a morte como sustento - visionvox · 2017-12-18 · história de rio claro ainda ecoa no...
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A Morte Como Sustento
O dia-a-dia dos profissionais
que convivem com a dor alheia
Giselle Marques
Reportagem, textos e revisão: Giselle Marques
Orientação: Marcel Cheida - Puc-Campinas
2a edição - maio de 2004
Versão impressa disponível:
Biblioteca Pública Municipal Maria Victoria Alem Jorge
Centro Cultural Roberto Palmari
Endereço: Rua 2 nº 2880 - Vila Operária - Anexo ao Lago Azul
Bairro: Centro - Telefone: (19) 3522-8002
http://amortecomosustento.blogspot.com.br
Texto extraído do blog acima.
Corresponde a segunda edição do livro.
Primeira edição: outubro de 2003.
Projeto Experimental (Graduação em Jornalismo) - 1977
Formatação:
Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo
~ 4 ~
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
CIDADE AZUL: 17 anos depois do acidente, 4 famílias
ainda esperam por indenização
IMÓVEL DA EMPRESA FOI A LEILÃO NO DIA 22 DE JUNHO.
ACIDENTE OCORRIDO EM MAIO DE 1994 NA RODOVIA RIO
CLARO-PIRACICABA VITIMOU 19 PESSOAS
Por Marcelo Lapola
Passados 17 anos a maior tragédia automobilística da
história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e
trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu
último capítulo encerrado. Isso porque houve, no dia 22 de
junho, o leilão judicial de um imóvel onde antes funcionava
a Viação Cidade Azul, localizado na Avenida Presidente
Kennedy. A proposta vencedora para arremate da área foi
apresentada por um empresário local, no valor de
aproximadamente R$ 5 milhões.
No acidente entre o ônibus da extinta Cidade Azul e o
caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda 19
pessoas morreram. Das 17 famílias que perderam seus entes
queridos, 13 foram indenizadas pela Cidade Azul por terem
aceito as condições de um acordo judicial firmado tempos
depois. Outras quatro, que não aceitaram o acordo, deverão
receber a indenização após a homologação do leilão do
imóvel por parte da Justiça.
As informações são do advogado das famílias, Carlos
Roberto Marrichi. Segundo ele, os recursos que deverão ser
destinados a essas pessoas somam cerca de R$ 2,5 milhões,
incluindo os honorários advocatícios.
Mas, segundo Marrichi, o imóvel em questão também é
objeto de garantia judicial em outros processos contra a
empresa. "Acredito que boa parte das pendências deverão
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ser pagas pois a oferta feita no arremate do imóvel é boa",
salientou Marrichi.
Segundo Marrichi, falta ainda a Justiça homologar o
arremate e aguardar o prazo para apresentação de recurso,
por parte da Viação Cidade Azul.
Outro advogado, o que representa o empresário que
apresentou a intenção de compra do imóvel da Cidade Azul
durante o leilão, salienta que a proposta apresentada, cerca
de R$ 5 milhões, deve cobrir cerca de 90% das penhoras
relativas ao prédio, incluindo as indenizações às 4 famílias
das vítimas do acidente na SP-127.
Ainda cabe recurso judicial por parte da Viação Cidade
Azul, conforme informações dos advogados.
Procurado pela reportagem do JC na tarde dessa sexta
(05), o advogado que representa a Viação Cidade Azul no
caso, Arlindo Chinelatto Filho não deu retorno até o
fechamento da edição e deverá se pronunciar nos próximos
dias a respeito do assunto.
Na estrada, que era de pista única, foi formada uma poça
de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio de
1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus
transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o
forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora
do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou
tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito
trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas
chegavam em busca de informações sobre familiares que
estudavam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos
daqueles que perdiam parentes e amigos”. Em seu livro "A
Morte como Sustento" a jornalista Gisele Marques retrata o
drama vivido pelas famílias que perderam seus entes
queridos naquela noite e os relatos de sobreviventes.
(http://amortecomosustento.blogspot.com
“A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o
motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente”. A
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culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na
sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes,
publicados nos jornais da época, confirmam que a história
foi diferente”, diz Gisele em seu livro.
“Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de
1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um
profissional prudente e responsável”. Por este motivo, antes
do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus
para poder viajar todos os dias com ele no volante.
Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém-contratado da
empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como
tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria
o ritual de acompanhamento por um motorista mais
experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido
cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a
culpa”, completa a escritora e jornalista rio -clarense.
(Fonte:
http://jornalcidade.uol.com.br/rioclaro/seguranca/seguranc
a/79890--CIDADE-AZUL:-17-anos-depois-do-acidente---4-
familias-ainda-esperam-por-indenizacao--)
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Dedico este livro em memória
de minha tia Cleusenir Marques Brunholi
e de todos os meus parentes e amigos
que perderam a vida nas estradas.
Quero deixar
o meu muito obrigada
a todas as pessoas vivas
que me fazem o bem.
~ 8 ~
Sumário
Prefácio
Apresentação
I - O Que Você Vai Ser Quando Morrer?
II - A Hora da Misericórdia
III - Um Nove Dois
IV - Notícia Ruim
V - O Corpo de Nercina
VI - SP127 - A Duplicação
VII - Os Funerais de Campinas
VIII - Quem Crê Em Deus Jamais Morrerá
IX - Funexpo 2003
X - A Morte Não Existe
~ 9 ~
Prefácio
Por José Arbex Jr.
Jornalista e Doutor em História Social pela USP
Qualquer pessoa educada segundo os princípios e
concepções das religiões monoteístas que estão na base da
civilização ocidental (judaísmo, cristianismo e islamismo)
concordará, facilmente, com a afirmação de que a vida
eterna é a recompensa oferecida aos que louvaram a Deus e
praticaram o bem. Variam as metáforas e hipóteses sobre
como será a vida eterna no além, mas não se questiona a
ideia central. A morte, nessa perspectiva, aparece como
punição aplicável aos que não se elevaram às alturas do
paraíso. É a manifestação da ira divina.
Nada poderia ser mais estranho aos olhos de um
seguidor das doutrinas orientais.
Para o hinduísmo, a vida é um período transitório no
vasto complexo de um universo permanentemente em
mutação, movido por um jogo de forças em oposição. Shiva
representa destruição, agressividade, morte; Vishnu, no lado
oposto, é a construção, compreensão, vida; Krishna é uma
espécie de síntese. Muito esquematicamente, e correndo o
risco de simplificar demais as coisas, é como se Shiva
representasse as pulsões que Sigmund Freud qualificou
como Tanatos; Vishnu, nesse caso, seria Eros; Krishna
representaria um objetivo de equilíbrio perseguido pelo
processo psicanalítico.
Também o taoísmo - uma espécie de meio caminho entre
filosofia e religião, criado por Lao Tse (velho sábio, em
chinês) cerca de 700 anos aC, quando, supostamente,
escreveu o livro Tao Te King - trata a morte como um
componente necessário ao movimento universal e incessante
de todas as coisas. Para os taoístas, há duas grandes
qualidades de forças: o pólo yang (o princípio masculino,
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ativo, extrovertido, quente) e o pólo yin (o princípio
feminino, passivo, introvertido, frio). Vida e morte são o
resultado intercambiável do jogo bipolar movido por essas
forças. Não faz o menor sentido privilegiar um dos pólos e
tentar ignorar o outro. Não há claro sem escuro, calor sem
frio, positivo sem negativo, vida sem morte.
Outras tantas filosofias e doutrinas orientais, como o
zen budismo, seguem esses princípios básicos. Aliás, como
resultado prático, elas transformam a morte em conselheira
do bem viver. Para o taoísmo, por exemplo, a sabedoria
suprema do ser humano consiste em manter o bom humor,
já que ele sabe que poderá morrer no instante seguinte;
apenas aqueles que são loucos o suficiente para se julgarem
eternos podem perder o próprio tempo com irritação, brigas
inúteis, obsessões, fixações, rituais burocráticos sem
qualquer sentido.
Essa postura, obviamente, intensifica, dá mais brilho e
gosto à sensação de estar vivo. Para usar uma metáfora
emprestada à publicidade, é como colocar uma tarja preta
em volta de letras ou figuras vermelhas sobre fundo branco,
como faz a Coca Cola em seus outdoors. A tarja preta faz
com que a cor vermelha abandone o fundo branco e dê um
salto na direção da retina, causando uma impressão muito
mais forte.
A consciência permanente da morte, não como castigo
ou punição, mas como possibilidade natural e inexorável,
produz efeito semelhante sobre a sensação de estar vivo.
Quem sabe que pode morrer no instante seguinte não tem
tempo para se preocupar com besteiras. Nem leva a si
próprio tão a sério.
Uma pequena anedota ilustra bem essa postura. Conta-
se que o imperador chinês, impressionado com a fama de
Lao Tse, envia os seus representantes para convida-lo a
participar da corte. Os agentes do imperador encontram Lao
Tse brincando com pequenas tartaruguinhas, à beira de um
riacho. Ao tomar conhecimento do convite, o velho começa a
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rir, e responde aos oficiais: “Eu soube que na corte do
imperador existe o casco de uma tartaruga gigante. É
verdade isso?”. Intrigados com a pergunta, os oficiais
confirmam. A tartaruga era um animal sagrado na antiga
China; o seu casco representava a abóbada do universo.
Então, o velho continua: “Pois se vocês pudessem perguntar
para a tartaruga gigante onde ele preferia estar, ressequida
na corte ou brincando na água, o que vocês acham que ela
responderia?” Os oficiais ficam em silêncio. Entenderam o
sentido da pergunta, mas não querem se comprometer com
uma resposta que poderia irritar o imperador. Rindo
novamente, Lao Tse se despede e diz: “Diga ao imperador
que essa foi a minha resposta.”
Os filósofos pré-socráticos também tinham uma
percepção dinâmica da morte. Heráclito, por exemplo,
afirmava que nunca veríamos o mesmo rio duas vezes, já
que suas águas estavam em movimento permanente. Apenas
tínhamos a ilusão de se tratar do mesmo rio. O mesmo se
aplicava a toda a natureza. A consciência deveria fazer um
esforço de entender a incessante transformação de todas as
coisas, segundo o processo de nascimento, vida e morte.
A ideia da imortalidade, na filosofia ocidental, ganhou
força com Platão, para quem o mundo das aparências era o
mundo do engano, da ilusão, do erro. Essa concepção foi
tratada de forma magnífica no mito da caverna, quando
Platão defende a ideia de que tudo o que os nossos sentidos
percebem são sombras projetadas na parede por uma fonte
de luz exterior. Se queremos conhecer as verdades das
coisas, devemos abandonar o mundo das aparências, da
carne, da matéria que apodrece e morre, e dirigir os nossos
olhares e pensamentos para a luz imaterial da essência, do
espírito. A verdade deve ser buscada no mundo das ideias,
não na observação do mundo percebido pelo corpo (daí que
o ideal seria que as sociedades fossem governadas por
filósofos).
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Opera-se, assim, na filosofia ocidental, uma divisão
radical entre corpo e alma, matéria e espírito. A
imortalidade passa a ser um atributo do espírito, ao passo
que a morte pertence ao reino da matéria.
Ao longo da Idade Média, particularmente após a
publicação da Cidade de Deus, por Santo Agostinho, a Igreja
Católica transformou em dogma a ideia platônica da
degradação e morte da carne, fonte do pecado e do erro. No
auge de seu controle espiritual, era proibida até mesmo a
observação da natureza, desenvolvida por Aristóteles e seus
seguidores, como fonte de conhecimento. O mundo deveria
ser explicado pelo texto dos sábios e doutores da Igreja. A
morte, mais do que nunca, aparecia como expiação, punição,
lembrança da pequenez do homem face à imensidão do
poder de Deus.
O edifício monolítico católico começou a ser demolido
pelos ciclos de navegações e descobrimentos científicos
promovidos pela nascente burguesia, bem como pelos
cismas no interior da Igreja Católica (incluindo o surgimento
do protestantismo). Isso abriu brechas para que o homem
renascentista fizesse calar a voz de Deus, colocando no
centro a Razão científica. Foi o suficiente para que as
indagações sobre a morte ganhassem crescente
complexidade, em todos os campos do conhecimento, da
arte e da cultura.
Não por acaso, o mais famoso monólogo da dramaturgia
universal começa com uma pergunta absolutamente
essencial sobre vida e morte: “Ser ou não ser, eis a questão”.
Hamlet compara a morte ao sonho, e coloca a possibilidade
do suicídio como forma de escapar às agruras e sofrimentos
do mundo: “Morrer; dormir; só isso. E com o sono – dizem –
extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a
carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente
desejável. Morrer – dormir – dormir! Talvez sonhar. Aí está o
obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte,
quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a
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hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão
longa.”
Hamlet inaugurou a subjetividade do homem moderno
ocidental, já órfão das verdades divinas, mas ainda
angustiado frente ao mistério da morte. Hamlet é o primeiro
herói moderno por ser, ao mesmo tempo, trágico e
autoconsciente. É o primeiro a observar, com ironia e
horror, não apenas a sua própria obsessão (o mandado do
fantasma de seu pai: matar o tio assassino e usurpador do
trono), mas também as consequências de seus atos. É
também o primeiro a se envolver até a morte num ritual de
expiação, pessoal ou comunal. Com Hamlet, a morte torna-se
um assunto de dimensão psicológica.
Também nesse campo, como em todos os outros, o
homem moderno angustiado e órfão da fé volta-se para a
Razão, em busca de soluções. A morte é transformada em
assunto científico e pesquisa de laboratório. É mil vezes
explicada, adiada, constrangida.
No século 20, o Estado totalitário (Stalin, Hitler, Mao)
cria a morte industrial, em imensos campos de extermínio;
os Estados Unidos inauguram a morte nuclear (Hiroxima e
Nagasáki). Em outra vertente, pesquisas biotecnológicas
prometem prolongar espetacularmente a vida média dos
cidadãos, em algumas décadas; a criogenia cria métodos de
conservação indefinida dos corpos, com possibilidade de
ressurreição e acoplamento de cérebros a máquinas;
ninguém duvida de que a ciência encontrará uma solução,
cedo ou tarde, para a epidemia da Aids ou quaisquer outras,
como a Sars.
A morte passa a ser uma ilustre dama, cortejada pelos
laboratórios de guerra e seus irmãos gêmeos da indústria
farmacêutica.
Mas, como ela acontece em nosso cotidiano
contemporâneo? O que é a morte para nós, após todas as
“experiências” totalitárias do século 20, incluindo a ameaça
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do holocausto nuclear durante a Guerra Fria? Como nós,
concretamente, nos relacionamos com a morte?
O presente trabalho de Giselle Marques é muito
importante e oportuno, por recolocar questões e ao mesmo
tempo oferecer indicações preciosas para reflexões
aprofundadas sobre o tema. A pesquisa ficou ainda mais rica
pela escolha dos entrevistados, que fazem parte de mundos
tão diversos (jornalismo, psiquiatria, psicanálise,
empresariado). Elas oferecem um panorama singular. A
própria Giselle aponta para as dificuldades de encontrar
fontes teóricas ou mesmo trabalhos empíricos sobre o tema
“morte” na perspectiva abordada por ela. Isso, certamente,
já reflete o tabu que a cultura ocidental ergueu sobre um
tema em geral considerado indesejável e “maldito”. Por tudo
isso, o seu trabalho, certamente corajoso e incomum, é
muito bem vindo.
Concluo com uma saudação a Giselle e a todos os seus
leitores, derivada do sânscrito: “Namaste!”. Seu significado é
muito profundo. Tomado ao pé da letra, quer dizer: “Eu me
curvo diante de ti”. Mas, alguns praticantes do budismo
preferem um outro significado, muito mais criativo e...
vital!: “Que os deuses dentro de mim sorriam para os deuses
dentro de ti”. E a vida continua.
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Apresentação
Por Giselle Marques
O Brasil registra um milhão de óbitos por ano e a
humanidade se transforma em estatística a cada dia. No
município de Campinas o número de funerais gira em torno
de 600 por mês e desses, a morte violenta abate 130.
O inverno atinge grande parte das pessoas mais velhas
com suas gripes e pneumonias. Os mais jovens se matam no
trânsito e a cura do câncer precisaria ser vendida em
comprimidos nas farmácias. Existem falecimentos de
maneiras inusitadas, como um senhor que estava colhendo
manga para os netos quando caiu da árvore: não resistiu aos
ferimentos.
Alguns procuram a inexistência em lâminas e cordas.
Entre tantos falecimentos existem profissionais
especializados e experientes para lidar com a morte, seja
para cuidar de um moribundo, melhorar a coloração de um
corpo sem vida ou construir túmulos.
Os rituais existem para simbolizar o fim da vida. Com o
tempo, os funerais foram modificados. O maior motivo para
as mudanças é o avanço da medicina que permite o
prolongamento da vida ou do sofrimento.
Se velar um corpo na sala da própria casa era comum,
hoje, com as famílias dispersas, a correria das grandes
cidades, prédios e elevadores, o mercado funerário se
aperfeiçoa a cada dia para cuidar de todos os detalhes.
Ao conviver com o sofrimento e a morte alheia,
enfermeiros, médicos, sepultadores, floristas, diretores e
agentes funerários precisam enfrentar o preconceito de
quem não entende que o trabalho consiste em amenizar o
choque causado por aquilo que é iminente, o fim.
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Da mesma maneira que o proprietário da mais
tradicional funerária de Rio Claro, no interior do estado de
São Paulo, descobriu como vender aquilo que ninguém quer
comprar, este livro-reportagem procura desvendar
realidades pouco exploradas na sociedade ocidental onde
homens e mulheres fazem de conta que esqueceram a
limitação da própria existência.
Discutir o sexo com quem fez voto de castidade é como
debater a morte com quem fez voto de eternidade. E o ser
humano, portador de uma vaidade quase insana, parece não
admitir que um dia terá que se ausentar deste mundo.
Seria um equívoco afirmar que não existe material
algum sobre o assunto, mas é muitas vezes escondido da
mídia de massa ou de difícil e complexo acesso. O fim da
vida é um assunto vasto e que atinge a todos,
indiscriminadamente. A vida está repleta de morte e as
pessoas tentam explicá-la e simbolizá-la de várias maneiras
nos filmes, novelas, pinturas, charges, livros e jornais.
Os relatos contidos neste trabalho são de pessoas que
vivem e convivem com o sofrimento, seja nas patologias que
matam, na fatídica certeza dos acidentes ou nos constantes
rituais fúnebres.
Empresários e profissionais que trabalham para
simbolizar a morte fazem deste livro um material que fala
de dor, saudade e lucro.
Para marcar a importância da qualidade dos velórios, há
cinco anos o Centro de Tecnologia em Administração
Funerária (CTAF) organiza a Funexpo, uma exposição
funerária que de dois em dois anos traz novidades e
tradições, reunindo empresários do Brasil e do mundo.
Diferentes personagens foram selecionados para a
realização da pesquisa: o rapaz que teve seu último dia de
vida relatado pela mãe e irmã depois de 10 anos de sua
morte; o jornalista que noticiou guerras e depois enfrentou
as próprias aflições na terapia; a enfermeira que precisou
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lidar com a morte de crianças e o profissional que tentou
organizar o tumulto no Cemitério da Saudade quando
aconteceu o sepultamento do prefeito de Campinas, Antônio
da Costa Santos, o Toninho do PT, assassinado em 2001.
Ao analisar materiais publicados em livros, sites,
revistas, filmes e programas de televisão, foi possível
observar a ausência de aprofundamento na abordagem de
temas relacionados à morte.
O longa-metragem que pode retratar a vida dos agentes
funerários é o filme Sábado, de Ugo Giorgetti. Em uma das
situações do filme, três pessoas vivas ficam presas dentro
de um elevador com uma pessoa morta. Dois homens são
agentes funerários e a mulher é uma publicitária
interpretada por Maria Padilha, que repete em desespero:
“Eu preciso acreditar em Deus!”.
Existem teses e filosofias que explicam o fim da vida,
mas pouco é dito sobre o dia-a-dia de quem não tem tempo
para aprender filosofia ou fazer terapia, mas que trabalha
em constante contato com o sofrimento das pessoas. No
mercado, são poucos os cursos que preparam o profissional
para a necessidade de lidar, de forma humana e não técnica,
com a presença e o tabu da morte.
As fontes para o livro-reportagem foram escolhidas de
acordo com a profissão: o jornalista José Arbex Jr. que
conviveu durante anos com guerras e mortes; a psicanalista
Adriana Fiori que realizou uma pesquisa, a pedido do
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), com 50
famílias que tinham perdido parentes em acidentes no
trânsito de São Paulo; o empresário Valdemar Bresciani que,
contrariando a tradição de funerárias familiares, desde 2000
é proprietário de uma fábrica de urnas em Santa Catarina (a
urna vendida para o funeral do jornalista Roberto Marinho
foi feita na empresa Irmãos Bresciani).
Além das fontes citadas, foram feitas visitas pessoais
em algumas funerárias, cemitérios, serviços de emergência e
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residências para que a realidade do dia-a-dia desses
profissionais pudesse ser vista de perto, não somente por
relatos. Nem todas as fontes puderam estar presentes na
narração deste livro, mas cada uma delas foi importante
para possibilitar maior conhecimento na elaboração das
pautas.
Uma das fontes é meu pai, o que não tira a importância
jornalística do fato é que conheci a história da minha
família paterna no término das entrevistas para este livro.
Eu sabia vagamente que muitos morreram por causa da
doença de chagas. Mesmo depois da entrevista, que não foi
facilitada pelo fato da fonte ser meu pai, percebo que ainda
sei muito pouco sobre os acontecimentos, o que não
possibilitou narrar a história com domínio, afinal, Machado
não fala de quem já morreu.
Mesmo ciente da obrigação ética e jornalística de ouvir
todos os lados de uma história, alguns casos não puderam
ser devidamente investigados. A indenização determinada
pela justiça de Rio Claro às 19 famílias que perderam
parentes em um desastre há 10 anos ainda precisa ser paga
a três famílias. Saber os motivos não foi possível por falta
de tempo hábil e patrocínio, mas certamente vários pontos
de vista tiveram espaço neste livro-reportagem, que vai
mostrar uma realidade que poucas pessoas ousam saber.
A narração não obedece a uma ordem cronológica, vai e
volta no tempo de acordo com os fatos que se interligam. As
duas cidades abordadas para tratar do tema são Rio Claro e
Campinas por causa de um acidente ocorrido há 10 anos na
Rodovia Fausto Santomauro, a SP-127.
Dois grandes veículos se chocaram. O motorista do ônibus
era de Rio Claro e o motorista do caminhão-tanque era de
Campinas. O desastre foi comparado a uma situação de um
ônibus que cai de uma altura correspondente a nove andares.
O acidente é narrado em sete dos dez capítulos do livro.
São abordados os vários estágios da tragédia, desde a
~ 19 ~
cobertura jornalística, quando os repórteres conseguem,
muitas vezes, chegar antes do socorro especializado, até os
protestos de rio-clarenses e o trabalho de alguns políticos
pela duplicação da SP-127.
Depois do título de cada capítulo foram escolhidas
citações de livros e músicas que refletem dor ou nostalgia.
No primeiro capítulo a frase citada foi retirada de um artigo
de jornal sobre a tragédia de 20 de maio de 1994. O artigo
foi recortado e guardado durante dez anos por Simone, irmã
de Odajyl Pessoa, vítima fatal do acidente ocorrido na
SP127. A escolha de poetas, escritores e músicos com menos
de 100 anos de idade a partir da data de nascimento foi pré-
requisito.
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“Tenta pensar na morte. Tenta realmente pensar nela. Tu
não tem que imaginar o teu caixão, ou tua cabeça
esparramada num asfalto, nada disso, não é assim que se
faz. Apenas imagina o mundo sem a tua presença. Imagina o
teu cachorro começando a sentir tua falta depois de uma
semana. Imagina os teus 146 CD‟s repousando na estante, e
teu irmão indeciso quanto ao que fazer com eles agora que
tu já não existe. Todas as tuas coisas, e especialmente a
expressão das pessoas que tu ama ao se perguntarem o que
farão com elas, as tuas coisas. Imagina teus amigos
lembrando os melhores momentos que passaram contigo,
imagina teu melhor amigo numa mesa de bar com outros
amigos propondo, num lapso, que alguém telefone pra ti e te
convide pra beber com eles. Imagina o silêncio que se
segue”.
Previsões de ano novo feitas nas entranhas de
um porco, Daniel Galera
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Capítulo I
O Que Você Vai Ser Quando Morrer?
“O céu pesado, nebuloso, da última sexta -feira,
parecia prenunciar a tragédia que estaria para
desabar sobre a cidade no início da noite”
Maria Aurélia G. Silva - 25/5/94
Sexta-feira. Maio de 1994. Céu nublado, temperatura
amena. Odajyl Pessoa abriu os olhos, acordou e se vestiu.
Não sabia que aquele era o último dia de vida dele e de
alguns amigos que entraram no mesmo ônibus. Jyl, como era
conhecido em Rio Claro, era um rapaz de 23 anos: moreno,
forte e carismático. Trabalhador, paquerador, sonhador.
Estava no último ano da faculdade de Matemática da
Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Tinha três
irmãs e um irmão, pai, mãe, sobrinhos e amigos.
Uma reunião na Condor Engenharia, onde Jyl trabalhava,
aconteceu na manhã do dia 20 de maio de 1994. Jyl
participou do encontro, mas não trabalhou no restante do
dia. Fez coisas incomuns.
Visitou os sobrinhos e brincou. Foi ver o pai no
trabalho, falou de seu Passat como se estivesse entregando
o carro. Documentação, chaves e mecânica: tudo em ordem.
Passou na casa do sócio, Fábio, para conversar sobre o
futuro.
Jyl e Fábio planejavam abrir um negócio no ramo de
informática. Jyl estava ansioso com a mudança profissional
e desabafou com o sócio: “Hoje é o dia mais feliz da minha
vida! Essa vida é boa e curta. A gente tem que aproveitar os
bons momentos. Uns abrem a porta da tristeza e outros
~ 22 ~
abrem a porta da alegria. Eu, por exemplo, encontrei hoje a
chave da porta da felicidade”. Naquele momento, ninguém
entendeu.
Depois de 10 anos a família Pessoa relembra, durante a
entrevista, a forma com que os avisos sobre a morte de Jyl
chegavam. Enquanto isso, em Campinas, a experiente
enfermeira Carla Fiori trabalha e sabe quando um doente
terminal está preste a morrer. Não de forma sobrenatural,
mas pelo cheiro rançoso e pela aparência.
Jyl não percebeu claramente a própria morte. Ele faleceu
por causa de um acidente, um pouco depois das sete da
noite, a caminho da faculdade. Ao completar 10 anos da
ausência de Jyl, a mãe (Constância) e uma das três irmãs
(Simone) contam como o dia dele transcorreu, com
acontecimentos e palavras que parecem confirmar que algo
o atingiria.
Corredores, aventais, agulhas, sangue, macas, feridas,
curas e óbitos. Com diferentes perspectivas, mas com a
mesma realidade de lidar com o sofrimento alheio, os
profissionais da saúde precisam conviver com a morte. São
doenças e doentes terminais, acidentados, enfartados e
algumas pessoas que conseguem sair de uma complicação
para viver por mais algum tempo.
Com 22 anos de experiência profissional na área da
saúde, Carla Fiori demorou a entender alguns sentimentos
em relação aos dramas que tinha que ver e conviver. Hoje
ela é enfermeira do Centro de Atendimento Integral à Mulher
da Unicamp (Caism).
O primeiro contato de Carla com a aparência da morte
foi na faculdade, onde tanques com pedaços de corpos,
chamados de peças, estavam à disposição para o estudo
prático do corpo humano. O cheiro de formol entrou nos
olhos, no nariz e na garganta: “O primeiro contato foi com
aquela carne rígida e gelada”. Ela respirou fundo e pensou:
“Eu tenho que pôr a mão, eu tenho que ir pegando”.
~ 23 ~
Passado o impulso de soltar a carne escura, Carla
terminou o curso na Puc-Campinas, obteve o diploma e se
especializou. Enfrentou situações que vão além do cheiro de
formol. Ela aponta que a maioria dos cursos na área da
saúde não prepara emocionalmente os alunos para
enfrentarem a morte, mas Carla parece saber lidar com tais
situações e explica que a calma que sente diante de doentes
terminais é um exemplo que foi ensinado por sua mãe, que
era espírita e que soube se despedir do mundo e da família
de forma tranquila.
Quando Carla estudou Enfermagem, a única disciplina
que poderia dar suporte emocional para os alunos era a
Psiquiatria, pois a professora de aula prática levava os
estudantes para o manicômio. Com a experiência, Carla
concluiu que é mais difícil lidar com a loucura do outro do
que com cadáveres em laboratórios de anatomia. A
possibilidade de se identificar com um corpo sem vida é
remota, mas ao perceber as atitudes exacerbadas de uma
pessoa considerada louca, Carla sentiu medo.
Observar a insanidade mental da pessoa que passa o dia
inteiro “catando papel” no manicômio pode trazer o receio
de que um dia isso possa acontecer com qualquer um que
tenha algo interno a ser resolvido, como a mania de
limpeza, o excesso de organização ou qualquer outro hábito
que, ao ser intensificado, se torna uma doença digna de
tratamento psiquiátrico como, por exemplo, o medo extremo
que pode se transformar em Síndrome do Pânico.
Quem opta pela enfermagem conhece que a essência da
profissão é cuidar de pessoas que estão doentes. Carla
escolheu ser enfermeira, pois não quis cursar Medicina por
causa do estereótipo do médico endeusado, onipotente e de
difícil acesso. O desejo de Carla era exercer um perfil
diferente do profissional de saúde prepotente e distante.
Hoje, ela admite que poderia ser uma médica diferente de
muitos que mal perguntam o que o paciente está sentindo.
~ 24 ~
No período em que ainda era estudante, ela não pensou
na morte como algo objetivo, mas sabia que o fato estava
implícito. Sem sentimentos mórbidos em relação ao assunto,
quando Carla precisa parar em um acidente, o que a move
não é a curiosidade, mas a vontade de ajudar.
Se pensar na morte alheia é algo tranquilo para Carla, a
ideia do próprio fim apareceu com o passar do tempo:
“Quando alguém tem 20 ou 30 anos, existe a sensação de
que é eterno, por isso, a ansiedade de um jovem não é
transferida para o óbito, mas para as patologias da criança,
do adulto, do velho e do doente mental”.
Além de ter estudado Enfermagem na Puc, Carla Fiori é
formada pela Escola Superior de Enfermagem D. Ana Guedes,
na cidade de Porto, em Portugal. Grande parte da
experiência de Carla é voltada para a saúde do idoso e a
vocação pode ser explicada por um fato ocorrido na época
do estágio feito no Hospital Celso Pierro, no começo da
década de 80. Foi o primeiro contato com a morte de uma
criança e, segundo ela, “uma experiência péssima”.
O hospital estava em reforma e Carla precisou fazer a
transferência de um bebê de oito meses com uma séria
cardiopatia. Ele tinha alergia a tudo, sobrevivia com ajuda
de aparelhos, não comia a comida do hospital e a mãe tinha
que lavar o lençol do bebê na própria casa. No dia em que o
pintor estava chegando perto do quarto da criança, deram
uma ordem para que Carla a transferisse. E Carla, “como
estudante idiota, boba e tonta, mão de obra barata”,
concordou. Preparou o local que ia receber o bebê, pegou o
oxigênio, o carrinho de emergência e deixou pronto tudo o
que era preciso. Desconectou a criança dos aparelhos para
atravessar um corredor de cinco metros e, quando chegou
no outro quarto com o berço, o bebê “parou”.
Mesmo com o coração parado, existe a tentativa de
reanimação e a esperança de que não ocorra um óbito, então
“foi aquela correria”. A equipe ficou cerca de duas horas
tentando reanimar a criança que voltava e parava, voltava e
~ 25 ~
parava. Enquanto a equipe de enfermeiros e médicos tentava
reanimar o coração do bebê, a mãe ficou do lado de fora
esperando.
Depois que a equipe desistiu da reanimação, já que o
bebê não voltava, a mãe pegou Carla “pelo colarinho” e a
chamou de assassina. Emocionalmente, enfermeira não ficou
bem depois do óbito do bebê, mas conseguiu entender que a
responsabilidade não era dela.
Racionalmente, a criança não tinha saúde para continuar
viva e a transferência não poderia ser feita por uma
estudante. Não porque um profissional faria o trabalho de
forma diferente, mas pela responsabilidade, para poder
responder pela morte de uma pessoa.
Depois do trauma, Carla não sofreu punição ou
demissão dentro do hospital porque, de qualquer forma, “a
criança não sobreviveria por muito mais tempo”.
Carla faz análise e sabe que a terapia é um cuidado que
os profissionais da saúde esquecem de procurar. Como
enfermeira, ela é um depósito dos problemas dos outros:
“As pessoas vomitam os problemas em cima da gente de
uma forma muito fácil”. Por ficar tanto tempo ao lado dos
pacientes, o profissional de enfermagem é treinado para
cuidar do doente. Fato que nem sempre acontece, como nos
casos de preconceito. Há alguns anos, um dos grandes tabus
era ser mãe solteira.
Ter um filho sem estar com o marido ao lado podia
significar ser mal tratada dentro dos hospitais. Carla não
concorda com a discriminação, mas admite que isso é comum,
“infelizmente”. O preconceito atinge questões como raça, credo
e sexo. “As prostitutas são as maiores vítimas da negligência de
quem não respeita as diferenças”. O mais comum é ouvir
profissionais dizendo: “Ah, merece sofrer mesmo, é prostituta!”.
Há também os presos e sentenciados: “Se um preso ou
prostituta está para morrer, os profissionais os deixam
sozinhos, ninguém fica perto”.
~ 26 ~
Por causa da religião, que não permite a transfusão de
sangue, a discriminação atinge as Testemunhas de Jeová. Se
uma mãe não permite a transfusão de sangue no filho, ela é
“crucificada” pela equipe. Alguns tentam liminar judicial
para poder obrigar a criança a receber sangue. Carla é
categórica: “Eu sou radicalmente contra. Isso é
discriminação, pois é o que a mãe quer, é o que ela acredita.
Na crença dela, ela está protegendo e sendo a melhor mãe
do mundo como eu acho que estou sendo a melhor mãe do
mundo na hora que eu autorizo uma transfusão para o meu
filho. Quem sou eu para julgar?”. Antes de qualquer
situação, Carla enxerga no paciente um ser humano que
precisa de cuidados e respeito.
Não é possível aliviar o sofrimento de ninguém, mas é
possível ser solidário. Para diminuir o padecimento de um
doente, padecer junto não é o melhor caminho, basta
compreender: “não apenas com palavras de conforto ou
tapinhas nas costas „ah, fica tranquilo, tudo vai dar certo‟,
isso é uma puta sacanagem! É uma sacanagem que não tem
tamanho”. Carla compreende a dor, escuta e deixa a pessoa
falar. O mais apropriado é ficar disponível e dizer: “pode
contar comigo”.
A piedade é um sentimento requisitado por pessoas
doentes e seus familiares, mas ter dó do paciente é um
comportamento nocivo. A primeira vez que Carla percebeu
este tipo de atitude foi quando, com pouco mais de dois
anos de experiência como enfermeira, cuidava de uma
senhora que teve um Acidente Vascular Cerebral (derrame).
A senhora, que tinha 70 e poucos anos, estava
hospedada na casa da filha: “uma mulher casada, com filhos
e marido”. Um dia, a filha da idosa inválida acusou Carla de
ser uma profissional fria. Carla é taxativa em sua afirmação:
“Eu não sei sentir dó de uma pessoa. A filha da senhora
inválida não sabia lidar com aquela situação e queria que eu
passasse a mão na cabeça dela e dissesse „ah, coitada, olha
só, sua mãe estragou sua vida‟. Eu não disse nada”.
~ 27 ~
Carla trata os pacientes em coma da mesma forma que
cuida de alguém que está consciente. Cumprimenta, fala da
aparência, conversa e pede licença para pegar no corpo:
“Tem que ter o respeito à privacidade, ao corpo da pessoa
que a gente está cuidando, esteja ela consciente ou não. Eu
digo sempre ao paciente o que vou fazer, tipo „agora vou
dobrar sua perna, vou esticar seu braço‟...”. A atitude é
explicada por ela com base em estudos que comprovam que
o uso da linguagem não está separado da técnica: “Como eu
acredito que o inconsciente está gravando tudo, desde a
fecundação até a morte, então eu acho que está valendo. Não
importa se está em coma ou não. A área da neurologia tem
muito a descobrir. Eu não vou correr o risco de desrespeitar
uma pessoa, mesmo ela estando em coma”.
O Brasil é um país de muitas cores e faces, por isso,
nenhuma crença pode declinar a aceitação do sincretismo
religioso. Para Carla Fiori, brasileira, não é diferente. De
educação cristã e orientação espírita, ela cai em contradição
e não acredita que somos a imagem e semelhança de Deus:
“A tentativa de tornar Deus um humanóide seria fruto da
falta de imaginação do ser humano”.
Para Carla, Deus é a energia criadora do universo que
está ligada com as leis da física e da química, não uma
entidade com consciência que manipula os acontecimentos.
Às vezes, ela acredita na vida após a morte, às vezes, não:
“É muito confuso, acho que depois nos tornamos energia”.
O pai dela morreu há dois anos e a mãe há seis. Mesmo
assim, quando sente saudades da presença materna,
conversa e pede ajuda. Desta maneira, ela faz exatamente
aquilo que acha que não existe. Se a mãe dela morreu, o
corpo está decomposto e a energia presente no universo: “É
uma contradição absurda, mas eu estou bem com a minha
contradição”.
Carla faz de conta que conversa com os pais para aliviar
a saudade pois, como ela insiste em dizer: “Saudade dói,
saudade dói”. Lidar com a dor de forma madura, não
~ 28 ~
lamentar, entender a morte como um presente e não como
uma punição é o que ela faz: “O problema da morte é para
quem fica, não para quem morre, então, quando sou eu
quem fica, como no caso de pessoas que eu tenho
envolvimento emocional, eu sinto saudades”.
Durante a entrevista, Carla salientou a diferença entre a
percepção que seus dois filhos têm da morte. Thiago tem 17
anos de idade e convive com o sofrimento alheio de forma
tranquila. Aos oito, no velório do avô paterno, Thiago quis
tocar o corpo dele com todas as mãos e estranhou a ausência
de sapatos no ente querido. Atualmente ele diz que, quando
tiver que ser enterrado, quer estar vestido de bermuda e sem
sapatos, como aconteceu com seu avô, que pôde contar com a
presença do neto ao lado da cama nos últimos dias de vida.
A filha mais velha da enfermeira Carla, Ana Paula, tem
conhecimento sobre os primeiros socorros e sobre os
procedimentos que devem ser feitos em caso de acidentes,
mas tem pavor do que a mãe precisa ver no dia-a-dia: “Não
gosto de sangue, o sangue significa vida, então, se você está
perdendo sangue, você está perdendo sua vida. Eu não sou
Deus, então eu fico apavorada. Eu queria pegar uma pá,
colocar o sangue para dentro e fechar”.
Ana Paula quer se formar em estatística. Gosta de
números, pesquisas e porcentagens. Evita ficar perto de
pessoas doentes e as procura quando estão melhores: “Eu
vejo a pessoa acabada e não gosto de gente que reclama, não
tenho paciência”. Ana Paula tem um jeito jovem e alegre que
contagia, fala rápido e usa muitas gírias. Estuda, tem amigos
e não gosta de agulhas. Beber antes de dirigir? Nem pensar!
A filha de Carla sabe que é preciso tomar cuidado para não
morrer: “A gente cresce sabendo que o cachorrinho morre, o
passarinho morre, seu avô morre, seus pais vão morrer.
Você vai sendo preparada para isso e um dia você vai
morrer, seus filhos e netos vão te enterrar. Não paro e penso
„vou morrer‟, se eu morrer eu morri, e daí? Vou viver o hoje
e também pensar no meu futuro”.
~ 29 ~
Capítulo II
A Hora da Misericórdia
"Pelos quatro cantos da terra, a morte, a
discórdia, a ganância e a guerra. E a guerra"
Carta aos missionários - C. Galvão, M. Hayena,
N. Nunes
Jyl continua agitado. À noite ele teria que fazer uma
prova na faculdade. Cadernos em mãos. Corpo na sala.
Desconcentrado da tarefa que tinha pela frente, a audição
despertou para o barulho que vinha do rádio. A mãe de Jyl,
Constância, ouvia um programa religioso com atenção. Era a
Hora da Misericórdia, três da tarde do dia 20 de maio de
1994.
Aquele era o momento do dia para se concentrar com fé
e pedir uma graça, explica Constância para Jyl. Ele se curva
para frente com o caderno no colo e faz seu pedido em
silêncio.
Agosto de 2003: ao trazer da memória o último dia de
Jyl, Constância chora. Pede um lenço para a filha Simone,
professora de artes marciais e dona de uma doçura sublime.
Ela cuida dos detalhes com a mãe que acabara de sair do
hospital. Constância fez a segunda cirurgia no coração. A
primeira foi há 30 anos.
Na sala, o televisor está envolto de porta-retratos. Jyl está
entre eles. Foto de rosto. Na parede, um quadro com a figura
de Jesus Cristo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.
Religião e fé ajudam a diminuir o sofrimento. Para
Simone, que acredita em Deus e vai à missa, a crença foi
~ 30 ~
positiva quando precisou enfrentar a dor de perder um
irmão. O padre de uma igreja de Rio Claro a ajudou com
palavras de conforto e fé. Simone estava deprimida. Na
religião e na igreja ela encontrou acalento.
Enquanto alguns buscam a existência de Deus, outros
preferem encontrar respostas no conhecimento empírico.
Não por desrespeito às religiões, mas por ter uma
personalidade contestadora como a do jornalista ateu José
Arbex Jr.
Arbex escreveu mais de 25 livros e presenciou fatos
históricos que não deixam dúvidas sobre sua experiência.
Ele era correspondente internacional da Folha de São Paulo
quando o muro de Berlim foi ao chão. Além de ter visto a
história do mundo acontecer, Arbex tem o privilégio de
poder contar como foi entrevistar personalidades como
Mikhail Gorbachov, Ulisses Guimarães e Peter Gabriel.
Jornalista, escritor, professor e doutor em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP), Arbex se
entregou à profissão de jornalista e enfrentou situações de
extremo perigo, como estar dentro de um avião que era alvo
de míssil. Hoje, aos 47 anos, o taurino com ascendente em
capricórnio é editor da revista Caros Amigos, membro do
Conselho Editorial do Jornal Brasil de Fato e professor da
Puc em São Paulo.
Na tentativa de entrevistar Arbex, o primeiro contato
para a entrevista foi feito por e-mail em um sábado de
carnaval. A questão era a morte. O retorno veio quase que
imediato. Nascia, então, a fonte que mais inspirou a
continuação deste livro-reportagem.
Em letras minúsculas, a resposta explicava o mínimo:
“Presenciei várias vezes a morte, de vários pontos de vista.
No Paraguai, fui ameaçado de morte pelo ditador Stroessner
(1986). No Haiti, estava em uma barricada quando um
manifestante foi atingido por balas de metralhadora ao meu
lado, podia ter sido eu (1986). No Afeganistão, viajei em
~ 31 ~
avião soviético que era alvo de mísseis sting de muçulmanos
(1988). Na Armênia, presenciei milhares de corpos após um
terrível terremoto. Em Pequim, convivi por 40 dias com
estudantes na Praça da Paz Celestial, muitos dos quais
massacrados em 04 de junho de 1989. Na Romênia, cobri os
resquícios dos combates que derrubaram Nicolau Ceaucescu.
Ainda vi mães rezando por seus filhos diante de velas
acesas em Bucareste (1989). Na Palestina, fui várias vezes
medido por soldados portando fuzis, além de ter
permanecido sob cerco de tanques de guerra em um
hospital, em Ramallah (2002), fora acidentes pessoais, como
dois capotamentos. Mas isso, não sei se conta...”.
Nos dois acidentes pessoais, ninguém morreu, ninguém
se machucou. O carro ficou literalmente pendurado em uma
árvore, à beira de um precipício de uns 50 metros. Arbex
nunca achou que ia morrer e diz que tem o corpo fechado:
“Vou morrer aos 94 anos, em 2051. Em 2050 vou dar minha
última palestra para uma moçada adolescente e contar como
foi a queda do muro de Berlim”.
A afirmação não é à toa. Nunca foi internado nem
passou por cirurgias. Evita médicos alopatas e, quando
necessário, procura se tratar com homeopatia ou
acupuntura: “Acho que a medicina está equivocada, ela parte
de uma divisão entre carne e espírito. Eu não acho que
existe essa divisão. A doença não é uma manifestação de um
órgão doente, a doença é a interrupção da energia vital. A
doença mais grave que eu tive foi gripe”.
A juventude e a disposição do jornalista advêm do
entusiasmo que sente pela vida: “Eu só vou ficar doente no
dia em que eu perder o entusiasmo. Não me sinto com 47
anos, me sinto com 20. O dia em que eu fizer algo sem
entusiasmo, vou considerar que estou mal. Aí eu acho que
vou estar perto da morte”.
Apesar da resistência em falar da vida pessoal, Arbex foi
se deixando conhecer. Até que a persistência deu lugar à
realidade. Estava frente-a-frente com o jornalista de guerra
~ 32 ~
que já entrevistou com exclusividade personalidades como
Iasser Arafat e François Houtart. Aqui ele fala da morte, vida
e terapia.
A risada é contagiante, quase hipnótica. Arbex não bebe
e não se droga, gosta de estar sóbrio. Apesar da coragem
explícita em sua profissão, já sentiu medo de morrer
quando, no Afeganistão, o avião em que viajava era alvo de
míssil. Ele achou que seria o fim. Mesmo tenso, conseguiu
dormir enquanto os outros bebiam. Estava no avião com
mais 20 correspondentes. A coragem, invejável para
qualquer profissional ávido por notícias, existe para Arbex
quando ele sente que é dono dos próprios passos: “O
negocio é assim, se você está no chão, na barricada, você
pula, rola, sai correndo, faz qualquer coisa, mas dentro do
avião não. No avião você depende do piloto”.
Ao desafiar poderes, o jornalista foi capaz de trazer à
tona notícias de várias partes do mundo. No Haiti, mesmo
quando um manifestante foi metralhado ao seu lado, Arbex
não desistiu. Na época, toda forma de comunicação estava
fechada no país: “Fui para a central do correio do Haiti, o
telex. Na porta tinha um sentinela armado com um fuzil e
que ficava andando de lá para cá, na porta. Eu esperei ele
me dar as costas, entrei na central do telex e comecei a
escrever a notícia”. Se fosse pego, seria assassinado. Mas
sentiu o corpo fechado:
“Eu não sei, é muito estranho o que acontece. Eu fico
com o sangue frio, totalmente tranqüilo”. Arbex escreveu a
reportagem sem rascunho. O texto saiu perfeito. Ele é capaz
de escrever um livro em três semanas. Entre tantas notícias,
Arbex se comove: “A hora que mais me comovi foi quando
conversei, em 2001, com as crianças na Palestina. Foi quase
insuportável ver crianças sendo assassinadas por um
exército ocupante e não ter o que dizer a elas. É barbárie
humana, não é terremoto, é gente provocando mortes”.
Quando presenciou o terremoto que matou 10 mil
pessoas na Armênia, Arbex constatou de perto a força da
~ 33 ~
natureza: “Ali eu senti a impotência da espécie humana, tão
vulnerável e frágil. A vida é um acaso”.
Ele admite que fez sua carreira cobrindo
jornalisticamente o sofrimento dos outros. Hoje, Arbex não
se sente à vontade para falar da dor alheia: “É um conflito
ético que surgiu na Palestina”. Ao desvendar as mazelas
alheias, ele acreditava que fazia bem à comunidade.
Depois de analisar os fatos, Arbex acredita que falar da
morte dos outros é uma espécie de violação da intimidade.
Demorou algum tempo para chegar a essa conclusão.
Em 1999, houve um simpósio na Puc chamado O
Estrangeiro. No encontro, Arbex pôde ouvir alguns
psicanalistas. Uma delas, em particular, fez a diferença na
vida do jornalista que destrinchava publicamente o conflito
na Iugoslávia e a guerra civil na Bósnia.
Depois de todo o debate, a psicanalista iugoslava disse
ao jornalista brasileiro: “Eu sei de tudo isso o que você
falou, só que eu não falo, eu fico quieta porque eu acho
muito violento falar da morte de outras pessoas”. Arbex não
entendeu e tentou argumentar: “Se ela não fala, como as
pessoas vão saber o que acontece?”. Na época, ele julgou
aquele silêncio como algo idiota, mas em 2001 ele entendeu:
“A morte é um sentimento intransponível. É como se, ao
falar da morte, o mistério que ela representa fosse
banalizado. Explicar o próprio fim não é problema porque
você é responsável pelo seu mistério, mas não tem o direito
de banalizar o direito do outro”.
O receio de Arbex é que, quando alguém expõe a morte
alheia sem o devido respeito, tudo se torna unicamente uma
estatística.
Arbex fez terapia durante uma década e parou por
acreditar que está pronto para elaborar internamente o que
foi analisado. No início, fazer terapia representava uma
fraqueza, mas depois de quatro anos de análise, o
preconceito deu lugar ao entendimento das próprias aflições.
~ 34 ~
Foi em 1990, quando ele estava em Paris, que percebeu
que precisava de ajuda. Arbex estava na França para cobrir
uma conferência europeia: “Comecei a me sentir muito mal,
solitário, aí eu pensei comigo mesmo: „Oh cidadão, é o
seguinte: você estava mal e Nova Iorque, você culpou o
capitalismo. Você ficou mal em Moscou, você culpou o
socialismo. Agora você está mal em Paris, qual o seu
problema? Você vai culpar quem? Os Campos Elíseos?‟ Aí eu
encarei que eu tinha um problema”.
Ele estava vivendo um mundo absurdamente intenso no
ponto de vista das transformações políticas, revoluções,
morte e luta. Com a carreira de jornalista em ascensão, ele
percebeu que havia uma discrepância: “Minha vida virou um
vazio preenchido por coisas que não eram pessoais, eram
acontecimentos, então eu tive uma vida de acontecimentos.
Ninguém vive desse jeito. Aí eu achei que estava na hora de
procurar a psicanálise”.
Um dos problemas do jornalismo é que, para Arbex, não
houve diferença entre vida profissional e pessoal: “Em tese,
o jornalista não deve se envolver emocionalmente com os
fatos e tem que ser objetivo. Eu nunca consegui fazer isso,
eu me envolvo emocionalmente e manifesto minha posição.
Isso produziu um desgaste psicológico muito grande. Eu fico
puto, participo, vou para as manifestações. No final de tanta
coisa aconteceu um desgaste emocional que até hoje eu não
avalio direito”.
O assunto sobre morte foi discutido na terapia porque
Arbex percebeu que, enquanto era relativamente fácil falar
do fim da vida dos outros, era muito difícil falar da morte
de alguma coisa dentro dele: “A morte na minha vida era
uma coisa difícil. Então eu estava sendo hipócrita. Como é
que eu falo da morte de todo mundo e não das coisas que
têm que morrer comigo? E as coisas que eu tenho que matar
dentro de mim? Como é que eu vou lidar com isso? Na
psicanálise”.
~ 35 ~
Capítulo III
Um Nove Dois
"Meu anjo, eu sei que é duro esperar, no chão,
tudo terminar. Pois, continuar vivo já não é mais
uma opção. Fácil é virar pó, difícil é a lição" .
Morto - John Ulhoa
Sexta-feira era dia de fazer faxina na casa, mas naquela
tarde Simone estava enrolada com o serviço. Omero, irmão
mais novo de Jyl, costumava contar piadas diariamente
antes de ir para a escola.
Jyl, já pronto para pegar o ônibus que o levaria para a
faculdade, começou a fazer graça. Eles adoravam rir. Um
pouco antes de Jyl sair de casa, Constância pediu para o
filho tirar o tênis. Ela lavaria o calçado para que ele pudesse
usá-lo limpo no final de semana.
Foi então que Jyl respondeu: “Xi mãe, você vai ver como
vai voltar esse tênis hoje”. Passou por Simone e se despediu
rapidamente: “Ele saiu quase sem ninguém ver, eu disse
para ele: „vai com Deus‟, e ele foi”.
Logo depois que Omero e Jyl saíram, Simone e
Constância foram à igreja rezar o terço. Entre sete e sete e
meia da noite, na “Hora dos Mistérios”, Simone passou mal,
perdeu o fôlego e “a vista escureceu”. Constância apenas
sentiu necessidade de rezar sem parar. Em alguns minutos,
Simone estava bem novamente.
Depois de rezar, mãe e filha vão para casa preparar o
jantar. É nesta situação que Fábio aparece. O sócio de Jyl
trazia a notícia: “Aconteceu um acidente com o ônibus do
Odajyl e parece que ele está bem na Santa Casa, vamos lá
que eu levo vocês”.
~ 36 ~
No caminho para o hospital, Simone acredita que o
irmão vai sobreviver. Com a confusão, foi difícil entrar no
hospital, mas Simone consegue. Desce as escadarias e vê Jyl
passando deitado na maca. Ele estava respirando, mas
inconsciente. Não tinha piche no corpo dele. As outras
vítimas do acidente se misturaram no material asfáltico do
caminhão-tanque que bateu no ônibus. Jyl estava inteiro,
com o peito inchado, a cabeça raspada e cheia de cortes.
Ver o irmão em estado grave depois de sofrer um
acidente é uma lembrança sem possibilidade de descrição.
Por mais que haja maneiras de dizer como foi, apenas quem
viveu uma situação semelhante pode saber o real significado
da dor. É em momentos como esse que muitos profissionais
precisam lidar com o sofrimento alheio diariamente.
São irmãos, pais e mães de pessoas desconhecidas que
precisam de ajuda. A tarefa? Salvar vidas e amenizar dores.
É assim que trabalham todos os dias os médicos,
enfermeiros e motoristas do Sistema de Atendimento Médico
de Urgência de Campinas (Samu).
Sala pequena, móveis antigos, médicos, enfermeiros,
atendentes, ocorrências paradas por falta de ambulância e
um homem tentando consertar algo a marretadas. Assim
estava a sala de atendimento 192 do Samu em uma tarde de
agosto de 2003.
Os atendentes recebem os telefonemas, coletam as
informações necessárias como endereço, gravidade da
ocorrência e, dependendo do caso, acionam uma equipe para
sair com a ambulância UTI.
As constantes chamadas podem trazer notícias como
parada cardíaca, ferimento por arma de fogo, arma branca,
acidentes múltiplos ou desabamentos. Durante o dia, quatro
médicos ficam de plantão, à noite são três.
O Samu recebe 150 chamadas diariamente: são pessoas
que pedem por socorro. Das 11 ambulâncias disponíveis no
serviço, cinco estão paradas. As ocorrências não atendidas
~ 37 ~
se acumulam em cima da mesa que fica ao lado de um
computador. Cada uma delas é separada de acordo com uma
classificação pré-estabelecida, o maior maço de papéis à
espera de atendimento aponta casos de alcoolismo.
O primeiro a ser entrevistado na tarde ensolarada de
agosto foi o coordenador médico José Roberto Hansen. O
homem, que hoje trabalha na administração do Samu,
explica que o dia-a-dia de atender urgência e emergência é
mais emocionante. Com a missão de socorrer pessoas há
mais de 13 anos, Hansen sabe que, por conta de alguns
segundos, uma vida pode se perder.
Nas emergências, a atenção e a pressa precisam ser
constantes. Das tantas histórias vividas pelo médico, que se
formou no Rio de Janeiro, a mais presente na memória é a de
uma criança que caiu em um poço: “Eu tive que entrar
dentro do buraco sem esperar bombeiro porque não dava
tempo. Nós temos treinamento para resgate em altura e
resgate em poço. Desci e peguei a criança no poço de uns 15
metros, ela quebrou só a clavícula e luxou o ombro”.
Em casos de óbito, Hansen fica emocionado quando a
vítima é semelhante a alguém que ele conhece: “Deparar -se
com uma situação de um falecido que parece um parente
seu, um senhor que parece seu pai, isso é difícil. Eu morava
no Rio de Janeiro e, quando isso acontecia, eu ligava em
casa para perguntar: „E aí pai, tudo bem com você? E a
semana, foi boa? Não está sentindo nada?‟ Dava muito medo
de acontecer com a minha família também”.
Nas situações delicadas em que um médico precisa se
aproximar da família de uma vítima, a atitude varia de
profissional para profissional. Alguns fazem uma prece para
que todos possam se acalmar, outros explicam o que
aconteceu, e existem aqueles que não fazem nada.
Hansen busca esclarecer os familiares: “Explico qual o
motivo da morte e a chance de ter feito algo. Tento acalmar
a família”. Para ele, acidentes na rua são emocionalmente
~ 38 ~
mais fáceis de lidar pois, na maioria dos casos, a família não
está presente: “Quando é trauma, a situação é ruim porque
você vê um corpo dilacerado na pista, isso choca. Você sabe
que há minutos era uma pessoa que tentava ir para casa, dar
comida para os filhos. Daí a pouco você vê o corpo da
pessoa destroçado em uma pista. Acabou, não é nada, aquilo
não virou nada”.
Acontecimentos trágicos se acumulam na mente de
quem trabalha na área da saúde. No início da profissão,
Hansen contava para a esposa o que presenciava no dia-a-
dia. Com a experiência, ele percebeu que é melhor não falar
do assunto: “Às vezes ela ficava chocada e falava „ai credo,
não quero nem saber‟. Aí percebi que é chato mesmo. A vida
já é cheia de tristeza, não é fácil, não tem muito com quem
dividir”.
No plantão, os profissionais costumam falar sobre
sentimentos para os colegas de trabalho. Quando a
ocorrência é grave, todos conversam entre si: “Na verdade é
um extravasamento emocional”. No natal de 2002, a equipe
se preparava para um culto ecumênico quando recebeu uma
chamada urgente. Chovia muito e uma criança tinha sido
levada pela enxurrada: “Eles até pegaram na mão da criança,
mas ela entrou na valeta e morreu”. Todos ficaram abalados
e voltaram chorando porque não havia o que fazer.
Para melhorar o estado emocional de quem tem uma
atividade desgastante, há mais de um ano os profissionais
do Samu têm à disposição uma psicóloga. Quase ninguém
faz a terapia em grupo proposta pelo serviço. Hansen admite
que o ideal seria a criação de um serviço de psicologia
presente 24 horas por dia: “Mas a gente não tem essa
possibilidade”.
Depois de muito planejamento da Secretaria do Estado,
em 1996 o Samu foi inaugurado. Desde então, alguns
profissionais não conseguiram trabalhar no local por mais
de duas semanas. O motivo? A pressão emocional diária que
é fazer parte de um serviço público de emergência.
~ 39 ~
Na sala, onde ficam os médicos à espera de chamados
de socorro, está Eduardo Stéfano. De óculos e bom humor,
ele explica as dificuldades de atuar no Samu. As tentativas
de suicídio são as ocorrências mais trágicas na opinião dele,
seja com remédios, enforcamento ou cortes no punho. O
mais dramático foi um enforcamento no qual a chamada
acusava cheiro de gás de cozinha. A equipe chegou e, por
sentir cheiro de gás, chamou o Corpo de Bombeiros.
A porta foi arrombada. Dentro do local estava um
homem morto: “Era um quartinho pequeno, o gás estava
vazando, havia uma „senhora‟ faca embaixo do travesseiro e
o fio de telefone enrolado no pescoço. Ele deve ter sofrido
muito porque errou o cálculo e ficou pendurado na ponta do
pé. Comecei a pensar no motivo para ele ter feito aquilo.
Pelo que ouvi, ele estava jurado de morte por causa de
drogas. Antes de ser assassinado, se matou”.
A primeira reação de Stéfano foi retirar o homem,
suspenso pelo fio de telefone, do local do enforcamento. O
médico sabe que o ideal é deixar o corpo pendurado até a
polícia técnica chegar. Naquela situação trágica, o motivo
para a atitude de Stéfano foi a necessidade de acabar com a
cena trágica.
Para dividir histórias e angústias, Stéfano conta com a
ajuda da esposa, que é enfermeira na Unicamp: “Nunca fiz
terapia, eu trabalho bem o que vejo, não fico pensando nem
sonhando com as tragédias. Até poderia fazer terapia, mas
para resolver outros problemas, não para aprender a lidar
com a morte no dia-a-dia. Se alguém está na chuva, é para se
molhar”.
Ele não se tornou médico por status ou porque “papai”
queria. O pai de Stéfano, médico, deixava explícito que não
fazia questão de ver alguém da família seguir a mesma
profissão, mas Stéfano realmente queria ser médico: “Eu já
trabalhei na área administrativa, já fui secretário de saúde, já
fui superintendente de Santa Casa, mas a política é terrível,
dá nojo. É mais angustiante a política do que a morte”.
~ 40 ~
Ao lado de Stéfano está o médico Alexandre Chicrala
Filho, de atitude discreta e palavras contidas, ele também
faz parte da equipe do Samu. Com o olhar sério, ele conta
que não sente a morte como algo normal, mas entende a
obviedade de que, na área da saúde, o profissional vai ter
que enfrentar a rotina dos óbitos: “Normal não é, acho que
nunca é para ninguém, quem fala que é natural está
mentindo. Mas a gente tem outra maneira de entender isso.
Às vezes as pessoas ligam aqui desesperadas quando alguém
morre aos 95 anos. Puxa, isso é mais que natural”. Chicrala
acredita em Deus, mas não na vida depois da morte:
“Morreu, acabou”.
Enquanto os médicos conversam, o motorista de
ambulância observa. Católico, Ronald Fernando Fortunato
precisa dirigir em alta velocidade no trânsito de Campinas e
convive com tragédias e perigos.
Uma vez, Fortunato foi buscar um homem baleado na
favela. O autor do tiro ainda estava no local para garantir a
morte vítima: “Ele subiu na ambulância e tentou balear o
paciente de novo já na maca dentro da viatura”. Em outra
ocasião, moradores de um bairro apedrejaram a ambulância,
que demorou a chegar no local.
Fortunato não esconde que o que mais vê é gente morta:
“Virou rotina”. Só não é rotina quando o óbito é de criança:
“A gente fica morrendo de dó, os maus tratos, a condição
social, isso que pesa um pouco”. Ele não faz terapia e
confirma que poucas pessoas conversam com a psicóloga
contratada para cuidar dos profissionais do Samu: “Acho
que é falta de tempo, muita gente tem outros empregos”.
Na tarde ensolarada de agosto de 2003, algumas
enfermeiras estavam sentadas em um banco de madeira no
pátio do Samu. Protegidas pela sombra, Lely Mansur e Milena
Pietro Bom Paiva conversavam.
Lely trabalha há 15 anos em urgência e emergência.
Milena é estudante do primeiro ano de enfermagem da
~ 41 ~
Universidade Paulista (UNIP). As duas demonstram paixão
pelo que fazem e conservam no olhar algo que parece
materno. As atitudes são calmas e a entrevista é fácil.
Em geral, as mulheres gostam de falar mais do que os
homens. Contam histórias, falam de sentimentos e emoções.
Lely escolheu ser enfermeira quando ainda era criança.
Gosta de ajudar as pessoas e segue a profissão como um
objetivo de vida: “Sou uma enfermeira felicíssima, adoro o
que eu faço, sou uma pessoa privilegiada, encontrei uma
profissão que realmente me completa”.
Cristã, Lely explica o que pensa sobre a vida depois da
morte: “Você lembra dos átomos? Negativo e positivo?
Quanto melhor você está espiritualmente, mais perto do
núcleo você fica. Quanto mais energias negativas, chega uma
hora que você dissipa. Diferente, não é?”.
Milena espera a vez de falar, calada e atenta aos
depoimentos da colega. Começa a história pela infância,
quando ouvia a pergunta fatídica dos pais: “O que você vai
ser quando crescer?”. Até os sete anos de idade, Milena
desejava ser bailarina. De uma hora para outra, sem
explicação ou dúvida, decidiu ser enfermeira. Na família
dela ninguém trabalha na área da saúde e o espanto foi
inevitável. “Por que enfermeira?”, perguntaram. E ela, com
toda convicção: “Eu quero cuidar dos outros, eu acho bonito
ficar lá, dar apoio. Agora vou ter que sair”.
Neste momento acontece uma chamada urgente para
socorrer uma PCR. Milena e Lely saem às pressas, sorrindo e
com ternura no olhar. Explicam que PCR é parada
cardiorespiratória. Não é possível acompanhar a ambulância.
Apesar do convite das enfermeiras e do motorista, o
coordenador médico é taxativo: “Se algo acontecer com
você, eu sou o responsável, eles vão atravessar a cidade em
alta velocidade, sempre existe o perigo”. A ambulância sai
do pátio fazendo barulho. Enfermeiras, médico e motorista
acenam. Vão salvar vidas.
~ 42 ~
Capítulo IV
Notícia Ruim
"Fui até o rapaz que ainda vivia. E vendo ele
morrer, sem saber o que fazer, segurei sua
mão fria" Um ponto oito - John Ulhoa
Na noite de 20 de maio de 1994, Jyl sofreu
politraumatismo no acidente que envolveu um ônibus e um
caminhão-tanque. Ele foi uma das únicas vítimas fatais a
sair inteira do acidente. Uma caminhonete, que passava pelo
local, o socorreu antes da chegada qualquer resgate
especializado.
Enquanto tentavam salvar a vida de Jyl na Santa Casa de
Rio Claro, o jornalista Ivan Castanho se preparava para ir a
um jantar árabe no clube da cidade, o Grupo Ginástico. Ele
estava em casa quando recebeu uma ligação com a notícia
do acidente na SP-127.
Em 1994, celular era objeto raro. Castanho saiu de casa
em direção ao clube. Um colega de trabalho foi até a festa
avisá-lo pessoalmente: “Teve um acidente grave com
estudante. Coisa grave. Vários mortos”.
Na entrada do clube, Castanho estava com a esposa e
mais um casal, na época o dono do Jornal de Rio Claro, João
Ragghiante. Castanho deixou os três na festa e foi para o
local do acidente: “O jornalismo corre na veia. Já tinha a
informação de que era ônibus de estudante de Rio Claro. Fui
na louca, sozinho. Cheguei no jornal e o fotógrafo já tinha
ido cobrir o fato. Foi difícil chegar até o local da tragédia.
Estava tudo congestionado e escuro. Deixei o carro distante
uns 500 metros do acidente. Com carro particular é
~ 43 ~
complicado, se é de imprensa o pessoal abre caminho, mas
até justificar...”.
Enquanto caminhava, ao chegar perto do acidente,
Castanho sentiu “um negócio grudando no pé”. Ele não sabia
o que era e quando viu, era piche: “Marcou muito porque eu
estava de sapato novo. Na hora, a única coisa que veio na
cabeça foi o sapato novo. Depois disso, quando cheguei
perto do ônibus, foi um horror”.
Não era a primeira vez que Castanho via uma tragédia
de perto. Cerca de dois anos antes do acidente que matou
Jyl e mais 18 pessoas, o jornalista cobriu um acidente com
sete vítimas fatais na SP-127: “Cheguei junto com o resgate.
Morreu a família inteira, só não morreu o motorista do
caminhão. Os sete eram da família Vedovelo. Tinha criança
dentro do carro. Estavam indo para um casamento em
Piracicaba ou Capivari, não lembro mais. No caminho para a
festa, bateram de frente com um caminhão. Não dava para
distinguir do que estavam vestidos. Para você ter um ideia,
eram sete corpos. Não sei você já viu o tamanho do caixão
de zinco que funerária tem para esse tipo de coisa, que é um
pouco maior e mais alto do que a gente costuma ver em
velório. Os sete corpos couberam em um único caixão. Não
tinha como distinguir, era preciso levar para um especialista
tentar fazer a separação”.
Depois do resgate dos corpos, quando levantaram o
veículo acidentado, acharam uma cabeça embaixo do carro:
“Até onde sei, o problema foi com a mecânica do carro, não
foi culpa do caminhão. O caminhão vinha na descida, o carro
não estava ultrapassando e não deu para identificar o
problema por causa do estado em que o veículo ficou. Ou foi
a direção, ou furou o pneu. Você imagina um caminhão no
embalo da descida...”.
Já no acidente de 20 e maio de 1994, Castanho
encontrou o fotógrafo do Jornal de Rio Claro trabalhando na
escuridão. Entre os corpos, o jornalista conta que o
interessante era o cheiro: “O cheiro não era ruim, mas dava
~ 44 ~
para sentir o cheiro da morte ali, não dá para explicar.
Fiquei arrepiado de ver aquilo. Eu, na realidade, não
conhecia ninguém. Só sabia que eram estudantes. Apenas
uma sobrevivente eu conhecia de vista”.
O fato de não conhecer as vítimas facilita o trabalho de
qualquer profissional, mas Castanho não deixou de ficar
sensibilizado com a situação: “A cena chocante foi quando
eu me dirigi ao Instituto Médico Legal (IML). Não tinha mais
espaço para colocar os corpos. Foram colocados no chão, um
ao lado do outro. Ali foram feitos os reconhecimentos e as
fotos. Publicar ou não? Tinha gente com metade do rosto,
sem o queixo, sem a tampa da cabeça, sem o braço, sem a
perna, gente cortada o meio. Tinha de tudo. Interessante foi
o silêncio no IML. Apesar dos familiares chegarem, havia
silêncio e daí a pouco alguém começava a chorar”.
Depois do IML, Castanho seguiu para a redação do Jornal
de Rio Claro, onde trabalhou durante quase 20 anos. Foi
revelar as fotos e escrever a matéria: “Era tipografia, tinha
que montar no chumbo. Passava para o linotipista. E o jornal
saiu... mais uma tragédia”.
Escrita a matéria, Castanho voltou para o Grupo
Ginástico, onde acontecia o jantar árabe: “Minha esposa
estava lá, devia ser mais de meia-noite”. O pessoal já
começava a ir embora do clube. Por coincidência, a primeira
pessoa que o jornalista encontrou foi Ragghiante, dono do
Jornal de Rio Claro, conversando com o Aldo Demarchi, na
época vice-prefeito da cidade: “O Aldo perguntou para mim
como tinha sido e eu disse que era indescritível”.
No dia seguinte, Castanho buscou, com as famílias, as
fotos das vítimas fatais para publicação no Jornal de Rio
Claro. Das 19 vítimas, ele conseguiu 10 fotos: “Só nós do
Jornal de Rio Claro íamos publicar, aí o repórter do Jornal
Cidade me ligou e pediu as fotos. Depois, muita gente me
questionou por eu ter cedido o material para o Jornal Cidade
ao invés de publicar sozinho. Por que eu cedi? Primeiro,
naquele momento eu tinha consciência de que o Jornal de
~ 45 ~
Rio Claro não era o de maior circulação. A impressão do
Jornal Cidade naquela época já era off set, então não achei
justo colocar o material só no jornal que eu trabalhava.
Muita gente não sabia quem tinha morrido. Quase todos
eram de Rio Claro. Eu achava que, quanto mais a imprensa
divulgasse quem eram as pessoas, mais informação. Não era
sensacionalismo, era informação”.
Na vida pessoal, Castanho às vezes frequenta a
Congregação Cristã do Brasil. A esposa dele é batizada, mas
ele não: “Vou lá para ouvir uma palavra e tal. Acredito em
Deus, ou em uma força que colocaram o nome de Deus.
Acredito nessa força e quero continuar acreditando. Eu acho
que estamos aqui por algum motivo. Temos que acreditar.
Tudo na vida precisa ter um objetivo. Não que a morte seja
o objetivo, mas é o destino e temos que aceitar. Temos que
ter uma vida sem fazer mal às pessoas. Ninguém é perfeito,
todo mundo tem seus pecados, mas é preciso tentar ser o
mais honesto consigo mesmo. É importante a pessoa ter uma
crença, uma doutrina. Até o ateu tem a doutrina de que ele é
ateu, não simplesmente vive por viver. Eu não posso matar,
roubar, não é certo... Se eu tenho medo da morte? Eu não
tenho medo da morte, eu tenho pavor”.
O jornalista Diógenes Pasqualini é assessor de imprensa
do deputado estadual Aldo Demarchi juntamente com Ivan
Castanho. Em 1994, Pasqualini era estudante de jornalismo
na Unimep e repórter do Jornal de Rio Claro.
Todos os dias, cerca de nove ônibus da Companhia
Cidade Azul saíam em direção à Unimep. O ônibus de
Pasqualini foi um dos três primeiros que seguiram para
Piracicaba. O veículo em que Jyl estava era o quarto ônibus:
“Era uma sexta-feira, dia 20 de maio, e a maioria dos ônibus
estava com menos alunos que o habitual. Você sabe, sexta-
feira, moçada jovem, cerveja esperando no bar. A maioria
enforcava aula. Isso justifica o número de mortos. Se o carro
estivesse lotado, com 51 passageiros, a tragédia poderia ter
~ 46 ~
sido bem maior. No dia, creio que o número de pessoas no
ônibus não passava de 30”.
Na Universidade, Pasqualini cumpria apenas um crédito.
Era final de curso e o professor solicitou que a classe
fizesse uma redação. Tema livre, um texto de 20 linhas,
batido a máquina em lauda padrão de jornal: “Lembro -me
que, no momento em que recebi a notícia do acidente, eu
escrevia algo sobre a morte. É curioso notar que, quando um
amigo meu disse „cara, aconteceu um acidente com um dos
ônibus da Viação Cidade Azul‟, nesse momento eu escrevia
exatamente „Ela foi embora e morreu...‟. Não me lembro do
conteúdo, mas essa frase me incomodou por muitos anos.
Seria um pressentimento? Uma intuição?”.
A esposa de Pasqualini, na época noiva, viajava em um
dos nove ônibus também. Ele estudava no campus Centro e
ela no campus Taquaral: “Para quem não conhece a estrutura
física da Unimep, estávamos distante um do outro uns oito
quilômetros”. Depois da notícia inicial, saíram todos em
busca de informações: “Tentamos por telefone, mas as
ligações eram tantas que acabou congestionando as linhas. A
angústia e o medo de que minha noiva estivesse no ônibus
envolvido no acidente crescia e o coração estava mais
apertado, o peito doendo e já batia a vontade de chorar.
Nessas horas a gente tenta manter a calma. Começa a
afirmar interiormente que, „não, ela não estava naquele
carro‟. Mas o tempo passando e a falta de informação
acabam com qualquer pensamento positivo. O nervosismo
começa a dominar as emoções e os atos. Mãos frias, suor,
lábios brancos, coração acelerado. Os amigos começam a
chegar perto, a olhar com pena, a abraçar, tentam confortar.
Nesse momento, creio que oito horas da noite, todos os
estudantes do campus Centro já procuravam apoiar os
alunos de Rio Claro”.
Um amigo de Pasqualini teve uma ideia que piorou a
situação de nervosismo. Eles foram para o laboratório de
rádio da Universidade, onde havia um sistema potente de
~ 47 ~
recepção: “Podíamos ter informações das emissoras de Rio
Claro. As notícias eram desencontradas e a cada flash, o
número de mortos aumentava. Um amigo nosso, repórter de
uma emissora, chegou a citar e tentar adivinhar que ele
tinha amigos que viajam naquele ônibus e um deles seria eu.
Gelei ao ouvir esta informação. Lembrei-me de minha mãe,
meu pai e meus irmãos. Precisava dar a notícia de que
estava bem. As linhas continuavam congestionadas. Saí
pelas ruas e achei um telefone público. Finalmente consegui
falar com minha mãe. Talvez depois de meu nascimento essa
tenha sido a maior alegria que dei a ela ao me ouvir dizer
apenas: „mãe, estou bem!‟. O grito de felicidade dela foi tão
alto que senti como se estivesse ao meu lado. Depois disso,
desabei e chorei muito ao telefone”.
Depois de avisar a mãe, mesmo sem saber da noiva,
Pasqualini ligou para a futura sogra e avisou que a filha dela
estava bem. Apesar de tranquilizar a sogra, Pasqualini ainda
não tinha notícias. Ele disse que todos estavam bem sem ter
a informação verdadeira. Mais tarde Pasqualini soube que a
noiva não estava no ônibus acidentado, mas o primo dela,
Nilson Cazonatto, sim. Cazonatto foi uma das vítimas fatais.
Pasqualini reencontrou a noiva no campus Centro da
Unimep depois de uns 40 minutos e foram embora: “No
caminho de volta havia tristeza e a tentativa de entender o
acidente sem saber a dimensão da tragédia e o número de
vítimas, entre mortos e feridos. Ao passar pelo local da
batida, ninguém teve a coragem de olhar pela janela do
ônibus. O medo era de ver corpos dilacerados pelo chão”.
Enquanto isso, na Santa Casa de Rio Claro, um médico
alertou a família Pessoa de que não havia recursos
suficientes para dar suporte ao estado grave de saúde em
que Jyl estava. Seria preciso conseguir ajuda fora dali.
Simone correu para o Grupo Ginástico. Ela sabia que, no
clube onde acontecia um jantar árabe naquela noite de
sexta-feira, seria possível encontrar pessoas que tinham
condições de levar seu irmão de helicóptero até Campinas.
~ 48 ~
Feitos os contatos, o médico de Campinas ligou para a Santa
Casa de Rio Claro com o objetivo de checar o estado de
saúde de Jyl. Ele havia falecido naquele instante.
Simone voltou para a Santa Casa. Todos queriam poupar
Constância da notícia, mas foi inevitável. Para cada
falecimento causado pelo acidente, o nome da vítima era
anunciado pelo auto-falante do hospital. Foi assim que
Constância soube.
Qual o sentimento de uma mãe ao saber, pelo
autofalante de um hospital, que seu filho acabou de morrer?
Não é o voo que vai sair do aeroporto, nem alguém
procurando por você no shopping. É seu filho que não existe
mais de uma hora para outra. Para evitar essas e outras
situações semelhantes, alguns cursos de medicina buscam,
mesmo que timidamente, a humanização do médico.
Há três anos a Unicamp ensina seus alunos e futuros
médicos a tratarem não só da doença, mas da pessoa por
trás da patologia.
Quando a morte é motivada por desastres e acidentes,
os profissionais sabem que é preciso ter cautela para
comunicar a notícia. Venâncio Pereira Dantas Filho é
neurocirurgião do Hospital das Clínicas na Unicamp e
conhece a dificuldade de explicar o óbito para uma família
que acabou de perder alguém. O médico, além informar a
notícia ruim, tem que lidar com as diferentes reações.
A culpa é um dos sentimentos mais presentes nas
famílias que constatam a morte de um ente enfermo. O caso
mais frequente é a averiguação do óbito de um idoso que
ficou à mercê do tempo e da pouca vontade dos filhos e
netos. Outro exemplo é o de pais que dão de presente ao
filho uma moto, veículo campeão em estatísticas de morte
no trânsito. Mais do que a culpa, há religiões que não
permitem a transfusão de sangue ou o corte de cabelo para
cirurgias na cabeça.
~ 49 ~
Como a maioria dos profissionais da saúde, Venâncio
acredita que a maior dificuldade está em lidar com os pais
dos pacientes mais jovens. Depois que teve seus dois filhos,
hoje com 12 e nove anos, o médico passou a sentir um peso
emocional maior em cirurgias que envolvem crianças: “O ser
humano enxerga a morte de três maneiras diferentes. Na
infância, tudo é mágica. É quando um caminhão atropela um
animal e nada de ruim acontece, como nos desenhos
animados. Ao se tornar um jovem, a visão da morte é
heroica. A pessoa mais nova quer dominar o que não pode
ser dominado. As maneiras de concretizar este tipo de
sentimento são os esportes radicais e os brinquedos nos
parques de diversão. Ao envelhecer, o adulto percebe que é
inevitável lutar contra o que é certeiro. Nesta fase o ser
humano negocia com a morte. Melhora a alimentação, pára
de fumar, de beber, faz exercícios, tratamentos e o que mais
tiver ao alcance para prolongar a vida”.
Com o avanço da medicina, os profissionais trabalham
focados no tecnicismo, mas são requisitados para responder
a numerosos temas que fogem da tecnologia aprendida na
faculdade e em cursos de especialização. Dentro dos
hospitais é necessário conviver com conflitos familiares,
religiosos, dificuldades sexuais, angústias existenciais e
uma infinidade de detalhes que envolvem não só uma
patologia, mas um paciente e uma família por trás dela.
Ao analisar o caso de Constância Pessoa, que soube da
morte do filho pelo auto-falante da Santa Casa de Rio Claro,
Venâncio enxerga este procedimento como algo
desaconselhável, pois fere e desrespeita a dor do outro. O
mais apropriado seria conversar com a família em um local
mais reservado. É preciso preparar a família para a notícia
fatal.
Adquirir maturidade profissional na área da saúde pode
levar tempo. Venâncio busca ajuda na religiosidade. Ele
necessita da fé para encontrar um significado e entende que
a morte não é um erro da medicina, mas o destino natural da
~ 50 ~
vida. Querer salvar uma pessoa a qualquer custo nem
sempre parece ser o melhor. Nas tentativas desesperadas de
deixar alguém vivo, a situação pode provocar mais dor tanto
para o paciente quanto para a família.
Com esta consciência, Venâncio sabe que não é fácil
chegar a uma conclusão, principalmente quando a família
solicita “que seja feito tudo o que for possível”. Para
discutir questões como esta, foi formada uma Comissão de
Racionalização de Tratamento em Pacientes Fora de
Possibilidade de Tratamento, um grupo de cerca de sete
médicos da Unicamp que procuram encontrar soluções para
a prática da distanásia, que é o prolongamento do
sofrimento de um paciente terminal.
Dentro da Unicamp, Venâncio é assessor da Central de
Captação de Órgãos (CCO) e professor da disciplina de
Temas Longitudinais de Bioética. A disciplina está em
prática na Faculdade de Medicina da Unicamp há três anos e
busca a humanização do médico, o respeito pelas religiões e
a consciência de que, muitas vezes, o profissional da saúde
vive um tecnicismo tão intenso que esquece de resgatar o
lado humano e a linguagem na atuação dentro dos
consultórios e hospitais.
Durante as aulas desta disciplina, alguns líderes
religiosos são convidados para explicar o que é a vida e a
morte segundo a doutrina adotada por diferentes grupos
sociais. Os estudantes de medicina já assistiram às palestras
sobre a crença dos católicos, espíritas, afro-brasileiros,
evangélicos e muçulmanos. É conveniente explicar a vida
para depois entender o conceito do óbito. Se nos anos 60 o
grande tabu era o sexo, hoje este tabu foi transferido para a
morte.
Quando os exames de laboratório apontam que alguém é
portador de uma doença terminal, o comunicado do
diagnóstico é missão do médico. Ao saber que a própria vida
chegou ao fim, o portador da chaga fatal costuma passar por
cinco fases emocionais. A descrição detalhada de cada uma
~ 51 ~
delas pode ser encontrada em livros como “O que é a
morte”, de José Luiz de Souza Maranhão.
Fases do moribundo
A primeira fase é a da negação. A maioria dos pacientes
pergunta “Por que eu?”. A inabilidade de alguns médicos
pode comprometer a reação dos pacientes e familiares. Há
casos em que eles despejam o diagnóstico de modo rude
para que depois a equipe de enfermagem lide com a dor
emocional diária do paciente ainda chocado pela notícia de
que vai morrer em breve.
Com o doente negando a proximidade do próprio fim, a
equipe médica tende a se sentir confortável, pois não
necessita se envolver emocionalmente enquanto o paciente
tenta se convencer de que não está doente e de que não vai
morrer. Existem também muitas famílias de moribundos que
se fixam na fase da negação e todos fazem de conta que a
morte não existe.
Com o passar dos dias, a realidade e os sintomas não
escondem a doença e o paciente pode passar para a segunda
fase, que é a da cólera.
Neste período ele sente uma intensa revolta e dirige sua
raiva para o médico, o enfermeiro, os visitantes ou até
mesmo para a comida do hospital. O sofrimento interno é
causado porque o moribundo sabe que vai morrer e as
outras pessoas vão ficar vivas.
O psicólogo e coordenador da Rede Nacional de
Tanatologia, Aroldo Escudeiro, tratou de uma paciente com
câncer. A moça tinha uma filha e um marido, mas este
homem a trocou por outra.
Ela ficou com a filha que ainda era bebê, mas o câncer
chegou rapidamente. A maior angústia da mãe moribunda foi
constatar que a nova mulher do marido lhe roubou tudo. Ela
não se queixava porque estava morrendo, mas porque o
~ 52 ~
marido estava vivo juntamente com outra mulher, e o novo
casal estava pronto para cuidar de sua filha. Com o
acompanhamento do psicólogo Aroldo Escudeiro, a paciente
pôde entender e aceitar a própria morte.
A terceira fase de um doente terminal é a da barganha.
No estágio da barganha, o paciente tenta negociar com Deus
ou consigo mesmo. Promete, faz pactos, insiste: “Se eu me
curar, farei isto ou aquilo”. A barganha feita com a morte
pode ser observada no filme sueco O Sétimo Selo, de Ingmar
Bergman. Na obra, um cavaleiro joga xadrez com a morte,
tentando adiar seu final em uma terra onde a peste castiga
sem piedade. “Todo esse processo não resultaria tão
traumático e doloroso se as pessoas, mesmo antes do
surgimento de um caso de morte na família, conversassem
sobre a morte e o morrer como sendo um fato constitutivo
da própria vida e do viver”, explica Souza Maranhão, autor
do livro “O que é a morte”.
Passada a fase da barganha, surge a depressão. O
paciente se conscientiza de que a vida acabou, entra em um
estado de silêncio interior e apenas demonstra interesse
pelas pessoas mais próximas.
O último e mais difícil estágio a ser alcançado é o da
aceitação. Mesmo que o moribundo tenha concebido a
própria morte, a família tende a não aceitar e prejudica a
manifestação de um sentimento que deveria ser natural.
Não é regra que todos os moribundos passam pelas
cinco fases exatamente nesta ordem. Alguns jamais aceitam
que vão deixar de existir. A enfermeira Carla Fiori define
deste modo: “O momento da morte é um momento solitário,
mas muita gente tem medo e disfarça até o último momento.
A pessoa finge que ela não está vendo a própria morte.
Muita gente faz isso, acho que é maioria”. A atitude pode ser
entendida no senso comum de que a esperança é a última
que morre, mas segundo Carla: “A esperança é a última que
se enterra”.
~ 53 ~
Ao perceber que um moribundo está prestes morrer, a
equipe de enfermagem evita manipular a pessoa, mas tenta
ficar próxima e “pegar na mão”. Não é o mesmo que ter um
familiar ao lado, mas há os enfermeiros que procuram
amenizar este momento naturalmente solitário. Quando o
paciente morre, o procedimento é esconder o rosto de quem
faleceu para que os outros pacientes do hospital não
percebam.
Souza Maranhão detalha a situação: “Quando é possível
prever a morte de um paciente em uma enfermaria, ele é
deslocado para um quarto privativo. Tudo se passa como se
não existissem moribundos no hospital”.
~ 54 ~
Capítulo V
O Corpo de Nercina
"Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?"
A hora íntima - Vinícius de Moraes
O acidente que interrompeu a vida de Jyl aconteceu há
10 anos na SP-127, rodovia que liga Rio Claro a Piracicaba,
no interior de São Paulo. Além de Jyl, 18 vidas se perderam
no choque entre o ônibus da Companhia Cidade Azul e o
caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda. O
motorista do ônibus, Djair Nunes Barbosa (conhecido como
Coroné), era de Rio Claro, e o motorista do caminhão, Sérgio
Calmo Moura, era de Campinas.
Na estrada, que era de pista única, foi formada uma
poça de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio
de 1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus
transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o
forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora
do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou
tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito
trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas
chegavam em busca de informações sobre familiares que
estudam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos
daqueles que perdiam parentes e amigos”.
A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o
motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente. A
culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na
sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes,
~ 55 ~
publicados nos jornais da época, confirmam que a história
foi diferente.
Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de
1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um
profissional prudente e responsável. Por este motivo, antes
do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus
para poder viajar todos os dias com ele no volante.
Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém contratado da
empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como
tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria
o ritual de acompanhamento por um motorista mais
experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido
cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a
culpa.
Da Santa Casa, o corpo de Jyl foi levado para o IML. Um
cunhado foi reconhecer o corpo. Na correria, causada pela
tragédia, o serviço funerário esqueceu de colocar uma
proteção para forrar a urna que o carregava. No velório, que
aconteceu no Ginásio Municipal Manoel Antônio Bortolotti, o
corpo dele começou a pingar sangue. Simone lembra que
colocaram um balde embaixo do caixão. Ele foi o primeiro a
ser enterrado. Quando Jyl estava vivo, Constância comentou
que gostaria de ser enterrada no Cemitério Parque das
Palmeiras, onde ele trabalhou aos 13 anos de idade como
cobrador. Jyl ouviu calado e comprou o terreno sem avisar a
família. Quando ele morreu, o terreno no cemitério estava
pago e a família não precisou se preocupar com o destino de
seu corpo.
Seria possível uma família escolher o cemitério, o
funeral, a urna e tudo pelo melhor preço? Além do terreno
disponível no Cemitério Parque das Palmeiras, o funeral foi
providenciado pelo pai do sócio de Jyl: “Como o acidente
pegou todo mundo desprevenido, isso ajudou muito. Jyl era
organizado e não deixou nenhum assunto pendente”, explica
Constância.
~ 56 ~
Pendência é o que não falta para quem está vivo e tem
que providenciar um funeral. Para facilitar a vida da
população, existem os serviços funerários. Em Rio Claro,
funcionam três empresas do ramo. A funerária do Grupo
Bom Jesus, a João de Campos e a Municipal.
Na casa alugada, localizada em uma esquina, está a
funerária do Grupo Bom Jesus. Logo na recepção, uma jovem
mulher. Móveis aparentemente velhos e um vaso com flores
do campo quase murchas. A funcionária é Suzana da Silva
Câmara. Há sete meses na funerária, ela nunca viu um
cadáver: “E nem quero ver”. Ainda não se acostumou com a
situação, e o medo dela é a possibilidade de ver um corpo
sendo arrumado: “Quando conto para alguém que eu
trabalho na funerária, o pessoal se assusta, acha diferente e
sombrio. É um serviço que eles acham que não precisam.
Meu namorado não gosta que eu trabalhe com isso. A família
dele não bebe nem o café servido em velório”.
Atenciosa e pouco habituada aos assuntos fúnebres,
Suzana explica como funcionam os planos funerários. Os
preços variam de R$ 420,00 a 3.900,00. O serviço inclui
arrumação do corpo no caixão e flores. São mais de 30
modelos de urnas: com alça dura, móvel, urna com ou sem
visor, com duas tampas, madeira lisa ou entalhada. Os
detalhes são quase infinitos.
Suzana sabe pouco sobre a história da funerária onde
trabalha. É quase meio dia e ela está sozinha na casa de
esquina. Para confirmar alguns dados, liga para o gerente
que está em Piracicaba, cidade onde surgiu o Grupo Bom
Jesus.
O Grupo Bom Jesus existe desde 1969, mas se
estabeleceu em Rio Claro em 1994. Existem quatro
funerárias do grupo espalhadas por cidades da região:
Piracicaba, Rio das Pedras, São Pedro e Rio Claro. Em
Piracicaba, a estrutura é maior. Os clientes têm serviços de
ambulância, aparelhos ortopédicos, assistência médica,
odontológica e até cursos de inglês.
~ 57 ~
O telefone toca. Suzana atende. É o motorista da
funerária. Ele avisa que o corpo de uma pessoa, que faleceu
em Rio Claro, vai ser transportado para General Salgado. De
uma cidade à outra, são cinco horas de viagem. O corpo
transportado pertencia a José da Cunha Viana, que morreu
aos 47 anos. No documento, que registra o óbito, está a
descrição da morte: “Neoplasia gástrica, falência múltipla
dos órgãos e caquexia neoplásica”.
Em Piracicaba, o Grupo Bom Jesus conta com o trabalho
da assistente social Silvia Del Carmem. A chilena está na
empresa desde 1997 e tem a tarefa de ajudar famílias que
procuram ajuda. Em Rio Claro, a empresa não oferece apoio
emocional aos associados.
A diferente estrutura entre os concorrentes funerários
de Rio Claro chega a ser espantosa. Na recepção da empresa
João de Campos, que está instalada na cidade há 70 anos,
nada lembra a morte. É o avesso. A começar pelo nome de
um produto exposto em panfletos dispostos no balcão: Plano
Vida.
As funcionárias vestem uniformes. Os móveis combinam
entre si na cor cinza e branca. As cadeiras são confortáveis.
As recepcionistas são educadas, discretas e sorridentes.
Tudo é informatizado, a tecnologia está presente em cada
canto.
Em uma cidade com cerca de 170 mil habitantes, o
número de associados da empresa João de Campos chega a
90 mil. Não é por acaso. O esforço do proprietário, que
herdou a empresa do padrasto, é visível. Júlio César Reis
pensa em todos os detalhes. Com seus 30 e poucos anos e
rosto jovial, o „marqueteiro‟ trabalha na empresa desde
1983, mas foi depois que o padrasto morreu que a funerária
decolou.
O plano que representa 75% das vendas é o Plano Prata,
que custa R$ 904,00. O associado da Funerária João de
Campos paga uma determinada quantia por mês e tem
~ 58 ~
direito a diversos benefícios, como desconto no convênio
médico com a Unimed, a Uniodonto e empréstimo de
equipamentos como cadeira de rodas e muletas. Os preços
dos outros serviços variam de R$ 300,00 a 3.500,00.
Em um mês, são preparados cerca de 90 funerais. Reis
cuida da parte publicitária, elabora os brindes como o Kit
Docinho para as crianças e raspadinhas para os adultos.
Com a raspadinha, os clientes ganham relógios e outros
objetos: “São os detalhes e a motivação que fazem a
diferença. Hoje as pessoas querem pagar as coisas e ter
valor em vida. Enterro não é para o morto, enterro é para o
vivo”.
Mesmo sem concorrência compatível, a preocupação é
agregar valor. O produto da funerária João de Campos tem
o efeito onda: “É como você ficar em casa enquanto
acontece uma festa, daí você fica fora do contexto. O
negócio é entrar na vida das pessoas e ir rodando com esse
monte de coisas. O lucro vem da revenda. Não adianta
montar toda essa estrutura se eu não entender que o
negócio é lucro. A gente mora em um país capitalista, aqui
não existe nada socialista”. Como vender algo que ninguém
quer comprar? Reis descobriu: “Preciso entender de gente.
Eles compram e não levam nada, só uma lembrança. Eu
invisto na lembrança. Se um cliente vem aqui e compra um
pedaço de papel, ele paga por esse pedaço de papel durante
anos e não leva nada. É complicado! Eu preciso acrescentar
coisas em vida e não ficar explicando a urna, o carro que
pega o corpo. Isso é como cd de música sertaneja. Pegou?
Vende um milhão”.
Na área administrativa da funerária estão o cunhado, a
irmã e a mãe de Reis, que no dia da entrevista estava em
Chicago, nos Estados Unidos. Durante a entrevista, a filha de
Reis entra na sala correndo, pede doces e beija o pai. Ainda
com o uniforme verde e branco da escola particular, a
menina de cabelos claros tem um jeito amável. Ela se
despede e fecha a porta com cuidado.
~ 59 ~
Com o olhar inebriante após receber o carinho da filha,
Reis ensina que, na negociação dos planos, a urna só é vista
“depois que o cliente pedir”. Se não fosse pela tradição do
nome, seria impossível saber que a empresa é uma
funerária. O proprietário e sua equipe de 20 funcionários
organizam os funerais. Em relação aos sentimentos de dor e
perda dos clientes: “Não há muito que fazer. Não temos
assistente social porque têm aqueles falecimentos em que a
família dá graças a Deus, enquanto outras não vêm nem
buscar o documento. É muito difícil porque estarei entrando
na vida particular do cliente. Como eu vou te consolar se
você está preocupado se a casa vai ficar no seu nome ou
não?”.
Para recolher os corpos, a empresa tem nove motoristas:
“Hoje é mais fácil arrumar quem faça esse serviço por causa
do desemprego. No setor funerário não existem cursos de
formação. A experiência vai passando de profissional para
profissional ou de amador para amador”. O que mais avança
no setor são os cursos de preparação de cadáver: “Mas ainda
é limitado porque o custo é alto. O Brasil é um país pobre e
de classe média. Ricos? Minoria”.
Por mês, a Funerária João de Campos realiza três ou
quatro funerais gratuitos para famílias mais pobres. O que
existe na cidade é um rodízio entre as concorrentes. A cada
semana, uma funerária fica responsável por cuidar de quem
morre e não tem dinheiro.
As compras mensais que a empresa precisa fazer
incluem doces, brindes e 100 urnas. Depois de explicar
como funciona a venda dos produtos, Reis se encaminha
para a sala de preparação de corpos, que fica longe da
recepção. Novamente, computadores e tecnologia pelo
caminho.
Interruptor. A luz ilumina a maca no centro da sala. Ao
lado de Reis está o cunhado, José Luiz Modesti Jr., e a única
responsável pela limpeza do local impecável, Jandira
Almeida da Silva.
~ 60 ~
Modesti, que também é artista plástico, vai até a maca e
puxa o lençol marrom. Susto. O corpo de Nercina Rodrigues
Pereira, de contrato número 3030A, está estendido.
A expressão é de dor. A boca aberta, o corpo levemente
retorcido, magro e nu. Nercina vai ser preparada para seu
funeral, a urna está posicionada ao lado. Enquanto Jandira
varre a sala, Modesti diz: “A falecida é tia da Jandira”. Ela
afirma sorrindo que era sobrinha de primeiro grau de
Nercina. Deixa-se fotografar ao lado do corpo. A situação
começa a parecer natural.
~ 61 ~
Capítulo VI
SP 127 – A Duplicação
"Oh morte, tu que és tão forte, que matas o
gato, o rato e o homem, vista-se com a mais
bela roupa quando vieres me buscar..."
Canto para minha morte - Raul Seixas
Rio Claro estremeceu quando a notícia do desastre
chegou aos lares de pais, mães e irmãos. Foi decretado luto
oficial de três dias na cidade. A mídia cobriu o fato. Amigos
assistiram pela televisão o desespero de famílias inteiras
entre os caixões enfileirados no Ginásio Municipal Manoel
Antônio Bortolotti, onde aconteceu o velório de 12 das 19
vítimas. Milhares de pessoas velaram os corpos.
Depois do acidente do dia 20 de maio de 1994, algumas
mudanças foram realizadas na região de Rio Claro. Mesmo
com a sentença da justiça, que descreve que “não há sequer
indícios de que a má conservação do local tenha influído no
acidente”, a pressão feita por alguns políticos e moradores
resultou na duplicação da SP-127, conhecida como Corredor
da Morte.
João Carlos Picolin é jornalista e Coordenador do Curso
de Comunicação Social das Faculdades Claretianas de Rio
Claro. Ele fez parte da Comissão 20 de Maio na luta pela
duplicação da SP-127. Na noite da tragédia, Picolin, que
também era estudante, já estava na Unimep quando os
alunos sentiram falta dos colegas que não chegaram. A
primeira hipótese foi a de que o ônibus tivesse quebrado
pelo caminho. Um outro veículo da Companhia Cidade Azul
foi procurá-lo em Piracicaba, mas não achou: “Daí todo
mundo pensou que o ônibus pudesse ter quebrado na SP-
127. Ligamos para a Companhia Cidade Azul e informaram
~ 62 ~
que o pessoal do ônibus do Coroné não tinha dado notícias.
Logo depois ficamos sabendo do acidente”.
Picolin percebeu que o fato era sério. Ele e um grupo de
estudantes passaram nas classes para avisar que todos os
ônibus de Rio Claro iriam embora na hora do intervalo:
“Começou uma loucura. Filas no orelhão. Há 10 anos não
tinha a facilidade do celular. A gente saiu batendo de sala
em sala para avisar que, às nove horas, quem não estivesse
dentro do ônibus ficaria para trás”.
Todos os estudantes de Rio Claro que estavam na
Unimep voltaram para a cidade. O clima era de expectativa e
tensão. Quando passaram pelo acidente, viram que o ônibus
não estava arrebentado: “Foi animador, o ônibus estava
inteiro!”. Picolin achou que tudo aquilo não passava de
brincadeira, mas quando conseguiram enxergar o outro lado
do veículo, foi o caos: “O outro lado do ônibus praticamente
não existia, era ferragem contorcida. Colocamos o pé no
chão, tinha sido grave. Mesmo assim, não tínhamos a noção
do estrago”.
Ao relembrar o momento em que chegou na casa dos
pais, Picolin respira fundo e se cala por alguns segundos. Os
olhos dele ficam emocionados: “Meus pais estavam
inconsoláveis”. Com a confusão, ele foi dado como morto.
Picolin ligou para a Rádio Cultura e seguiu até o estúdio
para entrar no ar e contar como foi a situação em Piracicaba:
“Não me envolvi com a cobertura do acidente, fui para dar
meu depoimento”. No ar, Picolin disse à população que, até
aquele momento, ele e muitos outros jovens tinham sido
omissos em relação à luta pela duplicação: “A gente tem que
fazer alguma coisa. Então eu proponho que a comunidade de
Rio Claro interdite a estrada amanhã após o último enterro”.
Ele não imaginou a força de seu pedido!
“Poderíamos ter feito algum movimento antes, mas só
percebemos quando o problema nos abraçou. Pela rádio, eu
disse que deitaria no meio da estrada como forma de
~ 63 ~
protesto”. Assim que parou de dar seu depoimento, Picolin
percebeu o desafio que seria lutar pela duplicação da SP-
127: “Tinha uma pessoa no telefone esperando para falar
comigo. Ele me perguntou em que local da estrada eu ficaria,
pois ele fazia questão de passar por cima de mim”. Na noite
de 20 de maio de 1994 a cidade parou, a cidade não dormiu.
No sábado, depois do último enterro, cerca de 17
manifestantes seguiram para a SP-127. Interditaram o
começo da estrada e ficaram atentos para não criar
problemas. Escolheram um local com boa visibilidade,
deixaram espaço para viatura, carro-forte e ambulância. A
polícia rodoviária deu cobertura. O primeiro protesto durou
meia hora. Enquanto protestavam, tiveram a ideia de fazer
uma camiseta. De um dia para o outro conseguiram apoio e
estamparam na frente de 50 camisetas: “Sou estudante, viajo
todos os dias pela Rodovia da Morte”. No verso: “Até
quando?”.
Três dias depois da tragédia, uma carreata passou por
Rio Claro e seguiu para a SP-127: “A adesão da comunidade
foi inacreditável. Lógico que teve gente que não apoiou por
causa do atraso para os carros na estrada. Um homem de
Curitiba estava com a família e veio tirar satisfações. Fazia
dois dias que ele estava viajando e parecia desesperado para
ir para casa”. Picolin contou ao motorista qual o motivo do
protesto, o qual disse: “Foi aqui que aconteceu o acidente
dos estudantes? Espere um pouco!”. Ele atravessou o carro
na pista e se misturou aos manifestantes. O desconhecido
participou, com a família, do protesto da segunda-feira.
Depois de dar início à manifestação, Picolin e seus
amigos pensaram: “E agora, como vamos batalhar pela
duplicação?”. O prefeito da época, Nevoeiro Jr, disse aos
estudantes que aquela era a maior mobilização social da
história da cidade de Rio Claro e o empresário Sérgio Bittar
propôs a criação de uma comissão.
“O senhor vai cumprir a promessa ou não?”. A frase foi
dita no dia 15 de março de 1997 pelo deputado estadual
~ 64 ~
Aldo Demarchi ao governador de São Paulo, Mário Covas. Na
empreitada, carregavam um dossiê com os dados dos
últimos dez anos da estrada: acidentes e prejuízos para a
região eram constantes.
Em 15 de março de 1997, às 15 horas, no Palácio dos
Bandeirantes, Aldo Demarchi conseguiu uma audiência
definitiva para saber se o governador Mário Covas
autorizaria a promessa que ele tinha feito em sua campanha.
“Mário Covas autorizou a obra. Ele se sensibilizou com o
dossiê e com o grande número de informações. O que mais o
mobilizou foram as fotos e as notícias do acidente dos
jovens estudantes. Naquela hora ele parou em cima dos
documentos... ele parou duas vezes e daí falou: Olha, você é
persistente. Baseado nisso, nós vamos autorizar”.
A reivindicação para a duplicação tinha mais de 20
anos e esta foi realizada por conta do Estado. Inicialmente,
estava orçada em 62 milhões de reais e o governador Mário
Covas fez a proposta de que fosse reduzida para 40
milhões. A estrada ficou pronta em um ano e inaugurada no
dia 27 de setembro de 1998. Demarchi afirma que o
governador Mário Covas pagou a obra e os trabalhadores
religiosamente. “Não teve atraso, ele cumpriu a palavra
dele”.
Para Demarchi, a morte é o fim de uma missão, de um
trajeto: “Naturalmente é estabelecido que você tem um
período para viver: sete, oito ou nove décadas. Natural é o
filho enterrar os pais e não os pais enterrarem os filhos,
isso choca”.
De uma família de nove irmãos, a morte de uma irmã de
Demarchi deixou marcas: “Na minha família ficou uma
sequela muito grande com minha mãe. Na minha casa perdi
uma irmã com 42 anos. Ela foi acometida pelo câncer e
apesar de minha mãe ter nove filhos, os oito irmãos que
ficaram não supriram a falta dela. Minha mãe jamais
imaginou que ia enterrar uma filha”.
~ 65 ~
No domingo, dia 22 de maio de 1994, a família Pessoa
acordou cedo para ir à missa. Na igreja, Simone chorava sem
parar e ouviu da mãe as palavras que a ajudam e a acalmam
até hoje quando sente falta do irmão: “Quando você dá um
presente para uma pessoa que você gosta, você dá com
carinho, você não chora. Se você deu seu irmão para Deus,
não peça ele de volta e não chore mais”.
Ao ouvir Simone durante a entrevista, Constância não
segura as lágrimas e pede um lenço. Respira fundo,
enquanto a filha, com voz calma e doce, continua a contar
como foi o último dia da vida de Jyl. Ela lembra dele com
carinho e diz que vive com as lembranças boas da
convivência: “Às vezes aperta o peito e transborda pelos
olhos”.
A mãe tenta explicar a ausência do filho: “Era o dia dele,
mas eu tenho que colocar na cabeça que ele teve um dia
para chegar e teve um dia para partir. Ele foi feliz. Sou mãe,
dói, claro que dói. Há tempos ele vinha falando coisas que
eu não entendia, batia com a mão em minhas costas e dizia:
santa inocência”.
Enquanto profissionais responsáveis pelos funerais
cuidaram dos corpos, a cruel fidelidade dos fatos era
publicada em jornais. Simone guardou cuidadosamente todos
os artigos que encontrou sobre a tragédia e os papéis estão
amarelados pelo tempo. A Folha de São Paulo de 22 de maio
de 1994 descreve, no caderno regional, que o motorista do
ônibus da Companhia Cidade Azul teria tentado uma
ultrapassagem e se chocado com um caminhão: “Barbosa não
teria conseguido desviar e os veículos acabaram batendo de
frente. Com o choque, a carreta abriu a lateral direita do
ônibus. Os passageiros que estavam sentados deste lado
foram jogados na pista e atropelados pelo caminhão. Vários
corpos ficaram espalhados na estrada”.
O Jornal Cidade de 22 de maio de 1994 relembra o
acidente menos trágico de 1986, quando um ônibus que
transportava estudantes da Unimep se chocou com um
~ 66 ~
caminhão que fazia uma ultrapassagem arriscada. Os dois
motoristas morreram: “Duas pessoas morreram e 25 ficaram
feridas na noite de quinta-feira, 3 de abril de 1986, no
acidente ocorrido no quilômetro 19 da rodovia Rio Claro-
Piracicaba”. Ainda no mesmo jornal, o desastre que matou
19 pessoas foi assunto em todos os cantos. Este é o exemplo
das manchetes apenas da página três: “Acorda, Rio Claro!”,
“Tragédia mata 19 na Rio Claro-Piracicaba”, “População
revoltada realiza protesto na Rodovia da Morte”, “A tragédia
no Corredor da Morte”. Entre tantas palavras está a
homenagem ao filho de Constância: “Ao nosso amigo Jyl: É
muito importante ter consciência da sua vontade de vencer e
o quanto você queria isso, como construir e de onde veio
tanta força. Não era só coragem ou ambição. Tinha muito
coração no que você fazia. Aprendemos muito com você. Vai
com Deus... amigo”.
Enquanto alguns choravam o fim da vida, outros, apesar
de abalados, não acreditavam na „sorte‟ que tiveram. Em
uma matéria da página dois do Jornal Cidade está um
simples depoimento de Valdir Antônio Duarte Filho: “Perdi
hora e resolvi não ir para a aula”. Na Folha de São Paulo a
manchete é sobre Tatiana Dorante: “Estudante escapa com
vida por estar do lado esquerdo”. Assustada, ela disse ao
jornal que não queira mais estudar: “Estava distraída
quando o ônibus virou, mas consegui sair pela janela
ajudada por duas pessoas que estavam do lado de fora.
Muitas pessoas estavam deitadas no asfalto chorando e
pedindo socorro”.
Na mesma matéria está a entrevista com outra
estudante, Maria Teresa Bordinhão. Ela explicou que estava
dormindo e que, quando acordou, percebeu que estava presa
entre dois bancos: “Minutos depois, desmaiou, e quando
acordou novamente estava no asfalto sendo socorrida por
uma amiga que vinha de carro. No hospital, ela ainda não
sabia que a amiga Márcia Carbinatti, que estava sentada ao
seu lado no ônibus, havia morrido”.
~ 67 ~
Capítulo VII
Os Funerais de Campinas
"Silenciou de repente. Gemeu como um cão. E
sobre o asfalto quente seu sangue escorreu
suavemente todo pelo chão" Um ponto oito -
John Ulhoa
Das 19 vítimas do acidente do dia 20 de maio de 1994,
70% eram clientes da Funerária João de Campos, em Rio
Claro. O proprietário, Júlio César Reis, estava em São Paulo
no dia da tragédia. Alguns moradores ajudaram os
funcionários a preparar o funeral: “É uma coisa tão estranha.
Quando alguém faz o plano não imagina que vai enterrar o
filho depois dele tentar chegar na faculdade. Eu tenho
funcionários competentes para administrar isso e um monte
de gente da cidade acabou ajudando. Você não imagina a
zona que deu!”.
Campinas difere de Rio Claro no que diz respeito à
concorrência. Na cidade de um milhão de habitantes, a
responsabilidade de recolher e arrumar os corpos para os
funerais é do departamento de Serviços Técnicos Gerais
(Setec).
Quando Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, foi
assassinado em 2001, o Engenheiro Supervisor dos
Cemitérios Municipais de Campinas, José Carlos Raineri,
estava em casa. Ele ouviu a notícia na televisão e pensou:
“Lá vem mão de obra”. A pressão causada aos responsáveis
pela parte funerária de uma cidade é imensa quando se trata
de tragédias ou da morte de pessoas importantes. Para um
sepultamento importante como o de Toninho, foi preciso
preparar o cemitério: “Ninguém dormiu naquela noite”.
~ 68 ~
Enquanto Raineri, conhecido como Paulista, preparava o
terreno do Cemitério da Saudade para receber milhares de
pessoas, Toninho era resgatado pelo Corpo de Bombeiros. O
corpo do prefeito deu entrada no necrotério por volta da
meia-noite. A perícia terminou o trabalho às duas e meia da
madrugada e entregou o corpo de Toninho aos cuidados do
Gerente de Divisão Funerária, Erivelto Luis Chacon.
Desde que ouviu um boato sobre a morte de Toninho,
Chacon “ficou de prontidão”. Quando recebeu o corpo,
avisou a todos que precisaria de um prazo para preparar o
funeral: “Eu tinha prometido o corpo no velório às oito e
meia da manhã e, às seis horas, a cidade inteira estava
cobrando”. Chacon já tinha experiência com este tipo de
pressão. Em 29 de fevereiro de 1996, ele foi responsável
pelo corpo do então prefeito de Campinas, José Roberto
Magalhães Teixeira.
Quando cuidou do funeral de Toninho, Chacon manteve
o ritmo de trabalho para atender o pedido da população: “Eu
sou uma pessoa muito técnica, se eu preciso de um prazo de
oito horas para manipular um corpo, não adianta cobrar
antes”.
Um comandante da polícia militar, o qual Paulista não
lembra o nome, foi montar o esquema para receber as
pessoas no cemitério. O comandante disse que era preciso
deixar aberto apenas o portão principal para direcionar a
multidão. Paulista não concordou, pois acreditava que era
preciso abrir os outros dois portões existentes: “Se você
fizer isso, nós vamos morrer aqui dentro. Não deu outra,
dito e feito”.
Na manhã do sepultamento de Toninho, o movimento só
não foi maior por causa do incidente em Nova Iorque,
quando o atentado terrorista nos Estados Unidos desviou a
atenção da mídia para a queda das torres gêmeas do World
Trade Center. Mesmo assim, milhares de pessoas entupiram
a avenida onde estava o caminhão que transportava o corpo
de Toninho.
~ 69 ~
Houve congestionamento. As pessoas pulavam o muro
do cemitério e as coroas de flores tiveram que entrar “pelos
fundos”. Paulista assistiu e coordenou tudo com ansiedade:
“O comandante tinha que facilitar o acesso e não direcionar.
Fiquei com medo que aquele muro caísse. Foi terrível.
Quando acabou, a sensação era de dever cumprido”.
A Setec é autarquia da prefeitura do município e, desde
1975, é responsável por todos os funerais de Campinas,
Sousas e Joaquim Egídio; desde o atendimento às famílias, a
escolha do tipo de funeral, o velório e local de
sepultamento.
Setenta e cinco funcionários cuidam deste mercado que
não enfrenta concorrência e providencia cerca de 500
velórios mensais. Na cidade existem cinco empresas
particulares, chamadas de “Organizações de Luto”, que
vendem planos funerários e cuidam da parte burocrática
para o cliente associado. Mas o produto final, a urna e a
arrumação do corpo, que vai ser enterrado em algum dos
nove cemitérios da região, é direito e responsabilidade
exclusiva da Setec.
Em Campinas existem três cemitérios públicos e seis
particulares. A fiscalização de todos eles é função do poder
público. Em Campinas não existe um crematório e, para usar
este serviço, é preciso ir para São Paulo. O transporte do
corpo para a capital paulista custa R$ 180,00 e para cremar
são investidos mais R$ 320,00.
Chacon sabe que a cidade merece ter um crematório
próprio: “Quem afasta a ideia do crematório é a igreja
católica que não era a favor da cremação porque a bíblia fala
„do pó ao pó voltará‟. Os mais antigos não aceitam a
cremação. Hoje, essa ideia está melhorando até na questão
de doação de órgãos”.
O maior cemitério de Campinas é o da Saudade, onde os
senhores do café ostentavam riqueza pela construção
soberba das sepulturas, grande parte abandonada pelo
~ 70 ~
descaso ou falência das famílias. Fundado pelo município
em 1880, o terreno se localizava a 17 quilômetros do centro
da cidade. Ocupa um espaço de sete alqueires com 32 mil
sepulturas e com o registro de 480 mil óbitos. É o cemitério
mais tradicional da cidade. Nele acontece a primeira cena do
filme inspirado no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis. Dois funcionários da Setec
participaram da filmagem carregando a urna do personagem
principal, interpretado por Reginaldo Farias.
O local possui túmulos, mausoléus e capelas onde estão
sepultadas personalidades como Francisco Glicério, Barão de
Atibaia e Bento Quirino. Há mais de 120 anos o Cemitério da
Saudade é considerado um museu a céu aberto por abrigar
obras de arte esculpidas em mármore.
Por conta das características tradicionais e artísticas, o
cemitério é alvo de interesse para a publicidade. Uma
agência contratou modelos para serem filmadas e
fotografadas entre os túmulos. Antes do ensaio fotográfico,
elas se reuniram para conversar. Quem trabalhava nas
bancas de flores ficou assustado e pensou que a cena
pudesse anteceder a preparação de um ritual macabro, já
que as modelos vestiam roupas pretas. A imprensa foi
chamada e Chacon precisou explicar o que estava
acontecendo. O fato foi publicado em uma nota no jornal.
Com uma área de sete alqueires abarrotada de obras de
arte, à noite o Cemitério da Saudade é vigiado por apenas
três seguranças. Eles circulam sem arma e sem carro.
Paulista explica que o ideal seria terceirizar a segurança ou
trabalhar em conjunto com a Guarda Municipal: “É o nosso
grande desafio. A Guarda Municipal existe para tomar conta
do patrimônio público, e o que acontece? Roubo de vasos e
tudo mais”.
Alvo do vandalismo e dos ladrões, o cemitério é
destruído aos poucos. Os seguranças são concursados e
trabalham como “apontadores de fatos”, sem armamento e
sem poder de prisão. O carro para fazer parte na segurança
~ 71 ~
do cemitério foi tirado de circulação porque nem todos
possuem habilitação: “Com o carro é pior do que a pé, pois
não é em todas as ruas que o veículo tem acesso. Se alguma
pessoa vê o carro, ela se esconde. Principalmente à noite”.
Afinal, são 32 mil sepulturas, uma ao lado da outra,
distribuídas por todos os lados. Seria preciso uma bússola
ou bom conhecimento do terreno para não se perder. O que
possibilita enxergar a direção é o horizonte da cidade
repleto de prédios.
O Cemitério Parque Nossa Senhora da Conceição,
conhecido como Amarais, foi fundado em julho de 1969 e
atualmente possui 22 mil sepulturas. Com 150 mil metros
quadrados, o Cemitério dos Amarais é todo gramado e não
possui túmulos ou capelas, mas apenas carneiros (gavetas)
abaixo do solo. A estrutura deixa os falecidos em igualdade,
pois não há apologia aos bens materiais adquiridos em vida.
É ao lado do Cemitério dos Amarais que se localiza o
Necrotério Municipal, com salas de necropsia e câmara fria,
utilizadas pelo IML e pelo Serviço de Verificação de Óbito de
Campinas.
O terceiro Cemitério Municipal está localizado em
Sousas. Ocupa uma área de quatorze mil metros quadrados e
é considerado “um dos mais bonitos da região”.
Um funeral custa dinheiro. Em Campinas, a quantia
varia de R$ 300,00 a 12 mil, preço pago pelo velório do
prefeito Toninho.
No mostruário estão expostos 25 tipos de urnas, desde a
mais simples até a mais cara, incluindo as infantis. Em
depósito, existem 149 modelos diferentes. Quatro fábricas
são fornecedoras da Setec e o funeral é diferenciado pelo
tipo de urna: detalhada, lisa, envernizada, tipo de alça, com
ou sem visor e forramento interno.
Para a classe mais pobre, existe a quadra geral no
Cemitério dos Amarais onde os corpos são enterrados na
terra e permanecem no local por três anos até serem
~ 72 ~
retirados. É cobrada uma taxa de R$ 9,00 para o
sepultamento, mas existem famílias pobres que, depois de
enterrar um ente, conseguem juntar dinheiro para colocar o
corpo em um local fixo.
Se uma pessoa diz que é carente e pede o funeral
gratuito, a Setec precisa atender o pedido mesmo que a
pessoa aparente o contrário vestindo roupas caras ou
dirigindo um carro novo.
A maioria dos óbitos de recém nascidos é destinada ao
funeral gratuito. Quem optava pelo procedimento gratuito
não possuía o direito de velar o corpo. A regra foi
modificada, mas se o velório estiver lotado o espaço é
prioridade de quem pagou.
Algumas pessoas escolhem não gastar com funerais nem
com espaços em cemitérios. Outros, solicitam um funeral
caro, mas sepultam na quadra geral. Aqueles que pagam pelo
funeral mais caro costumam pedir o que a Setec tem de
melhor e não fazem questão de escolher a urna ou a coroa
de flores.
Chacon trabalha na Setec há quase 20 anos. Na sala dele
há uma mesa, cadeiras confortáveis, computador e um
grande quadro pintado à mão. Muitos girassóis. Ele não foge
à regra quase absoluta de trabalhar no ramo por conhecer
um parente envolvido com o mercado que cuida de corpos
sem vida.
O irmão de Chacon trabalhava em uma funerária de
Campinas na década de 70: “O meu irmão foi gerente da
funerária Davi, que na época era concessionária da Santa
Casa. Quando criaram a Setec, em 1975, ele veio administrar
o serviço. Em 1984 saí do quartel, então ele me convidou
para vir e estou aqui até hoje. Eu sou um dos últimos
funcionários que entrou na Setec sem concurso”.
Chacon começou como agente funerário e confessa que
trabalhar para o setor parecia diferente. Ele é exigente e
cobra dos funcionários e de si mesmo que o trabalho seja
~ 73 ~
bem feito. O único serviço que ele ainda não fez foi a coroa
de flores. Prefere mexer com um corpo a ficar na mesa
despachando papel.
Com Paulista foi diferente. Ele estudava Matemática na
Puc Campinas, mas desistiu do curso. Começou a faculdade
de Engenharia Civil e conseguiu um estágio com um amigo
que era presidente da Setec. Paulista começou a cuidar do
arquivo de plantas da prefeitura e em dois meses foi
transferido para a Setec. Por causa de um projeto no
Cemitério dos Amarais, Paulista foi contratado para
administrar o local e logo começou a gerenciar os outros
dois cemitérios municipais: “Antes eu nem passava na
calçada de cemitério. Foi diferente, mas depois vi que tinha
muita gente trabalhando. É uma área que você tem que ser
um pouco herói porque você ajuda alguém, mas ao mesmo
tempo não consegue ajudar”.
Tanto Chacon quanto Paulista procuram se atualizar
profissionalmente e participam de eventos importantes da
área funerária. A Setec faz parte da Associação dos
Cemitérios do Brasil (Acembra), um grupo que era formado
somente por cemitérios particulares, sendo a Setec o
primeiro setor funerário municipal a ser convidado para
integrar a Acembra.
No futuro, Chacon pretende criar a Associação dos
Cemitérios Públicos do Estado de São Paulo: “Há muita
diferença entre você trabalhar no serviço público ou em uma
empresa privada. Os objetivos são diferentes”. No serviço
público é preciso fazer tudo com o menor custo para ter
resultado, enquanto as instituições privadas buscam vender
cada vez mais o seu produto: “De qualquer forma eu não
conheço ninguém do ramo funerário ou mesmo de
cemitérios que não se deu bem”.
Antes do advento dos cemitérios, os mortos eram
enterrados em fazendas ou nos quintais das igrejas. Com o
aumento da população, inauguraram o Cemitério da
~ 74 ~
Consolação em São Paulo que atualmente se localiza dentro
da cidade.
Para ser dono de um cemitério, primeiro é preciso ter
um terreno. Se for em Campinas, o espaço vai passar pela
supervisão da Setec, do Conselho Nacional do Meio
Ambiente e de outros órgãos nacionais: “É preciso impor a
regulamentação. No Brasil inteiro você vê cada absurdo! Tem
gente que sepulta um corpo a um metro de profundidade,
onde passa água. Tem muito detalhe técnico”. É preciso que
todos os requisitos estejam de acordo com o Procedimento
de Implantação de Cemitérios, como a existência de velório
e estacionamento.
Para estacionar no espaço reservado ao Cemitério da
Saudade de Campinas é preciso pagar R$ 3,50. O dinheiro é
destinado a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
(APAE).
Os servidores públicos que precisam lidar diariamente
com a morte não possuem apoio emocional, mas há
situações em que eles desempenham a função de assistentes
sociais para as famílias que estão aparentemente mais
abaladas. Na Setec, o único responsável pela saúde dos
funcionários é o médico do trabalho.
A assistente social Sandra Regina Camargo seria a
pessoa indicada para dar suporte emocional àqueles que são
prejudicados pelo tipo de trabalho que realizam, mas ela
cuida dos trabalhos referentes ao departamento de Recursos
Humanos: “Infelizmente não tem serviço social ou
psicológico para os funcionários”.
O trabalho braçal de recolher os corpos sem vida é
responsabilidade dos motoristas. No edital do concurso está
descrita a atribuição do cargo e, na prova, existe um teste
prático no necrotério para que os candidatos possam ver os
cadáveres: tocar, sentir e conhecer as diversas fases e faces
da decomposição. Com a leitura do edital, alguns não se
convencem da abrangência da função a ser exercida e
~ 75 ~
passam para o exame prático: “Na prática, 10% desiste.
Alguns, pela necessidade do dinheiro, tentam enfrentar”.
Para remover cadáveres, os funcionários usam proteção
individual para evitar o risco de contaminação: “Alguém
pode morrer num acidente, mas ser portador de AIDS ou
tuberculose”.
Anderson Lima é motorista da Setec há mais de quatro
anos. Gosta do que faz, mas tem que enfrentar situações de
perigo: “O trabalho não é difícil, depende do lugar. Difícil é
ir à favela de madrugada, já atiraram na gente atrás do
Uemura. Saímos do local sem o morto, buscamos reforço e
voltamos. Resgatar corpo em lagoa também é complicado”.
Os afogamentos são comuns no verão.
Rosalina Clara Pereira trabalha na Setec e é uma das
pessoas responsáveis pela preparação de corpos para
velórios. Ela era técnica de enfermagem e chegou a tratar de
um paciente acidentado por mais de dois anos. A maior
dificuldade não é preparar um cadáver para o funeral, mas
lidar com o sofrimento das famílias: “Às vezes a família vem
aqui, debruça em cima da gente e começa a chorar. Conta
histórias de como o falecido ficou doente. Aí você tem que
ouvir. Não fico chateada com isso, mas fico triste junto com
a família”.
Rosalina fica atenta para não levar tristeza para casa:
“Só conto os casos mais pitorescos e interessantes. Uma vez
fomos buscar um corpo em uma casa de repouso. A pessoa
tinha falecido na cadeira de rodas. A gente chegou e
cumprimentou o idoso que estava na cadeira. Foi então que
avisaram que o corpo era da pessoa que a gente tinha
cumprimentado”.
Quando Rosalina precisa preencher cadastros com seus
dados, como idade e profissão, ao dizer que é atendente
funerária, as pessoas ficam curiosas e perguntam muito:
“Enchem a gente de perguntas e até esquecem do que
estavam fazendo. É comum a curiosidade. Não me incomoda,
~ 76 ~
sempre respondo. Nunca senti preconceito e tenho orgulho
do que eu faço. Tem gente que esconde. Eu poderia estar
dentro do hospital, mas prefiro aqui. No hospital o
sofrimento é continuado. Aqui não, você sofre naquela hora
e acabou”.
Hoje, como atendente funerária, Rosalina está adaptada:
“Primeiro eu tratei de doente e agora cuido de morto”. Ela
não permite que a família da pessoa falecida veja a
arrumação do corpo: “A família não pode ver porque para
eles dói muito. Coloco gesso no nariz e do corpo vaza de
tudo. De enfarto vaza sangue. Quando o problema é no
estômago vaza líquido escuro ou de outras cores. Problemas
de fígado, pâncreas ou hepatite, o líquido é amarelo. Às
vezes sai fezes pela boca”.
Em meia hora Rosalina consegue arrumar um corpo
“magrinho e em ordem”. Ela faz os tamponamentos, que é o
procedimento de obstruir os orifícios do corpo (nas partes
genitais o tamponamento é feito no hospital), a maquiagem,
coloca as roupas, as flores, penteia o cabelo e faz a barba.
Tudo com o corpo dentro da urna.
Enquanto Rosalina explica como faz o serviço e espera a
chegada de um corpo gordo “que dá muito mais trabalho”, o
motorista João Batista chega para avisar que o falecido
obeso precisou passar primeiro pelo IML. “Ainda bem”, diz
Rosalina, aliviada.
Há 11 anos na Setec, Batista trabalha 12 horas por dia,
fala rápido e fica comovido quando tem que fazer remoção
de criança: “Uma criança ficou pendurada pelo pescoço no
vão da cama enquanto dormia, devia ter um ano de idade”. A
mãe dormiu, o bebê escorregou e morreu enforcado. Batista
defende a mãe que nem conhecia: “Cansada, ela dormiu. Não
teve culpa. São coisas que fogem do nosso alcance”. As
situações que Batista vê durante o dia, ele não conta nem
aos familiares: “Não divido com ninguém, divido com a
Jurubeba que tomo no bar depois do serviço”.
~ 77 ~
Capítulo VIII
Quem Crê Em Deus Jamais Morrerá
"É mais fácil cultuar os mortos que os vivos.
Mais fácil viver de sombra que de sóis. É mais
fácil mimeografar o passado que imprimir o
futuro"
Minha Casa - Zeca Baleiro
Dezenas de barraquinhas de flores se misturam em
frente ao Cemitério da Saudade de Campinas. Flores de
todas as cores e aromas. Uma dúzia de rosas coloridas é
vendida por R$ 5,00, enquanto uma coroa para velório varia
de R$ 60,00 a 300,00.
A barraca mais próxima da porta do cemitério pertence à
Maria Luiza Inocente Teixeira e seu marido, Ricardo Alves
Teixeira, pai de seus três filhos. Há 23 anos trabalham com
flores. Vieram do Paraná, passaram por Goiânia e pararam
em Campinas há quatro anos. Eles cumprem o expediente
das sete da manhã às sete da noite. Em dia de festas, o
trabalho começa às cinco da madrugada. As datas mais
rentáveis são o dia das mães, dos namorados e de finados.
Todos os dias Maria Luiza testemunha vários enterros:
“Tem dia que tem uns 18 velórios”. Quando vê funeral de
recém nascido e criança, Maria Lúcia fica chateada: “Isso não
podia acontecer. Fico triste quando vejo um pai carregando
um caixãozinho de criança, enquanto a mãe ainda nem saiu
do hospital”.
Cada ritual tem sua particularidade. Os católicos
cantam, os homens ciganos lamentam e os japoneses usam
comida e incenso nos rituais: “Depois de alguns anos, os
japoneses vêm lavar os ossos dos mortos”.
~ 78 ~
Maria Luiza observa o movimento enquanto faz os
arranjos de flores: “Às vezes, tem família que enterra a
pessoa e já sai brigando pela herança”.
As frases gravadas nas faixas que acompanham as
coroas de flores são variadas: “Teve um senhor que cuidava
de um monte de cachorro de rua e, quando ele morreu, a
neta dele pediu para fazer uma faixa com os nomes de todos
os cães”.
A florista acredita que o hábito de visitar cemitérios vai
acabar porque as pessoas não têm interesse: “Aqui em São
Paulo é estranho, os jovens não têm esse costume, diferente
de Goiás e do Paraná. Isso tudo vai acabar. Dizem que no
cemitério tem muito ladrão e assaltante, mas eu nunca vi
isso por aqui”.
No outro canto da fileira de barracas trabalha Tatiana,
uma moça de cabelos longos e cacheados. De acordo com a
cor das flores, Tatiana procura imaginar como é a pessoa
falecida que vai receber o arranjo que ela preparou. A coroa
mais bonita é feita de rosas vermelhas. Alguns clientes
choram enquanto solicitam o produto: “A gente fica olhando
chorar, não dá para fazer nada, no máximo sugerir a frase
que vai estampada na faixa. Às vezes a pessoa está chorando
tanto que nem consegue falar”. Há alguns meses
encomendaram uma frase para acompanhar uma coroa de
flores e Tatiana nunca esqueceu a mensagem: “Quem crê em
Deus jamais morrerá”.
Dentro do cemitério, entre muitos trabalhadores, existe
uma única empreiteira que constrói túmulos. Elizabete
Carrera trabalha em um campo predominantemente
masculino. Ela gosta do local, mas reclama que o vandal ismo
destrói seu trabalho: “Góticos deixam preservativos e
garrafas espalhadas. Cemitério não é para isso. Não colocam
polícia, antes tinha guarda. De três anos para cá parou.
Liguei para os jornais, mas ninguém veio. As pessoas têm
medo de assalto. Tivemos prejuízo de R$ 1.400,00 por causa
de um túmulo duplo quebrado”.
~ 79 ~
Elizabete segue a tradição de família junto com o
marido. Os dois trabalham o dia todo dentro do Cemitério
da Saudade de Campinas em concorrência com mais 14
equipes de empreiteiros.
A construção de um túmulo custa de R$ 1.600,00 a R$
3.200,00. Em geral, ela e o marido, Edson Nazareno Brolacci
Pinto, constroem apenas duas sepulturas por mês, pois as
pessoas não investem no cemitério como era feito
antigamente.
Além da construção de túmulos, eles realizam
sepultamentos que custam de R$ 30,00 a 630,00. Os
empreiteiros não são servidores públicos e precisam se
submeter à supervisão da Setec. Eles são recadastrados
anualmente e alguns trabalham na área há mais de 50 anos.
O marido de Elizabete frequenta o cemitério desde os
sete anos de idade e começou a trabalhar como empreiteiro,
junto com o pai, quando tinha 13. Ele e a esposa estudaram
até o „terceiro colegial‟. Todos os dias a filha mais nova do
casal, Larissa Gabriele Pinto, vai com os pais até o
cemitério.
Enquanto Elizabete relata sua experiência, Brolacci se
dependura em uma árvore para pegar frutas para a filha de
quatro anos. A menina brinca o dia todo perto dos pais e
corre entre os túmulos. Jeito sapeca e saudável. Elizabete
conta que Larissa quase nunca fica doente: “No máximo, ela
fica gripada”.
Tanto os avós quanto os pais de Elizabete trabalhavam
no Cemitério da Saudade: “A família toda vive daqui do
cemitério, do nosso trabalho”. Tirar férias não é possível:
“Dá medo de dar as costas e acontecer alguma coisa”.
Lidar com morte é complicado e a prioridade da família
que trabalha há décadas no mesmo local é atender o cliente
com cuidado e educação: “Às vezes, a gente é influenciado
pelo problema das pessoas. Vem mãe que perdeu o filho em
acidente de moto, criança atropelada. Você vê coisas muito
~ 80 ~
tristes. É um serviço desgastante emocionalmente, mas você
muda seu raciocínio e dá mais valor à vida e à amizade.
Você respeita mais o ser humano como gente. É um serviço
digno e sofrido. Algumas pessoas desmerecem o nosso
trabalho. Nós abrimos a porta do túmulo, guardamos o
corpo lá dentro e cuidamos para que não exale cheiro. Há
quem reclame do preço, que é de R$ 30,00 pela mão de obra
do sepultamento. O corpo pode vazar e a gente perde a
roupa. Se uma pessoa faleceu de insuficiência renal, o corpo
está inchado, então a barriga pode romper quando a gente
tem que inclinar o caixão para o sepultamento”.
Elizabete tenta não levar os problemas para casa e
depois do expediente, se sente vontade de chorar, ela
extravasa: “Ouço uma música, choro, falo, gesticulo. No
cemitério, sou bastante profissional, mesmo assim fico
amiga de muitas famílias que sepultam parentes aqui”. Para
aliviar o peso emocional de trabalhar com a tristeza alheia,
Brolacci costuma pescar.
Elizabete engravidou da filha mais nova aos 43 anos.
Hoje, Gabriele está com quatro e os outros dois filhos mais
velhos da empreiteira têm mais de 20 anos de idade. A vida
de Elizabete não é fácil, mas a serenidade com que trata as
pessoas é o tempero para a felicidade profissional e
familiar. A mãe dela sofreu um derrame, não consegue
entender a realidade e precisa de todos os cuidados: “Ela
fica uma semana comigo e uma semana com a minha irmã. A
gente divide o fardo. Eu tenho um bebê que quer atenção e
minha mãe para cuidar”.
No cemitério onde trabalha, são sete alqueires para
caminhar todos os dias. Mas ela não pensa em mudar de
profissão: “A gente pega amor por isso. Tem gente que
brinca e diz que se bebeu da água daqui, é difícil sair.
Realmente é. Eu não sei explicar, acho que é porque passa
de pai para filho. É o que nós sabemos fazer com amor”.
Como afirmado pela maioria dos entrevistados, lidar
com a morte é mais tranquilo do que com pessoas vivas.
~ 81 ~
Elizabete explica por quê: “A partir do momento em que
você morreu, eu não tenho mais nada a fazer por você, a não
ser te guardar com carinho e respeito. O problema é que,
atualmente, as pessoas se respeitam menos e parecem agir
como máquinas. O ser humano busca o trabalho, mas não
tem respeito. Não deseja um bom dia e passa por cima de
tudo”.
Elizabete não tem uma igreja definida para frequentar,
mas reza todos os dias e acredita em um juízo final. “Se nós,
que somos humanos ficamos esgotados, imagine Deus! Ele
deve estar muito revoltado”. Parar de trabalhar no cemitério
não faz parte dos planos dela. “Se eu parar, sou capaz de
morrer de frustração. Eu gosto desse sossego, gosto de ficar
aqui”. Ela costuma ler as frases gravadas nos túmulos. Certo
dia se deparou com palavras escritas para um recém
nascido: “Quanta ilusão desfeita nessa lousa”.
Há alguns anos, o pai de Elizabete teve um ataque do
coração enquanto trabalhava no cemitério, e caiu em cima
de um túmulo: “Chamamos a equipe do Samu. Eles não
acreditaram na história, acharam que era brincadeira”.
Conseguiram socorro com a Guarda Municipal de Campinas.
O pai de Elizabete não sobreviveu. A entrevista acontece ao
lado do túmulo dele.
A pequena Larissa aparece para pedir a atenção da mãe.
O pai, Brolacci, vem chamar a família para ir embora. É fim
de tarde. Eles são fotografados. A menininha esconde o
rosto com vergonha.
Assim que Elizabete vai embora para casa com a família,
os guardas noturnos chegam para cumprir doze horas de
trabalho. Das seis da tarde às seis da manhã, os seguranças
desarmados caminham por entre túmulos e capelas do
cemitério. Pelo caminho está o cheiro de flor, a brisa e o
silêncio.
Sem arma e sem carro, Wagner Destro, aos 42 anos,
caminha 86 quadras por noite há três anos: “Para contornar
~ 82 ~
o cemitério a pé levamos uma hora. Não sei porque tiraram o
carro que usávamos para trabalhar”. Os túmulos são altos e
facilitam que as pessoas se escondam. Em um terreno de
mais de 80 mil metros quadrados, com três seguranças, é
impossível evitar que os furtos aconteçam.
E eles não estão sozinhos durante as 12 horas de
trabalho. Pela madrugada, algumas pessoas visitam o
cemitério. Os mais conhecidos são os góticos e os roqueiros
que, segundo os guardas, não representam perigo. Eles
dançam, cantam e vestem roupas pretas: “Não fazem mal
para ninguém”. Durante o dia, além dos funcionários,
sepultadores e empreiteiros, outras pessoas transitam pelo
cemitério para ler, desenhar, fotografar ou fazer artesanato.
“Esse pessoal não atrapalha”.
Quando chove, algumas situações estranhas acontecem,
como cães segurando os ossos que saem dos túmulos por
causa da água: “A gente pega esse material e coloca em um
saquinho”. Destro não tem medo da morte e é evangélico:
“Eu nunca tive medo e nem vou ter. Creio em um outro lado
melhor do que esse aqui. Quem tem Deus na vida, não tem
medo da morte”.
Altair Alves Paixão é o segurança mais novo, com 27
anos. Há três ele trabalha nos cemitérios municipais de
Campinas. “Nós somos os fantasmas do cemitério”. O medo
só está presente por causa da possibilidade de assalto.
Antônio Aparecido é o mais velho e o único que não é
evangélico. Para ele, o perigo da profissão fica por conta de
tudo o que anda: “Os roqueiros são excelentes, o problema
são os ladrões”. Quando o expediente acaba e o sol começa a
aparecer no horizonte, a sensação e a resposta dos três
seguranças noturnos é a mesma: “Alegria! A gente sente
alegria”.
~ 83 ~
Capítulo IX
Funexpo 2003
"Nada mais falso do que o medo de morrer, e
eu diria que nós fazemos tudo para morrer o
mais depressa possível. Os nossos hábitos, os
nossos usos, os nossos vícios, as nossas
irritações mal disfarçam a vontade, a
urgência, a fome de morte."
Nelson Rodrigues
São Paulo, setembro de 2003, sábado às nove da manhã.
Um ônibus lotado de pessoas bem vestidas sai de um hotel
em direção ao Centro de Exposições Imigrantes.
Empresários e interessados no mercado funerário se
reúnem e trocam cartões antes de chegar ao local onde
acontece a Funexpo 2003. Logo na entrada da exposição, um
guindaste sustenta um caixão gigante.
O movimento de visitantes aumenta a cada minuto.
Muitos querem ser fotografados ao lado da maior urna do
mundo. De madeira e alças douradas, pesa dois mil quilos,
tem sete metros de comprimento, 2,40 metros de largura e
um 1,80 metro de altura. São 4,5 mil metros quadrados de
exposição funerária.
Antes de chegar perto da urna de sete metros de
comprimento, algumas placas intercaladas na porta de
entrada homenageavam escultores brasileiros e italianos.
Quase ninguém parou para ver. As informações culturais
ficaram ali paradas como as estátuas dos retratos.
Em uma das molduras estava a homenagem à campineira
Nicolina Vaz de Assis, considerada a maior escultora
brasileira. “Nicolina realizou uma obra cheia de formosura,
transmitindo aos seus trabalhos a sentimentalidade e as
~ 84 ~
delicadezas de sua alma de mulher”. Na foto, a escultura
mostrava uma figura feminina em mármore com um 1,78
metro de altura existente no Cemitério da Consolação,
quadra 36.
A Funexpo 2003 não trouxe lucro apenas para a
economia funerária, mas também para alguns hotéis de São
Paulo. Foram registradas 300 reservas hoteleiras ligadas
diretamente à feira. Cada quarto ocupado movimentou, no
mínimo, R$ 100,00. Amanda Blazzi é funcionária da agência
Family Travel e foi contratada para ser uma das
responsáveis pela organização do evento. Amanda fez
reservas para pessoas de localidades como Pernambuco,
Porto Alegre, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Argentina, Holanda,
Chile, Bolívia, Colômbia, Itália e Venezuela.
Alessandra Torres também foi responsável pela
organização hoteleira realizada pela empresa Family Travel,
de Botucatu. Sem esconder a surpresa de estar pela primeira
vez na Funexpo, conta que no início achou a idéia um pouco
estranha e que os comentários ficaram por conta da família:
“Ai credo, que macabro”.
Há cinco anos a Funexpo é a maior exposição funerária
da América Latina e atrai novidades e empresários do Brasil e
do mundo. Em 2003, 60 estandes, entre eles oito
estrangeiros, foram montados no Centro de Exposições
Imigrantes. O evento recebeu seis mil visitantes em três dias.
Os negócios movimentaram R$ 4,5 milhões entre carros,
urnas, paramentos, material de tanatopraxia, vestimentas,
cartões personalizados, softwares de gerenciamento,
transformação de veículos em carros funerários, material de
convalescença que são muletas, cadeiras de rodas, colchões
d‟água e outros aparelhos. No Brasil, o mercado funerário
movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano.
A Funexpo foi criada pelo Centro de Tecnologia e
Administração Funerária (CTAF). Além de organizar as feiras
bienais, o CTAF administra cursos, presta consultoria para
~ 85 ~
funerárias em qualificação profissional e forma
tanatopraxistas em todo país.
A tanatopraxia é uma técnica originada no Egito para a
conservação de múmias e que está sendo difundida no Brasil
há nove anos. Na feira, todos falam da tanatopraxia, que é a
troca do sangue por um líquido que tem como base o
formol. O líquido é aprisionado no sistema muscular e esse
produto inibe o desenvolvimento das bactérias: “A família
chega a se sentir orgulhosa pelo corpo estar bonito”.
O curso de tanatopraxia é ministrado em Campinas
pelos professores de anatomia da Faculdade de Medicina da
Unesp de Botucatu, Oysenil José Tâmega e Progresso José
Garcia. Eles trouxeram a técnica aperfeiçoada de
embalsamamento dos Estados Unidos, Colômbia e Espanha.
“Em Madri, a técnica da tanatopraxia é avançada”.
Em 2003 foram ministrados oito cursos com 16 alunos
por turma. Em cada aula do curso são utilizados dois
cadáveres e duas mesas: “Cada kit de tanatopraxia custa em
média R$ 5 mil. Em dois dias, foram vendidos cerca de 10
conjuntos completos”.
A urna é o principal produto da feira, com novidades
como urna para casal e urna que funciona por controle
remoto. Os carros adaptáveis para transportar corpos são
alvos de grande interesse, mas pode haver preconceito
quando o setor escolhe um carro para usar seus serviços
funerários, como aconteceu com a Caravan. Por isso, as
montadoras disputam o espaço para adaptar seus veículos.
Um deles é da marca Renault. Outra novidade que “vendeu
que nem água” foi suporte de cabeça para cadáveres.
O lucro é certo, não há crise. Uma brincadeira, embora
desgastada, ainda é citada pelos presentes e carrega sua
mais natural verdade, afinal, “os clientes não voltam para
reclamar”. O custo benefício da Funexpo é positivo. Para
quem precisa negociar, a exposição é perfeita: “Todo mundo
se vê aqui em três dias”.
~ 86 ~
Durante o ano todo, as cinco mil e quinhentas empresas
funerárias no Brasil trabalham 24 horas por dia e o
movimento econômico é expressivo, pois emprega mais de
100 mil trabalhadores.
O número respeitável de empresas no setor requer
cursos de capacitação e a técnica mais requisitada para
quem busca aperfeiçoamento é a tanatopraxia, que consiste
na preparação adequada do corpo para o velório e que busca
melhorar a alteração causada pela morte, como vazamentos,
odores desagradáveis e coloração da pele. A técnica
possibilita que um ritual seja estendido por mais de 24
horas e, em alguns casos, por mais de 20 dias.
No comando de toda estrutura e inovação está o
presidente da Funexpo, da Associação Brasileira de Diretores
e Empresas Funerárias (Abredif), vice-presidente da
Associação Latino Americana de Parques e Cemitérios
(Alpar), diretor executivo do CTAF e estudante de Direito,
Lourival Panhozzi.
Ele explica que o aumento significativo do uso da
tanatopraxia acontece devido à dispersão das famílias que,
às vezes, moram em estados ou países diferentes. “O
nascimento é um evento importante como o aniversário e o
casamento, mas o derradeiro evento de uma família é a
cerimônia fúnebre. É a que mais une, a que mais aproxima e
a que mais torna todos iguais”.
Ao ter consciência da importância deste ritual, a
empresa que trabalha com a tanatopraxia pode evitar a
correria da família, que faz questão de estar presente. Por
causa da pressa e do estado psicológico de um momento
triste, há pessoas que sofrem acidentes graves nas estradas.
Um momento de dor pode se tornar uma tragédia. Para
ilustrar, conto a história de um rapaz que não quis ser
identificado. A vida dele conserva uma ferida que se estende
por gerações. Quando era bebê, seu pai e todos seus tios
foram velar um parente em uma cidade vizinha. As mulheres
~ 87 ~
ficaram em casa cuidando das crianças. No caminho, o grupo
sofreu um acidente de carro e ninguém sobreviveu. Depois
de mais de 30 anos ele apenas pode constatar que, em sua
família, todos os primos são órfãos de pai.
Com a tanatopraxia, o processo biológico de
decomposição é adiado e o corpo fica com a aparência de
alguém que está dormindo. Sem a técnica, o funeral deve
durar menos de 24 horas, o que pode significar pouco tempo
para comunicar a família e velar o corpo.
Para investir na qualidade, os profissionais podem fazer
cursos de psicologia, atendimento ao cliente,
relacionamento e controle de qualidade. Se antes a maior
preocupação era com a morte, hoje as empresas cuidam da
vida do cliente com diversos benefícios.
O fato é que conseguir a satisfação do cliente em um
funeral é algo impossível. “Ninguém fica satisfeito de ter
que ir a um funeral, a satisfação do nosso cliente é quando
conseguimos amenizar um pouco a dor que é tão grande. Se
você conseguir poupar um pouco aquela pessoa, você já
conseguiu muito”. Enquanto Lourival explica como amenizar
a insatisfação do cliente, as sirenes dos carros em exposição
na Funexpo 2003 não param de fazer barulho.
O número de pessoas presentes aumenta, o Centro de
Exposições lota, negócios são feitos a cada minuto, cartões
são trocados, bebidas servidas. Em um dos estandes há
cerveja à vontade e muitos homens com copos na mão.
Parece uma grande festa. É quase hora do almoço, a praça de
alimentação começa a exalar o cheiro de comida, duas
crianças correm e brincam entre as urnas.
Mais negócios são fechados.
Entre tantos homens, encontra-se Taisa Berlingieri,
psicóloga e filha do proprietário da Funerária Santa Isabel e
do Sistema Prever. Ela ajuda a administrar a empresa de
Jaboticabal, que era do avô. Em breve, pretende implantar a
Psicologia do Luto, que é o apoio emocional à família
~ 88 ~
associada: “Acho que falta um grupo de orientação para
mães que perderam filhos e crianças que perderam pais.
Seria interessante oferecer mais um benefício ao associado”.
Após um enterro, o cliente da Funerária Santa Isabel
conta com um profissional para cuidar da documentação e
encaminhar as roupas e remédios de quem faleceu para
asilos e instituições de caridade. Todos os rituais
preparados pela Santa Isabel usam a técnica da tanatopraxia.
Os planos podem custar de R$ 250,00 a 6 mil. Existem
profissionais aptos a acompanhar a família “inclusive com
medidor de pressão arterial”.
Em Jaboticabal residem cerca de 70 mil pessoas e o
número de associados da Santa Isabel é de 70 mil. A
empresa não tem concorrente na cidade e o número elevado
de associados tem uma explicação: a funerária presta
serviço para toda a região de Jaboticabal.
De pai para filho, dificilmente uma funerária é
administrada por funcionários. Na Funexpo 2003 houve um
encontro inédito entre os jovens que, em breve, vão assumir
o comando de empresas. Taisa acredita que esta foi a melhor
maneira encontrada pelos empresários de apresentar o
mundo dos negócios funerários para filhos e filhas. “A
reunião dos sucessores tem o objetivo de discutir as
dificuldades de assumir uma empresa onde praticamente
crescemos. É difícil, de repente, sair do papel de filho do
dono que corre pela empresa e brinca com os funcionários
para o papel de administrador que cuida do negócio, dá
ordens e faz mudanças na empresa. É muito bom quando
temos a oportunidade, como eu estou tendo, de assumir
juntamente com meu pai. Muitos outros jovens tiveram que
assumir a empresa no susto, de uma hora para outra, por
causa da morte dos pais. Aí sim é difícil, porque tem que
aprender tudo sozinho”.
Mário Fernando Berlingieri é pai de Taisa e, aos 54 anos
de idade, ele é vice-presidente da Abredif, diretor do CTAF,
do orfanato Lar do Caminho, proprietário da Funerária Santa
~ 89 ~
Isabel e do Sistema Prever, formado em Ciências Sociais e
Direito. Desde criança convive com urnas e corpos. Com
fluência verbal e raciocínio lógico, fala dos planos de
elaborar um manual funerário que resgate a história do
setor e que compartilhe as situações em que são obrigados a
resolver problemas complexos, como no caso de transporte
aéreo e leis pouco objetivas.
Dentro da funerária Santa Isabel existe uma sala de
cirurgia para a retirada e doação de córneas. Berlingieri
interfere junto à família de forma didática para garantir a
doação: “Queremos envolver os diretores funerários do
Brasil inteiro nesses projetos de doação de órgãos, pois nós
somos as pessoas mais próximas nesse momento tão difíci l”.
A córnea é retirada na funerária porque é a única parte
do corpo que pode ser utilizada depois do óbito. No local
dos olhos verdadeiros são colocados olhos de plástico com a
finalidade de não trazer para a família qualquer tipo de
constrangimento. “Não é porque estamos mexendo com um
corpo sem vida que tem que haver desrespeito. Aquele corpo
amou, foi amado, transitou pela terra, gerou filhos,
produziu. Temos respeitar, mesmo que este corpo esteja
retornando para o laboratório da natureza”.
Depois da conversa esclarecedora sobre administração
funerária, entrevisto Jonacir Amorin. Ele é um dos maiores
fabricantes de urnas do estado de São Paulo. A Faurtil,
localizada em Tietê, está há 49 anos no ramo e emprega 50
pessoas. Amorim sabe que os donos das funerárias são
exigentes, então buscou aperfeiçoamento profissional pelo
mundo.
Sem saber falar inglês, Amorin e seu maior concorrente,
Marcos Bignotto, viajaram juntos para os Estados Unidos em
busca de novas informações: “Nos Estados Unidos andamos
seis mil quilômetros de carro para fazer pesquisa de
mercado. Levamos um intérprete. Participei de feiras em
Portugal e vi que lá eles respeitam mais a morte. O
brasileiro não aceita, é muito emocional”.
~ 90 ~
Em Portugal as urnas não têm alça e, a caminho do
enterro, são carregadas nos ombros. Amorim conta que um
metro cúbico de madeira permite a fabricação de quatorze
urnas. Ele é um dos poucos fabricantes brasileiros que
exporta seus produtos. Há seis meses, a Faurtil vende
caixões para a Itália, França e Alemanha. Vender para os
Estados Unidos é difícil porque eles fazem exigências que
comprometem a estrutura de uma fábrica. Os norte-
americanos são enterrados em urnas quadradas, enquanto os
brasileiros utilizam as arredondadas. Com quatro filhos,
apenas os meninos começaram a assumir a empresa do pai:
“Eu acho que é um ramo para homens”.
Mesmo em um mundo dominado pelos homens, Edna
Porto Viola é uma das poucas empresárias na feira; ela
começou a trabalhar no ramo há oito anos. A empresa Modial
era dela e do marido, mas ele resolveu entregá-la para a
esposa administrar e abriu outro negócio também no setor
funerário.
A Modial vende dois mil produtos por mês entre vestes
fúnebres, caixas para ossos, acessórios para veículos, véus e
sedas.
Bem vestida, Edna atende os clientes em seu estande e
quase não pode parar para a entrevista. É interrompida o
tempo todo por pessoas que querem negociar e comprar
seus produtos. Alguns metros depois da Modial está
Valdemar Bresciani. Ele começou a trabalhar como fabricante
de urnas por acaso. Mesmo contrariando a realidade das
empresas familiares, Bresciani conseguiu projetar sua
empresa no cenário funerário com rapidez.
Quando era empreiteiro, ele fez um conjunto
habitacional a pedido da prefeitura de uma cidade em Santa
Catarina, mas ficou sem receber o pagamento durante cinco
meses. Para negociar a dívida, o ex-prefeito, Dorvalino
Dacorregio, doou um terreno para Bresciani e o ajudou a
construir uma fábrica: “O prefeito trouxe até a mão de obra
porque eu não entendia nada de urna”. Hoje , Bresciani
~ 91 ~
administra uma empresa, tem 85 funcionários e vende duas
mil urnas por mês. Há três anos no mercado, os caixões
fabricados pela fábrica Irmãos Bresciani são fornecidos para
estados como Mato Grosso, Alagoas e Minas Gerais. A Santa
Casa do Rio de Janeiro é cliente da fábrica de Bresciani, e as
urnas são usadas nas gravações de funerais de novelas da
Rede Globo. O corpo de Roberto Marinho foi enterrado em um
caixão feito pela fábrica Bresciani: “A urna do Roberto
Marinho não é o modelo mais caro. Custou R$ 950,00. Não sei
o preço que a funerária cobrou pelo serviço todo. Geralmente
o preço é cinco a 10 vezes mais caro que a urna”.
Em um funeral, o custo não fica por conta apenas da
urna, mas do serviço completo: arrumação do corpo, flores,
paramentos e preparação burocrática dos papéis referentes
ao óbito.
Os donos de funerárias precisam entender de cadáveres,
mas os fabricantes de urnas não. Marcos Bignotto é
proprietário da maior fabricante de caixões da América
Latina. A empresa tem 36 mil metros quadrados de
construção. No início, Bignotto não gostava da ideia de
trabalhar com fabricação e venda de urnas, mas assumiu o
negócio por questão de honra. “Se os outros podiam fazer
bem feito, eu seria mais um”.
Obstinado, ele fez da fábrica localizada em
Cordeirópolis, no interior do estado de São Paulo, uma
empresa de sucesso que emprega 350 pessoas. A cada oito
horas de trabalho, são feitas mil urnas. No total, fabrica 20
mil caixões por mês: “Vendo todos”. Há 35 anos Bignotto
herdou a tarefa do pai.
Atualmente, ele prepara a filha mais velha, de 19 anos,
para assumir seu lugar. “Tenho três filhas e um filho. A mais
velha está na faculdade de economia e mostra interesse pela
administração da fábrica”.
A entrevista acontece na praça de alimentação do Centro
de Exposições Imigrantes. São cinco horas da tarde do dia 06
~ 92 ~
de setembro de 2003. Com lágrimas nos olhos, Bignotto
pede café e água e diz: “As histórias chocam , mas as
pessoas sobrevivem ao choque”.
A dor está na lembrança da morte do pai, que faleceu há
cerca de três anos enquanto trabalhava dentro da fábrica.
Para explicar os sentimentos de saudade e a necessidade de
aceitar a morte, Bignotto cita a dor de uma mãe que perdeu
seu filho na explosão do Veículo Lançador de Satélites (VLS)
que matou 21 pessoas no Maranhão em agosto de 2003.
Bignotto é amigo da família de Mário Freitas Levy, que
estava entre as vítimas.
Aos 73 anos de idade, a mãe de Mário, Margarida Freitas
Levy, precisou passar pelo desgaste emocional de perder um
filho com 43 anos. Para amenizar a própria dor, ela disse
para Bignotto: “Se outras mães podem suportar, eu também
posso”.
~ 93 ~
Oração do Tanatólogo
PAI!
Neste momento, rogo mais uma vez a vossa proteção.
Encontro-me diante deste corpo humano inerte,
destituído de vida, cuja caminhada terrena acaba de findar.
PAI!
No exercício de minha atividade como tanatólogo, peço
a vossa permissão para adentrar o íntimo deste sacrário
físico, pois pretendo fazê-lo com o mais profundo e sincero
respeito, tendo sempre presente em minha consciência que
este ser amou e foi amado, respeitou e foi respeitado, lutou
para viver, semeou, colheu, vivenciou vitórias e derrotas,
edificou esperanças, cumprindo os desígnios que lhe foram
determinados.
PAI!
Elevo neste instante o recôndito de minha fé, tributando
a esta criatura vibrações de paz e harmonia, rogando aos
socorristas do mundo invisível para que retirem, caso ainda
não tenha retirado, a chama divina que habitou esta matéria,
guindando-a às hostes dos seus merecimentos, desligando
os liames físicos, para que nesta mesa permaneça única e
tão somente a composição orgânica na qual praticarei o meu
desiderato.
PAI!
Obrigado por tudo quanto tenho recebido, pois sei e
sinto que ao iniciar o meu trabalho, mais uma vez as minhas
mãos estarão seguras e guiadas por vosso infinito amor, que
sempre protegeu e protegerá a minha saúde e minha
integridade física.
ASSIM SEJA.
(Mario Fernando Berlingieri)
~ 94 ~
Capítulo X
A Morte Não Existe
"O melhor negócio é ainda o seguinte:
não morrer, pois morrer é insuficiente,
não me completa, eu que tanto preciso".
A Hora da Estrela - Clarice Lispector
Antônia Vieira viveu mais de nove décadas e morreu nos
anos noventa. Casou-se três vezes. O primeiro casamento
aconteceu quando ela estava com 12 anos de idade. Teve sete
filhos com o primeiro marido.
No terceiro casamento, aos 78 anos, casou-se, na igreja e
no civil, com um senhor solteiro oito anos mais novo e amigo
de infância. A história da família de Antônia é repleta de
velórios. Enterrou sete filhos, dois maridos e muitos outros
parentes.
Joaquina de Paula foi a última filha de Antônia a morrer
do coração, aos 46 anos. Foi no dia 11 de maio de 1976.
Joaquina deu quatro netos para Antônia. Duas meninas e dois
meninos: Machado e Abner1
. As meninas morreram, Sônia aos
três e Hilda aos 14.
Era década de 60 em um hospital de Votuporanga,
interior de São Paulo, quando Hilda foi submetida a uma
cirurgia na garganta. A mãe, Joaquina, acompanhou a
internação. Depois de três dias, Hilda recebeu alta. Arrumou-
se para deixar o local após receber a visita do pai, Sebastião.
O irmão mais velho, Machado, estava a caminho do
trabalho quando resolveu passar no hospital, mas quando ele
chegou, Hilda tinha acabado de sofrer um enfarte do coração.
“Fazia três minutos que ela tinha morrido no portão do
1 Abner foi assassinado em 12 de julho de 2006. Um tiro no coração.
~ 95 ~
hospital logo após receber alta. Os enfermeiros socorreram,
mas foi fulminante, não deu tempo de fazer nada”.
O enfarte de Hilda foi causado pela doença de chagas.
Filho de Joaquina e neto de Antônia, Machado assistiu grande
parte da família falecer por problemas no coração, que é um
dos sintomas da doença de chagas.
O mal, causado pelo inseto conhecido como barbeiro, foi
estudado pelo cientista do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos
Chagas: o único a pesquisar todo o ciclo da doença. Os
estudos não avançaram até meados do século passado por
causa de disputas políticas dentro dos institutos.
Tanto o Instituto Oswaldo Cruz como o Butantã
estavam ganhando força internacional com suas
descobertas. Foi na década de 70 que o então presidente
Ernesto Geisel percebeu a importância estratégica da
ciência para o país e priorizou o desenvolvimento
tecnológico e a produção de imunobiológicos. Enquanto os
responsáveis pela evolução da ciência brigavam por poder,
Joaquina cuidava de seus filhos.
Apesar das poucas palavras, Machado deixa escapar que,
desde criança conseguia prever as mortes iminentes.
“Geralmente sentia cheiro de vela sem ter vela queimando
por perto. Então era certeza que alguém ia morrer. Eu estava
tomando banho enquanto senti cheiro de vela e minha mãe
estava no hospital morrendo”.
Faltavam dois meses para Machado se casar quando sua
mãe, Joaquina, faleceu atingida pela doença que atacou o
coração.
O filho mais velho de Joaquina trabalhou desde os sete
anos de idade: foi entregador de jornal, tipógrafo, policial
militar, professor de ciências físicas e biológicas, bancário e
hoje é corretor de imóveis. Quando fazia parte da Polícia
Militar, aos 21 anos, Machado precisou conviver com a morte
de pessoas estranhas, cuidar de corpos, resgatar cadáveres
em matagais e afogados em rios e lagoas. Ele trabalhava na
~ 96 ~
região de General Salgado, cidade pequena no interior de São
Paulo.
Prudêncio de Moraes, conhecido como Cachorro Sentado,
é um distrito pertencente a General Salgado, cidade próxima
a São José do Rio Preto. Machado explica que o apelido da
pequena cidade surgiu quando o padre da igreja local
reclamava da falta de fiéis. “Dizem que o padre rec lamava
que o único ouvinte da missa era um cachorro sentado, daí o
apelido pegou”.
Existe outra versão: a de que um estranho chegou na
cidade e não encontrou nenhuma pessoa, viu apenas um
cachorro sentado no meio da única rua principal. “O
estranho comentou o fato em um boteco da vila e pronto! A
cidade passou a ser chamada de Cachorro Sentado”, conta
Machado.
Com menos de 10 mil habitantes, Cachorro Sentado
guarda alguns assassinatos na história: na década de 70, um
jovem de 23 anos fugiu com a namorada, fato comum em
uma época cheia de proibições e controles morais. Na fuga, o
casal se desentendeu e o rapaz esfaqueou a garota 33 vezes.
Machado e mais alguns policiais encontraram o corpo da
moça no meio de um cafezal e o levaram para a delegacia.
“Nunca tinha visto um cadáver assim, foi normal, não tive
reação nenhuma. Na época, a gente não tinha muita
preocupação porque não tinha o medo da AIDS, a gente pegou
o corpo de qualquer jeito e colocou na viatura”.
Na delegacia, puseram o corpo nu da moça assassinada
em cima de uma mesa e lavaram-no com água. O perito
fotografou. Ela foi enviada para o necrotério. Foi feito o
velório e o funeral. Era 1972.
Como era comum em cidades pequenas, os policiais
faziam de tudo um pouco, inclusive o serviço de bombeiro.
Uma mulher que morava na frente da delegacia tentou se
matar, mas Machado e o Sargento Valdir correram para
socorrê-la.
~ 97 ~
Misturaram água morna, sal e vinagre para que ela
pudesse “colocar para fora” todo veneno que ingeriu.
“Fizemos essa mulher tomar vários litros de água e foi o que
a salvou, pois ela vomitou tudo. Levamos para o hospital e
ela está viva até hoje”.
Na escola de soldado, como explica Machado, os rapazes
recebiam treinamento sobre combate à incêndios, primeiros
socorros, picadas de cobras venenosas e afogamento.
“Preparo psicológico não teve nenhum, a gente aprendia no
dia-a-dia com os mais velhos. Os mais antigos diziam „não
esquenta não ô polícia, é assim mesmo, e toca a vida‟, a
gente aprendia com eles e ia tocando”.
Da mesma forma que um bom jornalista não rejeita uma
notícia quente quando, teoricamente, está de folga, um bom
policial também presta auxílio quando alguém necessita de
socorro. Machado saía da escola onde estudava quando
gritaram dentro de uma casa pedindo ajuda. Um senhor tinha
acabado de falecer e os parentes não sabiam como agir.
Edson ajudou a família a lavar o morto, vestir o paletó e
colocá-lo no caixão.
Na vida pessoal de Machado, a presença da morte foi
constante. Perdeu todos os tios, duas irmãs, a mãe, amigos e
vizinhos. Quando morava em Votuporanga com os pais, em
apenas um ano nove pessoas que moravam na mesma rua que
ele faleceram, inclusive sua irmã e um amigo da família, o
barbeiro Afonso Pena.
Machado presenciou mais de 60 velórios na vida pessoal
e, como Policial Militar, conviveu com cadáveres e assassinos
por cerca de dois anos. “Existe uma música que chama „Rock
Bravo‟ do Leo Canhoto e Robertinho que fala do assassino J.S
de Cachorro Sentado”. J.S foi preso e ficou em General
Salgado para ser julgado e condenado.
Machado conta que J.S. foi levado por dois policiais para
a cadeia de Presidente Venceslau. “Eu fiz a escolta do
assassino até Presidente Venceslau. Enquanto o outro polícia
~ 98 ~
foi ver o horário certo do ônibus, aglomerou um monte de
gente em volta do homem condenado à prisão. De repente,
J.S. saiu agredindo as pessoas. Foi quando eu rolei no chão
para poder segurá-lo. Meu outro colega apareceu e a gente
conseguiu dominar o prisioneiro. Ele era um senhor negro
com um e noventa de altura, tinha uns 100 quilos”.
Depois de 15 anos que Machado deixou de ser Policial
Militar, soube que J.S cumpriu a sentença, saiu da prisão e
logo matou um taxista em Auriflama. “Era um homicida
nato”.
Como a maior parte dos entrevistados deste livro-
reportagem, Machado conviveu de perto com a morte.
Individualmente, cada profissional viu, ouviu, sentiu o
cheiro, cuidou, vestiu, consolou, chorou, guardou imagens na
memória e sentimentos na alma.
Alguns acreditam que a alma existe, enquanto outros
parecem pensar da mesma forma como é cantado o verso na
voz de Rita Lee: “não acredito em nada e até duvido da fé”.
Independente da maneira como cada ser humano lida
com o fim da vida, as pessoas necessitam de símbolos para
tentar entender a morte. A constatação parece ser um dos
motivos para o mercado funerário propor avanços
tecnológicos.
Adriana Fiori é psicanalista e também trabalha com a
morte, mas “em um sentido simbólico”. Em 2002 ela
colaborou para um estudo organizado pelo Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). O trabalho teve o
objetivo de mapear os impactos sociais e econômicos dos
acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas.
As mortes causadas em acidentes automobilísticos
causam dor, sofrimento e muito prejuízo. Para chegar ao
resultado da extensa investigação, foram examinados vários
fatores que causam danos materiais: custo de perda de
produção, de danos aos veículos, médico-hospitalar, de
processos judiciais, custo previdenciário, resgate das
~ 99 ~
vítimas, remoção dos veículos, danos ao mobiliário urbano e
à propriedade de terceiros, danos à sinalização de trânsito,
atendimento policial, atendimento dos agentes de trânsito,
impacto familiar e custo com outros meios de transporte, que
seria a soma das despesas do acidentado com passagens de
ônibus, táxi e aluguel de veículo.
No total foram visitados 4.123 domicílios nas
aglomerações urbanas de São Paulo, Belém, Recife e Porto
Alegre. No País, o prejuízo com acidentes de trânsito chega a
ser mais de R$ 5 bilhões anuais (a preços de abril de 2003).
“Estes valores resultam somente dos acidentes ocorridos em
área urbana. Os custos dos acidentes ocorridos em rodovias
fora do perímetro urbano não estão incluídos, ainda que
estes acidentes sejam os mais graves, são menos
numerosos”.
O custo médio de um acidente sem vítimas é de R$
3.262,00. Com vítimas feridas a média é de R$ 17.460,00. Se
no acidente alguém morrer o valor médio do prejuízo sobe
para R$ 144.143,00.
Apesar de ser uma pesquisa, o assunto morte requer, em
qualquer circunstância, tato e delicadeza. Foi por isso que o
IPEA contratou uma psicanalista.
Primeiramente Adriana recebeu uma lista de 400 pessoas
que perderam a vida em acidentes de trânsito em 2001.
Depois, ligou para a família de cada uma delas, mas apenas
50 aceitaram conceder uma entrevista que incluía um extenso
questionário. “Eu fazia desde o primeiro contato por telefone
até agendar e ir à casa da pessoa. Não podia ser feito por
telefone, tinha que ser pessoalmente. Era um questionário
longo e por telefone é um assunto delicado”.
Adriana precisou de três meses para concluir sua parte
na pesquisa e, além de abordar óbitos, entrevistou 10
pessoas que tiveram graves sequelas em acidentes.
Adriana afirma que não ficou abalada com as entrevistas:
“Difícil me afetar porque eu sou treinada para não ser
~ 100 ~
afetada”. Enquanto fala de morte, Adriana interrompe a
entrevista por duas vezes para mostrar as flores que estão
desabrochando no quintal de sua casa. “Daqui a pouco as
outras vão se abrir, fique olhando”.
Das pessoas presentes no momento da conversa,
ninguém lembrou o nome da flor que se abre toda no
momento do crepúsculo. Adriana volta para o tema central da
entrevista. “Nada me afeta. Mas eu fiquei impressionada com
uma moça que perdeu o marido, motoqueiro, na rodovia dos
Bandeirantes, em São Paulo. Fazia seis meses. Ela tinha dois
filhos. A delegacia contou uma história mal contada. O
caminhoneiro que atropelou o rapaz tomou todas as
providências e dizia que ele não era o culpado, o Boletim de
Ocorrência era obscuro, não tinha uma descrição da morte
dele”.
Quando a esposa do motoqueiro chegou no pronto
socorro, recebeu um saco de roupa suja de sangue. “Sem
preparo nenhum, sem ninguém para receber. Ela ainda
chorava muito, tinha 34 anos e era muito bem casada. Ainda
estava emocionada. Ela aceitou ser entrevistada pela revolta
que estava sentindo e me dizia „eu faço tudo o que for
preciso para quem for tomar providência a respeito do
trânsito de São Paulo”.
Cerca de 70% das mortes pesquisadas por Adriana
envolvia motoqueiros: “Eles morrem aos montes”.
Pessoalmente, Adriana diz que nunca teve medo da
morte: “Eu fui determinada culturalmente, pela
religiosidade da minha mãe, a achar que a morte é uma
passagem. Houve uma época em que eu tive uma sadia
angústia e hoje eu resolvi achar que a morte deve ser uma
coisa muito legal”.
Adriana viu algumas pessoas muito próximas morrerem,
inclusive a própria mãe: “Ela morreu tão bem que eu aprendi
com ela. A última herança que ela me deixou foi me ensinar a
morrer”.
~ 101 ~
Silêncio na mesa, as flores continuam a desabrochar.
Coca-Cola, Guaraná Antártica e copos. A cada pausa na
entrevista, Adriana engole um pouco do líquido doce e
gasoso. Além de Adriana, estão presentes um de seus três
filhos e sua nora.
Histórias de dor não faltam. Apesar de negar que as
entrevistas afetaram sua sensibilidade, é difícil ficar
indiferente ao sofrimento das pessoas. Outro caso que
impressionou Adriana foi o de um acidente com um carro e
cinco adolescentes. “O rapaz que dirigia estava brincando no
trânsito e eles bateram em um paredão de concreto embaixo
da avenida Angélica, cruzamento com a Paulista, no começo
da Rebouças”.
O rapaz estava na direção e duas meninas estavam na
frente, uma sentada no colo da outra, e mais três pessoas no
banco de trás. Das duas meninas que estavam no banco da
frente, uma morreu e a outra ficou paralisada do seio para
baixo. “Eu não consegui falar com a mãe da menina que
morreu, mas a mãe da menina que ficou paralisada me
recebeu”.
A moça acidentada tinha 17 anos e ficou paralisada para
o resto da vida. Usa fralda e sonda para urinar. “A mãe ganha
R$ 400,00 como copeira de um escritório de advocacia. Além
de cuidar dessa filha, ela faz salgadinho para vender”. Com o
responsável pelo acidente não aconteceu nada. As famílias
dos adolescentes eram do mesmo bairro, mas tornaram-se
inimigas e não se falam mais. “Eu tentei entrevistá-las, mas
não consegui”.
Com a discussão de tantos assuntos complexos, como o
sentimento de perda e tristeza, perguntei à psicanalista
Adriana se a morte pode traumatizar a ponto de não haver
recuperação psicológica. Ela é direta e sucinta. “O prejuízo
psicológico nas situações de morte não é o que você está
imaginando, porque a morte é uma coisa que a gente não
pode esconder. Ela é real e dói muito, mas não traumatiza. O
que faz uma pessoa ficar psiquicamente desestruturada,
~ 102 ~
traumatizada ou enlouquecer é justamente aquilo que ela não
consegue dizer ou simbolizar. Morte, por incrível que pareça,
não é uma coisa traumática no sentido técnico da palavra
trauma. É real e está na consciência. Quem perdeu um
parente da maneira mais trágica possível sabe que perdeu um
parente da maneira mais trágica possível”.
As reações diferem de família para família. O material
denso da pesquisa é analisado pela especialista, que explica a
morte em ângulos psíquicos. Adriana tenta lembrar de casos
diferentes para ilustrar como um óbito pode causar sequelas
ou apenas fazer parte da natureza.
Em uma das tentativas de entrevista para a pesquisa
solicitada pelo IPEA, a psicanalista se deparou com uma mãe
que teve seu bebê de um ano atropelado. “Eu liguei para ela
no meio de agosto de 2002 quando eu comecei a fazer a
pesquisa. O bebê tinha morrido no ano anterior”.
Com delicadeza, Adriana conversou por telefone com a
mãe do bebê atropelado. Ao perguntar para a moça como ela
estava, Adriana recebeu uma resposta com voz alegre, e tenta
reproduzir o momento. “Ai, eu tô tudo bem, agora eu já
tenho outro nenê”.
Adriana resolveu não entrevistar a mãe do bebê porque o
perfil da moça não condizia com a direção da pesquisa, que
era a de avaliar o prejuízo econômico das mortes causadas
pelo trânsito. “Ela era extremamente pobre, morava em uma
favela e devia estar habituada a ver crianças morrerem. No
extrato de baixa renda os bebês morrem com muita
frequência e ela encarava isso tranquilamente. Eu vi que ela
encarava a morte do bebê do mesmo jeito que ela encarava a
vida dela: descartável. Não por maldade, muito pelo
contrário. Era uma moça de 20 e poucos anos, tinha a voz
doce pelo telefone, mas o contato que ela tinha com a morte
era esse”.
Na realidade, as pessoas atribuem sentidos à morte. “O
que a gente sabe dela são os sentidos que a cultura nos
~ 103 ~
fornece. Cada pessoa atribui o seu sentido particular à morte
de alguém próximo. Um fica revoltado, outro fica triste,
outros acreditam na vida depois da morte. Isso tudo são
recursos de viver. Com relação à morte, nós não temos nada
para dizer, nós temos o que dizer a respeito da vida”,
completa Adriana.
Toda cultura sente a morte de uma maneira diferente. Os
ritos são as únicas maneiras que o homem tem de conceber o
fim da vida, porque o real da morte é inacessível, assim como
são inacessíveis o nascimento e o sexo. “Você não tem a
experiência do seu nascimento e da sua morte. A morte real
de alguém conhecido você também não vê, você só tem que
integrar um cadáver em sofrimento, uma perda, adaptação,
luto, depressão. Freud chamava isso de melancolia. Ninguém
pode saber o que é morrer enquanto estiver vivo. Por isso, a
cultura ritualiza o óbito. Rodeamos a morte de palavras,
linguagem e ritos. Usamos todas as maneiras de dizer o
indizível: ah foi melhor, descansou. Cada cultura dá à morte
o valor que ela dá à vida”.
Para entender a morte natural e a acidental, Adriana
explica que, no caso do doente, quem descansa é a família.
Quando morre uma pessoa que passou um longo período de
enfermidade, a família tem uma grande sensação de alívio. Se
não houver alguém para ajudar durante o luto, o sentimento
de alívio pode trazer culpa. A pessoa que ficou se sente má.
A mãe de Adriana morreu de forma clássica, na cama do
hospital, acompanhada pela família e pelos amigos. Durante
seu último dia, ela chamou as pessoas para conversar e “fez
todas as recomendações”. Como era espírita, seu grupo
religioso esteve presente para acompanhá-la nos momentos
finais. “Ela morreu com a dignidade com que ela viveu. Meu
pai morreu no desespero e na angústia em que ele viveu”.
Para Adriana, a importância da pesquisa não foi apenas a
estatística, mas a confirmação de que “a gente vê a morte do
mesmo jeito que a gente vê a vida, porque não tem morte
para ver. Nós só conhecemos a vida, entende?”.