a morte como sustento - visionvox · 2017-12-18 · história de rio claro ainda ecoa no...

103

Upload: others

Post on 29-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último
Page 2: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

A Morte Como Sustento

O dia-a-dia dos profissionais

que convivem com a dor alheia

Giselle Marques

Page 3: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

Reportagem, textos e revisão: Giselle Marques

Orientação: Marcel Cheida - Puc-Campinas

2a edição - maio de 2004

Versão impressa disponível:

Biblioteca Pública Municipal Maria Victoria Alem Jorge

Centro Cultural Roberto Palmari

Endereço: Rua 2 nº 2880 - Vila Operária - Anexo ao Lago Azul

Bairro: Centro - Telefone: (19) 3522-8002

http://amortecomosustento.blogspot.com.br

Texto extraído do blog acima.

Corresponde a segunda edição do livro.

Primeira edição: outubro de 2003.

Projeto Experimental (Graduação em Jornalismo) - 1977

Formatação:

Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo

[email protected]

Page 4: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 4 ~

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

CIDADE AZUL: 17 anos depois do acidente, 4 famílias

ainda esperam por indenização

IMÓVEL DA EMPRESA FOI A LEILÃO NO DIA 22 DE JUNHO.

ACIDENTE OCORRIDO EM MAIO DE 1994 NA RODOVIA RIO

CLARO-PIRACICABA VITIMOU 19 PESSOAS

Por Marcelo Lapola

Passados 17 anos a maior tragédia automobilística da

história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e

trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu

último capítulo encerrado. Isso porque houve, no dia 22 de

junho, o leilão judicial de um imóvel onde antes funcionava

a Viação Cidade Azul, localizado na Avenida Presidente

Kennedy. A proposta vencedora para arremate da área foi

apresentada por um empresário local, no valor de

aproximadamente R$ 5 milhões.

No acidente entre o ônibus da extinta Cidade Azul e o

caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda 19

pessoas morreram. Das 17 famílias que perderam seus entes

queridos, 13 foram indenizadas pela Cidade Azul por terem

aceito as condições de um acordo judicial firmado tempos

depois. Outras quatro, que não aceitaram o acordo, deverão

receber a indenização após a homologação do leilão do

imóvel por parte da Justiça.

As informações são do advogado das famílias, Carlos

Roberto Marrichi. Segundo ele, os recursos que deverão ser

destinados a essas pessoas somam cerca de R$ 2,5 milhões,

incluindo os honorários advocatícios.

Mas, segundo Marrichi, o imóvel em questão também é

objeto de garantia judicial em outros processos contra a

empresa. "Acredito que boa parte das pendências deverão

Page 5: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 5 ~

ser pagas pois a oferta feita no arremate do imóvel é boa",

salientou Marrichi.

Segundo Marrichi, falta ainda a Justiça homologar o

arremate e aguardar o prazo para apresentação de recurso,

por parte da Viação Cidade Azul.

Outro advogado, o que representa o empresário que

apresentou a intenção de compra do imóvel da Cidade Azul

durante o leilão, salienta que a proposta apresentada, cerca

de R$ 5 milhões, deve cobrir cerca de 90% das penhoras

relativas ao prédio, incluindo as indenizações às 4 famílias

das vítimas do acidente na SP-127.

Ainda cabe recurso judicial por parte da Viação Cidade

Azul, conforme informações dos advogados.

Procurado pela reportagem do JC na tarde dessa sexta

(05), o advogado que representa a Viação Cidade Azul no

caso, Arlindo Chinelatto Filho não deu retorno até o

fechamento da edição e deverá se pronunciar nos próximos

dias a respeito do assunto.

Na estrada, que era de pista única, foi formada uma poça

de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio de

1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus

transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o

forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora

do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou

tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito

trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas

chegavam em busca de informações sobre familiares que

estudavam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos

daqueles que perdiam parentes e amigos”. Em seu livro "A

Morte como Sustento" a jornalista Gisele Marques retrata o

drama vivido pelas famílias que perderam seus entes

queridos naquela noite e os relatos de sobreviventes.

(http://amortecomosustento.blogspot.com

“A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o

motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente”. A

Page 6: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 6 ~

culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na

sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes,

publicados nos jornais da época, confirmam que a história

foi diferente”, diz Gisele em seu livro.

“Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de

1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um

profissional prudente e responsável”. Por este motivo, antes

do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus

para poder viajar todos os dias com ele no volante.

Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém-contratado da

empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como

tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria

o ritual de acompanhamento por um motorista mais

experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido

cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a

culpa”, completa a escritora e jornalista rio -clarense.

(Fonte:

http://jornalcidade.uol.com.br/rioclaro/seguranca/seguranc

a/79890--CIDADE-AZUL:-17-anos-depois-do-acidente---4-

familias-ainda-esperam-por-indenizacao--)

Page 7: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 7 ~

Dedico este livro em memória

de minha tia Cleusenir Marques Brunholi

e de todos os meus parentes e amigos

que perderam a vida nas estradas.

Quero deixar

o meu muito obrigada

a todas as pessoas vivas

que me fazem o bem.

Page 8: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 8 ~

Sumário

Prefácio

Apresentação

I - O Que Você Vai Ser Quando Morrer?

II - A Hora da Misericórdia

III - Um Nove Dois

IV - Notícia Ruim

V - O Corpo de Nercina

VI - SP127 - A Duplicação

VII - Os Funerais de Campinas

VIII - Quem Crê Em Deus Jamais Morrerá

IX - Funexpo 2003

X - A Morte Não Existe

Page 9: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 9 ~

Prefácio

Por José Arbex Jr.

Jornalista e Doutor em História Social pela USP

Qualquer pessoa educada segundo os princípios e

concepções das religiões monoteístas que estão na base da

civilização ocidental (judaísmo, cristianismo e islamismo)

concordará, facilmente, com a afirmação de que a vida

eterna é a recompensa oferecida aos que louvaram a Deus e

praticaram o bem. Variam as metáforas e hipóteses sobre

como será a vida eterna no além, mas não se questiona a

ideia central. A morte, nessa perspectiva, aparece como

punição aplicável aos que não se elevaram às alturas do

paraíso. É a manifestação da ira divina.

Nada poderia ser mais estranho aos olhos de um

seguidor das doutrinas orientais.

Para o hinduísmo, a vida é um período transitório no

vasto complexo de um universo permanentemente em

mutação, movido por um jogo de forças em oposição. Shiva

representa destruição, agressividade, morte; Vishnu, no lado

oposto, é a construção, compreensão, vida; Krishna é uma

espécie de síntese. Muito esquematicamente, e correndo o

risco de simplificar demais as coisas, é como se Shiva

representasse as pulsões que Sigmund Freud qualificou

como Tanatos; Vishnu, nesse caso, seria Eros; Krishna

representaria um objetivo de equilíbrio perseguido pelo

processo psicanalítico.

Também o taoísmo - uma espécie de meio caminho entre

filosofia e religião, criado por Lao Tse (velho sábio, em

chinês) cerca de 700 anos aC, quando, supostamente,

escreveu o livro Tao Te King - trata a morte como um

componente necessário ao movimento universal e incessante

de todas as coisas. Para os taoístas, há duas grandes

qualidades de forças: o pólo yang (o princípio masculino,

Page 10: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 10 ~

ativo, extrovertido, quente) e o pólo yin (o princípio

feminino, passivo, introvertido, frio). Vida e morte são o

resultado intercambiável do jogo bipolar movido por essas

forças. Não faz o menor sentido privilegiar um dos pólos e

tentar ignorar o outro. Não há claro sem escuro, calor sem

frio, positivo sem negativo, vida sem morte.

Outras tantas filosofias e doutrinas orientais, como o

zen budismo, seguem esses princípios básicos. Aliás, como

resultado prático, elas transformam a morte em conselheira

do bem viver. Para o taoísmo, por exemplo, a sabedoria

suprema do ser humano consiste em manter o bom humor,

já que ele sabe que poderá morrer no instante seguinte;

apenas aqueles que são loucos o suficiente para se julgarem

eternos podem perder o próprio tempo com irritação, brigas

inúteis, obsessões, fixações, rituais burocráticos sem

qualquer sentido.

Essa postura, obviamente, intensifica, dá mais brilho e

gosto à sensação de estar vivo. Para usar uma metáfora

emprestada à publicidade, é como colocar uma tarja preta

em volta de letras ou figuras vermelhas sobre fundo branco,

como faz a Coca Cola em seus outdoors. A tarja preta faz

com que a cor vermelha abandone o fundo branco e dê um

salto na direção da retina, causando uma impressão muito

mais forte.

A consciência permanente da morte, não como castigo

ou punição, mas como possibilidade natural e inexorável,

produz efeito semelhante sobre a sensação de estar vivo.

Quem sabe que pode morrer no instante seguinte não tem

tempo para se preocupar com besteiras. Nem leva a si

próprio tão a sério.

Uma pequena anedota ilustra bem essa postura. Conta-

se que o imperador chinês, impressionado com a fama de

Lao Tse, envia os seus representantes para convida-lo a

participar da corte. Os agentes do imperador encontram Lao

Tse brincando com pequenas tartaruguinhas, à beira de um

riacho. Ao tomar conhecimento do convite, o velho começa a

Page 11: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 11 ~

rir, e responde aos oficiais: “Eu soube que na corte do

imperador existe o casco de uma tartaruga gigante. É

verdade isso?”. Intrigados com a pergunta, os oficiais

confirmam. A tartaruga era um animal sagrado na antiga

China; o seu casco representava a abóbada do universo.

Então, o velho continua: “Pois se vocês pudessem perguntar

para a tartaruga gigante onde ele preferia estar, ressequida

na corte ou brincando na água, o que vocês acham que ela

responderia?” Os oficiais ficam em silêncio. Entenderam o

sentido da pergunta, mas não querem se comprometer com

uma resposta que poderia irritar o imperador. Rindo

novamente, Lao Tse se despede e diz: “Diga ao imperador

que essa foi a minha resposta.”

Os filósofos pré-socráticos também tinham uma

percepção dinâmica da morte. Heráclito, por exemplo,

afirmava que nunca veríamos o mesmo rio duas vezes, já

que suas águas estavam em movimento permanente. Apenas

tínhamos a ilusão de se tratar do mesmo rio. O mesmo se

aplicava a toda a natureza. A consciência deveria fazer um

esforço de entender a incessante transformação de todas as

coisas, segundo o processo de nascimento, vida e morte.

A ideia da imortalidade, na filosofia ocidental, ganhou

força com Platão, para quem o mundo das aparências era o

mundo do engano, da ilusão, do erro. Essa concepção foi

tratada de forma magnífica no mito da caverna, quando

Platão defende a ideia de que tudo o que os nossos sentidos

percebem são sombras projetadas na parede por uma fonte

de luz exterior. Se queremos conhecer as verdades das

coisas, devemos abandonar o mundo das aparências, da

carne, da matéria que apodrece e morre, e dirigir os nossos

olhares e pensamentos para a luz imaterial da essência, do

espírito. A verdade deve ser buscada no mundo das ideias,

não na observação do mundo percebido pelo corpo (daí que

o ideal seria que as sociedades fossem governadas por

filósofos).

Page 12: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 12 ~

Opera-se, assim, na filosofia ocidental, uma divisão

radical entre corpo e alma, matéria e espírito. A

imortalidade passa a ser um atributo do espírito, ao passo

que a morte pertence ao reino da matéria.

Ao longo da Idade Média, particularmente após a

publicação da Cidade de Deus, por Santo Agostinho, a Igreja

Católica transformou em dogma a ideia platônica da

degradação e morte da carne, fonte do pecado e do erro. No

auge de seu controle espiritual, era proibida até mesmo a

observação da natureza, desenvolvida por Aristóteles e seus

seguidores, como fonte de conhecimento. O mundo deveria

ser explicado pelo texto dos sábios e doutores da Igreja. A

morte, mais do que nunca, aparecia como expiação, punição,

lembrança da pequenez do homem face à imensidão do

poder de Deus.

O edifício monolítico católico começou a ser demolido

pelos ciclos de navegações e descobrimentos científicos

promovidos pela nascente burguesia, bem como pelos

cismas no interior da Igreja Católica (incluindo o surgimento

do protestantismo). Isso abriu brechas para que o homem

renascentista fizesse calar a voz de Deus, colocando no

centro a Razão científica. Foi o suficiente para que as

indagações sobre a morte ganhassem crescente

complexidade, em todos os campos do conhecimento, da

arte e da cultura.

Não por acaso, o mais famoso monólogo da dramaturgia

universal começa com uma pergunta absolutamente

essencial sobre vida e morte: “Ser ou não ser, eis a questão”.

Hamlet compara a morte ao sonho, e coloca a possibilidade

do suicídio como forma de escapar às agruras e sofrimentos

do mundo: “Morrer; dormir; só isso. E com o sono – dizem –

extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a

carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente

desejável. Morrer – dormir – dormir! Talvez sonhar. Aí está o

obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte,

quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a

Page 13: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 13 ~

hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão

longa.”

Hamlet inaugurou a subjetividade do homem moderno

ocidental, já órfão das verdades divinas, mas ainda

angustiado frente ao mistério da morte. Hamlet é o primeiro

herói moderno por ser, ao mesmo tempo, trágico e

autoconsciente. É o primeiro a observar, com ironia e

horror, não apenas a sua própria obsessão (o mandado do

fantasma de seu pai: matar o tio assassino e usurpador do

trono), mas também as consequências de seus atos. É

também o primeiro a se envolver até a morte num ritual de

expiação, pessoal ou comunal. Com Hamlet, a morte torna-se

um assunto de dimensão psicológica.

Também nesse campo, como em todos os outros, o

homem moderno angustiado e órfão da fé volta-se para a

Razão, em busca de soluções. A morte é transformada em

assunto científico e pesquisa de laboratório. É mil vezes

explicada, adiada, constrangida.

No século 20, o Estado totalitário (Stalin, Hitler, Mao)

cria a morte industrial, em imensos campos de extermínio;

os Estados Unidos inauguram a morte nuclear (Hiroxima e

Nagasáki). Em outra vertente, pesquisas biotecnológicas

prometem prolongar espetacularmente a vida média dos

cidadãos, em algumas décadas; a criogenia cria métodos de

conservação indefinida dos corpos, com possibilidade de

ressurreição e acoplamento de cérebros a máquinas;

ninguém duvida de que a ciência encontrará uma solução,

cedo ou tarde, para a epidemia da Aids ou quaisquer outras,

como a Sars.

A morte passa a ser uma ilustre dama, cortejada pelos

laboratórios de guerra e seus irmãos gêmeos da indústria

farmacêutica.

Mas, como ela acontece em nosso cotidiano

contemporâneo? O que é a morte para nós, após todas as

“experiências” totalitárias do século 20, incluindo a ameaça

Page 14: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 14 ~

do holocausto nuclear durante a Guerra Fria? Como nós,

concretamente, nos relacionamos com a morte?

O presente trabalho de Giselle Marques é muito

importante e oportuno, por recolocar questões e ao mesmo

tempo oferecer indicações preciosas para reflexões

aprofundadas sobre o tema. A pesquisa ficou ainda mais rica

pela escolha dos entrevistados, que fazem parte de mundos

tão diversos (jornalismo, psiquiatria, psicanálise,

empresariado). Elas oferecem um panorama singular. A

própria Giselle aponta para as dificuldades de encontrar

fontes teóricas ou mesmo trabalhos empíricos sobre o tema

“morte” na perspectiva abordada por ela. Isso, certamente,

já reflete o tabu que a cultura ocidental ergueu sobre um

tema em geral considerado indesejável e “maldito”. Por tudo

isso, o seu trabalho, certamente corajoso e incomum, é

muito bem vindo.

Concluo com uma saudação a Giselle e a todos os seus

leitores, derivada do sânscrito: “Namaste!”. Seu significado é

muito profundo. Tomado ao pé da letra, quer dizer: “Eu me

curvo diante de ti”. Mas, alguns praticantes do budismo

preferem um outro significado, muito mais criativo e...

vital!: “Que os deuses dentro de mim sorriam para os deuses

dentro de ti”. E a vida continua.

Page 15: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 15 ~

Apresentação

Por Giselle Marques

O Brasil registra um milhão de óbitos por ano e a

humanidade se transforma em estatística a cada dia. No

município de Campinas o número de funerais gira em torno

de 600 por mês e desses, a morte violenta abate 130.

O inverno atinge grande parte das pessoas mais velhas

com suas gripes e pneumonias. Os mais jovens se matam no

trânsito e a cura do câncer precisaria ser vendida em

comprimidos nas farmácias. Existem falecimentos de

maneiras inusitadas, como um senhor que estava colhendo

manga para os netos quando caiu da árvore: não resistiu aos

ferimentos.

Alguns procuram a inexistência em lâminas e cordas.

Entre tantos falecimentos existem profissionais

especializados e experientes para lidar com a morte, seja

para cuidar de um moribundo, melhorar a coloração de um

corpo sem vida ou construir túmulos.

Os rituais existem para simbolizar o fim da vida. Com o

tempo, os funerais foram modificados. O maior motivo para

as mudanças é o avanço da medicina que permite o

prolongamento da vida ou do sofrimento.

Se velar um corpo na sala da própria casa era comum,

hoje, com as famílias dispersas, a correria das grandes

cidades, prédios e elevadores, o mercado funerário se

aperfeiçoa a cada dia para cuidar de todos os detalhes.

Ao conviver com o sofrimento e a morte alheia,

enfermeiros, médicos, sepultadores, floristas, diretores e

agentes funerários precisam enfrentar o preconceito de

quem não entende que o trabalho consiste em amenizar o

choque causado por aquilo que é iminente, o fim.

Page 16: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 16 ~

Da mesma maneira que o proprietário da mais

tradicional funerária de Rio Claro, no interior do estado de

São Paulo, descobriu como vender aquilo que ninguém quer

comprar, este livro-reportagem procura desvendar

realidades pouco exploradas na sociedade ocidental onde

homens e mulheres fazem de conta que esqueceram a

limitação da própria existência.

Discutir o sexo com quem fez voto de castidade é como

debater a morte com quem fez voto de eternidade. E o ser

humano, portador de uma vaidade quase insana, parece não

admitir que um dia terá que se ausentar deste mundo.

Seria um equívoco afirmar que não existe material

algum sobre o assunto, mas é muitas vezes escondido da

mídia de massa ou de difícil e complexo acesso. O fim da

vida é um assunto vasto e que atinge a todos,

indiscriminadamente. A vida está repleta de morte e as

pessoas tentam explicá-la e simbolizá-la de várias maneiras

nos filmes, novelas, pinturas, charges, livros e jornais.

Os relatos contidos neste trabalho são de pessoas que

vivem e convivem com o sofrimento, seja nas patologias que

matam, na fatídica certeza dos acidentes ou nos constantes

rituais fúnebres.

Empresários e profissionais que trabalham para

simbolizar a morte fazem deste livro um material que fala

de dor, saudade e lucro.

Para marcar a importância da qualidade dos velórios, há

cinco anos o Centro de Tecnologia em Administração

Funerária (CTAF) organiza a Funexpo, uma exposição

funerária que de dois em dois anos traz novidades e

tradições, reunindo empresários do Brasil e do mundo.

Diferentes personagens foram selecionados para a

realização da pesquisa: o rapaz que teve seu último dia de

vida relatado pela mãe e irmã depois de 10 anos de sua

morte; o jornalista que noticiou guerras e depois enfrentou

as próprias aflições na terapia; a enfermeira que precisou

Page 17: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 17 ~

lidar com a morte de crianças e o profissional que tentou

organizar o tumulto no Cemitério da Saudade quando

aconteceu o sepultamento do prefeito de Campinas, Antônio

da Costa Santos, o Toninho do PT, assassinado em 2001.

Ao analisar materiais publicados em livros, sites,

revistas, filmes e programas de televisão, foi possível

observar a ausência de aprofundamento na abordagem de

temas relacionados à morte.

O longa-metragem que pode retratar a vida dos agentes

funerários é o filme Sábado, de Ugo Giorgetti. Em uma das

situações do filme, três pessoas vivas ficam presas dentro

de um elevador com uma pessoa morta. Dois homens são

agentes funerários e a mulher é uma publicitária

interpretada por Maria Padilha, que repete em desespero:

“Eu preciso acreditar em Deus!”.

Existem teses e filosofias que explicam o fim da vida,

mas pouco é dito sobre o dia-a-dia de quem não tem tempo

para aprender filosofia ou fazer terapia, mas que trabalha

em constante contato com o sofrimento das pessoas. No

mercado, são poucos os cursos que preparam o profissional

para a necessidade de lidar, de forma humana e não técnica,

com a presença e o tabu da morte.

As fontes para o livro-reportagem foram escolhidas de

acordo com a profissão: o jornalista José Arbex Jr. que

conviveu durante anos com guerras e mortes; a psicanalista

Adriana Fiori que realizou uma pesquisa, a pedido do

Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), com 50

famílias que tinham perdido parentes em acidentes no

trânsito de São Paulo; o empresário Valdemar Bresciani que,

contrariando a tradição de funerárias familiares, desde 2000

é proprietário de uma fábrica de urnas em Santa Catarina (a

urna vendida para o funeral do jornalista Roberto Marinho

foi feita na empresa Irmãos Bresciani).

Além das fontes citadas, foram feitas visitas pessoais

em algumas funerárias, cemitérios, serviços de emergência e

Page 18: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 18 ~

residências para que a realidade do dia-a-dia desses

profissionais pudesse ser vista de perto, não somente por

relatos. Nem todas as fontes puderam estar presentes na

narração deste livro, mas cada uma delas foi importante

para possibilitar maior conhecimento na elaboração das

pautas.

Uma das fontes é meu pai, o que não tira a importância

jornalística do fato é que conheci a história da minha

família paterna no término das entrevistas para este livro.

Eu sabia vagamente que muitos morreram por causa da

doença de chagas. Mesmo depois da entrevista, que não foi

facilitada pelo fato da fonte ser meu pai, percebo que ainda

sei muito pouco sobre os acontecimentos, o que não

possibilitou narrar a história com domínio, afinal, Machado

não fala de quem já morreu.

Mesmo ciente da obrigação ética e jornalística de ouvir

todos os lados de uma história, alguns casos não puderam

ser devidamente investigados. A indenização determinada

pela justiça de Rio Claro às 19 famílias que perderam

parentes em um desastre há 10 anos ainda precisa ser paga

a três famílias. Saber os motivos não foi possível por falta

de tempo hábil e patrocínio, mas certamente vários pontos

de vista tiveram espaço neste livro-reportagem, que vai

mostrar uma realidade que poucas pessoas ousam saber.

A narração não obedece a uma ordem cronológica, vai e

volta no tempo de acordo com os fatos que se interligam. As

duas cidades abordadas para tratar do tema são Rio Claro e

Campinas por causa de um acidente ocorrido há 10 anos na

Rodovia Fausto Santomauro, a SP-127.

Dois grandes veículos se chocaram. O motorista do ônibus

era de Rio Claro e o motorista do caminhão-tanque era de

Campinas. O desastre foi comparado a uma situação de um

ônibus que cai de uma altura correspondente a nove andares.

O acidente é narrado em sete dos dez capítulos do livro.

São abordados os vários estágios da tragédia, desde a

Page 19: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 19 ~

cobertura jornalística, quando os repórteres conseguem,

muitas vezes, chegar antes do socorro especializado, até os

protestos de rio-clarenses e o trabalho de alguns políticos

pela duplicação da SP-127.

Depois do título de cada capítulo foram escolhidas

citações de livros e músicas que refletem dor ou nostalgia.

No primeiro capítulo a frase citada foi retirada de um artigo

de jornal sobre a tragédia de 20 de maio de 1994. O artigo

foi recortado e guardado durante dez anos por Simone, irmã

de Odajyl Pessoa, vítima fatal do acidente ocorrido na

SP127. A escolha de poetas, escritores e músicos com menos

de 100 anos de idade a partir da data de nascimento foi pré-

requisito.

Page 20: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 20 ~

“Tenta pensar na morte. Tenta realmente pensar nela. Tu

não tem que imaginar o teu caixão, ou tua cabeça

esparramada num asfalto, nada disso, não é assim que se

faz. Apenas imagina o mundo sem a tua presença. Imagina o

teu cachorro começando a sentir tua falta depois de uma

semana. Imagina os teus 146 CD‟s repousando na estante, e

teu irmão indeciso quanto ao que fazer com eles agora que

tu já não existe. Todas as tuas coisas, e especialmente a

expressão das pessoas que tu ama ao se perguntarem o que

farão com elas, as tuas coisas. Imagina teus amigos

lembrando os melhores momentos que passaram contigo,

imagina teu melhor amigo numa mesa de bar com outros

amigos propondo, num lapso, que alguém telefone pra ti e te

convide pra beber com eles. Imagina o silêncio que se

segue”.

Previsões de ano novo feitas nas entranhas de

um porco, Daniel Galera

Page 21: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 21 ~

Capítulo I

O Que Você Vai Ser Quando Morrer?

“O céu pesado, nebuloso, da última sexta -feira,

parecia prenunciar a tragédia que estaria para

desabar sobre a cidade no início da noite”

Maria Aurélia G. Silva - 25/5/94

Sexta-feira. Maio de 1994. Céu nublado, temperatura

amena. Odajyl Pessoa abriu os olhos, acordou e se vestiu.

Não sabia que aquele era o último dia de vida dele e de

alguns amigos que entraram no mesmo ônibus. Jyl, como era

conhecido em Rio Claro, era um rapaz de 23 anos: moreno,

forte e carismático. Trabalhador, paquerador, sonhador.

Estava no último ano da faculdade de Matemática da

Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Tinha três

irmãs e um irmão, pai, mãe, sobrinhos e amigos.

Uma reunião na Condor Engenharia, onde Jyl trabalhava,

aconteceu na manhã do dia 20 de maio de 1994. Jyl

participou do encontro, mas não trabalhou no restante do

dia. Fez coisas incomuns.

Visitou os sobrinhos e brincou. Foi ver o pai no

trabalho, falou de seu Passat como se estivesse entregando

o carro. Documentação, chaves e mecânica: tudo em ordem.

Passou na casa do sócio, Fábio, para conversar sobre o

futuro.

Jyl e Fábio planejavam abrir um negócio no ramo de

informática. Jyl estava ansioso com a mudança profissional

e desabafou com o sócio: “Hoje é o dia mais feliz da minha

vida! Essa vida é boa e curta. A gente tem que aproveitar os

bons momentos. Uns abrem a porta da tristeza e outros

Page 22: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 22 ~

abrem a porta da alegria. Eu, por exemplo, encontrei hoje a

chave da porta da felicidade”. Naquele momento, ninguém

entendeu.

Depois de 10 anos a família Pessoa relembra, durante a

entrevista, a forma com que os avisos sobre a morte de Jyl

chegavam. Enquanto isso, em Campinas, a experiente

enfermeira Carla Fiori trabalha e sabe quando um doente

terminal está preste a morrer. Não de forma sobrenatural,

mas pelo cheiro rançoso e pela aparência.

Jyl não percebeu claramente a própria morte. Ele faleceu

por causa de um acidente, um pouco depois das sete da

noite, a caminho da faculdade. Ao completar 10 anos da

ausência de Jyl, a mãe (Constância) e uma das três irmãs

(Simone) contam como o dia dele transcorreu, com

acontecimentos e palavras que parecem confirmar que algo

o atingiria.

Corredores, aventais, agulhas, sangue, macas, feridas,

curas e óbitos. Com diferentes perspectivas, mas com a

mesma realidade de lidar com o sofrimento alheio, os

profissionais da saúde precisam conviver com a morte. São

doenças e doentes terminais, acidentados, enfartados e

algumas pessoas que conseguem sair de uma complicação

para viver por mais algum tempo.

Com 22 anos de experiência profissional na área da

saúde, Carla Fiori demorou a entender alguns sentimentos

em relação aos dramas que tinha que ver e conviver. Hoje

ela é enfermeira do Centro de Atendimento Integral à Mulher

da Unicamp (Caism).

O primeiro contato de Carla com a aparência da morte

foi na faculdade, onde tanques com pedaços de corpos,

chamados de peças, estavam à disposição para o estudo

prático do corpo humano. O cheiro de formol entrou nos

olhos, no nariz e na garganta: “O primeiro contato foi com

aquela carne rígida e gelada”. Ela respirou fundo e pensou:

“Eu tenho que pôr a mão, eu tenho que ir pegando”.

Page 23: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 23 ~

Passado o impulso de soltar a carne escura, Carla

terminou o curso na Puc-Campinas, obteve o diploma e se

especializou. Enfrentou situações que vão além do cheiro de

formol. Ela aponta que a maioria dos cursos na área da

saúde não prepara emocionalmente os alunos para

enfrentarem a morte, mas Carla parece saber lidar com tais

situações e explica que a calma que sente diante de doentes

terminais é um exemplo que foi ensinado por sua mãe, que

era espírita e que soube se despedir do mundo e da família

de forma tranquila.

Quando Carla estudou Enfermagem, a única disciplina

que poderia dar suporte emocional para os alunos era a

Psiquiatria, pois a professora de aula prática levava os

estudantes para o manicômio. Com a experiência, Carla

concluiu que é mais difícil lidar com a loucura do outro do

que com cadáveres em laboratórios de anatomia. A

possibilidade de se identificar com um corpo sem vida é

remota, mas ao perceber as atitudes exacerbadas de uma

pessoa considerada louca, Carla sentiu medo.

Observar a insanidade mental da pessoa que passa o dia

inteiro “catando papel” no manicômio pode trazer o receio

de que um dia isso possa acontecer com qualquer um que

tenha algo interno a ser resolvido, como a mania de

limpeza, o excesso de organização ou qualquer outro hábito

que, ao ser intensificado, se torna uma doença digna de

tratamento psiquiátrico como, por exemplo, o medo extremo

que pode se transformar em Síndrome do Pânico.

Quem opta pela enfermagem conhece que a essência da

profissão é cuidar de pessoas que estão doentes. Carla

escolheu ser enfermeira, pois não quis cursar Medicina por

causa do estereótipo do médico endeusado, onipotente e de

difícil acesso. O desejo de Carla era exercer um perfil

diferente do profissional de saúde prepotente e distante.

Hoje, ela admite que poderia ser uma médica diferente de

muitos que mal perguntam o que o paciente está sentindo.

Page 24: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 24 ~

No período em que ainda era estudante, ela não pensou

na morte como algo objetivo, mas sabia que o fato estava

implícito. Sem sentimentos mórbidos em relação ao assunto,

quando Carla precisa parar em um acidente, o que a move

não é a curiosidade, mas a vontade de ajudar.

Se pensar na morte alheia é algo tranquilo para Carla, a

ideia do próprio fim apareceu com o passar do tempo:

“Quando alguém tem 20 ou 30 anos, existe a sensação de

que é eterno, por isso, a ansiedade de um jovem não é

transferida para o óbito, mas para as patologias da criança,

do adulto, do velho e do doente mental”.

Além de ter estudado Enfermagem na Puc, Carla Fiori é

formada pela Escola Superior de Enfermagem D. Ana Guedes,

na cidade de Porto, em Portugal. Grande parte da

experiência de Carla é voltada para a saúde do idoso e a

vocação pode ser explicada por um fato ocorrido na época

do estágio feito no Hospital Celso Pierro, no começo da

década de 80. Foi o primeiro contato com a morte de uma

criança e, segundo ela, “uma experiência péssima”.

O hospital estava em reforma e Carla precisou fazer a

transferência de um bebê de oito meses com uma séria

cardiopatia. Ele tinha alergia a tudo, sobrevivia com ajuda

de aparelhos, não comia a comida do hospital e a mãe tinha

que lavar o lençol do bebê na própria casa. No dia em que o

pintor estava chegando perto do quarto da criança, deram

uma ordem para que Carla a transferisse. E Carla, “como

estudante idiota, boba e tonta, mão de obra barata”,

concordou. Preparou o local que ia receber o bebê, pegou o

oxigênio, o carrinho de emergência e deixou pronto tudo o

que era preciso. Desconectou a criança dos aparelhos para

atravessar um corredor de cinco metros e, quando chegou

no outro quarto com o berço, o bebê “parou”.

Mesmo com o coração parado, existe a tentativa de

reanimação e a esperança de que não ocorra um óbito, então

“foi aquela correria”. A equipe ficou cerca de duas horas

tentando reanimar a criança que voltava e parava, voltava e

Page 25: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 25 ~

parava. Enquanto a equipe de enfermeiros e médicos tentava

reanimar o coração do bebê, a mãe ficou do lado de fora

esperando.

Depois que a equipe desistiu da reanimação, já que o

bebê não voltava, a mãe pegou Carla “pelo colarinho” e a

chamou de assassina. Emocionalmente, enfermeira não ficou

bem depois do óbito do bebê, mas conseguiu entender que a

responsabilidade não era dela.

Racionalmente, a criança não tinha saúde para continuar

viva e a transferência não poderia ser feita por uma

estudante. Não porque um profissional faria o trabalho de

forma diferente, mas pela responsabilidade, para poder

responder pela morte de uma pessoa.

Depois do trauma, Carla não sofreu punição ou

demissão dentro do hospital porque, de qualquer forma, “a

criança não sobreviveria por muito mais tempo”.

Carla faz análise e sabe que a terapia é um cuidado que

os profissionais da saúde esquecem de procurar. Como

enfermeira, ela é um depósito dos problemas dos outros:

“As pessoas vomitam os problemas em cima da gente de

uma forma muito fácil”. Por ficar tanto tempo ao lado dos

pacientes, o profissional de enfermagem é treinado para

cuidar do doente. Fato que nem sempre acontece, como nos

casos de preconceito. Há alguns anos, um dos grandes tabus

era ser mãe solteira.

Ter um filho sem estar com o marido ao lado podia

significar ser mal tratada dentro dos hospitais. Carla não

concorda com a discriminação, mas admite que isso é comum,

“infelizmente”. O preconceito atinge questões como raça, credo

e sexo. “As prostitutas são as maiores vítimas da negligência de

quem não respeita as diferenças”. O mais comum é ouvir

profissionais dizendo: “Ah, merece sofrer mesmo, é prostituta!”.

Há também os presos e sentenciados: “Se um preso ou

prostituta está para morrer, os profissionais os deixam

sozinhos, ninguém fica perto”.

Page 26: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 26 ~

Por causa da religião, que não permite a transfusão de

sangue, a discriminação atinge as Testemunhas de Jeová. Se

uma mãe não permite a transfusão de sangue no filho, ela é

“crucificada” pela equipe. Alguns tentam liminar judicial

para poder obrigar a criança a receber sangue. Carla é

categórica: “Eu sou radicalmente contra. Isso é

discriminação, pois é o que a mãe quer, é o que ela acredita.

Na crença dela, ela está protegendo e sendo a melhor mãe

do mundo como eu acho que estou sendo a melhor mãe do

mundo na hora que eu autorizo uma transfusão para o meu

filho. Quem sou eu para julgar?”. Antes de qualquer

situação, Carla enxerga no paciente um ser humano que

precisa de cuidados e respeito.

Não é possível aliviar o sofrimento de ninguém, mas é

possível ser solidário. Para diminuir o padecimento de um

doente, padecer junto não é o melhor caminho, basta

compreender: “não apenas com palavras de conforto ou

tapinhas nas costas „ah, fica tranquilo, tudo vai dar certo‟,

isso é uma puta sacanagem! É uma sacanagem que não tem

tamanho”. Carla compreende a dor, escuta e deixa a pessoa

falar. O mais apropriado é ficar disponível e dizer: “pode

contar comigo”.

A piedade é um sentimento requisitado por pessoas

doentes e seus familiares, mas ter dó do paciente é um

comportamento nocivo. A primeira vez que Carla percebeu

este tipo de atitude foi quando, com pouco mais de dois

anos de experiência como enfermeira, cuidava de uma

senhora que teve um Acidente Vascular Cerebral (derrame).

A senhora, que tinha 70 e poucos anos, estava

hospedada na casa da filha: “uma mulher casada, com filhos

e marido”. Um dia, a filha da idosa inválida acusou Carla de

ser uma profissional fria. Carla é taxativa em sua afirmação:

“Eu não sei sentir dó de uma pessoa. A filha da senhora

inválida não sabia lidar com aquela situação e queria que eu

passasse a mão na cabeça dela e dissesse „ah, coitada, olha

só, sua mãe estragou sua vida‟. Eu não disse nada”.

Page 27: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 27 ~

Carla trata os pacientes em coma da mesma forma que

cuida de alguém que está consciente. Cumprimenta, fala da

aparência, conversa e pede licença para pegar no corpo:

“Tem que ter o respeito à privacidade, ao corpo da pessoa

que a gente está cuidando, esteja ela consciente ou não. Eu

digo sempre ao paciente o que vou fazer, tipo „agora vou

dobrar sua perna, vou esticar seu braço‟...”. A atitude é

explicada por ela com base em estudos que comprovam que

o uso da linguagem não está separado da técnica: “Como eu

acredito que o inconsciente está gravando tudo, desde a

fecundação até a morte, então eu acho que está valendo. Não

importa se está em coma ou não. A área da neurologia tem

muito a descobrir. Eu não vou correr o risco de desrespeitar

uma pessoa, mesmo ela estando em coma”.

O Brasil é um país de muitas cores e faces, por isso,

nenhuma crença pode declinar a aceitação do sincretismo

religioso. Para Carla Fiori, brasileira, não é diferente. De

educação cristã e orientação espírita, ela cai em contradição

e não acredita que somos a imagem e semelhança de Deus:

“A tentativa de tornar Deus um humanóide seria fruto da

falta de imaginação do ser humano”.

Para Carla, Deus é a energia criadora do universo que

está ligada com as leis da física e da química, não uma

entidade com consciência que manipula os acontecimentos.

Às vezes, ela acredita na vida após a morte, às vezes, não:

“É muito confuso, acho que depois nos tornamos energia”.

O pai dela morreu há dois anos e a mãe há seis. Mesmo

assim, quando sente saudades da presença materna,

conversa e pede ajuda. Desta maneira, ela faz exatamente

aquilo que acha que não existe. Se a mãe dela morreu, o

corpo está decomposto e a energia presente no universo: “É

uma contradição absurda, mas eu estou bem com a minha

contradição”.

Carla faz de conta que conversa com os pais para aliviar

a saudade pois, como ela insiste em dizer: “Saudade dói,

saudade dói”. Lidar com a dor de forma madura, não

Page 28: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 28 ~

lamentar, entender a morte como um presente e não como

uma punição é o que ela faz: “O problema da morte é para

quem fica, não para quem morre, então, quando sou eu

quem fica, como no caso de pessoas que eu tenho

envolvimento emocional, eu sinto saudades”.

Durante a entrevista, Carla salientou a diferença entre a

percepção que seus dois filhos têm da morte. Thiago tem 17

anos de idade e convive com o sofrimento alheio de forma

tranquila. Aos oito, no velório do avô paterno, Thiago quis

tocar o corpo dele com todas as mãos e estranhou a ausência

de sapatos no ente querido. Atualmente ele diz que, quando

tiver que ser enterrado, quer estar vestido de bermuda e sem

sapatos, como aconteceu com seu avô, que pôde contar com a

presença do neto ao lado da cama nos últimos dias de vida.

A filha mais velha da enfermeira Carla, Ana Paula, tem

conhecimento sobre os primeiros socorros e sobre os

procedimentos que devem ser feitos em caso de acidentes,

mas tem pavor do que a mãe precisa ver no dia-a-dia: “Não

gosto de sangue, o sangue significa vida, então, se você está

perdendo sangue, você está perdendo sua vida. Eu não sou

Deus, então eu fico apavorada. Eu queria pegar uma pá,

colocar o sangue para dentro e fechar”.

Ana Paula quer se formar em estatística. Gosta de

números, pesquisas e porcentagens. Evita ficar perto de

pessoas doentes e as procura quando estão melhores: “Eu

vejo a pessoa acabada e não gosto de gente que reclama, não

tenho paciência”. Ana Paula tem um jeito jovem e alegre que

contagia, fala rápido e usa muitas gírias. Estuda, tem amigos

e não gosta de agulhas. Beber antes de dirigir? Nem pensar!

A filha de Carla sabe que é preciso tomar cuidado para não

morrer: “A gente cresce sabendo que o cachorrinho morre, o

passarinho morre, seu avô morre, seus pais vão morrer.

Você vai sendo preparada para isso e um dia você vai

morrer, seus filhos e netos vão te enterrar. Não paro e penso

„vou morrer‟, se eu morrer eu morri, e daí? Vou viver o hoje

e também pensar no meu futuro”.

Page 29: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 29 ~

Capítulo II

A Hora da Misericórdia

"Pelos quatro cantos da terra, a morte, a

discórdia, a ganância e a guerra. E a guerra"

Carta aos missionários - C. Galvão, M. Hayena,

N. Nunes

Jyl continua agitado. À noite ele teria que fazer uma

prova na faculdade. Cadernos em mãos. Corpo na sala.

Desconcentrado da tarefa que tinha pela frente, a audição

despertou para o barulho que vinha do rádio. A mãe de Jyl,

Constância, ouvia um programa religioso com atenção. Era a

Hora da Misericórdia, três da tarde do dia 20 de maio de

1994.

Aquele era o momento do dia para se concentrar com fé

e pedir uma graça, explica Constância para Jyl. Ele se curva

para frente com o caderno no colo e faz seu pedido em

silêncio.

Agosto de 2003: ao trazer da memória o último dia de

Jyl, Constância chora. Pede um lenço para a filha Simone,

professora de artes marciais e dona de uma doçura sublime.

Ela cuida dos detalhes com a mãe que acabara de sair do

hospital. Constância fez a segunda cirurgia no coração. A

primeira foi há 30 anos.

Na sala, o televisor está envolto de porta-retratos. Jyl está

entre eles. Foto de rosto. Na parede, um quadro com a figura

de Jesus Cristo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Religião e fé ajudam a diminuir o sofrimento. Para

Simone, que acredita em Deus e vai à missa, a crença foi

Page 30: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 30 ~

positiva quando precisou enfrentar a dor de perder um

irmão. O padre de uma igreja de Rio Claro a ajudou com

palavras de conforto e fé. Simone estava deprimida. Na

religião e na igreja ela encontrou acalento.

Enquanto alguns buscam a existência de Deus, outros

preferem encontrar respostas no conhecimento empírico.

Não por desrespeito às religiões, mas por ter uma

personalidade contestadora como a do jornalista ateu José

Arbex Jr.

Arbex escreveu mais de 25 livros e presenciou fatos

históricos que não deixam dúvidas sobre sua experiência.

Ele era correspondente internacional da Folha de São Paulo

quando o muro de Berlim foi ao chão. Além de ter visto a

história do mundo acontecer, Arbex tem o privilégio de

poder contar como foi entrevistar personalidades como

Mikhail Gorbachov, Ulisses Guimarães e Peter Gabriel.

Jornalista, escritor, professor e doutor em História

Social pela Universidade de São Paulo (USP), Arbex se

entregou à profissão de jornalista e enfrentou situações de

extremo perigo, como estar dentro de um avião que era alvo

de míssil. Hoje, aos 47 anos, o taurino com ascendente em

capricórnio é editor da revista Caros Amigos, membro do

Conselho Editorial do Jornal Brasil de Fato e professor da

Puc em São Paulo.

Na tentativa de entrevistar Arbex, o primeiro contato

para a entrevista foi feito por e-mail em um sábado de

carnaval. A questão era a morte. O retorno veio quase que

imediato. Nascia, então, a fonte que mais inspirou a

continuação deste livro-reportagem.

Em letras minúsculas, a resposta explicava o mínimo:

“Presenciei várias vezes a morte, de vários pontos de vista.

No Paraguai, fui ameaçado de morte pelo ditador Stroessner

(1986). No Haiti, estava em uma barricada quando um

manifestante foi atingido por balas de metralhadora ao meu

lado, podia ter sido eu (1986). No Afeganistão, viajei em

Page 31: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 31 ~

avião soviético que era alvo de mísseis sting de muçulmanos

(1988). Na Armênia, presenciei milhares de corpos após um

terrível terremoto. Em Pequim, convivi por 40 dias com

estudantes na Praça da Paz Celestial, muitos dos quais

massacrados em 04 de junho de 1989. Na Romênia, cobri os

resquícios dos combates que derrubaram Nicolau Ceaucescu.

Ainda vi mães rezando por seus filhos diante de velas

acesas em Bucareste (1989). Na Palestina, fui várias vezes

medido por soldados portando fuzis, além de ter

permanecido sob cerco de tanques de guerra em um

hospital, em Ramallah (2002), fora acidentes pessoais, como

dois capotamentos. Mas isso, não sei se conta...”.

Nos dois acidentes pessoais, ninguém morreu, ninguém

se machucou. O carro ficou literalmente pendurado em uma

árvore, à beira de um precipício de uns 50 metros. Arbex

nunca achou que ia morrer e diz que tem o corpo fechado:

“Vou morrer aos 94 anos, em 2051. Em 2050 vou dar minha

última palestra para uma moçada adolescente e contar como

foi a queda do muro de Berlim”.

A afirmação não é à toa. Nunca foi internado nem

passou por cirurgias. Evita médicos alopatas e, quando

necessário, procura se tratar com homeopatia ou

acupuntura: “Acho que a medicina está equivocada, ela parte

de uma divisão entre carne e espírito. Eu não acho que

existe essa divisão. A doença não é uma manifestação de um

órgão doente, a doença é a interrupção da energia vital. A

doença mais grave que eu tive foi gripe”.

A juventude e a disposição do jornalista advêm do

entusiasmo que sente pela vida: “Eu só vou ficar doente no

dia em que eu perder o entusiasmo. Não me sinto com 47

anos, me sinto com 20. O dia em que eu fizer algo sem

entusiasmo, vou considerar que estou mal. Aí eu acho que

vou estar perto da morte”.

Apesar da resistência em falar da vida pessoal, Arbex foi

se deixando conhecer. Até que a persistência deu lugar à

realidade. Estava frente-a-frente com o jornalista de guerra

Page 32: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 32 ~

que já entrevistou com exclusividade personalidades como

Iasser Arafat e François Houtart. Aqui ele fala da morte, vida

e terapia.

A risada é contagiante, quase hipnótica. Arbex não bebe

e não se droga, gosta de estar sóbrio. Apesar da coragem

explícita em sua profissão, já sentiu medo de morrer

quando, no Afeganistão, o avião em que viajava era alvo de

míssil. Ele achou que seria o fim. Mesmo tenso, conseguiu

dormir enquanto os outros bebiam. Estava no avião com

mais 20 correspondentes. A coragem, invejável para

qualquer profissional ávido por notícias, existe para Arbex

quando ele sente que é dono dos próprios passos: “O

negocio é assim, se você está no chão, na barricada, você

pula, rola, sai correndo, faz qualquer coisa, mas dentro do

avião não. No avião você depende do piloto”.

Ao desafiar poderes, o jornalista foi capaz de trazer à

tona notícias de várias partes do mundo. No Haiti, mesmo

quando um manifestante foi metralhado ao seu lado, Arbex

não desistiu. Na época, toda forma de comunicação estava

fechada no país: “Fui para a central do correio do Haiti, o

telex. Na porta tinha um sentinela armado com um fuzil e

que ficava andando de lá para cá, na porta. Eu esperei ele

me dar as costas, entrei na central do telex e comecei a

escrever a notícia”. Se fosse pego, seria assassinado. Mas

sentiu o corpo fechado:

“Eu não sei, é muito estranho o que acontece. Eu fico

com o sangue frio, totalmente tranqüilo”. Arbex escreveu a

reportagem sem rascunho. O texto saiu perfeito. Ele é capaz

de escrever um livro em três semanas. Entre tantas notícias,

Arbex se comove: “A hora que mais me comovi foi quando

conversei, em 2001, com as crianças na Palestina. Foi quase

insuportável ver crianças sendo assassinadas por um

exército ocupante e não ter o que dizer a elas. É barbárie

humana, não é terremoto, é gente provocando mortes”.

Quando presenciou o terremoto que matou 10 mil

pessoas na Armênia, Arbex constatou de perto a força da

Page 33: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 33 ~

natureza: “Ali eu senti a impotência da espécie humana, tão

vulnerável e frágil. A vida é um acaso”.

Ele admite que fez sua carreira cobrindo

jornalisticamente o sofrimento dos outros. Hoje, Arbex não

se sente à vontade para falar da dor alheia: “É um conflito

ético que surgiu na Palestina”. Ao desvendar as mazelas

alheias, ele acreditava que fazia bem à comunidade.

Depois de analisar os fatos, Arbex acredita que falar da

morte dos outros é uma espécie de violação da intimidade.

Demorou algum tempo para chegar a essa conclusão.

Em 1999, houve um simpósio na Puc chamado O

Estrangeiro. No encontro, Arbex pôde ouvir alguns

psicanalistas. Uma delas, em particular, fez a diferença na

vida do jornalista que destrinchava publicamente o conflito

na Iugoslávia e a guerra civil na Bósnia.

Depois de todo o debate, a psicanalista iugoslava disse

ao jornalista brasileiro: “Eu sei de tudo isso o que você

falou, só que eu não falo, eu fico quieta porque eu acho

muito violento falar da morte de outras pessoas”. Arbex não

entendeu e tentou argumentar: “Se ela não fala, como as

pessoas vão saber o que acontece?”. Na época, ele julgou

aquele silêncio como algo idiota, mas em 2001 ele entendeu:

“A morte é um sentimento intransponível. É como se, ao

falar da morte, o mistério que ela representa fosse

banalizado. Explicar o próprio fim não é problema porque

você é responsável pelo seu mistério, mas não tem o direito

de banalizar o direito do outro”.

O receio de Arbex é que, quando alguém expõe a morte

alheia sem o devido respeito, tudo se torna unicamente uma

estatística.

Arbex fez terapia durante uma década e parou por

acreditar que está pronto para elaborar internamente o que

foi analisado. No início, fazer terapia representava uma

fraqueza, mas depois de quatro anos de análise, o

preconceito deu lugar ao entendimento das próprias aflições.

Page 34: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 34 ~

Foi em 1990, quando ele estava em Paris, que percebeu

que precisava de ajuda. Arbex estava na França para cobrir

uma conferência europeia: “Comecei a me sentir muito mal,

solitário, aí eu pensei comigo mesmo: „Oh cidadão, é o

seguinte: você estava mal e Nova Iorque, você culpou o

capitalismo. Você ficou mal em Moscou, você culpou o

socialismo. Agora você está mal em Paris, qual o seu

problema? Você vai culpar quem? Os Campos Elíseos?‟ Aí eu

encarei que eu tinha um problema”.

Ele estava vivendo um mundo absurdamente intenso no

ponto de vista das transformações políticas, revoluções,

morte e luta. Com a carreira de jornalista em ascensão, ele

percebeu que havia uma discrepância: “Minha vida virou um

vazio preenchido por coisas que não eram pessoais, eram

acontecimentos, então eu tive uma vida de acontecimentos.

Ninguém vive desse jeito. Aí eu achei que estava na hora de

procurar a psicanálise”.

Um dos problemas do jornalismo é que, para Arbex, não

houve diferença entre vida profissional e pessoal: “Em tese,

o jornalista não deve se envolver emocionalmente com os

fatos e tem que ser objetivo. Eu nunca consegui fazer isso,

eu me envolvo emocionalmente e manifesto minha posição.

Isso produziu um desgaste psicológico muito grande. Eu fico

puto, participo, vou para as manifestações. No final de tanta

coisa aconteceu um desgaste emocional que até hoje eu não

avalio direito”.

O assunto sobre morte foi discutido na terapia porque

Arbex percebeu que, enquanto era relativamente fácil falar

do fim da vida dos outros, era muito difícil falar da morte

de alguma coisa dentro dele: “A morte na minha vida era

uma coisa difícil. Então eu estava sendo hipócrita. Como é

que eu falo da morte de todo mundo e não das coisas que

têm que morrer comigo? E as coisas que eu tenho que matar

dentro de mim? Como é que eu vou lidar com isso? Na

psicanálise”.

Page 35: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 35 ~

Capítulo III

Um Nove Dois

"Meu anjo, eu sei que é duro esperar, no chão,

tudo terminar. Pois, continuar vivo já não é mais

uma opção. Fácil é virar pó, difícil é a lição" .

Morto - John Ulhoa

Sexta-feira era dia de fazer faxina na casa, mas naquela

tarde Simone estava enrolada com o serviço. Omero, irmão

mais novo de Jyl, costumava contar piadas diariamente

antes de ir para a escola.

Jyl, já pronto para pegar o ônibus que o levaria para a

faculdade, começou a fazer graça. Eles adoravam rir. Um

pouco antes de Jyl sair de casa, Constância pediu para o

filho tirar o tênis. Ela lavaria o calçado para que ele pudesse

usá-lo limpo no final de semana.

Foi então que Jyl respondeu: “Xi mãe, você vai ver como

vai voltar esse tênis hoje”. Passou por Simone e se despediu

rapidamente: “Ele saiu quase sem ninguém ver, eu disse

para ele: „vai com Deus‟, e ele foi”.

Logo depois que Omero e Jyl saíram, Simone e

Constância foram à igreja rezar o terço. Entre sete e sete e

meia da noite, na “Hora dos Mistérios”, Simone passou mal,

perdeu o fôlego e “a vista escureceu”. Constância apenas

sentiu necessidade de rezar sem parar. Em alguns minutos,

Simone estava bem novamente.

Depois de rezar, mãe e filha vão para casa preparar o

jantar. É nesta situação que Fábio aparece. O sócio de Jyl

trazia a notícia: “Aconteceu um acidente com o ônibus do

Odajyl e parece que ele está bem na Santa Casa, vamos lá

que eu levo vocês”.

Page 36: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 36 ~

No caminho para o hospital, Simone acredita que o

irmão vai sobreviver. Com a confusão, foi difícil entrar no

hospital, mas Simone consegue. Desce as escadarias e vê Jyl

passando deitado na maca. Ele estava respirando, mas

inconsciente. Não tinha piche no corpo dele. As outras

vítimas do acidente se misturaram no material asfáltico do

caminhão-tanque que bateu no ônibus. Jyl estava inteiro,

com o peito inchado, a cabeça raspada e cheia de cortes.

Ver o irmão em estado grave depois de sofrer um

acidente é uma lembrança sem possibilidade de descrição.

Por mais que haja maneiras de dizer como foi, apenas quem

viveu uma situação semelhante pode saber o real significado

da dor. É em momentos como esse que muitos profissionais

precisam lidar com o sofrimento alheio diariamente.

São irmãos, pais e mães de pessoas desconhecidas que

precisam de ajuda. A tarefa? Salvar vidas e amenizar dores.

É assim que trabalham todos os dias os médicos,

enfermeiros e motoristas do Sistema de Atendimento Médico

de Urgência de Campinas (Samu).

Sala pequena, móveis antigos, médicos, enfermeiros,

atendentes, ocorrências paradas por falta de ambulância e

um homem tentando consertar algo a marretadas. Assim

estava a sala de atendimento 192 do Samu em uma tarde de

agosto de 2003.

Os atendentes recebem os telefonemas, coletam as

informações necessárias como endereço, gravidade da

ocorrência e, dependendo do caso, acionam uma equipe para

sair com a ambulância UTI.

As constantes chamadas podem trazer notícias como

parada cardíaca, ferimento por arma de fogo, arma branca,

acidentes múltiplos ou desabamentos. Durante o dia, quatro

médicos ficam de plantão, à noite são três.

O Samu recebe 150 chamadas diariamente: são pessoas

que pedem por socorro. Das 11 ambulâncias disponíveis no

serviço, cinco estão paradas. As ocorrências não atendidas

Page 37: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 37 ~

se acumulam em cima da mesa que fica ao lado de um

computador. Cada uma delas é separada de acordo com uma

classificação pré-estabelecida, o maior maço de papéis à

espera de atendimento aponta casos de alcoolismo.

O primeiro a ser entrevistado na tarde ensolarada de

agosto foi o coordenador médico José Roberto Hansen. O

homem, que hoje trabalha na administração do Samu,

explica que o dia-a-dia de atender urgência e emergência é

mais emocionante. Com a missão de socorrer pessoas há

mais de 13 anos, Hansen sabe que, por conta de alguns

segundos, uma vida pode se perder.

Nas emergências, a atenção e a pressa precisam ser

constantes. Das tantas histórias vividas pelo médico, que se

formou no Rio de Janeiro, a mais presente na memória é a de

uma criança que caiu em um poço: “Eu tive que entrar

dentro do buraco sem esperar bombeiro porque não dava

tempo. Nós temos treinamento para resgate em altura e

resgate em poço. Desci e peguei a criança no poço de uns 15

metros, ela quebrou só a clavícula e luxou o ombro”.

Em casos de óbito, Hansen fica emocionado quando a

vítima é semelhante a alguém que ele conhece: “Deparar -se

com uma situação de um falecido que parece um parente

seu, um senhor que parece seu pai, isso é difícil. Eu morava

no Rio de Janeiro e, quando isso acontecia, eu ligava em

casa para perguntar: „E aí pai, tudo bem com você? E a

semana, foi boa? Não está sentindo nada?‟ Dava muito medo

de acontecer com a minha família também”.

Nas situações delicadas em que um médico precisa se

aproximar da família de uma vítima, a atitude varia de

profissional para profissional. Alguns fazem uma prece para

que todos possam se acalmar, outros explicam o que

aconteceu, e existem aqueles que não fazem nada.

Hansen busca esclarecer os familiares: “Explico qual o

motivo da morte e a chance de ter feito algo. Tento acalmar

a família”. Para ele, acidentes na rua são emocionalmente

Page 38: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 38 ~

mais fáceis de lidar pois, na maioria dos casos, a família não

está presente: “Quando é trauma, a situação é ruim porque

você vê um corpo dilacerado na pista, isso choca. Você sabe

que há minutos era uma pessoa que tentava ir para casa, dar

comida para os filhos. Daí a pouco você vê o corpo da

pessoa destroçado em uma pista. Acabou, não é nada, aquilo

não virou nada”.

Acontecimentos trágicos se acumulam na mente de

quem trabalha na área da saúde. No início da profissão,

Hansen contava para a esposa o que presenciava no dia-a-

dia. Com a experiência, ele percebeu que é melhor não falar

do assunto: “Às vezes ela ficava chocada e falava „ai credo,

não quero nem saber‟. Aí percebi que é chato mesmo. A vida

já é cheia de tristeza, não é fácil, não tem muito com quem

dividir”.

No plantão, os profissionais costumam falar sobre

sentimentos para os colegas de trabalho. Quando a

ocorrência é grave, todos conversam entre si: “Na verdade é

um extravasamento emocional”. No natal de 2002, a equipe

se preparava para um culto ecumênico quando recebeu uma

chamada urgente. Chovia muito e uma criança tinha sido

levada pela enxurrada: “Eles até pegaram na mão da criança,

mas ela entrou na valeta e morreu”. Todos ficaram abalados

e voltaram chorando porque não havia o que fazer.

Para melhorar o estado emocional de quem tem uma

atividade desgastante, há mais de um ano os profissionais

do Samu têm à disposição uma psicóloga. Quase ninguém

faz a terapia em grupo proposta pelo serviço. Hansen admite

que o ideal seria a criação de um serviço de psicologia

presente 24 horas por dia: “Mas a gente não tem essa

possibilidade”.

Depois de muito planejamento da Secretaria do Estado,

em 1996 o Samu foi inaugurado. Desde então, alguns

profissionais não conseguiram trabalhar no local por mais

de duas semanas. O motivo? A pressão emocional diária que

é fazer parte de um serviço público de emergência.

Page 39: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 39 ~

Na sala, onde ficam os médicos à espera de chamados

de socorro, está Eduardo Stéfano. De óculos e bom humor,

ele explica as dificuldades de atuar no Samu. As tentativas

de suicídio são as ocorrências mais trágicas na opinião dele,

seja com remédios, enforcamento ou cortes no punho. O

mais dramático foi um enforcamento no qual a chamada

acusava cheiro de gás de cozinha. A equipe chegou e, por

sentir cheiro de gás, chamou o Corpo de Bombeiros.

A porta foi arrombada. Dentro do local estava um

homem morto: “Era um quartinho pequeno, o gás estava

vazando, havia uma „senhora‟ faca embaixo do travesseiro e

o fio de telefone enrolado no pescoço. Ele deve ter sofrido

muito porque errou o cálculo e ficou pendurado na ponta do

pé. Comecei a pensar no motivo para ele ter feito aquilo.

Pelo que ouvi, ele estava jurado de morte por causa de

drogas. Antes de ser assassinado, se matou”.

A primeira reação de Stéfano foi retirar o homem,

suspenso pelo fio de telefone, do local do enforcamento. O

médico sabe que o ideal é deixar o corpo pendurado até a

polícia técnica chegar. Naquela situação trágica, o motivo

para a atitude de Stéfano foi a necessidade de acabar com a

cena trágica.

Para dividir histórias e angústias, Stéfano conta com a

ajuda da esposa, que é enfermeira na Unicamp: “Nunca fiz

terapia, eu trabalho bem o que vejo, não fico pensando nem

sonhando com as tragédias. Até poderia fazer terapia, mas

para resolver outros problemas, não para aprender a lidar

com a morte no dia-a-dia. Se alguém está na chuva, é para se

molhar”.

Ele não se tornou médico por status ou porque “papai”

queria. O pai de Stéfano, médico, deixava explícito que não

fazia questão de ver alguém da família seguir a mesma

profissão, mas Stéfano realmente queria ser médico: “Eu já

trabalhei na área administrativa, já fui secretário de saúde, já

fui superintendente de Santa Casa, mas a política é terrível,

dá nojo. É mais angustiante a política do que a morte”.

Page 40: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 40 ~

Ao lado de Stéfano está o médico Alexandre Chicrala

Filho, de atitude discreta e palavras contidas, ele também

faz parte da equipe do Samu. Com o olhar sério, ele conta

que não sente a morte como algo normal, mas entende a

obviedade de que, na área da saúde, o profissional vai ter

que enfrentar a rotina dos óbitos: “Normal não é, acho que

nunca é para ninguém, quem fala que é natural está

mentindo. Mas a gente tem outra maneira de entender isso.

Às vezes as pessoas ligam aqui desesperadas quando alguém

morre aos 95 anos. Puxa, isso é mais que natural”. Chicrala

acredita em Deus, mas não na vida depois da morte:

“Morreu, acabou”.

Enquanto os médicos conversam, o motorista de

ambulância observa. Católico, Ronald Fernando Fortunato

precisa dirigir em alta velocidade no trânsito de Campinas e

convive com tragédias e perigos.

Uma vez, Fortunato foi buscar um homem baleado na

favela. O autor do tiro ainda estava no local para garantir a

morte vítima: “Ele subiu na ambulância e tentou balear o

paciente de novo já na maca dentro da viatura”. Em outra

ocasião, moradores de um bairro apedrejaram a ambulância,

que demorou a chegar no local.

Fortunato não esconde que o que mais vê é gente morta:

“Virou rotina”. Só não é rotina quando o óbito é de criança:

“A gente fica morrendo de dó, os maus tratos, a condição

social, isso que pesa um pouco”. Ele não faz terapia e

confirma que poucas pessoas conversam com a psicóloga

contratada para cuidar dos profissionais do Samu: “Acho

que é falta de tempo, muita gente tem outros empregos”.

Na tarde ensolarada de agosto de 2003, algumas

enfermeiras estavam sentadas em um banco de madeira no

pátio do Samu. Protegidas pela sombra, Lely Mansur e Milena

Pietro Bom Paiva conversavam.

Lely trabalha há 15 anos em urgência e emergência.

Milena é estudante do primeiro ano de enfermagem da

Page 41: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 41 ~

Universidade Paulista (UNIP). As duas demonstram paixão

pelo que fazem e conservam no olhar algo que parece

materno. As atitudes são calmas e a entrevista é fácil.

Em geral, as mulheres gostam de falar mais do que os

homens. Contam histórias, falam de sentimentos e emoções.

Lely escolheu ser enfermeira quando ainda era criança.

Gosta de ajudar as pessoas e segue a profissão como um

objetivo de vida: “Sou uma enfermeira felicíssima, adoro o

que eu faço, sou uma pessoa privilegiada, encontrei uma

profissão que realmente me completa”.

Cristã, Lely explica o que pensa sobre a vida depois da

morte: “Você lembra dos átomos? Negativo e positivo?

Quanto melhor você está espiritualmente, mais perto do

núcleo você fica. Quanto mais energias negativas, chega uma

hora que você dissipa. Diferente, não é?”.

Milena espera a vez de falar, calada e atenta aos

depoimentos da colega. Começa a história pela infância,

quando ouvia a pergunta fatídica dos pais: “O que você vai

ser quando crescer?”. Até os sete anos de idade, Milena

desejava ser bailarina. De uma hora para outra, sem

explicação ou dúvida, decidiu ser enfermeira. Na família

dela ninguém trabalha na área da saúde e o espanto foi

inevitável. “Por que enfermeira?”, perguntaram. E ela, com

toda convicção: “Eu quero cuidar dos outros, eu acho bonito

ficar lá, dar apoio. Agora vou ter que sair”.

Neste momento acontece uma chamada urgente para

socorrer uma PCR. Milena e Lely saem às pressas, sorrindo e

com ternura no olhar. Explicam que PCR é parada

cardiorespiratória. Não é possível acompanhar a ambulância.

Apesar do convite das enfermeiras e do motorista, o

coordenador médico é taxativo: “Se algo acontecer com

você, eu sou o responsável, eles vão atravessar a cidade em

alta velocidade, sempre existe o perigo”. A ambulância sai

do pátio fazendo barulho. Enfermeiras, médico e motorista

acenam. Vão salvar vidas.

Page 42: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 42 ~

Capítulo IV

Notícia Ruim

"Fui até o rapaz que ainda vivia. E vendo ele

morrer, sem saber o que fazer, segurei sua

mão fria" Um ponto oito - John Ulhoa

Na noite de 20 de maio de 1994, Jyl sofreu

politraumatismo no acidente que envolveu um ônibus e um

caminhão-tanque. Ele foi uma das únicas vítimas fatais a

sair inteira do acidente. Uma caminhonete, que passava pelo

local, o socorreu antes da chegada qualquer resgate

especializado.

Enquanto tentavam salvar a vida de Jyl na Santa Casa de

Rio Claro, o jornalista Ivan Castanho se preparava para ir a

um jantar árabe no clube da cidade, o Grupo Ginástico. Ele

estava em casa quando recebeu uma ligação com a notícia

do acidente na SP-127.

Em 1994, celular era objeto raro. Castanho saiu de casa

em direção ao clube. Um colega de trabalho foi até a festa

avisá-lo pessoalmente: “Teve um acidente grave com

estudante. Coisa grave. Vários mortos”.

Na entrada do clube, Castanho estava com a esposa e

mais um casal, na época o dono do Jornal de Rio Claro, João

Ragghiante. Castanho deixou os três na festa e foi para o

local do acidente: “O jornalismo corre na veia. Já tinha a

informação de que era ônibus de estudante de Rio Claro. Fui

na louca, sozinho. Cheguei no jornal e o fotógrafo já tinha

ido cobrir o fato. Foi difícil chegar até o local da tragédia.

Estava tudo congestionado e escuro. Deixei o carro distante

uns 500 metros do acidente. Com carro particular é

Page 43: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 43 ~

complicado, se é de imprensa o pessoal abre caminho, mas

até justificar...”.

Enquanto caminhava, ao chegar perto do acidente,

Castanho sentiu “um negócio grudando no pé”. Ele não sabia

o que era e quando viu, era piche: “Marcou muito porque eu

estava de sapato novo. Na hora, a única coisa que veio na

cabeça foi o sapato novo. Depois disso, quando cheguei

perto do ônibus, foi um horror”.

Não era a primeira vez que Castanho via uma tragédia

de perto. Cerca de dois anos antes do acidente que matou

Jyl e mais 18 pessoas, o jornalista cobriu um acidente com

sete vítimas fatais na SP-127: “Cheguei junto com o resgate.

Morreu a família inteira, só não morreu o motorista do

caminhão. Os sete eram da família Vedovelo. Tinha criança

dentro do carro. Estavam indo para um casamento em

Piracicaba ou Capivari, não lembro mais. No caminho para a

festa, bateram de frente com um caminhão. Não dava para

distinguir do que estavam vestidos. Para você ter um ideia,

eram sete corpos. Não sei você já viu o tamanho do caixão

de zinco que funerária tem para esse tipo de coisa, que é um

pouco maior e mais alto do que a gente costuma ver em

velório. Os sete corpos couberam em um único caixão. Não

tinha como distinguir, era preciso levar para um especialista

tentar fazer a separação”.

Depois do resgate dos corpos, quando levantaram o

veículo acidentado, acharam uma cabeça embaixo do carro:

“Até onde sei, o problema foi com a mecânica do carro, não

foi culpa do caminhão. O caminhão vinha na descida, o carro

não estava ultrapassando e não deu para identificar o

problema por causa do estado em que o veículo ficou. Ou foi

a direção, ou furou o pneu. Você imagina um caminhão no

embalo da descida...”.

Já no acidente de 20 e maio de 1994, Castanho

encontrou o fotógrafo do Jornal de Rio Claro trabalhando na

escuridão. Entre os corpos, o jornalista conta que o

interessante era o cheiro: “O cheiro não era ruim, mas dava

Page 44: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 44 ~

para sentir o cheiro da morte ali, não dá para explicar.

Fiquei arrepiado de ver aquilo. Eu, na realidade, não

conhecia ninguém. Só sabia que eram estudantes. Apenas

uma sobrevivente eu conhecia de vista”.

O fato de não conhecer as vítimas facilita o trabalho de

qualquer profissional, mas Castanho não deixou de ficar

sensibilizado com a situação: “A cena chocante foi quando

eu me dirigi ao Instituto Médico Legal (IML). Não tinha mais

espaço para colocar os corpos. Foram colocados no chão, um

ao lado do outro. Ali foram feitos os reconhecimentos e as

fotos. Publicar ou não? Tinha gente com metade do rosto,

sem o queixo, sem a tampa da cabeça, sem o braço, sem a

perna, gente cortada o meio. Tinha de tudo. Interessante foi

o silêncio no IML. Apesar dos familiares chegarem, havia

silêncio e daí a pouco alguém começava a chorar”.

Depois do IML, Castanho seguiu para a redação do Jornal

de Rio Claro, onde trabalhou durante quase 20 anos. Foi

revelar as fotos e escrever a matéria: “Era tipografia, tinha

que montar no chumbo. Passava para o linotipista. E o jornal

saiu... mais uma tragédia”.

Escrita a matéria, Castanho voltou para o Grupo

Ginástico, onde acontecia o jantar árabe: “Minha esposa

estava lá, devia ser mais de meia-noite”. O pessoal já

começava a ir embora do clube. Por coincidência, a primeira

pessoa que o jornalista encontrou foi Ragghiante, dono do

Jornal de Rio Claro, conversando com o Aldo Demarchi, na

época vice-prefeito da cidade: “O Aldo perguntou para mim

como tinha sido e eu disse que era indescritível”.

No dia seguinte, Castanho buscou, com as famílias, as

fotos das vítimas fatais para publicação no Jornal de Rio

Claro. Das 19 vítimas, ele conseguiu 10 fotos: “Só nós do

Jornal de Rio Claro íamos publicar, aí o repórter do Jornal

Cidade me ligou e pediu as fotos. Depois, muita gente me

questionou por eu ter cedido o material para o Jornal Cidade

ao invés de publicar sozinho. Por que eu cedi? Primeiro,

naquele momento eu tinha consciência de que o Jornal de

Page 45: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 45 ~

Rio Claro não era o de maior circulação. A impressão do

Jornal Cidade naquela época já era off set, então não achei

justo colocar o material só no jornal que eu trabalhava.

Muita gente não sabia quem tinha morrido. Quase todos

eram de Rio Claro. Eu achava que, quanto mais a imprensa

divulgasse quem eram as pessoas, mais informação. Não era

sensacionalismo, era informação”.

Na vida pessoal, Castanho às vezes frequenta a

Congregação Cristã do Brasil. A esposa dele é batizada, mas

ele não: “Vou lá para ouvir uma palavra e tal. Acredito em

Deus, ou em uma força que colocaram o nome de Deus.

Acredito nessa força e quero continuar acreditando. Eu acho

que estamos aqui por algum motivo. Temos que acreditar.

Tudo na vida precisa ter um objetivo. Não que a morte seja

o objetivo, mas é o destino e temos que aceitar. Temos que

ter uma vida sem fazer mal às pessoas. Ninguém é perfeito,

todo mundo tem seus pecados, mas é preciso tentar ser o

mais honesto consigo mesmo. É importante a pessoa ter uma

crença, uma doutrina. Até o ateu tem a doutrina de que ele é

ateu, não simplesmente vive por viver. Eu não posso matar,

roubar, não é certo... Se eu tenho medo da morte? Eu não

tenho medo da morte, eu tenho pavor”.

O jornalista Diógenes Pasqualini é assessor de imprensa

do deputado estadual Aldo Demarchi juntamente com Ivan

Castanho. Em 1994, Pasqualini era estudante de jornalismo

na Unimep e repórter do Jornal de Rio Claro.

Todos os dias, cerca de nove ônibus da Companhia

Cidade Azul saíam em direção à Unimep. O ônibus de

Pasqualini foi um dos três primeiros que seguiram para

Piracicaba. O veículo em que Jyl estava era o quarto ônibus:

“Era uma sexta-feira, dia 20 de maio, e a maioria dos ônibus

estava com menos alunos que o habitual. Você sabe, sexta-

feira, moçada jovem, cerveja esperando no bar. A maioria

enforcava aula. Isso justifica o número de mortos. Se o carro

estivesse lotado, com 51 passageiros, a tragédia poderia ter

Page 46: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 46 ~

sido bem maior. No dia, creio que o número de pessoas no

ônibus não passava de 30”.

Na Universidade, Pasqualini cumpria apenas um crédito.

Era final de curso e o professor solicitou que a classe

fizesse uma redação. Tema livre, um texto de 20 linhas,

batido a máquina em lauda padrão de jornal: “Lembro -me

que, no momento em que recebi a notícia do acidente, eu

escrevia algo sobre a morte. É curioso notar que, quando um

amigo meu disse „cara, aconteceu um acidente com um dos

ônibus da Viação Cidade Azul‟, nesse momento eu escrevia

exatamente „Ela foi embora e morreu...‟. Não me lembro do

conteúdo, mas essa frase me incomodou por muitos anos.

Seria um pressentimento? Uma intuição?”.

A esposa de Pasqualini, na época noiva, viajava em um

dos nove ônibus também. Ele estudava no campus Centro e

ela no campus Taquaral: “Para quem não conhece a estrutura

física da Unimep, estávamos distante um do outro uns oito

quilômetros”. Depois da notícia inicial, saíram todos em

busca de informações: “Tentamos por telefone, mas as

ligações eram tantas que acabou congestionando as linhas. A

angústia e o medo de que minha noiva estivesse no ônibus

envolvido no acidente crescia e o coração estava mais

apertado, o peito doendo e já batia a vontade de chorar.

Nessas horas a gente tenta manter a calma. Começa a

afirmar interiormente que, „não, ela não estava naquele

carro‟. Mas o tempo passando e a falta de informação

acabam com qualquer pensamento positivo. O nervosismo

começa a dominar as emoções e os atos. Mãos frias, suor,

lábios brancos, coração acelerado. Os amigos começam a

chegar perto, a olhar com pena, a abraçar, tentam confortar.

Nesse momento, creio que oito horas da noite, todos os

estudantes do campus Centro já procuravam apoiar os

alunos de Rio Claro”.

Um amigo de Pasqualini teve uma ideia que piorou a

situação de nervosismo. Eles foram para o laboratório de

rádio da Universidade, onde havia um sistema potente de

Page 47: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 47 ~

recepção: “Podíamos ter informações das emissoras de Rio

Claro. As notícias eram desencontradas e a cada flash, o

número de mortos aumentava. Um amigo nosso, repórter de

uma emissora, chegou a citar e tentar adivinhar que ele

tinha amigos que viajam naquele ônibus e um deles seria eu.

Gelei ao ouvir esta informação. Lembrei-me de minha mãe,

meu pai e meus irmãos. Precisava dar a notícia de que

estava bem. As linhas continuavam congestionadas. Saí

pelas ruas e achei um telefone público. Finalmente consegui

falar com minha mãe. Talvez depois de meu nascimento essa

tenha sido a maior alegria que dei a ela ao me ouvir dizer

apenas: „mãe, estou bem!‟. O grito de felicidade dela foi tão

alto que senti como se estivesse ao meu lado. Depois disso,

desabei e chorei muito ao telefone”.

Depois de avisar a mãe, mesmo sem saber da noiva,

Pasqualini ligou para a futura sogra e avisou que a filha dela

estava bem. Apesar de tranquilizar a sogra, Pasqualini ainda

não tinha notícias. Ele disse que todos estavam bem sem ter

a informação verdadeira. Mais tarde Pasqualini soube que a

noiva não estava no ônibus acidentado, mas o primo dela,

Nilson Cazonatto, sim. Cazonatto foi uma das vítimas fatais.

Pasqualini reencontrou a noiva no campus Centro da

Unimep depois de uns 40 minutos e foram embora: “No

caminho de volta havia tristeza e a tentativa de entender o

acidente sem saber a dimensão da tragédia e o número de

vítimas, entre mortos e feridos. Ao passar pelo local da

batida, ninguém teve a coragem de olhar pela janela do

ônibus. O medo era de ver corpos dilacerados pelo chão”.

Enquanto isso, na Santa Casa de Rio Claro, um médico

alertou a família Pessoa de que não havia recursos

suficientes para dar suporte ao estado grave de saúde em

que Jyl estava. Seria preciso conseguir ajuda fora dali.

Simone correu para o Grupo Ginástico. Ela sabia que, no

clube onde acontecia um jantar árabe naquela noite de

sexta-feira, seria possível encontrar pessoas que tinham

condições de levar seu irmão de helicóptero até Campinas.

Page 48: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 48 ~

Feitos os contatos, o médico de Campinas ligou para a Santa

Casa de Rio Claro com o objetivo de checar o estado de

saúde de Jyl. Ele havia falecido naquele instante.

Simone voltou para a Santa Casa. Todos queriam poupar

Constância da notícia, mas foi inevitável. Para cada

falecimento causado pelo acidente, o nome da vítima era

anunciado pelo auto-falante do hospital. Foi assim que

Constância soube.

Qual o sentimento de uma mãe ao saber, pelo

autofalante de um hospital, que seu filho acabou de morrer?

Não é o voo que vai sair do aeroporto, nem alguém

procurando por você no shopping. É seu filho que não existe

mais de uma hora para outra. Para evitar essas e outras

situações semelhantes, alguns cursos de medicina buscam,

mesmo que timidamente, a humanização do médico.

Há três anos a Unicamp ensina seus alunos e futuros

médicos a tratarem não só da doença, mas da pessoa por

trás da patologia.

Quando a morte é motivada por desastres e acidentes,

os profissionais sabem que é preciso ter cautela para

comunicar a notícia. Venâncio Pereira Dantas Filho é

neurocirurgião do Hospital das Clínicas na Unicamp e

conhece a dificuldade de explicar o óbito para uma família

que acabou de perder alguém. O médico, além informar a

notícia ruim, tem que lidar com as diferentes reações.

A culpa é um dos sentimentos mais presentes nas

famílias que constatam a morte de um ente enfermo. O caso

mais frequente é a averiguação do óbito de um idoso que

ficou à mercê do tempo e da pouca vontade dos filhos e

netos. Outro exemplo é o de pais que dão de presente ao

filho uma moto, veículo campeão em estatísticas de morte

no trânsito. Mais do que a culpa, há religiões que não

permitem a transfusão de sangue ou o corte de cabelo para

cirurgias na cabeça.

Page 49: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 49 ~

Como a maioria dos profissionais da saúde, Venâncio

acredita que a maior dificuldade está em lidar com os pais

dos pacientes mais jovens. Depois que teve seus dois filhos,

hoje com 12 e nove anos, o médico passou a sentir um peso

emocional maior em cirurgias que envolvem crianças: “O ser

humano enxerga a morte de três maneiras diferentes. Na

infância, tudo é mágica. É quando um caminhão atropela um

animal e nada de ruim acontece, como nos desenhos

animados. Ao se tornar um jovem, a visão da morte é

heroica. A pessoa mais nova quer dominar o que não pode

ser dominado. As maneiras de concretizar este tipo de

sentimento são os esportes radicais e os brinquedos nos

parques de diversão. Ao envelhecer, o adulto percebe que é

inevitável lutar contra o que é certeiro. Nesta fase o ser

humano negocia com a morte. Melhora a alimentação, pára

de fumar, de beber, faz exercícios, tratamentos e o que mais

tiver ao alcance para prolongar a vida”.

Com o avanço da medicina, os profissionais trabalham

focados no tecnicismo, mas são requisitados para responder

a numerosos temas que fogem da tecnologia aprendida na

faculdade e em cursos de especialização. Dentro dos

hospitais é necessário conviver com conflitos familiares,

religiosos, dificuldades sexuais, angústias existenciais e

uma infinidade de detalhes que envolvem não só uma

patologia, mas um paciente e uma família por trás dela.

Ao analisar o caso de Constância Pessoa, que soube da

morte do filho pelo auto-falante da Santa Casa de Rio Claro,

Venâncio enxerga este procedimento como algo

desaconselhável, pois fere e desrespeita a dor do outro. O

mais apropriado seria conversar com a família em um local

mais reservado. É preciso preparar a família para a notícia

fatal.

Adquirir maturidade profissional na área da saúde pode

levar tempo. Venâncio busca ajuda na religiosidade. Ele

necessita da fé para encontrar um significado e entende que

a morte não é um erro da medicina, mas o destino natural da

Page 50: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 50 ~

vida. Querer salvar uma pessoa a qualquer custo nem

sempre parece ser o melhor. Nas tentativas desesperadas de

deixar alguém vivo, a situação pode provocar mais dor tanto

para o paciente quanto para a família.

Com esta consciência, Venâncio sabe que não é fácil

chegar a uma conclusão, principalmente quando a família

solicita “que seja feito tudo o que for possível”. Para

discutir questões como esta, foi formada uma Comissão de

Racionalização de Tratamento em Pacientes Fora de

Possibilidade de Tratamento, um grupo de cerca de sete

médicos da Unicamp que procuram encontrar soluções para

a prática da distanásia, que é o prolongamento do

sofrimento de um paciente terminal.

Dentro da Unicamp, Venâncio é assessor da Central de

Captação de Órgãos (CCO) e professor da disciplina de

Temas Longitudinais de Bioética. A disciplina está em

prática na Faculdade de Medicina da Unicamp há três anos e

busca a humanização do médico, o respeito pelas religiões e

a consciência de que, muitas vezes, o profissional da saúde

vive um tecnicismo tão intenso que esquece de resgatar o

lado humano e a linguagem na atuação dentro dos

consultórios e hospitais.

Durante as aulas desta disciplina, alguns líderes

religiosos são convidados para explicar o que é a vida e a

morte segundo a doutrina adotada por diferentes grupos

sociais. Os estudantes de medicina já assistiram às palestras

sobre a crença dos católicos, espíritas, afro-brasileiros,

evangélicos e muçulmanos. É conveniente explicar a vida

para depois entender o conceito do óbito. Se nos anos 60 o

grande tabu era o sexo, hoje este tabu foi transferido para a

morte.

Quando os exames de laboratório apontam que alguém é

portador de uma doença terminal, o comunicado do

diagnóstico é missão do médico. Ao saber que a própria vida

chegou ao fim, o portador da chaga fatal costuma passar por

cinco fases emocionais. A descrição detalhada de cada uma

Page 51: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 51 ~

delas pode ser encontrada em livros como “O que é a

morte”, de José Luiz de Souza Maranhão.

Fases do moribundo

A primeira fase é a da negação. A maioria dos pacientes

pergunta “Por que eu?”. A inabilidade de alguns médicos

pode comprometer a reação dos pacientes e familiares. Há

casos em que eles despejam o diagnóstico de modo rude

para que depois a equipe de enfermagem lide com a dor

emocional diária do paciente ainda chocado pela notícia de

que vai morrer em breve.

Com o doente negando a proximidade do próprio fim, a

equipe médica tende a se sentir confortável, pois não

necessita se envolver emocionalmente enquanto o paciente

tenta se convencer de que não está doente e de que não vai

morrer. Existem também muitas famílias de moribundos que

se fixam na fase da negação e todos fazem de conta que a

morte não existe.

Com o passar dos dias, a realidade e os sintomas não

escondem a doença e o paciente pode passar para a segunda

fase, que é a da cólera.

Neste período ele sente uma intensa revolta e dirige sua

raiva para o médico, o enfermeiro, os visitantes ou até

mesmo para a comida do hospital. O sofrimento interno é

causado porque o moribundo sabe que vai morrer e as

outras pessoas vão ficar vivas.

O psicólogo e coordenador da Rede Nacional de

Tanatologia, Aroldo Escudeiro, tratou de uma paciente com

câncer. A moça tinha uma filha e um marido, mas este

homem a trocou por outra.

Ela ficou com a filha que ainda era bebê, mas o câncer

chegou rapidamente. A maior angústia da mãe moribunda foi

constatar que a nova mulher do marido lhe roubou tudo. Ela

não se queixava porque estava morrendo, mas porque o

Page 52: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 52 ~

marido estava vivo juntamente com outra mulher, e o novo

casal estava pronto para cuidar de sua filha. Com o

acompanhamento do psicólogo Aroldo Escudeiro, a paciente

pôde entender e aceitar a própria morte.

A terceira fase de um doente terminal é a da barganha.

No estágio da barganha, o paciente tenta negociar com Deus

ou consigo mesmo. Promete, faz pactos, insiste: “Se eu me

curar, farei isto ou aquilo”. A barganha feita com a morte

pode ser observada no filme sueco O Sétimo Selo, de Ingmar

Bergman. Na obra, um cavaleiro joga xadrez com a morte,

tentando adiar seu final em uma terra onde a peste castiga

sem piedade. “Todo esse processo não resultaria tão

traumático e doloroso se as pessoas, mesmo antes do

surgimento de um caso de morte na família, conversassem

sobre a morte e o morrer como sendo um fato constitutivo

da própria vida e do viver”, explica Souza Maranhão, autor

do livro “O que é a morte”.

Passada a fase da barganha, surge a depressão. O

paciente se conscientiza de que a vida acabou, entra em um

estado de silêncio interior e apenas demonstra interesse

pelas pessoas mais próximas.

O último e mais difícil estágio a ser alcançado é o da

aceitação. Mesmo que o moribundo tenha concebido a

própria morte, a família tende a não aceitar e prejudica a

manifestação de um sentimento que deveria ser natural.

Não é regra que todos os moribundos passam pelas

cinco fases exatamente nesta ordem. Alguns jamais aceitam

que vão deixar de existir. A enfermeira Carla Fiori define

deste modo: “O momento da morte é um momento solitário,

mas muita gente tem medo e disfarça até o último momento.

A pessoa finge que ela não está vendo a própria morte.

Muita gente faz isso, acho que é maioria”. A atitude pode ser

entendida no senso comum de que a esperança é a última

que morre, mas segundo Carla: “A esperança é a última que

se enterra”.

Page 53: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 53 ~

Ao perceber que um moribundo está prestes morrer, a

equipe de enfermagem evita manipular a pessoa, mas tenta

ficar próxima e “pegar na mão”. Não é o mesmo que ter um

familiar ao lado, mas há os enfermeiros que procuram

amenizar este momento naturalmente solitário. Quando o

paciente morre, o procedimento é esconder o rosto de quem

faleceu para que os outros pacientes do hospital não

percebam.

Souza Maranhão detalha a situação: “Quando é possível

prever a morte de um paciente em uma enfermaria, ele é

deslocado para um quarto privativo. Tudo se passa como se

não existissem moribundos no hospital”.

Page 54: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 54 ~

Capítulo V

O Corpo de Nercina

"Quem pagará o enterro e as flores

Se eu me morrer de amores?

Quem, dentre amigos, tão amigo

Para estar no caixão comigo?"

A hora íntima - Vinícius de Moraes

O acidente que interrompeu a vida de Jyl aconteceu há

10 anos na SP-127, rodovia que liga Rio Claro a Piracicaba,

no interior de São Paulo. Além de Jyl, 18 vidas se perderam

no choque entre o ônibus da Companhia Cidade Azul e o

caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda. O

motorista do ônibus, Djair Nunes Barbosa (conhecido como

Coroné), era de Rio Claro, e o motorista do caminhão, Sérgio

Calmo Moura, era de Campinas.

Na estrada, que era de pista única, foi formada uma

poça de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio

de 1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus

transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o

forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora

do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou

tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito

trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas

chegavam em busca de informações sobre familiares que

estudam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos

daqueles que perdiam parentes e amigos”.

A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o

motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente. A

culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na

sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes,

Page 55: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 55 ~

publicados nos jornais da época, confirmam que a história

foi diferente.

Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de

1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um

profissional prudente e responsável. Por este motivo, antes

do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus

para poder viajar todos os dias com ele no volante.

Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém contratado da

empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como

tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria

o ritual de acompanhamento por um motorista mais

experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido

cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a

culpa.

Da Santa Casa, o corpo de Jyl foi levado para o IML. Um

cunhado foi reconhecer o corpo. Na correria, causada pela

tragédia, o serviço funerário esqueceu de colocar uma

proteção para forrar a urna que o carregava. No velório, que

aconteceu no Ginásio Municipal Manoel Antônio Bortolotti, o

corpo dele começou a pingar sangue. Simone lembra que

colocaram um balde embaixo do caixão. Ele foi o primeiro a

ser enterrado. Quando Jyl estava vivo, Constância comentou

que gostaria de ser enterrada no Cemitério Parque das

Palmeiras, onde ele trabalhou aos 13 anos de idade como

cobrador. Jyl ouviu calado e comprou o terreno sem avisar a

família. Quando ele morreu, o terreno no cemitério estava

pago e a família não precisou se preocupar com o destino de

seu corpo.

Seria possível uma família escolher o cemitério, o

funeral, a urna e tudo pelo melhor preço? Além do terreno

disponível no Cemitério Parque das Palmeiras, o funeral foi

providenciado pelo pai do sócio de Jyl: “Como o acidente

pegou todo mundo desprevenido, isso ajudou muito. Jyl era

organizado e não deixou nenhum assunto pendente”, explica

Constância.

Page 56: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 56 ~

Pendência é o que não falta para quem está vivo e tem

que providenciar um funeral. Para facilitar a vida da

população, existem os serviços funerários. Em Rio Claro,

funcionam três empresas do ramo. A funerária do Grupo

Bom Jesus, a João de Campos e a Municipal.

Na casa alugada, localizada em uma esquina, está a

funerária do Grupo Bom Jesus. Logo na recepção, uma jovem

mulher. Móveis aparentemente velhos e um vaso com flores

do campo quase murchas. A funcionária é Suzana da Silva

Câmara. Há sete meses na funerária, ela nunca viu um

cadáver: “E nem quero ver”. Ainda não se acostumou com a

situação, e o medo dela é a possibilidade de ver um corpo

sendo arrumado: “Quando conto para alguém que eu

trabalho na funerária, o pessoal se assusta, acha diferente e

sombrio. É um serviço que eles acham que não precisam.

Meu namorado não gosta que eu trabalhe com isso. A família

dele não bebe nem o café servido em velório”.

Atenciosa e pouco habituada aos assuntos fúnebres,

Suzana explica como funcionam os planos funerários. Os

preços variam de R$ 420,00 a 3.900,00. O serviço inclui

arrumação do corpo no caixão e flores. São mais de 30

modelos de urnas: com alça dura, móvel, urna com ou sem

visor, com duas tampas, madeira lisa ou entalhada. Os

detalhes são quase infinitos.

Suzana sabe pouco sobre a história da funerária onde

trabalha. É quase meio dia e ela está sozinha na casa de

esquina. Para confirmar alguns dados, liga para o gerente

que está em Piracicaba, cidade onde surgiu o Grupo Bom

Jesus.

O Grupo Bom Jesus existe desde 1969, mas se

estabeleceu em Rio Claro em 1994. Existem quatro

funerárias do grupo espalhadas por cidades da região:

Piracicaba, Rio das Pedras, São Pedro e Rio Claro. Em

Piracicaba, a estrutura é maior. Os clientes têm serviços de

ambulância, aparelhos ortopédicos, assistência médica,

odontológica e até cursos de inglês.

Page 57: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 57 ~

O telefone toca. Suzana atende. É o motorista da

funerária. Ele avisa que o corpo de uma pessoa, que faleceu

em Rio Claro, vai ser transportado para General Salgado. De

uma cidade à outra, são cinco horas de viagem. O corpo

transportado pertencia a José da Cunha Viana, que morreu

aos 47 anos. No documento, que registra o óbito, está a

descrição da morte: “Neoplasia gástrica, falência múltipla

dos órgãos e caquexia neoplásica”.

Em Piracicaba, o Grupo Bom Jesus conta com o trabalho

da assistente social Silvia Del Carmem. A chilena está na

empresa desde 1997 e tem a tarefa de ajudar famílias que

procuram ajuda. Em Rio Claro, a empresa não oferece apoio

emocional aos associados.

A diferente estrutura entre os concorrentes funerários

de Rio Claro chega a ser espantosa. Na recepção da empresa

João de Campos, que está instalada na cidade há 70 anos,

nada lembra a morte. É o avesso. A começar pelo nome de

um produto exposto em panfletos dispostos no balcão: Plano

Vida.

As funcionárias vestem uniformes. Os móveis combinam

entre si na cor cinza e branca. As cadeiras são confortáveis.

As recepcionistas são educadas, discretas e sorridentes.

Tudo é informatizado, a tecnologia está presente em cada

canto.

Em uma cidade com cerca de 170 mil habitantes, o

número de associados da empresa João de Campos chega a

90 mil. Não é por acaso. O esforço do proprietário, que

herdou a empresa do padrasto, é visível. Júlio César Reis

pensa em todos os detalhes. Com seus 30 e poucos anos e

rosto jovial, o „marqueteiro‟ trabalha na empresa desde

1983, mas foi depois que o padrasto morreu que a funerária

decolou.

O plano que representa 75% das vendas é o Plano Prata,

que custa R$ 904,00. O associado da Funerária João de

Campos paga uma determinada quantia por mês e tem

Page 58: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 58 ~

direito a diversos benefícios, como desconto no convênio

médico com a Unimed, a Uniodonto e empréstimo de

equipamentos como cadeira de rodas e muletas. Os preços

dos outros serviços variam de R$ 300,00 a 3.500,00.

Em um mês, são preparados cerca de 90 funerais. Reis

cuida da parte publicitária, elabora os brindes como o Kit

Docinho para as crianças e raspadinhas para os adultos.

Com a raspadinha, os clientes ganham relógios e outros

objetos: “São os detalhes e a motivação que fazem a

diferença. Hoje as pessoas querem pagar as coisas e ter

valor em vida. Enterro não é para o morto, enterro é para o

vivo”.

Mesmo sem concorrência compatível, a preocupação é

agregar valor. O produto da funerária João de Campos tem

o efeito onda: “É como você ficar em casa enquanto

acontece uma festa, daí você fica fora do contexto. O

negócio é entrar na vida das pessoas e ir rodando com esse

monte de coisas. O lucro vem da revenda. Não adianta

montar toda essa estrutura se eu não entender que o

negócio é lucro. A gente mora em um país capitalista, aqui

não existe nada socialista”. Como vender algo que ninguém

quer comprar? Reis descobriu: “Preciso entender de gente.

Eles compram e não levam nada, só uma lembrança. Eu

invisto na lembrança. Se um cliente vem aqui e compra um

pedaço de papel, ele paga por esse pedaço de papel durante

anos e não leva nada. É complicado! Eu preciso acrescentar

coisas em vida e não ficar explicando a urna, o carro que

pega o corpo. Isso é como cd de música sertaneja. Pegou?

Vende um milhão”.

Na área administrativa da funerária estão o cunhado, a

irmã e a mãe de Reis, que no dia da entrevista estava em

Chicago, nos Estados Unidos. Durante a entrevista, a filha de

Reis entra na sala correndo, pede doces e beija o pai. Ainda

com o uniforme verde e branco da escola particular, a

menina de cabelos claros tem um jeito amável. Ela se

despede e fecha a porta com cuidado.

Page 59: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 59 ~

Com o olhar inebriante após receber o carinho da filha,

Reis ensina que, na negociação dos planos, a urna só é vista

“depois que o cliente pedir”. Se não fosse pela tradição do

nome, seria impossível saber que a empresa é uma

funerária. O proprietário e sua equipe de 20 funcionários

organizam os funerais. Em relação aos sentimentos de dor e

perda dos clientes: “Não há muito que fazer. Não temos

assistente social porque têm aqueles falecimentos em que a

família dá graças a Deus, enquanto outras não vêm nem

buscar o documento. É muito difícil porque estarei entrando

na vida particular do cliente. Como eu vou te consolar se

você está preocupado se a casa vai ficar no seu nome ou

não?”.

Para recolher os corpos, a empresa tem nove motoristas:

“Hoje é mais fácil arrumar quem faça esse serviço por causa

do desemprego. No setor funerário não existem cursos de

formação. A experiência vai passando de profissional para

profissional ou de amador para amador”. O que mais avança

no setor são os cursos de preparação de cadáver: “Mas ainda

é limitado porque o custo é alto. O Brasil é um país pobre e

de classe média. Ricos? Minoria”.

Por mês, a Funerária João de Campos realiza três ou

quatro funerais gratuitos para famílias mais pobres. O que

existe na cidade é um rodízio entre as concorrentes. A cada

semana, uma funerária fica responsável por cuidar de quem

morre e não tem dinheiro.

As compras mensais que a empresa precisa fazer

incluem doces, brindes e 100 urnas. Depois de explicar

como funciona a venda dos produtos, Reis se encaminha

para a sala de preparação de corpos, que fica longe da

recepção. Novamente, computadores e tecnologia pelo

caminho.

Interruptor. A luz ilumina a maca no centro da sala. Ao

lado de Reis está o cunhado, José Luiz Modesti Jr., e a única

responsável pela limpeza do local impecável, Jandira

Almeida da Silva.

Page 60: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 60 ~

Modesti, que também é artista plástico, vai até a maca e

puxa o lençol marrom. Susto. O corpo de Nercina Rodrigues

Pereira, de contrato número 3030A, está estendido.

A expressão é de dor. A boca aberta, o corpo levemente

retorcido, magro e nu. Nercina vai ser preparada para seu

funeral, a urna está posicionada ao lado. Enquanto Jandira

varre a sala, Modesti diz: “A falecida é tia da Jandira”. Ela

afirma sorrindo que era sobrinha de primeiro grau de

Nercina. Deixa-se fotografar ao lado do corpo. A situação

começa a parecer natural.

Page 61: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 61 ~

Capítulo VI

SP 127 – A Duplicação

"Oh morte, tu que és tão forte, que matas o

gato, o rato e o homem, vista-se com a mais

bela roupa quando vieres me buscar..."

Canto para minha morte - Raul Seixas

Rio Claro estremeceu quando a notícia do desastre

chegou aos lares de pais, mães e irmãos. Foi decretado luto

oficial de três dias na cidade. A mídia cobriu o fato. Amigos

assistiram pela televisão o desespero de famílias inteiras

entre os caixões enfileirados no Ginásio Municipal Manoel

Antônio Bortolotti, onde aconteceu o velório de 12 das 19

vítimas. Milhares de pessoas velaram os corpos.

Depois do acidente do dia 20 de maio de 1994, algumas

mudanças foram realizadas na região de Rio Claro. Mesmo

com a sentença da justiça, que descreve que “não há sequer

indícios de que a má conservação do local tenha influído no

acidente”, a pressão feita por alguns políticos e moradores

resultou na duplicação da SP-127, conhecida como Corredor

da Morte.

João Carlos Picolin é jornalista e Coordenador do Curso

de Comunicação Social das Faculdades Claretianas de Rio

Claro. Ele fez parte da Comissão 20 de Maio na luta pela

duplicação da SP-127. Na noite da tragédia, Picolin, que

também era estudante, já estava na Unimep quando os

alunos sentiram falta dos colegas que não chegaram. A

primeira hipótese foi a de que o ônibus tivesse quebrado

pelo caminho. Um outro veículo da Companhia Cidade Azul

foi procurá-lo em Piracicaba, mas não achou: “Daí todo

mundo pensou que o ônibus pudesse ter quebrado na SP-

127. Ligamos para a Companhia Cidade Azul e informaram

Page 62: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 62 ~

que o pessoal do ônibus do Coroné não tinha dado notícias.

Logo depois ficamos sabendo do acidente”.

Picolin percebeu que o fato era sério. Ele e um grupo de

estudantes passaram nas classes para avisar que todos os

ônibus de Rio Claro iriam embora na hora do intervalo:

“Começou uma loucura. Filas no orelhão. Há 10 anos não

tinha a facilidade do celular. A gente saiu batendo de sala

em sala para avisar que, às nove horas, quem não estivesse

dentro do ônibus ficaria para trás”.

Todos os estudantes de Rio Claro que estavam na

Unimep voltaram para a cidade. O clima era de expectativa e

tensão. Quando passaram pelo acidente, viram que o ônibus

não estava arrebentado: “Foi animador, o ônibus estava

inteiro!”. Picolin achou que tudo aquilo não passava de

brincadeira, mas quando conseguiram enxergar o outro lado

do veículo, foi o caos: “O outro lado do ônibus praticamente

não existia, era ferragem contorcida. Colocamos o pé no

chão, tinha sido grave. Mesmo assim, não tínhamos a noção

do estrago”.

Ao relembrar o momento em que chegou na casa dos

pais, Picolin respira fundo e se cala por alguns segundos. Os

olhos dele ficam emocionados: “Meus pais estavam

inconsoláveis”. Com a confusão, ele foi dado como morto.

Picolin ligou para a Rádio Cultura e seguiu até o estúdio

para entrar no ar e contar como foi a situação em Piracicaba:

“Não me envolvi com a cobertura do acidente, fui para dar

meu depoimento”. No ar, Picolin disse à população que, até

aquele momento, ele e muitos outros jovens tinham sido

omissos em relação à luta pela duplicação: “A gente tem que

fazer alguma coisa. Então eu proponho que a comunidade de

Rio Claro interdite a estrada amanhã após o último enterro”.

Ele não imaginou a força de seu pedido!

“Poderíamos ter feito algum movimento antes, mas só

percebemos quando o problema nos abraçou. Pela rádio, eu

disse que deitaria no meio da estrada como forma de

Page 63: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 63 ~

protesto”. Assim que parou de dar seu depoimento, Picolin

percebeu o desafio que seria lutar pela duplicação da SP-

127: “Tinha uma pessoa no telefone esperando para falar

comigo. Ele me perguntou em que local da estrada eu ficaria,

pois ele fazia questão de passar por cima de mim”. Na noite

de 20 de maio de 1994 a cidade parou, a cidade não dormiu.

No sábado, depois do último enterro, cerca de 17

manifestantes seguiram para a SP-127. Interditaram o

começo da estrada e ficaram atentos para não criar

problemas. Escolheram um local com boa visibilidade,

deixaram espaço para viatura, carro-forte e ambulância. A

polícia rodoviária deu cobertura. O primeiro protesto durou

meia hora. Enquanto protestavam, tiveram a ideia de fazer

uma camiseta. De um dia para o outro conseguiram apoio e

estamparam na frente de 50 camisetas: “Sou estudante, viajo

todos os dias pela Rodovia da Morte”. No verso: “Até

quando?”.

Três dias depois da tragédia, uma carreata passou por

Rio Claro e seguiu para a SP-127: “A adesão da comunidade

foi inacreditável. Lógico que teve gente que não apoiou por

causa do atraso para os carros na estrada. Um homem de

Curitiba estava com a família e veio tirar satisfações. Fazia

dois dias que ele estava viajando e parecia desesperado para

ir para casa”. Picolin contou ao motorista qual o motivo do

protesto, o qual disse: “Foi aqui que aconteceu o acidente

dos estudantes? Espere um pouco!”. Ele atravessou o carro

na pista e se misturou aos manifestantes. O desconhecido

participou, com a família, do protesto da segunda-feira.

Depois de dar início à manifestação, Picolin e seus

amigos pensaram: “E agora, como vamos batalhar pela

duplicação?”. O prefeito da época, Nevoeiro Jr, disse aos

estudantes que aquela era a maior mobilização social da

história da cidade de Rio Claro e o empresário Sérgio Bittar

propôs a criação de uma comissão.

“O senhor vai cumprir a promessa ou não?”. A frase foi

dita no dia 15 de março de 1997 pelo deputado estadual

Page 64: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 64 ~

Aldo Demarchi ao governador de São Paulo, Mário Covas. Na

empreitada, carregavam um dossiê com os dados dos

últimos dez anos da estrada: acidentes e prejuízos para a

região eram constantes.

Em 15 de março de 1997, às 15 horas, no Palácio dos

Bandeirantes, Aldo Demarchi conseguiu uma audiência

definitiva para saber se o governador Mário Covas

autorizaria a promessa que ele tinha feito em sua campanha.

“Mário Covas autorizou a obra. Ele se sensibilizou com o

dossiê e com o grande número de informações. O que mais o

mobilizou foram as fotos e as notícias do acidente dos

jovens estudantes. Naquela hora ele parou em cima dos

documentos... ele parou duas vezes e daí falou: Olha, você é

persistente. Baseado nisso, nós vamos autorizar”.

A reivindicação para a duplicação tinha mais de 20

anos e esta foi realizada por conta do Estado. Inicialmente,

estava orçada em 62 milhões de reais e o governador Mário

Covas fez a proposta de que fosse reduzida para 40

milhões. A estrada ficou pronta em um ano e inaugurada no

dia 27 de setembro de 1998. Demarchi afirma que o

governador Mário Covas pagou a obra e os trabalhadores

religiosamente. “Não teve atraso, ele cumpriu a palavra

dele”.

Para Demarchi, a morte é o fim de uma missão, de um

trajeto: “Naturalmente é estabelecido que você tem um

período para viver: sete, oito ou nove décadas. Natural é o

filho enterrar os pais e não os pais enterrarem os filhos,

isso choca”.

De uma família de nove irmãos, a morte de uma irmã de

Demarchi deixou marcas: “Na minha família ficou uma

sequela muito grande com minha mãe. Na minha casa perdi

uma irmã com 42 anos. Ela foi acometida pelo câncer e

apesar de minha mãe ter nove filhos, os oito irmãos que

ficaram não supriram a falta dela. Minha mãe jamais

imaginou que ia enterrar uma filha”.

Page 65: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 65 ~

No domingo, dia 22 de maio de 1994, a família Pessoa

acordou cedo para ir à missa. Na igreja, Simone chorava sem

parar e ouviu da mãe as palavras que a ajudam e a acalmam

até hoje quando sente falta do irmão: “Quando você dá um

presente para uma pessoa que você gosta, você dá com

carinho, você não chora. Se você deu seu irmão para Deus,

não peça ele de volta e não chore mais”.

Ao ouvir Simone durante a entrevista, Constância não

segura as lágrimas e pede um lenço. Respira fundo,

enquanto a filha, com voz calma e doce, continua a contar

como foi o último dia da vida de Jyl. Ela lembra dele com

carinho e diz que vive com as lembranças boas da

convivência: “Às vezes aperta o peito e transborda pelos

olhos”.

A mãe tenta explicar a ausência do filho: “Era o dia dele,

mas eu tenho que colocar na cabeça que ele teve um dia

para chegar e teve um dia para partir. Ele foi feliz. Sou mãe,

dói, claro que dói. Há tempos ele vinha falando coisas que

eu não entendia, batia com a mão em minhas costas e dizia:

santa inocência”.

Enquanto profissionais responsáveis pelos funerais

cuidaram dos corpos, a cruel fidelidade dos fatos era

publicada em jornais. Simone guardou cuidadosamente todos

os artigos que encontrou sobre a tragédia e os papéis estão

amarelados pelo tempo. A Folha de São Paulo de 22 de maio

de 1994 descreve, no caderno regional, que o motorista do

ônibus da Companhia Cidade Azul teria tentado uma

ultrapassagem e se chocado com um caminhão: “Barbosa não

teria conseguido desviar e os veículos acabaram batendo de

frente. Com o choque, a carreta abriu a lateral direita do

ônibus. Os passageiros que estavam sentados deste lado

foram jogados na pista e atropelados pelo caminhão. Vários

corpos ficaram espalhados na estrada”.

O Jornal Cidade de 22 de maio de 1994 relembra o

acidente menos trágico de 1986, quando um ônibus que

transportava estudantes da Unimep se chocou com um

Page 66: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 66 ~

caminhão que fazia uma ultrapassagem arriscada. Os dois

motoristas morreram: “Duas pessoas morreram e 25 ficaram

feridas na noite de quinta-feira, 3 de abril de 1986, no

acidente ocorrido no quilômetro 19 da rodovia Rio Claro-

Piracicaba”. Ainda no mesmo jornal, o desastre que matou

19 pessoas foi assunto em todos os cantos. Este é o exemplo

das manchetes apenas da página três: “Acorda, Rio Claro!”,

“Tragédia mata 19 na Rio Claro-Piracicaba”, “População

revoltada realiza protesto na Rodovia da Morte”, “A tragédia

no Corredor da Morte”. Entre tantas palavras está a

homenagem ao filho de Constância: “Ao nosso amigo Jyl: É

muito importante ter consciência da sua vontade de vencer e

o quanto você queria isso, como construir e de onde veio

tanta força. Não era só coragem ou ambição. Tinha muito

coração no que você fazia. Aprendemos muito com você. Vai

com Deus... amigo”.

Enquanto alguns choravam o fim da vida, outros, apesar

de abalados, não acreditavam na „sorte‟ que tiveram. Em

uma matéria da página dois do Jornal Cidade está um

simples depoimento de Valdir Antônio Duarte Filho: “Perdi

hora e resolvi não ir para a aula”. Na Folha de São Paulo a

manchete é sobre Tatiana Dorante: “Estudante escapa com

vida por estar do lado esquerdo”. Assustada, ela disse ao

jornal que não queira mais estudar: “Estava distraída

quando o ônibus virou, mas consegui sair pela janela

ajudada por duas pessoas que estavam do lado de fora.

Muitas pessoas estavam deitadas no asfalto chorando e

pedindo socorro”.

Na mesma matéria está a entrevista com outra

estudante, Maria Teresa Bordinhão. Ela explicou que estava

dormindo e que, quando acordou, percebeu que estava presa

entre dois bancos: “Minutos depois, desmaiou, e quando

acordou novamente estava no asfalto sendo socorrida por

uma amiga que vinha de carro. No hospital, ela ainda não

sabia que a amiga Márcia Carbinatti, que estava sentada ao

seu lado no ônibus, havia morrido”.

Page 67: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 67 ~

Capítulo VII

Os Funerais de Campinas

"Silenciou de repente. Gemeu como um cão. E

sobre o asfalto quente seu sangue escorreu

suavemente todo pelo chão" Um ponto oito -

John Ulhoa

Das 19 vítimas do acidente do dia 20 de maio de 1994,

70% eram clientes da Funerária João de Campos, em Rio

Claro. O proprietário, Júlio César Reis, estava em São Paulo

no dia da tragédia. Alguns moradores ajudaram os

funcionários a preparar o funeral: “É uma coisa tão estranha.

Quando alguém faz o plano não imagina que vai enterrar o

filho depois dele tentar chegar na faculdade. Eu tenho

funcionários competentes para administrar isso e um monte

de gente da cidade acabou ajudando. Você não imagina a

zona que deu!”.

Campinas difere de Rio Claro no que diz respeito à

concorrência. Na cidade de um milhão de habitantes, a

responsabilidade de recolher e arrumar os corpos para os

funerais é do departamento de Serviços Técnicos Gerais

(Setec).

Quando Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, foi

assassinado em 2001, o Engenheiro Supervisor dos

Cemitérios Municipais de Campinas, José Carlos Raineri,

estava em casa. Ele ouviu a notícia na televisão e pensou:

“Lá vem mão de obra”. A pressão causada aos responsáveis

pela parte funerária de uma cidade é imensa quando se trata

de tragédias ou da morte de pessoas importantes. Para um

sepultamento importante como o de Toninho, foi preciso

preparar o cemitério: “Ninguém dormiu naquela noite”.

Page 68: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 68 ~

Enquanto Raineri, conhecido como Paulista, preparava o

terreno do Cemitério da Saudade para receber milhares de

pessoas, Toninho era resgatado pelo Corpo de Bombeiros. O

corpo do prefeito deu entrada no necrotério por volta da

meia-noite. A perícia terminou o trabalho às duas e meia da

madrugada e entregou o corpo de Toninho aos cuidados do

Gerente de Divisão Funerária, Erivelto Luis Chacon.

Desde que ouviu um boato sobre a morte de Toninho,

Chacon “ficou de prontidão”. Quando recebeu o corpo,

avisou a todos que precisaria de um prazo para preparar o

funeral: “Eu tinha prometido o corpo no velório às oito e

meia da manhã e, às seis horas, a cidade inteira estava

cobrando”. Chacon já tinha experiência com este tipo de

pressão. Em 29 de fevereiro de 1996, ele foi responsável

pelo corpo do então prefeito de Campinas, José Roberto

Magalhães Teixeira.

Quando cuidou do funeral de Toninho, Chacon manteve

o ritmo de trabalho para atender o pedido da população: “Eu

sou uma pessoa muito técnica, se eu preciso de um prazo de

oito horas para manipular um corpo, não adianta cobrar

antes”.

Um comandante da polícia militar, o qual Paulista não

lembra o nome, foi montar o esquema para receber as

pessoas no cemitério. O comandante disse que era preciso

deixar aberto apenas o portão principal para direcionar a

multidão. Paulista não concordou, pois acreditava que era

preciso abrir os outros dois portões existentes: “Se você

fizer isso, nós vamos morrer aqui dentro. Não deu outra,

dito e feito”.

Na manhã do sepultamento de Toninho, o movimento só

não foi maior por causa do incidente em Nova Iorque,

quando o atentado terrorista nos Estados Unidos desviou a

atenção da mídia para a queda das torres gêmeas do World

Trade Center. Mesmo assim, milhares de pessoas entupiram

a avenida onde estava o caminhão que transportava o corpo

de Toninho.

Page 69: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 69 ~

Houve congestionamento. As pessoas pulavam o muro

do cemitério e as coroas de flores tiveram que entrar “pelos

fundos”. Paulista assistiu e coordenou tudo com ansiedade:

“O comandante tinha que facilitar o acesso e não direcionar.

Fiquei com medo que aquele muro caísse. Foi terrível.

Quando acabou, a sensação era de dever cumprido”.

A Setec é autarquia da prefeitura do município e, desde

1975, é responsável por todos os funerais de Campinas,

Sousas e Joaquim Egídio; desde o atendimento às famílias, a

escolha do tipo de funeral, o velório e local de

sepultamento.

Setenta e cinco funcionários cuidam deste mercado que

não enfrenta concorrência e providencia cerca de 500

velórios mensais. Na cidade existem cinco empresas

particulares, chamadas de “Organizações de Luto”, que

vendem planos funerários e cuidam da parte burocrática

para o cliente associado. Mas o produto final, a urna e a

arrumação do corpo, que vai ser enterrado em algum dos

nove cemitérios da região, é direito e responsabilidade

exclusiva da Setec.

Em Campinas existem três cemitérios públicos e seis

particulares. A fiscalização de todos eles é função do poder

público. Em Campinas não existe um crematório e, para usar

este serviço, é preciso ir para São Paulo. O transporte do

corpo para a capital paulista custa R$ 180,00 e para cremar

são investidos mais R$ 320,00.

Chacon sabe que a cidade merece ter um crematório

próprio: “Quem afasta a ideia do crematório é a igreja

católica que não era a favor da cremação porque a bíblia fala

„do pó ao pó voltará‟. Os mais antigos não aceitam a

cremação. Hoje, essa ideia está melhorando até na questão

de doação de órgãos”.

O maior cemitério de Campinas é o da Saudade, onde os

senhores do café ostentavam riqueza pela construção

soberba das sepulturas, grande parte abandonada pelo

Page 70: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 70 ~

descaso ou falência das famílias. Fundado pelo município

em 1880, o terreno se localizava a 17 quilômetros do centro

da cidade. Ocupa um espaço de sete alqueires com 32 mil

sepulturas e com o registro de 480 mil óbitos. É o cemitério

mais tradicional da cidade. Nele acontece a primeira cena do

filme inspirado no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas,

de Machado de Assis. Dois funcionários da Setec

participaram da filmagem carregando a urna do personagem

principal, interpretado por Reginaldo Farias.

O local possui túmulos, mausoléus e capelas onde estão

sepultadas personalidades como Francisco Glicério, Barão de

Atibaia e Bento Quirino. Há mais de 120 anos o Cemitério da

Saudade é considerado um museu a céu aberto por abrigar

obras de arte esculpidas em mármore.

Por conta das características tradicionais e artísticas, o

cemitério é alvo de interesse para a publicidade. Uma

agência contratou modelos para serem filmadas e

fotografadas entre os túmulos. Antes do ensaio fotográfico,

elas se reuniram para conversar. Quem trabalhava nas

bancas de flores ficou assustado e pensou que a cena

pudesse anteceder a preparação de um ritual macabro, já

que as modelos vestiam roupas pretas. A imprensa foi

chamada e Chacon precisou explicar o que estava

acontecendo. O fato foi publicado em uma nota no jornal.

Com uma área de sete alqueires abarrotada de obras de

arte, à noite o Cemitério da Saudade é vigiado por apenas

três seguranças. Eles circulam sem arma e sem carro.

Paulista explica que o ideal seria terceirizar a segurança ou

trabalhar em conjunto com a Guarda Municipal: “É o nosso

grande desafio. A Guarda Municipal existe para tomar conta

do patrimônio público, e o que acontece? Roubo de vasos e

tudo mais”.

Alvo do vandalismo e dos ladrões, o cemitério é

destruído aos poucos. Os seguranças são concursados e

trabalham como “apontadores de fatos”, sem armamento e

sem poder de prisão. O carro para fazer parte na segurança

Page 71: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 71 ~

do cemitério foi tirado de circulação porque nem todos

possuem habilitação: “Com o carro é pior do que a pé, pois

não é em todas as ruas que o veículo tem acesso. Se alguma

pessoa vê o carro, ela se esconde. Principalmente à noite”.

Afinal, são 32 mil sepulturas, uma ao lado da outra,

distribuídas por todos os lados. Seria preciso uma bússola

ou bom conhecimento do terreno para não se perder. O que

possibilita enxergar a direção é o horizonte da cidade

repleto de prédios.

O Cemitério Parque Nossa Senhora da Conceição,

conhecido como Amarais, foi fundado em julho de 1969 e

atualmente possui 22 mil sepulturas. Com 150 mil metros

quadrados, o Cemitério dos Amarais é todo gramado e não

possui túmulos ou capelas, mas apenas carneiros (gavetas)

abaixo do solo. A estrutura deixa os falecidos em igualdade,

pois não há apologia aos bens materiais adquiridos em vida.

É ao lado do Cemitério dos Amarais que se localiza o

Necrotério Municipal, com salas de necropsia e câmara fria,

utilizadas pelo IML e pelo Serviço de Verificação de Óbito de

Campinas.

O terceiro Cemitério Municipal está localizado em

Sousas. Ocupa uma área de quatorze mil metros quadrados e

é considerado “um dos mais bonitos da região”.

Um funeral custa dinheiro. Em Campinas, a quantia

varia de R$ 300,00 a 12 mil, preço pago pelo velório do

prefeito Toninho.

No mostruário estão expostos 25 tipos de urnas, desde a

mais simples até a mais cara, incluindo as infantis. Em

depósito, existem 149 modelos diferentes. Quatro fábricas

são fornecedoras da Setec e o funeral é diferenciado pelo

tipo de urna: detalhada, lisa, envernizada, tipo de alça, com

ou sem visor e forramento interno.

Para a classe mais pobre, existe a quadra geral no

Cemitério dos Amarais onde os corpos são enterrados na

terra e permanecem no local por três anos até serem

Page 72: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 72 ~

retirados. É cobrada uma taxa de R$ 9,00 para o

sepultamento, mas existem famílias pobres que, depois de

enterrar um ente, conseguem juntar dinheiro para colocar o

corpo em um local fixo.

Se uma pessoa diz que é carente e pede o funeral

gratuito, a Setec precisa atender o pedido mesmo que a

pessoa aparente o contrário vestindo roupas caras ou

dirigindo um carro novo.

A maioria dos óbitos de recém nascidos é destinada ao

funeral gratuito. Quem optava pelo procedimento gratuito

não possuía o direito de velar o corpo. A regra foi

modificada, mas se o velório estiver lotado o espaço é

prioridade de quem pagou.

Algumas pessoas escolhem não gastar com funerais nem

com espaços em cemitérios. Outros, solicitam um funeral

caro, mas sepultam na quadra geral. Aqueles que pagam pelo

funeral mais caro costumam pedir o que a Setec tem de

melhor e não fazem questão de escolher a urna ou a coroa

de flores.

Chacon trabalha na Setec há quase 20 anos. Na sala dele

há uma mesa, cadeiras confortáveis, computador e um

grande quadro pintado à mão. Muitos girassóis. Ele não foge

à regra quase absoluta de trabalhar no ramo por conhecer

um parente envolvido com o mercado que cuida de corpos

sem vida.

O irmão de Chacon trabalhava em uma funerária de

Campinas na década de 70: “O meu irmão foi gerente da

funerária Davi, que na época era concessionária da Santa

Casa. Quando criaram a Setec, em 1975, ele veio administrar

o serviço. Em 1984 saí do quartel, então ele me convidou

para vir e estou aqui até hoje. Eu sou um dos últimos

funcionários que entrou na Setec sem concurso”.

Chacon começou como agente funerário e confessa que

trabalhar para o setor parecia diferente. Ele é exigente e

cobra dos funcionários e de si mesmo que o trabalho seja

Page 73: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 73 ~

bem feito. O único serviço que ele ainda não fez foi a coroa

de flores. Prefere mexer com um corpo a ficar na mesa

despachando papel.

Com Paulista foi diferente. Ele estudava Matemática na

Puc Campinas, mas desistiu do curso. Começou a faculdade

de Engenharia Civil e conseguiu um estágio com um amigo

que era presidente da Setec. Paulista começou a cuidar do

arquivo de plantas da prefeitura e em dois meses foi

transferido para a Setec. Por causa de um projeto no

Cemitério dos Amarais, Paulista foi contratado para

administrar o local e logo começou a gerenciar os outros

dois cemitérios municipais: “Antes eu nem passava na

calçada de cemitério. Foi diferente, mas depois vi que tinha

muita gente trabalhando. É uma área que você tem que ser

um pouco herói porque você ajuda alguém, mas ao mesmo

tempo não consegue ajudar”.

Tanto Chacon quanto Paulista procuram se atualizar

profissionalmente e participam de eventos importantes da

área funerária. A Setec faz parte da Associação dos

Cemitérios do Brasil (Acembra), um grupo que era formado

somente por cemitérios particulares, sendo a Setec o

primeiro setor funerário municipal a ser convidado para

integrar a Acembra.

No futuro, Chacon pretende criar a Associação dos

Cemitérios Públicos do Estado de São Paulo: “Há muita

diferença entre você trabalhar no serviço público ou em uma

empresa privada. Os objetivos são diferentes”. No serviço

público é preciso fazer tudo com o menor custo para ter

resultado, enquanto as instituições privadas buscam vender

cada vez mais o seu produto: “De qualquer forma eu não

conheço ninguém do ramo funerário ou mesmo de

cemitérios que não se deu bem”.

Antes do advento dos cemitérios, os mortos eram

enterrados em fazendas ou nos quintais das igrejas. Com o

aumento da população, inauguraram o Cemitério da

Page 74: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 74 ~

Consolação em São Paulo que atualmente se localiza dentro

da cidade.

Para ser dono de um cemitério, primeiro é preciso ter

um terreno. Se for em Campinas, o espaço vai passar pela

supervisão da Setec, do Conselho Nacional do Meio

Ambiente e de outros órgãos nacionais: “É preciso impor a

regulamentação. No Brasil inteiro você vê cada absurdo! Tem

gente que sepulta um corpo a um metro de profundidade,

onde passa água. Tem muito detalhe técnico”. É preciso que

todos os requisitos estejam de acordo com o Procedimento

de Implantação de Cemitérios, como a existência de velório

e estacionamento.

Para estacionar no espaço reservado ao Cemitério da

Saudade de Campinas é preciso pagar R$ 3,50. O dinheiro é

destinado a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

(APAE).

Os servidores públicos que precisam lidar diariamente

com a morte não possuem apoio emocional, mas há

situações em que eles desempenham a função de assistentes

sociais para as famílias que estão aparentemente mais

abaladas. Na Setec, o único responsável pela saúde dos

funcionários é o médico do trabalho.

A assistente social Sandra Regina Camargo seria a

pessoa indicada para dar suporte emocional àqueles que são

prejudicados pelo tipo de trabalho que realizam, mas ela

cuida dos trabalhos referentes ao departamento de Recursos

Humanos: “Infelizmente não tem serviço social ou

psicológico para os funcionários”.

O trabalho braçal de recolher os corpos sem vida é

responsabilidade dos motoristas. No edital do concurso está

descrita a atribuição do cargo e, na prova, existe um teste

prático no necrotério para que os candidatos possam ver os

cadáveres: tocar, sentir e conhecer as diversas fases e faces

da decomposição. Com a leitura do edital, alguns não se

convencem da abrangência da função a ser exercida e

Page 75: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 75 ~

passam para o exame prático: “Na prática, 10% desiste.

Alguns, pela necessidade do dinheiro, tentam enfrentar”.

Para remover cadáveres, os funcionários usam proteção

individual para evitar o risco de contaminação: “Alguém

pode morrer num acidente, mas ser portador de AIDS ou

tuberculose”.

Anderson Lima é motorista da Setec há mais de quatro

anos. Gosta do que faz, mas tem que enfrentar situações de

perigo: “O trabalho não é difícil, depende do lugar. Difícil é

ir à favela de madrugada, já atiraram na gente atrás do

Uemura. Saímos do local sem o morto, buscamos reforço e

voltamos. Resgatar corpo em lagoa também é complicado”.

Os afogamentos são comuns no verão.

Rosalina Clara Pereira trabalha na Setec e é uma das

pessoas responsáveis pela preparação de corpos para

velórios. Ela era técnica de enfermagem e chegou a tratar de

um paciente acidentado por mais de dois anos. A maior

dificuldade não é preparar um cadáver para o funeral, mas

lidar com o sofrimento das famílias: “Às vezes a família vem

aqui, debruça em cima da gente e começa a chorar. Conta

histórias de como o falecido ficou doente. Aí você tem que

ouvir. Não fico chateada com isso, mas fico triste junto com

a família”.

Rosalina fica atenta para não levar tristeza para casa:

“Só conto os casos mais pitorescos e interessantes. Uma vez

fomos buscar um corpo em uma casa de repouso. A pessoa

tinha falecido na cadeira de rodas. A gente chegou e

cumprimentou o idoso que estava na cadeira. Foi então que

avisaram que o corpo era da pessoa que a gente tinha

cumprimentado”.

Quando Rosalina precisa preencher cadastros com seus

dados, como idade e profissão, ao dizer que é atendente

funerária, as pessoas ficam curiosas e perguntam muito:

“Enchem a gente de perguntas e até esquecem do que

estavam fazendo. É comum a curiosidade. Não me incomoda,

Page 76: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 76 ~

sempre respondo. Nunca senti preconceito e tenho orgulho

do que eu faço. Tem gente que esconde. Eu poderia estar

dentro do hospital, mas prefiro aqui. No hospital o

sofrimento é continuado. Aqui não, você sofre naquela hora

e acabou”.

Hoje, como atendente funerária, Rosalina está adaptada:

“Primeiro eu tratei de doente e agora cuido de morto”. Ela

não permite que a família da pessoa falecida veja a

arrumação do corpo: “A família não pode ver porque para

eles dói muito. Coloco gesso no nariz e do corpo vaza de

tudo. De enfarto vaza sangue. Quando o problema é no

estômago vaza líquido escuro ou de outras cores. Problemas

de fígado, pâncreas ou hepatite, o líquido é amarelo. Às

vezes sai fezes pela boca”.

Em meia hora Rosalina consegue arrumar um corpo

“magrinho e em ordem”. Ela faz os tamponamentos, que é o

procedimento de obstruir os orifícios do corpo (nas partes

genitais o tamponamento é feito no hospital), a maquiagem,

coloca as roupas, as flores, penteia o cabelo e faz a barba.

Tudo com o corpo dentro da urna.

Enquanto Rosalina explica como faz o serviço e espera a

chegada de um corpo gordo “que dá muito mais trabalho”, o

motorista João Batista chega para avisar que o falecido

obeso precisou passar primeiro pelo IML. “Ainda bem”, diz

Rosalina, aliviada.

Há 11 anos na Setec, Batista trabalha 12 horas por dia,

fala rápido e fica comovido quando tem que fazer remoção

de criança: “Uma criança ficou pendurada pelo pescoço no

vão da cama enquanto dormia, devia ter um ano de idade”. A

mãe dormiu, o bebê escorregou e morreu enforcado. Batista

defende a mãe que nem conhecia: “Cansada, ela dormiu. Não

teve culpa. São coisas que fogem do nosso alcance”. As

situações que Batista vê durante o dia, ele não conta nem

aos familiares: “Não divido com ninguém, divido com a

Jurubeba que tomo no bar depois do serviço”.

Page 77: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 77 ~

Capítulo VIII

Quem Crê Em Deus Jamais Morrerá

"É mais fácil cultuar os mortos que os vivos.

Mais fácil viver de sombra que de sóis. É mais

fácil mimeografar o passado que imprimir o

futuro"

Minha Casa - Zeca Baleiro

Dezenas de barraquinhas de flores se misturam em

frente ao Cemitério da Saudade de Campinas. Flores de

todas as cores e aromas. Uma dúzia de rosas coloridas é

vendida por R$ 5,00, enquanto uma coroa para velório varia

de R$ 60,00 a 300,00.

A barraca mais próxima da porta do cemitério pertence à

Maria Luiza Inocente Teixeira e seu marido, Ricardo Alves

Teixeira, pai de seus três filhos. Há 23 anos trabalham com

flores. Vieram do Paraná, passaram por Goiânia e pararam

em Campinas há quatro anos. Eles cumprem o expediente

das sete da manhã às sete da noite. Em dia de festas, o

trabalho começa às cinco da madrugada. As datas mais

rentáveis são o dia das mães, dos namorados e de finados.

Todos os dias Maria Luiza testemunha vários enterros:

“Tem dia que tem uns 18 velórios”. Quando vê funeral de

recém nascido e criança, Maria Lúcia fica chateada: “Isso não

podia acontecer. Fico triste quando vejo um pai carregando

um caixãozinho de criança, enquanto a mãe ainda nem saiu

do hospital”.

Cada ritual tem sua particularidade. Os católicos

cantam, os homens ciganos lamentam e os japoneses usam

comida e incenso nos rituais: “Depois de alguns anos, os

japoneses vêm lavar os ossos dos mortos”.

Page 78: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 78 ~

Maria Luiza observa o movimento enquanto faz os

arranjos de flores: “Às vezes, tem família que enterra a

pessoa e já sai brigando pela herança”.

As frases gravadas nas faixas que acompanham as

coroas de flores são variadas: “Teve um senhor que cuidava

de um monte de cachorro de rua e, quando ele morreu, a

neta dele pediu para fazer uma faixa com os nomes de todos

os cães”.

A florista acredita que o hábito de visitar cemitérios vai

acabar porque as pessoas não têm interesse: “Aqui em São

Paulo é estranho, os jovens não têm esse costume, diferente

de Goiás e do Paraná. Isso tudo vai acabar. Dizem que no

cemitério tem muito ladrão e assaltante, mas eu nunca vi

isso por aqui”.

No outro canto da fileira de barracas trabalha Tatiana,

uma moça de cabelos longos e cacheados. De acordo com a

cor das flores, Tatiana procura imaginar como é a pessoa

falecida que vai receber o arranjo que ela preparou. A coroa

mais bonita é feita de rosas vermelhas. Alguns clientes

choram enquanto solicitam o produto: “A gente fica olhando

chorar, não dá para fazer nada, no máximo sugerir a frase

que vai estampada na faixa. Às vezes a pessoa está chorando

tanto que nem consegue falar”. Há alguns meses

encomendaram uma frase para acompanhar uma coroa de

flores e Tatiana nunca esqueceu a mensagem: “Quem crê em

Deus jamais morrerá”.

Dentro do cemitério, entre muitos trabalhadores, existe

uma única empreiteira que constrói túmulos. Elizabete

Carrera trabalha em um campo predominantemente

masculino. Ela gosta do local, mas reclama que o vandal ismo

destrói seu trabalho: “Góticos deixam preservativos e

garrafas espalhadas. Cemitério não é para isso. Não colocam

polícia, antes tinha guarda. De três anos para cá parou.

Liguei para os jornais, mas ninguém veio. As pessoas têm

medo de assalto. Tivemos prejuízo de R$ 1.400,00 por causa

de um túmulo duplo quebrado”.

Page 79: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 79 ~

Elizabete segue a tradição de família junto com o

marido. Os dois trabalham o dia todo dentro do Cemitério

da Saudade de Campinas em concorrência com mais 14

equipes de empreiteiros.

A construção de um túmulo custa de R$ 1.600,00 a R$

3.200,00. Em geral, ela e o marido, Edson Nazareno Brolacci

Pinto, constroem apenas duas sepulturas por mês, pois as

pessoas não investem no cemitério como era feito

antigamente.

Além da construção de túmulos, eles realizam

sepultamentos que custam de R$ 30,00 a 630,00. Os

empreiteiros não são servidores públicos e precisam se

submeter à supervisão da Setec. Eles são recadastrados

anualmente e alguns trabalham na área há mais de 50 anos.

O marido de Elizabete frequenta o cemitério desde os

sete anos de idade e começou a trabalhar como empreiteiro,

junto com o pai, quando tinha 13. Ele e a esposa estudaram

até o „terceiro colegial‟. Todos os dias a filha mais nova do

casal, Larissa Gabriele Pinto, vai com os pais até o

cemitério.

Enquanto Elizabete relata sua experiência, Brolacci se

dependura em uma árvore para pegar frutas para a filha de

quatro anos. A menina brinca o dia todo perto dos pais e

corre entre os túmulos. Jeito sapeca e saudável. Elizabete

conta que Larissa quase nunca fica doente: “No máximo, ela

fica gripada”.

Tanto os avós quanto os pais de Elizabete trabalhavam

no Cemitério da Saudade: “A família toda vive daqui do

cemitério, do nosso trabalho”. Tirar férias não é possível:

“Dá medo de dar as costas e acontecer alguma coisa”.

Lidar com morte é complicado e a prioridade da família

que trabalha há décadas no mesmo local é atender o cliente

com cuidado e educação: “Às vezes, a gente é influenciado

pelo problema das pessoas. Vem mãe que perdeu o filho em

acidente de moto, criança atropelada. Você vê coisas muito

Page 80: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 80 ~

tristes. É um serviço desgastante emocionalmente, mas você

muda seu raciocínio e dá mais valor à vida e à amizade.

Você respeita mais o ser humano como gente. É um serviço

digno e sofrido. Algumas pessoas desmerecem o nosso

trabalho. Nós abrimos a porta do túmulo, guardamos o

corpo lá dentro e cuidamos para que não exale cheiro. Há

quem reclame do preço, que é de R$ 30,00 pela mão de obra

do sepultamento. O corpo pode vazar e a gente perde a

roupa. Se uma pessoa faleceu de insuficiência renal, o corpo

está inchado, então a barriga pode romper quando a gente

tem que inclinar o caixão para o sepultamento”.

Elizabete tenta não levar os problemas para casa e

depois do expediente, se sente vontade de chorar, ela

extravasa: “Ouço uma música, choro, falo, gesticulo. No

cemitério, sou bastante profissional, mesmo assim fico

amiga de muitas famílias que sepultam parentes aqui”. Para

aliviar o peso emocional de trabalhar com a tristeza alheia,

Brolacci costuma pescar.

Elizabete engravidou da filha mais nova aos 43 anos.

Hoje, Gabriele está com quatro e os outros dois filhos mais

velhos da empreiteira têm mais de 20 anos de idade. A vida

de Elizabete não é fácil, mas a serenidade com que trata as

pessoas é o tempero para a felicidade profissional e

familiar. A mãe dela sofreu um derrame, não consegue

entender a realidade e precisa de todos os cuidados: “Ela

fica uma semana comigo e uma semana com a minha irmã. A

gente divide o fardo. Eu tenho um bebê que quer atenção e

minha mãe para cuidar”.

No cemitério onde trabalha, são sete alqueires para

caminhar todos os dias. Mas ela não pensa em mudar de

profissão: “A gente pega amor por isso. Tem gente que

brinca e diz que se bebeu da água daqui, é difícil sair.

Realmente é. Eu não sei explicar, acho que é porque passa

de pai para filho. É o que nós sabemos fazer com amor”.

Como afirmado pela maioria dos entrevistados, lidar

com a morte é mais tranquilo do que com pessoas vivas.

Page 81: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 81 ~

Elizabete explica por quê: “A partir do momento em que

você morreu, eu não tenho mais nada a fazer por você, a não

ser te guardar com carinho e respeito. O problema é que,

atualmente, as pessoas se respeitam menos e parecem agir

como máquinas. O ser humano busca o trabalho, mas não

tem respeito. Não deseja um bom dia e passa por cima de

tudo”.

Elizabete não tem uma igreja definida para frequentar,

mas reza todos os dias e acredita em um juízo final. “Se nós,

que somos humanos ficamos esgotados, imagine Deus! Ele

deve estar muito revoltado”. Parar de trabalhar no cemitério

não faz parte dos planos dela. “Se eu parar, sou capaz de

morrer de frustração. Eu gosto desse sossego, gosto de ficar

aqui”. Ela costuma ler as frases gravadas nos túmulos. Certo

dia se deparou com palavras escritas para um recém

nascido: “Quanta ilusão desfeita nessa lousa”.

Há alguns anos, o pai de Elizabete teve um ataque do

coração enquanto trabalhava no cemitério, e caiu em cima

de um túmulo: “Chamamos a equipe do Samu. Eles não

acreditaram na história, acharam que era brincadeira”.

Conseguiram socorro com a Guarda Municipal de Campinas.

O pai de Elizabete não sobreviveu. A entrevista acontece ao

lado do túmulo dele.

A pequena Larissa aparece para pedir a atenção da mãe.

O pai, Brolacci, vem chamar a família para ir embora. É fim

de tarde. Eles são fotografados. A menininha esconde o

rosto com vergonha.

Assim que Elizabete vai embora para casa com a família,

os guardas noturnos chegam para cumprir doze horas de

trabalho. Das seis da tarde às seis da manhã, os seguranças

desarmados caminham por entre túmulos e capelas do

cemitério. Pelo caminho está o cheiro de flor, a brisa e o

silêncio.

Sem arma e sem carro, Wagner Destro, aos 42 anos,

caminha 86 quadras por noite há três anos: “Para contornar

Page 82: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 82 ~

o cemitério a pé levamos uma hora. Não sei porque tiraram o

carro que usávamos para trabalhar”. Os túmulos são altos e

facilitam que as pessoas se escondam. Em um terreno de

mais de 80 mil metros quadrados, com três seguranças, é

impossível evitar que os furtos aconteçam.

E eles não estão sozinhos durante as 12 horas de

trabalho. Pela madrugada, algumas pessoas visitam o

cemitério. Os mais conhecidos são os góticos e os roqueiros

que, segundo os guardas, não representam perigo. Eles

dançam, cantam e vestem roupas pretas: “Não fazem mal

para ninguém”. Durante o dia, além dos funcionários,

sepultadores e empreiteiros, outras pessoas transitam pelo

cemitério para ler, desenhar, fotografar ou fazer artesanato.

“Esse pessoal não atrapalha”.

Quando chove, algumas situações estranhas acontecem,

como cães segurando os ossos que saem dos túmulos por

causa da água: “A gente pega esse material e coloca em um

saquinho”. Destro não tem medo da morte e é evangélico:

“Eu nunca tive medo e nem vou ter. Creio em um outro lado

melhor do que esse aqui. Quem tem Deus na vida, não tem

medo da morte”.

Altair Alves Paixão é o segurança mais novo, com 27

anos. Há três ele trabalha nos cemitérios municipais de

Campinas. “Nós somos os fantasmas do cemitério”. O medo

só está presente por causa da possibilidade de assalto.

Antônio Aparecido é o mais velho e o único que não é

evangélico. Para ele, o perigo da profissão fica por conta de

tudo o que anda: “Os roqueiros são excelentes, o problema

são os ladrões”. Quando o expediente acaba e o sol começa a

aparecer no horizonte, a sensação e a resposta dos três

seguranças noturnos é a mesma: “Alegria! A gente sente

alegria”.

Page 83: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 83 ~

Capítulo IX

Funexpo 2003

"Nada mais falso do que o medo de morrer, e

eu diria que nós fazemos tudo para morrer o

mais depressa possível. Os nossos hábitos, os

nossos usos, os nossos vícios, as nossas

irritações mal disfarçam a vontade, a

urgência, a fome de morte."

Nelson Rodrigues

São Paulo, setembro de 2003, sábado às nove da manhã.

Um ônibus lotado de pessoas bem vestidas sai de um hotel

em direção ao Centro de Exposições Imigrantes.

Empresários e interessados no mercado funerário se

reúnem e trocam cartões antes de chegar ao local onde

acontece a Funexpo 2003. Logo na entrada da exposição, um

guindaste sustenta um caixão gigante.

O movimento de visitantes aumenta a cada minuto.

Muitos querem ser fotografados ao lado da maior urna do

mundo. De madeira e alças douradas, pesa dois mil quilos,

tem sete metros de comprimento, 2,40 metros de largura e

um 1,80 metro de altura. São 4,5 mil metros quadrados de

exposição funerária.

Antes de chegar perto da urna de sete metros de

comprimento, algumas placas intercaladas na porta de

entrada homenageavam escultores brasileiros e italianos.

Quase ninguém parou para ver. As informações culturais

ficaram ali paradas como as estátuas dos retratos.

Em uma das molduras estava a homenagem à campineira

Nicolina Vaz de Assis, considerada a maior escultora

brasileira. “Nicolina realizou uma obra cheia de formosura,

transmitindo aos seus trabalhos a sentimentalidade e as

Page 84: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 84 ~

delicadezas de sua alma de mulher”. Na foto, a escultura

mostrava uma figura feminina em mármore com um 1,78

metro de altura existente no Cemitério da Consolação,

quadra 36.

A Funexpo 2003 não trouxe lucro apenas para a

economia funerária, mas também para alguns hotéis de São

Paulo. Foram registradas 300 reservas hoteleiras ligadas

diretamente à feira. Cada quarto ocupado movimentou, no

mínimo, R$ 100,00. Amanda Blazzi é funcionária da agência

Family Travel e foi contratada para ser uma das

responsáveis pela organização do evento. Amanda fez

reservas para pessoas de localidades como Pernambuco,

Porto Alegre, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia,

Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Argentina, Holanda,

Chile, Bolívia, Colômbia, Itália e Venezuela.

Alessandra Torres também foi responsável pela

organização hoteleira realizada pela empresa Family Travel,

de Botucatu. Sem esconder a surpresa de estar pela primeira

vez na Funexpo, conta que no início achou a idéia um pouco

estranha e que os comentários ficaram por conta da família:

“Ai credo, que macabro”.

Há cinco anos a Funexpo é a maior exposição funerária

da América Latina e atrai novidades e empresários do Brasil e

do mundo. Em 2003, 60 estandes, entre eles oito

estrangeiros, foram montados no Centro de Exposições

Imigrantes. O evento recebeu seis mil visitantes em três dias.

Os negócios movimentaram R$ 4,5 milhões entre carros,

urnas, paramentos, material de tanatopraxia, vestimentas,

cartões personalizados, softwares de gerenciamento,

transformação de veículos em carros funerários, material de

convalescença que são muletas, cadeiras de rodas, colchões

d‟água e outros aparelhos. No Brasil, o mercado funerário

movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano.

A Funexpo foi criada pelo Centro de Tecnologia e

Administração Funerária (CTAF). Além de organizar as feiras

bienais, o CTAF administra cursos, presta consultoria para

Page 85: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 85 ~

funerárias em qualificação profissional e forma

tanatopraxistas em todo país.

A tanatopraxia é uma técnica originada no Egito para a

conservação de múmias e que está sendo difundida no Brasil

há nove anos. Na feira, todos falam da tanatopraxia, que é a

troca do sangue por um líquido que tem como base o

formol. O líquido é aprisionado no sistema muscular e esse

produto inibe o desenvolvimento das bactérias: “A família

chega a se sentir orgulhosa pelo corpo estar bonito”.

O curso de tanatopraxia é ministrado em Campinas

pelos professores de anatomia da Faculdade de Medicina da

Unesp de Botucatu, Oysenil José Tâmega e Progresso José

Garcia. Eles trouxeram a técnica aperfeiçoada de

embalsamamento dos Estados Unidos, Colômbia e Espanha.

“Em Madri, a técnica da tanatopraxia é avançada”.

Em 2003 foram ministrados oito cursos com 16 alunos

por turma. Em cada aula do curso são utilizados dois

cadáveres e duas mesas: “Cada kit de tanatopraxia custa em

média R$ 5 mil. Em dois dias, foram vendidos cerca de 10

conjuntos completos”.

A urna é o principal produto da feira, com novidades

como urna para casal e urna que funciona por controle

remoto. Os carros adaptáveis para transportar corpos são

alvos de grande interesse, mas pode haver preconceito

quando o setor escolhe um carro para usar seus serviços

funerários, como aconteceu com a Caravan. Por isso, as

montadoras disputam o espaço para adaptar seus veículos.

Um deles é da marca Renault. Outra novidade que “vendeu

que nem água” foi suporte de cabeça para cadáveres.

O lucro é certo, não há crise. Uma brincadeira, embora

desgastada, ainda é citada pelos presentes e carrega sua

mais natural verdade, afinal, “os clientes não voltam para

reclamar”. O custo benefício da Funexpo é positivo. Para

quem precisa negociar, a exposição é perfeita: “Todo mundo

se vê aqui em três dias”.

Page 86: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 86 ~

Durante o ano todo, as cinco mil e quinhentas empresas

funerárias no Brasil trabalham 24 horas por dia e o

movimento econômico é expressivo, pois emprega mais de

100 mil trabalhadores.

O número respeitável de empresas no setor requer

cursos de capacitação e a técnica mais requisitada para

quem busca aperfeiçoamento é a tanatopraxia, que consiste

na preparação adequada do corpo para o velório e que busca

melhorar a alteração causada pela morte, como vazamentos,

odores desagradáveis e coloração da pele. A técnica

possibilita que um ritual seja estendido por mais de 24

horas e, em alguns casos, por mais de 20 dias.

No comando de toda estrutura e inovação está o

presidente da Funexpo, da Associação Brasileira de Diretores

e Empresas Funerárias (Abredif), vice-presidente da

Associação Latino Americana de Parques e Cemitérios

(Alpar), diretor executivo do CTAF e estudante de Direito,

Lourival Panhozzi.

Ele explica que o aumento significativo do uso da

tanatopraxia acontece devido à dispersão das famílias que,

às vezes, moram em estados ou países diferentes. “O

nascimento é um evento importante como o aniversário e o

casamento, mas o derradeiro evento de uma família é a

cerimônia fúnebre. É a que mais une, a que mais aproxima e

a que mais torna todos iguais”.

Ao ter consciência da importância deste ritual, a

empresa que trabalha com a tanatopraxia pode evitar a

correria da família, que faz questão de estar presente. Por

causa da pressa e do estado psicológico de um momento

triste, há pessoas que sofrem acidentes graves nas estradas.

Um momento de dor pode se tornar uma tragédia. Para

ilustrar, conto a história de um rapaz que não quis ser

identificado. A vida dele conserva uma ferida que se estende

por gerações. Quando era bebê, seu pai e todos seus tios

foram velar um parente em uma cidade vizinha. As mulheres

Page 87: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 87 ~

ficaram em casa cuidando das crianças. No caminho, o grupo

sofreu um acidente de carro e ninguém sobreviveu. Depois

de mais de 30 anos ele apenas pode constatar que, em sua

família, todos os primos são órfãos de pai.

Com a tanatopraxia, o processo biológico de

decomposição é adiado e o corpo fica com a aparência de

alguém que está dormindo. Sem a técnica, o funeral deve

durar menos de 24 horas, o que pode significar pouco tempo

para comunicar a família e velar o corpo.

Para investir na qualidade, os profissionais podem fazer

cursos de psicologia, atendimento ao cliente,

relacionamento e controle de qualidade. Se antes a maior

preocupação era com a morte, hoje as empresas cuidam da

vida do cliente com diversos benefícios.

O fato é que conseguir a satisfação do cliente em um

funeral é algo impossível. “Ninguém fica satisfeito de ter

que ir a um funeral, a satisfação do nosso cliente é quando

conseguimos amenizar um pouco a dor que é tão grande. Se

você conseguir poupar um pouco aquela pessoa, você já

conseguiu muito”. Enquanto Lourival explica como amenizar

a insatisfação do cliente, as sirenes dos carros em exposição

na Funexpo 2003 não param de fazer barulho.

O número de pessoas presentes aumenta, o Centro de

Exposições lota, negócios são feitos a cada minuto, cartões

são trocados, bebidas servidas. Em um dos estandes há

cerveja à vontade e muitos homens com copos na mão.

Parece uma grande festa. É quase hora do almoço, a praça de

alimentação começa a exalar o cheiro de comida, duas

crianças correm e brincam entre as urnas.

Mais negócios são fechados.

Entre tantos homens, encontra-se Taisa Berlingieri,

psicóloga e filha do proprietário da Funerária Santa Isabel e

do Sistema Prever. Ela ajuda a administrar a empresa de

Jaboticabal, que era do avô. Em breve, pretende implantar a

Psicologia do Luto, que é o apoio emocional à família

Page 88: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 88 ~

associada: “Acho que falta um grupo de orientação para

mães que perderam filhos e crianças que perderam pais.

Seria interessante oferecer mais um benefício ao associado”.

Após um enterro, o cliente da Funerária Santa Isabel

conta com um profissional para cuidar da documentação e

encaminhar as roupas e remédios de quem faleceu para

asilos e instituições de caridade. Todos os rituais

preparados pela Santa Isabel usam a técnica da tanatopraxia.

Os planos podem custar de R$ 250,00 a 6 mil. Existem

profissionais aptos a acompanhar a família “inclusive com

medidor de pressão arterial”.

Em Jaboticabal residem cerca de 70 mil pessoas e o

número de associados da Santa Isabel é de 70 mil. A

empresa não tem concorrente na cidade e o número elevado

de associados tem uma explicação: a funerária presta

serviço para toda a região de Jaboticabal.

De pai para filho, dificilmente uma funerária é

administrada por funcionários. Na Funexpo 2003 houve um

encontro inédito entre os jovens que, em breve, vão assumir

o comando de empresas. Taisa acredita que esta foi a melhor

maneira encontrada pelos empresários de apresentar o

mundo dos negócios funerários para filhos e filhas. “A

reunião dos sucessores tem o objetivo de discutir as

dificuldades de assumir uma empresa onde praticamente

crescemos. É difícil, de repente, sair do papel de filho do

dono que corre pela empresa e brinca com os funcionários

para o papel de administrador que cuida do negócio, dá

ordens e faz mudanças na empresa. É muito bom quando

temos a oportunidade, como eu estou tendo, de assumir

juntamente com meu pai. Muitos outros jovens tiveram que

assumir a empresa no susto, de uma hora para outra, por

causa da morte dos pais. Aí sim é difícil, porque tem que

aprender tudo sozinho”.

Mário Fernando Berlingieri é pai de Taisa e, aos 54 anos

de idade, ele é vice-presidente da Abredif, diretor do CTAF,

do orfanato Lar do Caminho, proprietário da Funerária Santa

Page 89: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 89 ~

Isabel e do Sistema Prever, formado em Ciências Sociais e

Direito. Desde criança convive com urnas e corpos. Com

fluência verbal e raciocínio lógico, fala dos planos de

elaborar um manual funerário que resgate a história do

setor e que compartilhe as situações em que são obrigados a

resolver problemas complexos, como no caso de transporte

aéreo e leis pouco objetivas.

Dentro da funerária Santa Isabel existe uma sala de

cirurgia para a retirada e doação de córneas. Berlingieri

interfere junto à família de forma didática para garantir a

doação: “Queremos envolver os diretores funerários do

Brasil inteiro nesses projetos de doação de órgãos, pois nós

somos as pessoas mais próximas nesse momento tão difíci l”.

A córnea é retirada na funerária porque é a única parte

do corpo que pode ser utilizada depois do óbito. No local

dos olhos verdadeiros são colocados olhos de plástico com a

finalidade de não trazer para a família qualquer tipo de

constrangimento. “Não é porque estamos mexendo com um

corpo sem vida que tem que haver desrespeito. Aquele corpo

amou, foi amado, transitou pela terra, gerou filhos,

produziu. Temos respeitar, mesmo que este corpo esteja

retornando para o laboratório da natureza”.

Depois da conversa esclarecedora sobre administração

funerária, entrevisto Jonacir Amorin. Ele é um dos maiores

fabricantes de urnas do estado de São Paulo. A Faurtil,

localizada em Tietê, está há 49 anos no ramo e emprega 50

pessoas. Amorim sabe que os donos das funerárias são

exigentes, então buscou aperfeiçoamento profissional pelo

mundo.

Sem saber falar inglês, Amorin e seu maior concorrente,

Marcos Bignotto, viajaram juntos para os Estados Unidos em

busca de novas informações: “Nos Estados Unidos andamos

seis mil quilômetros de carro para fazer pesquisa de

mercado. Levamos um intérprete. Participei de feiras em

Portugal e vi que lá eles respeitam mais a morte. O

brasileiro não aceita, é muito emocional”.

Page 90: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 90 ~

Em Portugal as urnas não têm alça e, a caminho do

enterro, são carregadas nos ombros. Amorim conta que um

metro cúbico de madeira permite a fabricação de quatorze

urnas. Ele é um dos poucos fabricantes brasileiros que

exporta seus produtos. Há seis meses, a Faurtil vende

caixões para a Itália, França e Alemanha. Vender para os

Estados Unidos é difícil porque eles fazem exigências que

comprometem a estrutura de uma fábrica. Os norte-

americanos são enterrados em urnas quadradas, enquanto os

brasileiros utilizam as arredondadas. Com quatro filhos,

apenas os meninos começaram a assumir a empresa do pai:

“Eu acho que é um ramo para homens”.

Mesmo em um mundo dominado pelos homens, Edna

Porto Viola é uma das poucas empresárias na feira; ela

começou a trabalhar no ramo há oito anos. A empresa Modial

era dela e do marido, mas ele resolveu entregá-la para a

esposa administrar e abriu outro negócio também no setor

funerário.

A Modial vende dois mil produtos por mês entre vestes

fúnebres, caixas para ossos, acessórios para veículos, véus e

sedas.

Bem vestida, Edna atende os clientes em seu estande e

quase não pode parar para a entrevista. É interrompida o

tempo todo por pessoas que querem negociar e comprar

seus produtos. Alguns metros depois da Modial está

Valdemar Bresciani. Ele começou a trabalhar como fabricante

de urnas por acaso. Mesmo contrariando a realidade das

empresas familiares, Bresciani conseguiu projetar sua

empresa no cenário funerário com rapidez.

Quando era empreiteiro, ele fez um conjunto

habitacional a pedido da prefeitura de uma cidade em Santa

Catarina, mas ficou sem receber o pagamento durante cinco

meses. Para negociar a dívida, o ex-prefeito, Dorvalino

Dacorregio, doou um terreno para Bresciani e o ajudou a

construir uma fábrica: “O prefeito trouxe até a mão de obra

porque eu não entendia nada de urna”. Hoje , Bresciani

Page 91: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 91 ~

administra uma empresa, tem 85 funcionários e vende duas

mil urnas por mês. Há três anos no mercado, os caixões

fabricados pela fábrica Irmãos Bresciani são fornecidos para

estados como Mato Grosso, Alagoas e Minas Gerais. A Santa

Casa do Rio de Janeiro é cliente da fábrica de Bresciani, e as

urnas são usadas nas gravações de funerais de novelas da

Rede Globo. O corpo de Roberto Marinho foi enterrado em um

caixão feito pela fábrica Bresciani: “A urna do Roberto

Marinho não é o modelo mais caro. Custou R$ 950,00. Não sei

o preço que a funerária cobrou pelo serviço todo. Geralmente

o preço é cinco a 10 vezes mais caro que a urna”.

Em um funeral, o custo não fica por conta apenas da

urna, mas do serviço completo: arrumação do corpo, flores,

paramentos e preparação burocrática dos papéis referentes

ao óbito.

Os donos de funerárias precisam entender de cadáveres,

mas os fabricantes de urnas não. Marcos Bignotto é

proprietário da maior fabricante de caixões da América

Latina. A empresa tem 36 mil metros quadrados de

construção. No início, Bignotto não gostava da ideia de

trabalhar com fabricação e venda de urnas, mas assumiu o

negócio por questão de honra. “Se os outros podiam fazer

bem feito, eu seria mais um”.

Obstinado, ele fez da fábrica localizada em

Cordeirópolis, no interior do estado de São Paulo, uma

empresa de sucesso que emprega 350 pessoas. A cada oito

horas de trabalho, são feitas mil urnas. No total, fabrica 20

mil caixões por mês: “Vendo todos”. Há 35 anos Bignotto

herdou a tarefa do pai.

Atualmente, ele prepara a filha mais velha, de 19 anos,

para assumir seu lugar. “Tenho três filhas e um filho. A mais

velha está na faculdade de economia e mostra interesse pela

administração da fábrica”.

A entrevista acontece na praça de alimentação do Centro

de Exposições Imigrantes. São cinco horas da tarde do dia 06

Page 92: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 92 ~

de setembro de 2003. Com lágrimas nos olhos, Bignotto

pede café e água e diz: “As histórias chocam , mas as

pessoas sobrevivem ao choque”.

A dor está na lembrança da morte do pai, que faleceu há

cerca de três anos enquanto trabalhava dentro da fábrica.

Para explicar os sentimentos de saudade e a necessidade de

aceitar a morte, Bignotto cita a dor de uma mãe que perdeu

seu filho na explosão do Veículo Lançador de Satélites (VLS)

que matou 21 pessoas no Maranhão em agosto de 2003.

Bignotto é amigo da família de Mário Freitas Levy, que

estava entre as vítimas.

Aos 73 anos de idade, a mãe de Mário, Margarida Freitas

Levy, precisou passar pelo desgaste emocional de perder um

filho com 43 anos. Para amenizar a própria dor, ela disse

para Bignotto: “Se outras mães podem suportar, eu também

posso”.

Page 93: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 93 ~

Oração do Tanatólogo

PAI!

Neste momento, rogo mais uma vez a vossa proteção.

Encontro-me diante deste corpo humano inerte,

destituído de vida, cuja caminhada terrena acaba de findar.

PAI!

No exercício de minha atividade como tanatólogo, peço

a vossa permissão para adentrar o íntimo deste sacrário

físico, pois pretendo fazê-lo com o mais profundo e sincero

respeito, tendo sempre presente em minha consciência que

este ser amou e foi amado, respeitou e foi respeitado, lutou

para viver, semeou, colheu, vivenciou vitórias e derrotas,

edificou esperanças, cumprindo os desígnios que lhe foram

determinados.

PAI!

Elevo neste instante o recôndito de minha fé, tributando

a esta criatura vibrações de paz e harmonia, rogando aos

socorristas do mundo invisível para que retirem, caso ainda

não tenha retirado, a chama divina que habitou esta matéria,

guindando-a às hostes dos seus merecimentos, desligando

os liames físicos, para que nesta mesa permaneça única e

tão somente a composição orgânica na qual praticarei o meu

desiderato.

PAI!

Obrigado por tudo quanto tenho recebido, pois sei e

sinto que ao iniciar o meu trabalho, mais uma vez as minhas

mãos estarão seguras e guiadas por vosso infinito amor, que

sempre protegeu e protegerá a minha saúde e minha

integridade física.

ASSIM SEJA.

(Mario Fernando Berlingieri)

Page 94: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 94 ~

Capítulo X

A Morte Não Existe

"O melhor negócio é ainda o seguinte:

não morrer, pois morrer é insuficiente,

não me completa, eu que tanto preciso".

A Hora da Estrela - Clarice Lispector

Antônia Vieira viveu mais de nove décadas e morreu nos

anos noventa. Casou-se três vezes. O primeiro casamento

aconteceu quando ela estava com 12 anos de idade. Teve sete

filhos com o primeiro marido.

No terceiro casamento, aos 78 anos, casou-se, na igreja e

no civil, com um senhor solteiro oito anos mais novo e amigo

de infância. A história da família de Antônia é repleta de

velórios. Enterrou sete filhos, dois maridos e muitos outros

parentes.

Joaquina de Paula foi a última filha de Antônia a morrer

do coração, aos 46 anos. Foi no dia 11 de maio de 1976.

Joaquina deu quatro netos para Antônia. Duas meninas e dois

meninos: Machado e Abner1

. As meninas morreram, Sônia aos

três e Hilda aos 14.

Era década de 60 em um hospital de Votuporanga,

interior de São Paulo, quando Hilda foi submetida a uma

cirurgia na garganta. A mãe, Joaquina, acompanhou a

internação. Depois de três dias, Hilda recebeu alta. Arrumou-

se para deixar o local após receber a visita do pai, Sebastião.

O irmão mais velho, Machado, estava a caminho do

trabalho quando resolveu passar no hospital, mas quando ele

chegou, Hilda tinha acabado de sofrer um enfarte do coração.

“Fazia três minutos que ela tinha morrido no portão do

1 Abner foi assassinado em 12 de julho de 2006. Um tiro no coração.

Page 95: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 95 ~

hospital logo após receber alta. Os enfermeiros socorreram,

mas foi fulminante, não deu tempo de fazer nada”.

O enfarte de Hilda foi causado pela doença de chagas.

Filho de Joaquina e neto de Antônia, Machado assistiu grande

parte da família falecer por problemas no coração, que é um

dos sintomas da doença de chagas.

O mal, causado pelo inseto conhecido como barbeiro, foi

estudado pelo cientista do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos

Chagas: o único a pesquisar todo o ciclo da doença. Os

estudos não avançaram até meados do século passado por

causa de disputas políticas dentro dos institutos.

Tanto o Instituto Oswaldo Cruz como o Butantã

estavam ganhando força internacional com suas

descobertas. Foi na década de 70 que o então presidente

Ernesto Geisel percebeu a importância estratégica da

ciência para o país e priorizou o desenvolvimento

tecnológico e a produção de imunobiológicos. Enquanto os

responsáveis pela evolução da ciência brigavam por poder,

Joaquina cuidava de seus filhos.

Apesar das poucas palavras, Machado deixa escapar que,

desde criança conseguia prever as mortes iminentes.

“Geralmente sentia cheiro de vela sem ter vela queimando

por perto. Então era certeza que alguém ia morrer. Eu estava

tomando banho enquanto senti cheiro de vela e minha mãe

estava no hospital morrendo”.

Faltavam dois meses para Machado se casar quando sua

mãe, Joaquina, faleceu atingida pela doença que atacou o

coração.

O filho mais velho de Joaquina trabalhou desde os sete

anos de idade: foi entregador de jornal, tipógrafo, policial

militar, professor de ciências físicas e biológicas, bancário e

hoje é corretor de imóveis. Quando fazia parte da Polícia

Militar, aos 21 anos, Machado precisou conviver com a morte

de pessoas estranhas, cuidar de corpos, resgatar cadáveres

em matagais e afogados em rios e lagoas. Ele trabalhava na

Page 96: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 96 ~

região de General Salgado, cidade pequena no interior de São

Paulo.

Prudêncio de Moraes, conhecido como Cachorro Sentado,

é um distrito pertencente a General Salgado, cidade próxima

a São José do Rio Preto. Machado explica que o apelido da

pequena cidade surgiu quando o padre da igreja local

reclamava da falta de fiéis. “Dizem que o padre rec lamava

que o único ouvinte da missa era um cachorro sentado, daí o

apelido pegou”.

Existe outra versão: a de que um estranho chegou na

cidade e não encontrou nenhuma pessoa, viu apenas um

cachorro sentado no meio da única rua principal. “O

estranho comentou o fato em um boteco da vila e pronto! A

cidade passou a ser chamada de Cachorro Sentado”, conta

Machado.

Com menos de 10 mil habitantes, Cachorro Sentado

guarda alguns assassinatos na história: na década de 70, um

jovem de 23 anos fugiu com a namorada, fato comum em

uma época cheia de proibições e controles morais. Na fuga, o

casal se desentendeu e o rapaz esfaqueou a garota 33 vezes.

Machado e mais alguns policiais encontraram o corpo da

moça no meio de um cafezal e o levaram para a delegacia.

“Nunca tinha visto um cadáver assim, foi normal, não tive

reação nenhuma. Na época, a gente não tinha muita

preocupação porque não tinha o medo da AIDS, a gente pegou

o corpo de qualquer jeito e colocou na viatura”.

Na delegacia, puseram o corpo nu da moça assassinada

em cima de uma mesa e lavaram-no com água. O perito

fotografou. Ela foi enviada para o necrotério. Foi feito o

velório e o funeral. Era 1972.

Como era comum em cidades pequenas, os policiais

faziam de tudo um pouco, inclusive o serviço de bombeiro.

Uma mulher que morava na frente da delegacia tentou se

matar, mas Machado e o Sargento Valdir correram para

socorrê-la.

Page 97: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 97 ~

Misturaram água morna, sal e vinagre para que ela

pudesse “colocar para fora” todo veneno que ingeriu.

“Fizemos essa mulher tomar vários litros de água e foi o que

a salvou, pois ela vomitou tudo. Levamos para o hospital e

ela está viva até hoje”.

Na escola de soldado, como explica Machado, os rapazes

recebiam treinamento sobre combate à incêndios, primeiros

socorros, picadas de cobras venenosas e afogamento.

“Preparo psicológico não teve nenhum, a gente aprendia no

dia-a-dia com os mais velhos. Os mais antigos diziam „não

esquenta não ô polícia, é assim mesmo, e toca a vida‟, a

gente aprendia com eles e ia tocando”.

Da mesma forma que um bom jornalista não rejeita uma

notícia quente quando, teoricamente, está de folga, um bom

policial também presta auxílio quando alguém necessita de

socorro. Machado saía da escola onde estudava quando

gritaram dentro de uma casa pedindo ajuda. Um senhor tinha

acabado de falecer e os parentes não sabiam como agir.

Edson ajudou a família a lavar o morto, vestir o paletó e

colocá-lo no caixão.

Na vida pessoal de Machado, a presença da morte foi

constante. Perdeu todos os tios, duas irmãs, a mãe, amigos e

vizinhos. Quando morava em Votuporanga com os pais, em

apenas um ano nove pessoas que moravam na mesma rua que

ele faleceram, inclusive sua irmã e um amigo da família, o

barbeiro Afonso Pena.

Machado presenciou mais de 60 velórios na vida pessoal

e, como Policial Militar, conviveu com cadáveres e assassinos

por cerca de dois anos. “Existe uma música que chama „Rock

Bravo‟ do Leo Canhoto e Robertinho que fala do assassino J.S

de Cachorro Sentado”. J.S foi preso e ficou em General

Salgado para ser julgado e condenado.

Machado conta que J.S. foi levado por dois policiais para

a cadeia de Presidente Venceslau. “Eu fiz a escolta do

assassino até Presidente Venceslau. Enquanto o outro polícia

Page 98: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 98 ~

foi ver o horário certo do ônibus, aglomerou um monte de

gente em volta do homem condenado à prisão. De repente,

J.S. saiu agredindo as pessoas. Foi quando eu rolei no chão

para poder segurá-lo. Meu outro colega apareceu e a gente

conseguiu dominar o prisioneiro. Ele era um senhor negro

com um e noventa de altura, tinha uns 100 quilos”.

Depois de 15 anos que Machado deixou de ser Policial

Militar, soube que J.S cumpriu a sentença, saiu da prisão e

logo matou um taxista em Auriflama. “Era um homicida

nato”.

Como a maior parte dos entrevistados deste livro-

reportagem, Machado conviveu de perto com a morte.

Individualmente, cada profissional viu, ouviu, sentiu o

cheiro, cuidou, vestiu, consolou, chorou, guardou imagens na

memória e sentimentos na alma.

Alguns acreditam que a alma existe, enquanto outros

parecem pensar da mesma forma como é cantado o verso na

voz de Rita Lee: “não acredito em nada e até duvido da fé”.

Independente da maneira como cada ser humano lida

com o fim da vida, as pessoas necessitam de símbolos para

tentar entender a morte. A constatação parece ser um dos

motivos para o mercado funerário propor avanços

tecnológicos.

Adriana Fiori é psicanalista e também trabalha com a

morte, mas “em um sentido simbólico”. Em 2002 ela

colaborou para um estudo organizado pelo Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). O trabalho teve o

objetivo de mapear os impactos sociais e econômicos dos

acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas.

As mortes causadas em acidentes automobilísticos

causam dor, sofrimento e muito prejuízo. Para chegar ao

resultado da extensa investigação, foram examinados vários

fatores que causam danos materiais: custo de perda de

produção, de danos aos veículos, médico-hospitalar, de

processos judiciais, custo previdenciário, resgate das

Page 99: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 99 ~

vítimas, remoção dos veículos, danos ao mobiliário urbano e

à propriedade de terceiros, danos à sinalização de trânsito,

atendimento policial, atendimento dos agentes de trânsito,

impacto familiar e custo com outros meios de transporte, que

seria a soma das despesas do acidentado com passagens de

ônibus, táxi e aluguel de veículo.

No total foram visitados 4.123 domicílios nas

aglomerações urbanas de São Paulo, Belém, Recife e Porto

Alegre. No País, o prejuízo com acidentes de trânsito chega a

ser mais de R$ 5 bilhões anuais (a preços de abril de 2003).

“Estes valores resultam somente dos acidentes ocorridos em

área urbana. Os custos dos acidentes ocorridos em rodovias

fora do perímetro urbano não estão incluídos, ainda que

estes acidentes sejam os mais graves, são menos

numerosos”.

O custo médio de um acidente sem vítimas é de R$

3.262,00. Com vítimas feridas a média é de R$ 17.460,00. Se

no acidente alguém morrer o valor médio do prejuízo sobe

para R$ 144.143,00.

Apesar de ser uma pesquisa, o assunto morte requer, em

qualquer circunstância, tato e delicadeza. Foi por isso que o

IPEA contratou uma psicanalista.

Primeiramente Adriana recebeu uma lista de 400 pessoas

que perderam a vida em acidentes de trânsito em 2001.

Depois, ligou para a família de cada uma delas, mas apenas

50 aceitaram conceder uma entrevista que incluía um extenso

questionário. “Eu fazia desde o primeiro contato por telefone

até agendar e ir à casa da pessoa. Não podia ser feito por

telefone, tinha que ser pessoalmente. Era um questionário

longo e por telefone é um assunto delicado”.

Adriana precisou de três meses para concluir sua parte

na pesquisa e, além de abordar óbitos, entrevistou 10

pessoas que tiveram graves sequelas em acidentes.

Adriana afirma que não ficou abalada com as entrevistas:

“Difícil me afetar porque eu sou treinada para não ser

Page 100: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 100 ~

afetada”. Enquanto fala de morte, Adriana interrompe a

entrevista por duas vezes para mostrar as flores que estão

desabrochando no quintal de sua casa. “Daqui a pouco as

outras vão se abrir, fique olhando”.

Das pessoas presentes no momento da conversa,

ninguém lembrou o nome da flor que se abre toda no

momento do crepúsculo. Adriana volta para o tema central da

entrevista. “Nada me afeta. Mas eu fiquei impressionada com

uma moça que perdeu o marido, motoqueiro, na rodovia dos

Bandeirantes, em São Paulo. Fazia seis meses. Ela tinha dois

filhos. A delegacia contou uma história mal contada. O

caminhoneiro que atropelou o rapaz tomou todas as

providências e dizia que ele não era o culpado, o Boletim de

Ocorrência era obscuro, não tinha uma descrição da morte

dele”.

Quando a esposa do motoqueiro chegou no pronto

socorro, recebeu um saco de roupa suja de sangue. “Sem

preparo nenhum, sem ninguém para receber. Ela ainda

chorava muito, tinha 34 anos e era muito bem casada. Ainda

estava emocionada. Ela aceitou ser entrevistada pela revolta

que estava sentindo e me dizia „eu faço tudo o que for

preciso para quem for tomar providência a respeito do

trânsito de São Paulo”.

Cerca de 70% das mortes pesquisadas por Adriana

envolvia motoqueiros: “Eles morrem aos montes”.

Pessoalmente, Adriana diz que nunca teve medo da

morte: “Eu fui determinada culturalmente, pela

religiosidade da minha mãe, a achar que a morte é uma

passagem. Houve uma época em que eu tive uma sadia

angústia e hoje eu resolvi achar que a morte deve ser uma

coisa muito legal”.

Adriana viu algumas pessoas muito próximas morrerem,

inclusive a própria mãe: “Ela morreu tão bem que eu aprendi

com ela. A última herança que ela me deixou foi me ensinar a

morrer”.

Page 101: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 101 ~

Silêncio na mesa, as flores continuam a desabrochar.

Coca-Cola, Guaraná Antártica e copos. A cada pausa na

entrevista, Adriana engole um pouco do líquido doce e

gasoso. Além de Adriana, estão presentes um de seus três

filhos e sua nora.

Histórias de dor não faltam. Apesar de negar que as

entrevistas afetaram sua sensibilidade, é difícil ficar

indiferente ao sofrimento das pessoas. Outro caso que

impressionou Adriana foi o de um acidente com um carro e

cinco adolescentes. “O rapaz que dirigia estava brincando no

trânsito e eles bateram em um paredão de concreto embaixo

da avenida Angélica, cruzamento com a Paulista, no começo

da Rebouças”.

O rapaz estava na direção e duas meninas estavam na

frente, uma sentada no colo da outra, e mais três pessoas no

banco de trás. Das duas meninas que estavam no banco da

frente, uma morreu e a outra ficou paralisada do seio para

baixo. “Eu não consegui falar com a mãe da menina que

morreu, mas a mãe da menina que ficou paralisada me

recebeu”.

A moça acidentada tinha 17 anos e ficou paralisada para

o resto da vida. Usa fralda e sonda para urinar. “A mãe ganha

R$ 400,00 como copeira de um escritório de advocacia. Além

de cuidar dessa filha, ela faz salgadinho para vender”. Com o

responsável pelo acidente não aconteceu nada. As famílias

dos adolescentes eram do mesmo bairro, mas tornaram-se

inimigas e não se falam mais. “Eu tentei entrevistá-las, mas

não consegui”.

Com a discussão de tantos assuntos complexos, como o

sentimento de perda e tristeza, perguntei à psicanalista

Adriana se a morte pode traumatizar a ponto de não haver

recuperação psicológica. Ela é direta e sucinta. “O prejuízo

psicológico nas situações de morte não é o que você está

imaginando, porque a morte é uma coisa que a gente não

pode esconder. Ela é real e dói muito, mas não traumatiza. O

que faz uma pessoa ficar psiquicamente desestruturada,

Page 102: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 102 ~

traumatizada ou enlouquecer é justamente aquilo que ela não

consegue dizer ou simbolizar. Morte, por incrível que pareça,

não é uma coisa traumática no sentido técnico da palavra

trauma. É real e está na consciência. Quem perdeu um

parente da maneira mais trágica possível sabe que perdeu um

parente da maneira mais trágica possível”.

As reações diferem de família para família. O material

denso da pesquisa é analisado pela especialista, que explica a

morte em ângulos psíquicos. Adriana tenta lembrar de casos

diferentes para ilustrar como um óbito pode causar sequelas

ou apenas fazer parte da natureza.

Em uma das tentativas de entrevista para a pesquisa

solicitada pelo IPEA, a psicanalista se deparou com uma mãe

que teve seu bebê de um ano atropelado. “Eu liguei para ela

no meio de agosto de 2002 quando eu comecei a fazer a

pesquisa. O bebê tinha morrido no ano anterior”.

Com delicadeza, Adriana conversou por telefone com a

mãe do bebê atropelado. Ao perguntar para a moça como ela

estava, Adriana recebeu uma resposta com voz alegre, e tenta

reproduzir o momento. “Ai, eu tô tudo bem, agora eu já

tenho outro nenê”.

Adriana resolveu não entrevistar a mãe do bebê porque o

perfil da moça não condizia com a direção da pesquisa, que

era a de avaliar o prejuízo econômico das mortes causadas

pelo trânsito. “Ela era extremamente pobre, morava em uma

favela e devia estar habituada a ver crianças morrerem. No

extrato de baixa renda os bebês morrem com muita

frequência e ela encarava isso tranquilamente. Eu vi que ela

encarava a morte do bebê do mesmo jeito que ela encarava a

vida dela: descartável. Não por maldade, muito pelo

contrário. Era uma moça de 20 e poucos anos, tinha a voz

doce pelo telefone, mas o contato que ela tinha com a morte

era esse”.

Na realidade, as pessoas atribuem sentidos à morte. “O

que a gente sabe dela são os sentidos que a cultura nos

Page 103: A Morte Como Sustento - Visionvox · 2017-12-18 · história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último

~ 103 ~

fornece. Cada pessoa atribui o seu sentido particular à morte

de alguém próximo. Um fica revoltado, outro fica triste,

outros acreditam na vida depois da morte. Isso tudo são

recursos de viver. Com relação à morte, nós não temos nada

para dizer, nós temos o que dizer a respeito da vida”,

completa Adriana.

Toda cultura sente a morte de uma maneira diferente. Os

ritos são as únicas maneiras que o homem tem de conceber o

fim da vida, porque o real da morte é inacessível, assim como

são inacessíveis o nascimento e o sexo. “Você não tem a

experiência do seu nascimento e da sua morte. A morte real

de alguém conhecido você também não vê, você só tem que

integrar um cadáver em sofrimento, uma perda, adaptação,

luto, depressão. Freud chamava isso de melancolia. Ninguém

pode saber o que é morrer enquanto estiver vivo. Por isso, a

cultura ritualiza o óbito. Rodeamos a morte de palavras,

linguagem e ritos. Usamos todas as maneiras de dizer o

indizível: ah foi melhor, descansou. Cada cultura dá à morte

o valor que ela dá à vida”.

Para entender a morte natural e a acidental, Adriana

explica que, no caso do doente, quem descansa é a família.

Quando morre uma pessoa que passou um longo período de

enfermidade, a família tem uma grande sensação de alívio. Se

não houver alguém para ajudar durante o luto, o sentimento

de alívio pode trazer culpa. A pessoa que ficou se sente má.

A mãe de Adriana morreu de forma clássica, na cama do

hospital, acompanhada pela família e pelos amigos. Durante

seu último dia, ela chamou as pessoas para conversar e “fez

todas as recomendações”. Como era espírita, seu grupo

religioso esteve presente para acompanhá-la nos momentos

finais. “Ela morreu com a dignidade com que ela viveu. Meu

pai morreu no desespero e na angústia em que ele viveu”.

Para Adriana, a importância da pesquisa não foi apenas a

estatística, mas a confirmação de que “a gente vê a morte do

mesmo jeito que a gente vê a vida, porque não tem morte

para ver. Nós só conhecemos a vida, entende?”.