o seguinte: um aspecto da articulação do discurso no português culto falado. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de (org.) Gramática do português falado. Vol. III. Campinas: UNICAMP / FAPESP, 1993. p. 31-60. ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. TANNEN, Deborah. Você simplesmente não me entende – o difícil diálogo entre homens e mulheres. Trad. Maria Therezinha M. Cavallari. São Paulo: Best Seller, 1990. VENDRYES, J. Le langage: introduction linguistique a l´histoire. Paris: Édions Albin Michel, 1950. BIBLIOGRAFIA REFERENTE AO “CORPUS” PAIVA, Miguel. Gatão de meia idade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, v. 1. _____. Gatão de meia idade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, v. 2.

82

ABSTRACT

According to the functionalism, and based on the grammaticalization and

the discoursivization paradigms, this work intends to ascertain the syntatic-

discursive statute of the item and its temporal-deict, connective and

discoursive functions found in the Miguel Paiva´s comics entitled "Gatão

de Meia Idade". The theoric presupposes adopted, come from the beginning

that the language, in order to attend the social-communicative necessities of

its users, becomes active and able to adjust itself to either internal, or

external pressures from the linguististic system.

KEY WORDS: agora, grammaticalization and discoursivization