a mulher e a literatura o poder da palavra

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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura A MULHER E A LITERATURA: O PODER DA PALAVRA Eliana Gabriel Aires 1 Sherazade, figura exemplar feminina, ofereceu-se para resgatar um valor à causa da mulher. Se houvesse oferecido apenas seu corpo, teria morrido como as outras. Ela, porém, instituiu um outro desejo ao sultão, o desvelamento de uma narrativa. Sherazade simboliza a mulher que venceu a morte pela Palavra, contar é igual a viver. Ela representa a Mulher que adquiriu o poder de usar a palavra quando se sente segura interiormente e aceita enfrentar riscos. Sherazade queria recuperar a dignidade da mulher. Menezes, no artigo intitulado “Do poder da palavra” afirma: Trata-se da maior apologia da palavra. [...] Ela aceita assumir o risco absoluto: arrisca a vida, para recuperar ao sultão uma imagem feminina perdida pela infidelidade. Há algo de épico em seu gesto: uma mulher que, através da palavra, salva a raça feminina 2 A descrição dessa incrível criatura é significativa, pois os atributos intelectuais – coragem extrema, espírito de penetração, muita leitura, memória prodigiosa, dedicação aos estudos de medicina, filosofia e belas artes, além de ser uma poetisa excelente – são mencionados antes dos atrativos físicos, o que é considerável avanço para mulher, vista, no mais das vezes, pelo seu exterior. Sherazade utilizou-se da trama narrativa que continha no seu gérmen a astúcia e através da curiosidade do Sultão, instituiu o artifício do suspense, valioso procedimento para a literatura. Também Cora Coralina, em Goiás, ousa publicar sua primeira obra poética aos 67 anos, quando retorna à sua cidade natal. A voz autoral da 1 Doutora em Letras (IBILCE/UNESP) e Mestre em Literatura (FL/UFG), é professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e coordenadora da pesquisa “A Literatura-arte na Escola Pública”, vinculada ao Programa de Pós- Graduação e à linha de pesquisa “Formação de Professores”. 2 MENEZES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 1988. p. 34. Folhetim.

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Filosofia e Literatura

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Page 1: A mulher e a literatura o poder da palavra

Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura

A MULHER E A LITERATURA: O PODER DA PALAVRA

Eliana Gabriel Aires1

Sherazade, figura exemplar feminina, ofereceu-se para resgatar um valor à causa da mulher. Se houvesse oferecido apenas seu corpo, teria morrido como as outras. Ela, porém, instituiu um outro desejo ao sultão, o desvelamento de uma narrativa. Sherazade simboliza a mulher que venceu a morte pela Palavra, contar é igual a viver. Ela representa a Mulher que adquiriu o poder de usar a palavra quando se sente segura interiormente e aceita enfrentar riscos. Sherazade queria recuperar a dignidade da mulher. Menezes, no artigo intitulado “Do poder da palavra” afirma:

Trata-se da maior apologia da palavra. [...] Ela aceita assumir o risco absoluto: arrisca a vida, para recuperar ao sultão uma imagem feminina perdida pela infidelidade. Há algo de épico em seu gesto: uma mulher que, através da palavra, salva a raça feminina 2

A descrição dessa incrível criatura é significativa, pois os atributos intelectuais – coragem extrema, espírito de penetração, muita leitura, memória prodigiosa, dedicação aos estudos de medicina, filosofia e belas artes, além de ser uma poetisa excelente – são mencionados antes dos atrativos físicos, o que é considerável avanço para mulher, vista, no mais das vezes, pelo seu exterior. Sherazade utilizou-se da trama narrativa que continha no seu gérmen a astúcia e através da curiosidade do Sultão, instituiu o artifício do suspense, valioso procedimento para a literatura.

Também Cora Coralina, em Goiás, ousa publicar sua primeira obra poética aos 67 anos, quando retorna à sua cidade natal. A voz autoral da

1 Doutora em Letras (IBILCE/UNESP) e Mestre em Literatura (FL/UFG), é professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e coordenadora da pesquisa “A Literatura-arte na Escola Pública”, vinculada ao Programa de Pós- Graduação e à linha de pesquisa “Formação de Professores”.2 MENEZES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 1988. p. 34. Folhetim.

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poeta (re)nasce quando adquire autonomia financeira e pessoal. Quando jovem já se mostrava brilhante e irreverente. Participou do jornal “A Rosa” e publicou em 1910 o conto “Tragédia na roça”. O professor Francisco Azevedo ressaltou na época, que a autora:

é um dos maiores talentos literários que possui Goiás, é um temperamento de verdadeiro artista. Não cultiva o verso, mas conta na prosa animada tudo o que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil e harmoniosa, ao mesmo tempo elegante. É a maior escritora de nosso Estado, apesar de não contar ainda vinte anos de idade 3

Ana Lins dos Guimarães Peixoto já usava o pseudônimo Cora Coralina, que a faria representante de Goiás no mundo das letras. Entretanto, ela rompe com o esperado para uma mulher e deixa sua terra para seguir seu fado. Casada, nem ela, com todo seu talento, rompe as fortes amarras conjugais e as obrigações impostas pelo casamento. Em relação a este período ela assim se expressa no poema Minha infância: “E nunca realizei nada na vida./ Sempre a inferioridade me tolheu./ E foi assim, sem luta, que me acomodei/ na mediocridade do meu destino”.

Só em 1956, viúva retornou a Goiás. Mas a voz que foi calada, nesta mulher de forte personalidade, estava apenas adormecida. Ela conseguiu superar seu destino de mulher, ficando na história literária de Goiás e do Brasil, como representante da mulher forte “que venceu o tempo, que pactuou com a Providência para que tivesse vida o bastante para realizar-se integralmente, depois de cumprida sua missão de mãe e esposa” (AIRES, 1996, p. 51).4

Porém, a luta da mulher ao longo dos anos tem sido árdua. Para adquirir a liberdade intelectual que lhe possibilite falar, criar, escrever

3 AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Anuário histórico, geográfico e descritivo do estado de Goiás. Uberaba: Livraria Século XX, 1910. p. 209.4 Este trabalho se fundamenta, em grande parte, no livro de nossa autoria, O conto feminino em Goiás, fruto de dissertação de Mestrado.

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literatura foram necessários embates contínuos. Nosso objetivo nesse trabalho é verificar a participação da mulher na literatura. Para isso faremos uma breve retrospectiva dos antecedentes da história de vida da mulher, pois só assim poderemos entender a trajetória das mulheres literárias.

Herdamos de Portugal suas leis, hábitos, tradições em diversos aspectos, e a mulher ao longo do tempo, veio herdando também a ausência de direitos e todos os preconceitos.

Segundo June Hahner (1981, p.15) “Sob a estrutura do direito civil vigente, uma extensão do código filipiano de 1603, que basicamente permaneceu em vigor no Brasil até a promulgação do código civil de 1916, as mulheres eram menores perpétuas sob a lei”.

A mulher não possuía identidade, não era dona de si mesma, não possuía a palavra, que leva o ser a um plano de reflexão e auto-conscientização.

Até o início do século XX a mulher ocupava uma posição inferior, de submissão, voltada exclusivamente para o lar. A maioria da população feminina continuava sem instrução. Mas muitas mulheres já estavam empenhadas na luta pelos seus direitos e graças a este movimento foi decretado o novo código de 1932, dando direito de voto às mulheres sob as mesmas condições dos homens. Após tão árdua vitória, foi deplorável verificar que poucas mulheres se inscreveram para votar. Muitas voltaram-se para sua intimidade como se nada mais houvesse a ser pleiteado ou mantido. Houve um decréscimo na atividade feminina e, como Bertha Lutz observou, em 1940, as brasileiras eram incapazes de manter tudo o que foi conquistado.

Aos poucos esta situação mudou drasticamente. Já se vão quase cem anos e as conquistas e lutas das mulheres foram inúmeras. Para adquirir o direito de estudar, frequentar uma escola pública, uma universidade, trabalhar fora de casa, votar, falar e ser ouvida, dominar seu corpo, ter os filhos que quiser, casar ou não, deixar de ser reconhecida por seu aspecto físico - a mulher enfrentou uma batalha que ainda não está totalmente vencida.

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A mulher hoje pode aspirar a ser e não apenas a viver parasitariamente. É esse poder que as escritoras estão tentando obter através da palavra. Para escrever a mulher, como afirma Virgínia Woolf em “Um teto todo seu” (1985), precisa uma libertação conseguida a cada instante. Ainda segundo esta autora, a mulher que nascesse com veia poética no século XVI era uma mulher infeliz, em conflito consigo mesmo. As primeiras mulheres que ousaram escrever perderam grande parte de seu poder criativo pelos sentimentos de indignação que inseriram em seus textos.

Na sociedade primitiva a mulher detinha um grande poder advindo de sua atuação como sacerdotisa ou feiticeira. A mulher exercia esse fascínio por ser ligada à terra-mãe. Mas o homem dominou a terra e subordinou a mulher, criou as leis e as instituições inaugurando a sociedade patriarcal. A mulher foi confinada no interior do lar para procriar e alienou-se. Tornou-se o “Outro”, como afirma Simone de Beauvoir (1980, p. 22).

Os estudos da menina sempre foram diferenciados dos do menino e ministrados separadamente. Ela era preparada para se casar e ser dona de casa desde o nascimento, enquanto aos meninos eram oferecidas as aventuras e a liberdade. Em alguns lugares havia alguma mudança, na Grécia antiga a oposição entre a vida das mulheres de Esparta e Atenas era flagrante. Segundo Homero, Hesíodo e Heródoto as espartanas aprendiam a lutar e a se defender, as outras eram aprisionadas em seus gineceus.

A literatura da época apresenta fortes personalidades femininas: Fedra, Medéia, Antígonas e outras figuras mitológicas. Uma poetisa grega do século VI a.C., Safo, foi elogiada por Platão, imitada por Catulo e mencionada nas obras de Horácio, Longino e Ovídio. Deixou odes e epitalâmios – versos denominados sáficos – em que a temática principal era o amor. Mas este fato realmente contrasta com as práticas do cotidiano na época.

A mulher evoluiu lentamente em todo o mundo. A situação política, econômica e religiosa refletiu-se na trajetória feminina. Na Idade Média a mulher achava-se na total dependência do pai ou da proteção de um marido que lhe era imposto. Não possuía nenhum direito como pessoa. A mulher

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casada, no período feudal, possuía menos privilégios, a celibatária e a viúva possuíam algum direito, mas a mulher legalmente casada era a mais submetida a pressões físicas e morais, existia a prostituição para mantê-las honestas.

Em pleno século XV, quando as mulheres começaram a reclamar por instrução, surgiu na França, Christine de Pison, que ousa escrever para defender a mulher, reclamando por sua instrução. Com o Renascimento, surgiram mulheres cultas de forte personalidade que adquiriram espaço e influíram em algumas decisões políticas, e assim, de forma ainda tímida, contribuíram para a história da civilização.

Da mulher comum nada se sabe, de acordo com Virgínia Woolf (1985, p. 59), “a mulher jamais escreve sua própria vida e raramente mantém um diário”. Ler ou escrever pressupunha uma mínima educação formal, mas a mulher por muito tempo foi direcionada para o casamento e a maternidade, que constituíam o ápice da sua vida. Silenciar a voz da mulher, abafar a sexualidade feminina, submetê-la à autoridade do homem, foram práticas constantes em nossa sociedade patriarcal. Os pais prendiam suas filhas e os maridos as aprisionavam em casa. O “pecado original” era uma carga, que deveria ser carregada pela mulher por toda a vida. Os homens eram livres, assediavam outras mulheres e, portanto escravizavam as suas. No século XVII, Gregório de Matos, com seus versos ferinos, fustigou os baianos sobre o adultério feminino.

Ao longo do século XVIII dá-se um desenvolvimento da atividade intelectual para as mulheres, as nobres e cultas iniciaram movimentos feministas. Começaram a escrever e mesmo ocultando sua identidade, sob pseudônimos masculinos, atreveram-se escrever, possibilitando condições para o surgimento de algumas escritoras de sucesso.

As grandes escritoras inglesas Jane Austen, as Brontës e George Eliot não teriam tido a menor possibilidade de escrever, enfatiza Virgínia Woolf, não fossem aquelas precursoras.

As mulheres encontram oportunidades para afirmarem-se no campo

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cultural. Sabemos que, como afirma Telles:

Escrita e saber estiveram, em “geral” ligados ao poder e funcionaram como forma de dominação ao descreverem modos de socialização[...] E a leitura é sempre determinada pelo lugar ocupado por um leitor na sociedade, num dado momento histórico. Portanto, é feita através do crivo de classe, raça ou gênero. Essas mesmas noções, de classe, raça e gênero são mutáveis e construídas no decorrer da história 5

Entretanto, aos poucos, foi se processando uma evolução que viria ajudar a causa da mulher. O desenvolvimento da indústria, a substituição das ferramentas pelas máquinas, o aperfeiçoamento de algumas invenções marcaram a transformação econômica que mudou substancialmente a sociedade nos séculos XVIII e XIX.

É um momento da história em que a força física não é mais um fator determinante. A mulher é tão capaz de trabalhar com as novas máquinas quanto o homem, o que lhe proporciona uma crescente independência. A emancipação feminina obteve outro grande reforço nas oportunidades educacionais dadas às mulheres. Aos poucos os métodos anticoncepcionais começam a ser utilizados. Surgem as discussões e condenações ao aborto. O progresso da medicina ajuda a diminuir o perigo do parto. Vencendo a natureza, a mulher torna-se dona do seu corpo, pois como afirma Simone de Beuvoir (1980, p. 145): “É pela convergência destes dois fatores: participação na produção, libertação da escravidão da reprodução, que explica a evolução da condição da mulher”.

Surge, então, um dos problemas essenciais que perdura até hoje: a conciliação da vida no lar com a atividade profissional: a dupla/tripla carga de trabalho.

5 TELLES, Norma. Escritoras, escritas e escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. p. 401-402.

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No entanto, apesar disso, muitas mulheres começaram a escrever e publicar. Os movimentos feministas surgem em todo o mundo. Na Inglaterra Mary Wallstonecraft, com sua obra Vindication of the rights of women assume a liderança da luta do estatuto social e político da mulher. Este livro foi traduzido e publicado no Brasil, em 1832, por Nísia Brasileira Augusta, figura de destaque em seu tempo. Republicana e abolicionista reivindicava igualdade e educação para as mulheres. Escreveu em jornais provocando polêmica, sua preocupação maior era com a educação das mulheres, que nesta época não podiam frequentar o Ensino Superior e ficavam trancadas dentro de casa.

No século XIX dá-se uma mudança no público leitor, ele aumenta consideravelmente e é constituído, em grande parte, por mulheres burguesas: “O papel da mulher foi redefinido, passou a ser ajudante do homem, a educadora dos filhos, um ser de virtude, o anjo do lar. [...] a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição” (TELLES, p. 402- 403).

Assim, eram excluídas da criação cultural e estavam sujeitas à autoridade do homem. Júlia Lopes de Almeida, escritora e jornalista, no final do século XIX lutava pela causa da mulher e defendia a aquisição de autonomia. Talvez tenha sido a única escritora do período a conseguir ganhar dinheiro com sua escrita. Narcisa Amaral foi uma poeta que se dedicou à luta pela liberdade intelectual da mulher, que ainda não era reconhecida pela palavra, reflexo de sua inaceitação social.

O movimento pelo sufrágio feminino ganha adesões crescentes e há uma grande participação da mulher até mesmo na imprensa. A imprensa feminina surgiu na Inglaterra, mas se desenvolveu melhor na França após a Revolução francesa. Segundo Aires:

A imprensa feminina, até meados do século XIX, foi restrita às

mulheres da aristocracia, ou de um certo status, pois eram as

que sabiam ler e tinham tempo disponível para isso. [...] Atuando

primeiramente como canais de expressão literária, os jornais

foram amplamente usados para reclamar os direitos da mulher.

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Já no século XIX, veicularam a campanha sufragista 6

Várias mulheres fundaram jornais, importantes divulgadores da luta empreendida pelas mulheres ao longo da história. Inicia-se a imprensa feminina no Brasil com O Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, no Rio de Janeiro em 1852. Ela estimulava as mulheres a colaborarem no jornal, mas a mulher brasileira nesse tempo não tinha coragem de expor-se. Algumas escreveram sob pseudônimo e outras poucas passaram a assinar os artigos com suas iniciais. A mulher temia expor-se ao ridículo. Em 1862 surge o jornal O Belo Sexo, no Rio de Janeiro. Sua editora, Júlia de Albuquerque Aguiar, insiste que as mulheres publiquem seus artigos com suas assinaturas, entretanto muitas tinham dificuldades em colocar seus nomes completos. Em 1873, uma notável professora, Francisca Senhorinha da Motta Diniz, fundou o jornal O Sexo Feminino, no qual defendia a educação da mulher. Ela advertia as mulheres que o inimigo com quem lutavam estava escondido na ignorância da mulher. Josefina Álvares de Azevedo editou em 1888 o primeiro número de sua revista, A Família, onde defendia o slogan “Mulher instruída é mulher emancipada”. Nessa época, já havia sido instituído o ensino superior para mulher, desde 1879, propiciando abertura de profissões. Poucas privilegiadas frequentaram uma faculdade, pois além, das pressões, da desaprovação social, a jovem deveria ter concluído o curso secundário, que era muito caro. Só no século XX aceitaram a frequência de moças em escola pública.

Em 1918, Bertha Maria Júlia Lutz retorna ao Brasil graduada pela Sorbonne. E torna-se líder do movimento sufragista feminino. Sua participação nas lutas da mulher do seu tempo, incentivando e orientando suas companheiras foi notável. Bertha Lutz fundou com Maria Lacerda de Moura, no Rio de Janeiro, em 1920, a Liga para a emancipação intelectual da mulher.

A necessidade de se ocultar sob pseudônimos não aconteceu apenas no Brasil. No século XIX aparecem muitos textos escritos por mulheres, apesar das enormes dificuldades: elas não tinham condições de viajar

6 AIRES, Eliana Gabriel. O conto feminino em Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 1996. p. 27.

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e os livros lhes eram de difícil acesso. A uma mulher de classe média era quase impossível conseguir estudar. Escrever não era considerado como uma atividade própria para o sexo feminino, e as mulheres, frequentemente, ocultavam-se para escrever. Utilizavam pseudônimos masculinos, como George Sand ou George Eliot, para preservarem–se das críticas.

Jane Austen sofreu estas pressões, como nos relata Woolf (1985, p. 89): “Ela tomava cuidado para que os criados ou visitantes ou quaisquer pessoas fora da família não suspeitasse de sua ocupação. Jane Austen escondia seus manuscritos ou cobria-os com um pedaço de mata-borrão”.

A partir do século XX, há uma evolução nos romances escritos por mulheres, uma maior preocupação com o artístico da escritura e não apenas o transbordamento de mágoas e desapontamentos. Há também uma abrangência maior de assuntos, e as mulheres se aventuram em campos tidos como masculinos, tais como a pesquisa científica, a antropologia e a política.

Surgem escritoras como Virgínia Woolf, que conseguem produzir verdadeiras obras de artes literárias, garantindo seu lugar ao lado dos maiores nomes masculinos da literatura moderna. Ao retratar em seus trabalhos o mundo interior das pessoas, Woolf conseguiu revolucionar as técnicas formais da escritura.

No Brasil aparecem importantes vozes femininas como Cecília Meireles, Conceição Evaristo, Bárbara Heliodora, Maria Firmina dos Reis, Lúcia Miguel Pereira, Henriqueta Lisboa, Lúcia Machado de Almeida, Raquel de Queiroz – primeira mulher a participar da Academia Brasileira de Letras e mais recentemente Ana Maria Machado. Significativas são as vozes de Lígia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Marina Colasanti, Helena Parente Cunha, Lia Luft, entre muitas outras, que engrandecem a causa das mulheres e possuem uma escritura que nada deve às melhores autorias masculinas.

Na entrada do século XXI tem havido um processo de reflexão sobre a mulher e a literatura. É lançado um grito de guerra aos padrões vigentes,

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e verdadeiras agressões são assumidas por mulheres que se postulam “feministas”. Na história literária sempre foi necessária uma reação extremada para que se efetivassem mudanças. Na história da libertação da mulher tem havido um movimento similar. A meta é o ponto de equilíbrio.

A escalada ascendente da mulher tem sido lenta e gradual. A mulher obtém o poder de usar a palavra no momento que se sente segura interiormente e aceita enfrentar riscos. Cora Coralina em Goiás representa a mulher que venceu barreiras e que através da Palavra adquiriu Vida nova e um renome nacional. Sherazade, protagonista das Mil e uma Noites, simboliza o poder da palavra em gerar Vida. Pelo impacto das palavras, aliado à curiosidade natural das pessoas, salva-se a raça humana, preserva-se a vida, dá-se continuidade à literatura.

A condição de ser livre para sentir e pensar é agora uma realidade na vida da mulher, que já sabe serem a transcendência e a liberdade uma libertação realizada e conseguida a cada instante, num eterno devir.

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Bibliografia

AIRES, Eliana Gabriel. O conto feminino em Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 1996.

AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Anuário histórico, geográfico e descritivo do estado de Goiás. Uberaba: Livraria Século XX, 1910.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

HAHNER, June. E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.

MENEZES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 1988. Folhetim.

TELLES, Norma. Escritoras, escritas e escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.