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Scarlett Marton A MORTE COMO INSTANTE DE VIDA

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Scarlett Marton

A MORTE COMO INSTANTE DE VIDA

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Curitiba2019

Curadoria da ColeçãoFabiano Incerti

Scarlett Marton

A MORTE COMO INSTANTE DE VIDA

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© 2019, Fabiano Incerti 2019, PUCPRESS Este livro, na totalidade ou em parte, não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização expressa por escrito do Editor. As opiniões, hipóteses, conclusões ou recomendações emitidas neste material são de responsabilidade dos entrevistados.

Marton, Scarlett ZerbettoA morte como instante de vida / Scarlett Zerbetto Marton; curadoria

de Fabiano Incerti. – Curitiba: PUCPRESS, 2018.40 p. ; 21 cm (Café filosófico, v. 3)

Inclui bibliografiasISBN 978-85-54945-40-4

978-85-54945-39-8 (E-book)

1. Filosofia. 2. Morte. 3. Vida. I. Incerti, Fabiano.

18-027 CDD 20. ed. – 100

M387m2018

PUCPRESS / Editora Universitária ChampagnatRua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração - 6º andar

Campus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PR Tel. (41) 3271-1701 | [email protected]

Dados da Catalogação na PublicaçãoPontifícia Universidade Católica do Paraná

Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPRBiblioteca Central

Giovanna Carolina Massaneiro dos Santos – CRB 9/1911

Reitor Waldemiro Gremski

Vice-reitor Vidal Martins

Pró-reitor de Missão, Identidade e Extensão Ir. Rogério Renato Mateucci

Diretor do Instituto Ciência e Fé Fabiano Incerti

Gerente de Identidade Institucional José André de Azevedo

Curadoria da Coleção Fabiano Incerti

Revisão Técnica Douglas Borges Candido Fabiano Incerti José André de Azevedo

PUCPRESSCoordenaçãoMichele Marcos de OliveiraEditorMarcelo ManducaEditor de arte Rafael Matta CarnascialiPreparação de textoMarcelo ManducaRevisãoCamila Fernandes de SalvoProjeto gráfico Ana Paula Vicentin FerrariniRafael Matta CarnascialiCapa Ana Paula Vicentin FerrariniDiagramaçãoPUCPRESSImagens de capa e miolo Montagens à partir das imagens Fotolia 214632708Fotolia 236434648

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PREFÁCIO

MEMENTO MORIA vida, a morte, o sentido

Qualquer pessoa que pretenda pensar so-bre o sentido da vida precisa enfrentar a questão da finitude humana. Isso porque, ao contrário do que parece, pensar a respeito da morte não con-duz simplesmente ao desespero, mas à verdade mais essencial de nossa experiência no mundo: que estamos submetidos à temporalidade, ou seja, que somos finitos e, sobretudo, que diante da possibilidade do fim, resta viver com intensi-dade a vida que nos cabe, aqui e agora. A morte, assim, empurra para a vida, para as coisas que fazem sentido, para aquilo que enriquece e qua-lifica o tempo que nós temos, para as experiên-cias duradouras e profundas que marcam cada instante. O contrário é uma vida pobre que se acredita inacabável, marcada pela procrastinação e pela irresponsabilidade. Quem não pensa sobre a morte, ou passa o tempo com medo dela ou, por esquecê-la, vive apaziguado na insensatez e na falta de rumo, sobrevoando superficialmente coisas e pessoas. Não se envolve, não se entrega, não se perde, não se acha – não vive.

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Prefácio4

Há quem não viva porque está sempre com medo da morte; e há quem não viva porque não pensa sobre ela e, assim, não se dá conta de que precisa contar os seus dias para fazer com que seus dias contem para si mesmo, conforme a sentença de Hans Jonas. Esses são dois exem-plos de vidas pobres de mundo, ou seja, de vidas sem sentido. E só o pensamento da morte pode-ria, como num susto, acordar alguém que passa seus dias assim, entre temeroso ou alienado.

A morte, foi afirmado desde os antigos, é a musa da Filosofia. Isso porque a filosofia é a uma reflexão sobre a vida, sobre a melhor forma de vivê-la, sobre o sentido de cada um de nossos atos. E, assim, a Filosofia ensina que estar vivo é correr para a morte, porque a morte não é um acontecimento final, mas uma característica pró-pria de tudo aquilo que vive. Em resumo, porque a morte vive conosco e porque corremos sobre ela como no dorso de um tigre, em direção ao fim que está sempre mais próximo, então ela nos inspira a olhar melhor a paisagem, prestar atenção nos caminhos, refletir melhor sobre as nossas escolhas. Quem pensa mais sobre a mor-te, aprende logo a pedir mais desculpas, a fazer as pazes, a buscar a simplicidade, a não deixar nenhum abraço para depois. Quem pensa sobre a proximidade da morte, dedica-se ao bem co-mum, aos afetos verdadeiros, às experiências de interioridade que beneficiam e celebram o prin-cipal. Quem pensa sobre a morte, foge do inútil, do inadequado, do indevido e do vão, para expe-rimentar o que tem sentido pleno. Eis o que pre-tende o lema latino: memento mori, lembre-se que você é mortal.

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Esse foi o motivo pelo qual o Instituto Ciên-cia e Fé realizou o Café Filosófico com o tema do sentido da vida e convidou a professora Scarlett Marton para falar sobre a morte. Sua conferên-cia, além de provocante e teoricamente densa, emocionou a todos/as os/as presentes. O texto, por isso, vem publicado nesse livro, como forma de oferenda: trata-se de partilhar com toda a co-munidade acadêmica as reflexões de uma das mais importantes filósofas brasileiras, alguém que vem pesquisando e vivendo de perto mui-tos dos dilemas tratados no presente texto. Em Scarlett encontramos o que pretendia Nietzsche, que a vida e a obra devem estar interconectadas, em busca de um único sentido, que é a potencia-lização e o crescimento dos instintos vitais. Cer-tamente é por isso que em seus textos e em sua vida, Scarlett vem inspirando tanta gente.

O texto que o leitor tem em mãos guarda a profundidade de um ensaio e a leveza de uma conferência. Scarlett, com o que lhe cabe ofere-cer, trafega entre os grandes nomes da Literatura e da Filosofia, para resgatar de cada um deles as suas inspirações. O resultado é um texto enxuto e perspicaz, que pode ser lido tanto a partir do que a palavra diz, quanto daquilo que ela escon-de – e que está nas entrelinhas, no espaço em branco que preenche a folha tanto quanto a letra que ela explicita. Tal qual o silêncio é o terreno do som, aqui também o mistério é o solo que faz brotar a palavra e a ideia que ela comunica. Esta-mos próximos daquilo que Schopenhauer viu no artista: Scarlett parece ter ido no âmago das coi-sas e volta, com seu texto ainda incendiado, para comunicar suas descobertas e acender outras fogueiras. Viu um Sócrates rodeado de amigos

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Prefácio6

e morrendo com serenidade; viu o homem como adubo que encharca sempre de novo os terre-nos, dando-lhe húmus e fertilidade; foi aos Evan-gelhos e trouxe o conforto que lhe é próprio; foi a Toledo e apresentou-nos o Conde de Orgaz, de El Greco, em pleno enigma; viu as formas moder-nas da morte em Descartes, Bacon e Pascal; foi a Nietzsche, a Freud e viu, como poucos, a bana-lização da morte, seu escândalo e as tentativas de prolongamento da vida implementadas no mundo contemporâneo – algo que a autora cha-ma, adequadamente, de “idolatria da vida” e que nós teríamos de acrescentar, de uma vida sem sentido, que não aprendeu a morrer porque não aprendeu a viver em plenitude.

Ao oferecer ao leitor o texto impresso, o Instituto Ciência e Fé sobe mais um degrau em direção à compreensão do valor da interiori-dade e à reflexão sobre o sentido da vida, num momento em que isso aparece como um dos maiores dilemas do mundo contemporâneo, seja porque a vida parece estar valendo pouco (os números de homicídios e suicídios é alarmante, principalmente entre jovens), seja porque, na busca por um sentido, as pessoas parecem cada vez mais confusas em relação ao caminho a se-guir. Para evitar esses males, não há outra opção senão prosseguir despertando mentes e cora-ções para o grande mistério que nos cerca e que se faz, sempre novo, fonte de vida plena.

Jelson OliveiraProfessor do Programa de Pós-Graduação

em Filosofia da PUCPRMembro do Observatório de Educação para

a Interioridade da PUCPR

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“Não se pode olhar de frente nem o sol nem a morte”1, afirma La Rochefoucauld no século XVII. Olhar o sol ofusca a vista; encarar a morte perturba a vida. Assim o pensador francês, na au-rora da modernidade, acredita que vida e morte se acham completamente separadas.

Mas os antigos pensavam de outro modo. Tanto é que entendiam a Filosofia como uma longa meditação sobre a morte. Preocupar-se em morrer, julgava Platão na Grécia do século IV A.C., era uma boa via para filosofar. Em seu diá-logo Fédon, ele retrata uma cena precisa da vida de Sócrates. Tendo sido condenado à morte por corromper a juventude ateniense, Sócrates está na prisão à espera do momento em que terá de beber a cicuta. Rodeado de amigos, com eles de-bate sobre uma questão que se faz presente e se mostra inadiável: a morte. Surpreendendo por sua serenidade e perspicácia, desenvolve uma belíssima argumentação. Sustenta que o corpo físico é regido pelo princípio de divisão; dividi-do em células, tecidos e órgãos, o ser humano

1 LA ROCHEFOUCAULD. Maximes et Réflexions diverses. Paris: Flammarion, 1977, máxima 26, p. 47.

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experimenta várias premências, como a fome, a sede e o sono. Portanto, é próprio da sua es-sência ser múltiplo e ter múltiplas necessidades e desejos. Quem se submete à sua lei, curva-se às contingências do mundo sensível. Mas o espí-rito é regido pelo princípio da unidade; ao ado-tar-se tal princípio, será possível construir a vida de outra maneira. Quem se submete ao corpo estará ao léu, levado de um lado para outro pe-las contingências; quem obedece ao espírito, ao contrário, trará para a sua existência o que é ver-dadeiro e necessário. Escolher a Filosofia é con-verter-se ao mundo inteligível, não para desertar o sensível, mas para habitá-lo segundo o que é verdadeiro e necessário. Com seus argumentos, Sócrates não procura mostrar que estará vivo amanhã, depois de executada a sentença de morte; o que ele quer é fazer ver que hoje já é imortal, porque, seguindo o princípio da unidade, vive em consonância com o espírito. Eis um pri-meiro exemplo de que as noções de vida e morte podem ser pensadas como intimamente ligadas.

À diferença do que ocorrerá na modernida-de, na antiguidade greco-romana, de várias for-mas, a morte aparece imbricada à vida. O filósofo francês Michel Serres bem mostra que, no paga-nismo, se está diante de outra maneira de pensar, agir e sentir2. Ele faz ver que, etimologicamente, o termo “pagão” (em latim, paganus, que signifi-ca camponês) provém do vocábulo latino pagus, que deu origem também às palavras país e pai-sagem. Pagus queria dizer campo de lavoura; e tanto podia designar um campo de trigo como

2 Cf. SERRES, Michel. Petites chroniques du dimanche soir. Paris: Le Pommier, 2006.

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um pedaço de vinhedo ou uma pequena horta. Cada pagus, cada campo de lavoura, possuía algo sagrado: o espírito que o governava; e este era o ancestral que nele havia sido enterrado. Isso ga-rantia que determinado pagus fosse propriedade de determinada família, mas também assegura-va que esse pagus constituísse o lugar dos ritos que essa família realizava. Enterrar os corpos dos seres amados tornava a terra sagrada; em con-trapartida, devolver à terra os corpos dos ancen-trais fazia com que eles mesmos se tornassem sagrados, pois se acreditava que o homem era nascido da terra. Mais uma vez recorrendo à eti-mologia, vale lembrar que o vocábulo “homem”, termo que deriva do latim homo, vem de humus, que significa a parte viva do solo, da terra. Assim a palavra que indica o ser humano como ser ter-reno, por oposição aos deuses, seres celestiais, provém do termo que designava “terra”. Nessa época, era costume construir as casas ao lado dos túmulos; era habitual entender que a vida e a morte estavam em estreita conexão.

É bem verdade que se trata, aqui, de falar da morte no Ocidente. Mas, se observarmos o que se passa em alguns países do outro lado do mundo, notaremos que até hoje se dá a ver uma maneira de conceber a relação entre morte e vida completamente diferente da nossa. Em re-giões da Indonésia, as casas exibem na entrada altares onde se veneram os ancestrais da família; em Varanasi na Índia, os corpos dos mortos são queimados em piras à beira do Rio Ganges, onde mulheres lavam seus saris e homens cuidam de seus rebanhos.

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Foi o cristianismo que introduziu entre nós a noção de sacralidade da vida; foi então que passamos a concebê-la como um dom de Deus a ser preservado. Pondo-se no lugar da Filoso-fia, a religião aparece agora como aquilo que traz reconforto e consolo. Os Evangelhos contam que, numa manhã de domingo, as mulheres se dirigiram ao sepúlcro levando bálsamos e atadu-ras, com o intuito de mumificar o cadáver que lá jazia. Mas, ao chegarem, já não encontraram o corpo morto. Jesus havia ressuscitado; era o do-mingo de Páscoa. Ao promover o sepulcro vazio, o cristianismo faz da ressurreição de Cristo uma de suas celebrações mais importantes; ao exal-tar a tumba sem cadáver, ele vem celebrar a vida. E assim transforma radicalmente a maneira de se perceber a morte. Tanto é que prega que se dei-xe os mortos enterrar os mortos, que se esqueça a morte e se viva a vida. Pois, o que se chama de morte nada mais é do que uma passagem para se alcançar a verdadeira vida.

Durante o longo período da Idade Média, algumas práticas pagãs ainda se mantêm, en-quanto outras desaparecem. Por algum tempo, os santos eremitas continuam a ponderar sobre a morte, cultivando uma espécie de ars morien-di. Nessa direção, são notáveis as representações iconográficas de São Jerônimo. O tradutor da Bíblia para o latim, que no século IV se retirou para o deserto, é visto, cercado de livros, a me-ditar numa gruta em face de uma caveira, ten-do por única companhia a de um leão. Nas telas renascentistas, a imagem da caveira reaparece associada à ideia de vanitas, de modo a lembrar que existe algo além da existência terrena com

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seus gozos e deleites. Mas, se na Idade Média al-gumas práticas pagãs, como a meditação sobre a morte, se conservam, outras se dissipam. As-sim é que desaparece por completo o direito de morrer, que a antiguidade greco-romana prezava e reconhecia, e extingue-se a prática dos antigos, que permitia aos doentes desesperançados pôr fim à própria vida, contando por vezes com o auxílio de outrem.

Contudo, é somente nos tempos modernos que se passa a pensar vida e morte como nitida-mente opostas. E isto não causa surpresa, porque então os dualismos se instalam de modo irreme-diável. Tomemos por exemplo o famoso quadro de El Greco O enterro do Conde de Orgaz, que se encontra em Toledo, na Espanha. Como sabe-mos, o pintor originário da Grécia, depois de uma estada em Veneza, em que foi discípulo de Tin-toretto, instala-se na corte espanhola no final do século XVI. É no início da modernidade que pinta esse quadro. A tela ilustra bem os dualismos que passarão a orientar o nosso pensamento e a nos-sa conduta. Dividida ao meio, ela retrata na par-te de baixo o corpo morto do Conde de Orgaz, com Santo Agostinho à direita e Santo Estêvão à esquerda, ao lado de vários dignitários nobres e religiosos. E na parte de cima, representa à direi-ta São João Batista e à esquerda a Virgem Maria, intercedendo pelo morto junto a Jesus Cristo. O único ponto de relação entre as duas partes da tela é a alma do Conde de Orgaz, que um anjo está a levar da Terra para o céu. O quadro de El Greco exemplifica os dualismos instituídos pela modernidade. Na parte de baixo, nós nos deparamos com o mundo terreno, as grandezas

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EL GRECO. O enterro do Conde Orgaz. 1588. Óleo sobre tela, 480 cm x 360 cm. Coleção Particular.

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humanas, o corpo; na de cima, encontramos o mundo celeste, a glória divina, a alma. Vida e morte se acham totalmente separadas, tanto é que, curiosamente, nessa tela que tem por título precisamente O Enterro do Conde de Orgaz, a morte nem sequer se acha representada, pois o corpo morto nem mesmo traz a palidez cadavé-rica que deveria nele estar estampada. No limite, podemos dizer que no quadro só está presente a vida; nele, a morte está ausente. Essa ausência vem tornar ainda mais flagrante a ideia de que a dicotomia entre vida e morte se torna central na Idade Moderna.

Com os tempos modernos, aprofundam-se velhos dualismos e novos se instauram. Lembre-mos duas frases. A primeira é de René Descar-tes, que, em 1632, escrevia no Discurso do Mé-todo: “É possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida [...], e assim nos tornar senhores e possuidores da natureza”3. Na mes-ma época, Francis Bacon, autor do livro intitula-do Novum Organum, afirmava: “saber é poder”. Essas duas frases são emblemáticas da moder-nidade filosófica. “Senhores e possuidores da natureza”, nós nos afastamos do mundo e dele nos diferenciamos. Entendendo que “saber é poder”, ao mundo nos opomos e sobre ele que-remos exercer nosso controle e domínio. Nós nos convertemos em sujeito e, pelo mesmo mo-vimento, convertemos tudo o mais em objeto. Apreendemos o que existe como aquilo sobre o qual podemos ter ideias; captamos o próprio

3 DESCARTES, René. Discurso do Método, Sexta Parte. In: Obra Escolhida. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Difel, 1962, p. 61.

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mundo como se ele apenas existisse na medida em que pudéssemos representá-lo. Pondo-nos dessa maneira em relação ao mundo, trazemos a nós mesmos para a cena, ou melhor, nos colo-camos como a cena em que doravante o mundo terá de se apresentar. Assim começa o reino do humanismo; como diria Heidegger, o homem se torna o centro de referência para o mundo e a região mesma de onde procede toda e qual-quer medida4. E, ao lado das separações que se estabelecem entre homem e mundo, cultura e natureza, sujeito e objeto, outras se instalam e se consolidam no interior do próprio homem: alma e corpo, espírito e instintos, consciência e impulsos, razão e paixões.

Vale lembrar uma imagem recorrente presente na modernidade. Um homem dirige uma carruagem puxada por vários cavalos que querem levá-lo em diferentes direções; mas ao homem cabe dirigi-los, pois é ele quem tem as rédeas nas mãos. Essa imagem vem ilustar a ideia de que, arrastado pelas paixões, no sen-tido amplo do termo, o ser humano é lançado de um lado para outro; mas, ao cultivar o discer-nimento e fortalecer a força de vontade, pode-rá impor-se a disciplina necessária para atingir seus objetivos.

É bem verdade que, no século XVII, ca-minhando contra a corrente, Pascal introduz a ideia de divertissement. Essa ideia, que, aliás, não pode ser entendida como hoje entendemos o divertimento, encontra-se no livro intitulado

4 Cf. HEIDEGGER. O tempo da imagem do mundo. In: Caminhos de Flo-resta. Trad. Irene Borges-Duarte et allii. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 95-120.

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Pensamentos, que reúne fragmentos deixados pelo pensador francês. Nele, aprendemos que o ser humano sempre busca subterfúgios para não pensar na sua humana condição, lança mão de quaisquer artifícios para se esquivar da única certeza de que pode dispor: a de que um dia vai morrer. É para não ter de enfrentar a morte que procura toda sorte de ocupação, sobrecarregan-do-se com negócios e encargos, com a fortuna e a honra. É o que inventa para ser feliz; assim passa “o dia todo a correr atrás de uma lebre que ninguém desejaria comprar”. Mas, conclui Pascal, “essa lebre não nos livra da visão da morte e das misérias, mas a caça — que nos desvia dela —dela nos livra”5. Portanto, o que mais importa ao ser humano não é ser bem-sucedido em suas in-cumbências, mas nelas estar imerso para esque-cer que está fadado a morrer.

Nesse contexto de divisões, dualismos e di-cotomias dos tempos modernos, o homem oci-dental aos poucos expulsou a morte de sua vida cotidiana. Em seu livro Ensaios sobre a história da morte no Ocidente, o historiador Philippe Ariès examina com minúcia a passagem, lenta e progressiva, da morte familiar na Idade Média para a morte reprimida e proibida nos nossos dias6. Defende a posição de que, ao considerar a morte um acontecimento excepcional, o Ociden-te caiu na tentação de dela fugir.

Chegamos assim aos nossos tempos. Cabe agora a pergunta: atualmente, de que maneira

5 PASCAL. Pensamentos. Trad. Sérgio Melliet. São Paulo: Abril Cultural, 2ª ed., 1979, fragmento 139, p.72.

6 Cf. ARIÈS, Philippe. Essais sur l’histoire de la mort en Occident du Moyen Âge à nos jours. Paris: Seuil, 1975.

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vivemos a experiência da morte? Hoje, de que modo pensamos a relação entre vida e morte? Arrisco a ideia de que, no mundo contemporâ-neo, nós nos encontramos numa situação pa-radoxal7. De um lado, testemunhamos a bana-lização da morte. Em nossa vida cotidiana, dela ouvimos falar e nela falamos o tempo todo. A morte aparece como fenômeno biológico, ao lado das outras fases da vida: o nascimento, a puberdade, a maturidade, a velhice. Ela surge en-quanto fenômeno social, quando nos referimos a taxas de natalidade e de mortalidade. Apresenta--se como fenômeno determinante para a demo-grafia, na medida em que discutimos o decrésci-mo ou o aumento da população em diferentes regiões do planeta. Para a medicina, a morte se mostra como fenômeno letal, que tem de ser previsto e explicado; para o direito, ela se enqua-dra como fenômeno natural, que deve produzir documentos como certidões de óbito.

Então, por que a morte é sempre vista como uma espécie de escândalo? Por que ela enseja ao mesmo tempo horror e curiosidade? É certo que a morte, esse acontecimento banal, aparece como um fato dentre outros; um fato que o jornalista relata, o médico legista cons-tata, o biólogo analisa, o policial investiga. Mas, de outro lado, é um fato que não tem igual, um fato ímpar, desmedido e incomensurável. Não podemos deixar de constatar que a morte é um mistério; não temos como nos proteger de seu caráter vertiginoso e desconcertante. É por

7 Cf. MARTON, Scarlett. Uma questão de vida ou morte: a filosofia de Nietzsche e o problema da eutanásia. In: Hypnos 9 (2002), p.120-134.

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isso, aliás, que tanto falamos nela e dela tanto ouvimos falar.

Os homens falam mais do que menos co-nhecem. E assim como falam da morte, também falam do amor. Não é por acaso que a sempre nova banalidade da morte, de algum modo, se assemelha à antiga novidade do amor. Eros, o deus grego, quando atinge o coração dos seres humanos, neles desperta um sentimento úni-co. Representado como uma criança a brincar com seu arco e flecha, ele vem lembrar que o amor é sempre inédito para aqueles que o vi-vem. De igual modo, a morte. Toda vez que ela se faz presente é como se fosse a primeira. Por mais que essa experiência se repita em nossas vidas, com ela não nos acostumamos. Daí, a mis-tura de familiaridade e estranheza que a morte provoca em nós.

Contudo, hoje a morte não é vista como um ganho, mas como uma perda. Nos tempos modernos, ela se tornou um tema a ser evitado. Inexorável, representou para o homem, que se queria senhor e possuidor da natureza, o maior desafio. Obrigou-o a deparar-se com a própria fragilidade; coagiu-o a defrontar-se com a fini-tude. Nos nossos tempos, a situação todavia se agrava. Na sociedade em que vivemos, o ser hu-mano que está à morte é tido por um insucesso. Nesta sociedade que preconiza a produtividade e o lucro, que prega a eficácia a qualquer pre-ço, que promove o espírito de competição e a lógica da exclusão, o moribundo é visto como um malogro.

Imersos nessa atmosfera cultural, os pro-fissionais da saúde julgam que se deve evitar

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a morte a todo custo. Estranha à vida, ao ocor-rer, ela evidencia um fracasso. Nesse contexto, compreende-se que os médicos se sintam ten-tados a abandonar os pacientes terminais, uma vez que a morte foge de seu âmbito de atuação. Compreende-se igualmente que procurem mi-nimizá-la, disfarçando-a graças à tecnologia de ponta. Compreende-se, por fim, que recorram a tratamentos fúteis, considerando o paciente uma oportunidade terapêutica, um desafio clíni-co ou mesmo um caso rentável.

Imbuídos da ideia de que a medicina tem por objetivo precípuo o de sanar enfermidades, em geral eles se deixam nortear bem mais pelo diagnóstico da doença que por seu prognóstico. Ocorre, também, que lancem mão de tratamen-tos que, situados por vezes na fronteira entre o experimental e o já consolidado, não chegam a contribuir para melhorar as condições encontra-das. Destarte, são levados a cuidar de pacientes terminais guiados bem mais pela tecnologia de ponta do que pelas preferências que estes pos-sam manifestar. Não é raro que, nas suas deci-sões, têm em conta a situação sócio-econômica dos que estão sob seus cuidados, acentuando com isso a discrepância entre os rentáveis e os não rentáveis. Mas não é raro tampouco que se-jam pressionados por pacientes, que só se sen-tem tratados quando submetidos aos expedien-tes modernos mais invasivos que se limitam a prolongar o processo da morte.

E assim a idolatria da vida acaba por revelar sua outra face; ela é uma verdadeira “cultura da morte”. Nas sociedades ditas mais avançadas, im-pregnadas pela ideia de eficiência, a “cultura da

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morte” configura-se pelo confinamento das pessoas idosas e debilitadas. Excluídas do convívio familiar e social, elas acabam com fre-quência isoladas, relegadas aos cuidados de pro-fissionais treinados para lidarem com vidas des-providas de valor.

É recente na história da Medicina a ideia de que é preciso levar a vida biológica até o limite cus-te o que custar. Tratando a fase terminal como uma luta a qualquer preço contra a morte, tende-se hoje a condenar inúmeros enfermos a um sofrimen-to sem perspectiva. Recorrendo a procedimentos desproporcionais aos resultados esperados, acaba--se por confiná-los em centros de terapia intensiva. Optando por prolongar indefinidamente o proces-so de morte por que estão passando, criam-se si-tuações desumanas. Pensando segundo categorias abstratas, tais como a saúde e a normalidade, e operando segundo uma lógica dicotômica, venera--se a vida. Voltando-se para o sucesso da cura, o avanço médico-tecnológico não tem como contri-buir para uma reflexão sobre a morte.

Mas por que não perseguir a ideia de que, numa outra sociedade, todo ser humano teria asse-gurado o seu direito a uma morte digna porque veria antes respeitado o seu direito a uma vida digna. En-tão, o homem não mais desempenharia o papel de possuidor da natureza, mas abandonaria a posição privilegiada que durante séculos acreditou ocupar. Ele não mais se imporia como um sujeito em face da realidade, mas se converteria em parte do mundo. Aceitando sua humana condição, com tudo o que nela há de frágil e vulnerável, ele não mais pensaria a vida e a morte como termos excludentes.

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Já no século XIX, pensadores como Freud e Nietzsche apontam nessa direção. Nietzsche advoga a tese de que o corpo constitui uma multiplicidade. Consistindo numa pluralidade de adversários, tanto no que diz respeito às células quanto aos tecidos ou órgãos, ele é animado por combate permanente. Até o número dos seres vivos microscópicos que o compõe muda sem cessar, dado o desaparecimento e a produção de novas células. No limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a perecer. Justamente por ser a luta o seu traço funda-mental, “a vida vive sempre às expensas de outra vida”. A cada momento, “nossa vida, como toda vida, é ao mesmo tempo uma morte perpétua”8.

Freud, por sua vez, defende a ideia de que nos é impossível representarmos nossa própria morte. Nela não acreditamos, pois estamos con-vencidos no nosso inconsciente de que somos imortais9. Tudo se passa como se a morte acon-tecesse por acaso; insistimos em falar em aci-dente, doença, infecção e até velhice. Evitando enfrentar que a nossa morte tem caráter neces-sário, corremos o risco de empobrecer a nossa vida; para bem viver, é preciso aceitar que mais dia menos dia vamos morrer.

É bem verdade, como sustenta o filó-sofo francês Jankelevitch em seu estudo de

8 NIETZSCHE. Respectivamente, Fragmento Póstumo 2 [205] do ou-tono de 1885/ outono 1886, KSA 12.167, e Fragmento Póstumo 37 [4] de junho/ julho de 1885, KSA 12.576. Utilizamos a edição das obras de Nietzsche (Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967/ 1978), organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. O primeiro algarismo que se segue à sigla KSA indica o volume e o segundo, a página. As traduções dos textos de Nietzsche são de nossa responsabilidade.

9 Cf. FREUD. Essais de psychanalyse. Trad. Jean Laplanche et allii. Paris: Payot, 1995.

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envergadura intitulado A morte, que o instante mortal é um acontecimento incomparável que não permite qualquer conceitualização10. A mor-te, quando advém, é literalmente extra ordinem, uma ordem extraordinária. Uma lâmina de vidro translúcida separa o além do aquém. Basta um coágulo de sangue numa artéria, um espasmo do coração, para que o além se torne o aquém.

No curso de nossas vidas, passamos por mudanças e transformações; amadurecemos e envelhecemos. Mas essas são alterações que ocorrem num continuum. A morte, ao contrário, é uma alteração súbita e descontínua. Ponto de ruptura, ela interrompe a continuidade; faz ces-sar a própria possibilidade de mudança ou trans-formação. Como dizia Epicuro, a morte não se acha na temporalidade da vida11. Ela não nos diz respeito, porque, quando aí estamos, ela não se apresenta e, quando se faz presente, nós já não estamos mais. No limite, a morte não concerne nem aos vivos nem aos mortos.

Isso não significa, porém, que se deva ado-tar o referencial moderno, que considerou vida e morte termos excludentes. É bem verdade que não podemos falar da morte enquanto instante mortal, porque a vida não nos fala do nada — ela só nos fala da vida. Mas entendo que podemos pensar na morte como instante de vida. E isso de três perspectivas distintas: a partir de um exame de diferentes culturas, a partir de consi-derações acerca da história, a partir da pergunta pelo sentido da vida.

10 Cf. JANKELEVITCH, Vladimir. La Mort. Paris: Flammarion, 1977.11 Cf. EPICURO. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. Jean-François Balaudé.

Paris: Librairie générale française, 1999.

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Ao examinar diferentes culturas, nota-mos que o homem desde sempre lutou contra a morte. Impulsionado pelo desejo de tornar-se imortal, quis deixar vestígios de sua existência na Terra. Mas, à medida que descobria que a morte era inevitável, ele se tornava mais humano. Tanto é que, no Egito antigo, desenvolveu sofisticadas técnicas de construção de túmulos e conserva-ção de cádaveres; na Roma antiga, aprimorou a arte da escultura, para perpetuar o semblante dos seus imperadores; em vários momentos e lugares, esmerou-se em erigir monumentos fu-nerários. Aliás, é justamente através do caráter singular de suas sepulturas e ritos fúnebres que as culturas se diferenciam. Desse ponto de vista, a morte é ao mesmo tempo nosso destino como seres finitos e nossa origem como seres huma-nos. Ela é o nosso fim e o nosso começo.

Ao considerar o tempo histórico, percebe-mos que a existência das sociedades como a dos indivíduos encontra os seus limites entre o nasci-mento e a morte. Se a memória individual apare-ce como o reverso do esquecimento, a história, essa memória milenar e coletiva, se desenrola sobre um fundo de nada. Do mesmo modo que os continentes parecem flutuar no oceano como se fossem ilhas, a nossa vida enquanto a de seres sociais está cercada pela eternidade primordial e pela eternidade terminal.

Por fim, ao refletir sobre a morte, nós nos defrontamos com a pergunta pelo sentido da vida. Pois, pensar que vamos morrer incita a meditar sobre a contingência do nosso ser; pen-sar que vamos deixar de existir leva a ponderar sobre o fato de que nem sempre existimos

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e poderíamos não ter existido. Não é por acaso que o escritor romeno Cioran atribuía às enfermidades uma “missão filosófica”12; no seu entender, elas dão ao homem plena consciência de sua existência, existência essa que não teria sentido algum se a morte não se enlaçasse perpetuamente à vida. A mor-te, esse fato bruto, esse “não sei o quê”, dei-xa entrever a passagem do ser ao nada. Por isso mesmo, ela vem pôr em causa o sentido da vida. De modo lento ou abrupto, com vio-lência ou suavidade, ela propõe ao homem, num instante, o desafio de pensar a sua própria condição.

12 Cf. CIORAN. Précis de décomposition. Paris: Gallimard, 1949.

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Plateia: Se existe esse momento em que vamos morrer e se não sabemos quando, pois vivemos apenas o presente, então não perguntamos quando vamos morrer porque seria sempre per-guntar sobre o futuro. E se fosse no momento presente, como gostaria de ter vivido? Na nossa cultura a maioria tende a responder de um modo um tanto egoísta, e se lhe fosse dado um dia a mais e se pudesse fazer algo para si, não pensaria em fazer um retorno a algo que é coletivo. É mui-to interessante mergulhar no tempo presente, no tempo do indivíduo, no tempo do desejo que nos é vendido. Como nos fazermos contemporâneos ao mesmo tempo em que eliminamos o passado e o futuro e olhamos só para o presente?

S.M.: Você tocou num ponto muito importante que é a questão dos valores morais. Queremos ser imortais nesta vida, a outra não se coloca para nós; não queremos a vida eterna, queremos esta vida eterna. A partir do momento em que a morte é reprimida, proibida e banida da nossa reflexão, com ela também é banida a perspectiva do futuro. E se esta for banida, então, deixamos

ENTREVISTA

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de ter qualquer preocupação com valores mo-rais. A partir da modernidade, o foco passa a ser a vida desta pessoa e não de qualquer outra; nessa medida, a questão moral é relegada ao segundo plano e a questão social nem sequer é colocada. Mas quando você diz que é preciso voltar-se para o coletivo, para a comunidade, o individualismo já perdeu o seu lugar.

Plateia: Em geral, na atualidade, se coloca a pro-blemática da morte desde sua banalidade. Nesse sentido, me parece, pelo menos é a imagem que eu tenho, que a ciência tem certa responsabilida-de sobre esse tipo de perspectiva. No momento em que a ciência, de uma certa maneira, des-trona os nossos mitos, ela acaba com qualquer possibilidade do imaginário da morte, ou seja, a morte se torna “real”.

S.M.: Também podemos retomar o fio condutor da modernidade; o privilégio da razão vai desem-bocar na razão instrumental e, por conseguinte, em toda tecnicização que hoje presenciamos. Portanto, a pergunta pelo sentido ou pelo traba-lho em relação à simbólica não tem mais lugar porque estamos no reino da eficiência. Se pen-sarmos na nossa própria sociedade, que é uma sociedade que visa a produtividade e o lucro, que opera sempre com a lógica da exclusão e que no fim das contas está sob a égide da eficiência, de fato há uma diminuição do ser humano. Mas gostaria de caminhar em outra direção. Falamos do ser humano dividido na modernidade; na con-temporaneidade ele se acha esfacelado. Não é por acaso que vivenciamos um sério problema

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de identidade; perdemos de vista a História e é só se levando em conta a História que se constrói a identidade. A partir do momento em que sin-to uma compulsão exaltada pelo presente, abro mão da História e da identidade. Hoje, a identida-de equivale a diferentes logins, de sorte que pos-so inventar a identidade que eu quiser ou mesmo ter múltiplas identidades, todas elas inventadas e suprimidas como eu quiser. E assim perco a mi-nha relação com o social.

Plateia: A senhora vê alguma relação entre as práticas da autocracia do mercado funerário atual com as práticas da mumificação dos egíp-cios? No velório, há pessoas que dizem “fulano não parece que morreu, parece que está vivo”. Os egípcios mumificavam acreditando que a pes-soa não estava morta e na tanatoplastia procura--se induzir à crença de que a pessoa parece viva.

S.M.: Na verdade, os egípcios tinham técnicas refinadíssimas de mumificação. Alguns órgãos vi-tais eram colocados em jarros e mantidos imer-sos num determinado líquido para serem preser-vados. Quando visitamos as pirâmides, notamos as câmeras funerárias com suas paredes pinta-das com as iguarias que o morto apreciava, enfim com tudo aquilo que ele tinha em vida. Acredi-tava-se que o morto ressuscitaria e, de alguma maneira, recuperaria o próprio corpo vivo.

Agora, em relação a essas práticas que circulam atualmente, eu diria que são práticas introduzidas para contemplar um determinado nicho do mercado. Nós podemos falar do pró-prio mercado da morte, assim como do mercado

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de outras cerimônias e rituais que deveriam re-ger não só a nossa vida individual, mas também a nossa vida social. Se observarmos um pouco mais de perto a cerimônia do casamento, fica-mos surpresos. Os noivos preparam-se por mais de um ano para o dia da cerimônia, submeten-do-se a todo tipo de procedimento, inclusive ci-rúrgico. Vejo algo semelhante na tanatoplastia. Essa prática não visaria a garantir outra vida, mas apenas, mais uma vez, expulsar a morte do nos-so horizonte, apresentando o cadáver como não sendo o que é, como parecendo estar vivo. Ela contemplaria, além disso, os interesses do mer-cado funerário.

Plateia: Suas palavras me trouxeram uma refle-xão acerca de um aforismo da Gaia Ciência. Não lembro o número do aforismo, mas nele Nietzs-che está tratando sobre o emprego que damos ao universo e ao mundo e diz que a morte é ape-nas uma variedade da vida. A senhora poderia discorrer um pouco sobre isso?

S.M.: É o aforismo 109 da Gaia Ciência. Guarde-mo-nos de pensar que o mundo é um ser vivo. Na verdade, gostaria de retomar esse ponto fa-zendo algumas mediações. Tenho a impressão de que, para acessarmos a filosofia nietzschiana, é preciso contextualizá-la. Curiosamente, Niet-zsche é um filósofo que lia pouco os filósofos. Ele leu muito mais textos literários e trabalhos científicos da época do que escritos filosófi-cos. E, quando elabora em 1882 as quatro pri-meiras partes da Gaia Ciência (como sabemos, só irá escrever a quinta parte em 1886), está

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buscando resposta para uma questão candente para a ciência da época. Como se deu a passa-gem da matéria inerte ao orgânico? Em suma, como surgiu a vida? Ao preocupar-se com essa questão, ele acaba, nessa passagem da Gaia Ciência, por lançar a hipótese de que a vida, na verdade, é exceção. A morte é a regra.

Se nesse momento Nietzsche concebe a vida como uma exceção e o ser vivo como a exceção das exceções, logo depois, vai mudar de posição, lançando mão de outra hipótese: a da sensibilidade da matéria. Por fim, por volta de 1885, procurando dar conta da passagem do inorgânico ao orgânico, elabora a teoria das forças; então, entende que não há nenhum traço distintivo entre a matéria inerte e a vida, mesmo porque tudo o que existe é constituí-do por forças agindo e resistindo umas em relação às outras.

Plateia: Eu penso, de alguma forma, nessa dita-dura da vida, nessa obrigação de viver que a gen-te tem e na qual perdemos o direito de morrer — e não falo da eutanásia, mas do direito de mor-rer no sentido mais essencial possível —, mesmo que seja nas pequenas mortes. Sua fala me fez pensar um pouco no direito ao luto, de alguma forma a ditadura da vida nos faz perder não só o direito de morrer, mas, também, perder o direito de perder. Como é difícil perder porque estamos fadados ao sucesso, a tudo isso que, de alguma forma, nos cerca e nos diz que se formos fracas-sados estamos fora do jogo. Eu queria que você falasse um pouco sobre o luto e se você acha que nós o perdemos.

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S.M.: Vou abordar a questão a partir de outro viés. A meu ver, o problema que se coloca é que, segundo a maneira de pensar atual, não pode-mos perder tempo com o luto. Aliás, tenho im-pressão de que foi o que aconteceu com vários rituais que regiam nossa vida em sociedade. Es-tamos cada vez mais distantes deles, apesar de serem essenciais tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. Tomemos, por exemplo, os rituais relativos à perda de entes queridos nas famílias japonesas. Em certos momentos, como ao final de um ano do desaparecimento do fa-miliar, são organizadas confraternizações em que se reúnem todos os membros da família. Nós estamos muito distantes de práticas desse tipo, justamente porque acreditamos que não podemos perder tempo e assim perdemos o direito de perder.

A via que tomo para refletir sobre o assunto é a que me leva a pensar na figura do workaho-lic. Andei trabalhando um tanto nessa direção. Workaholic é aquele indivíduo que não tem mais vida privada, porque a vida profissional se con-verteu em sua própria identidade; ele é acima de tudo um profissional e, enquanto tal, tem de ser bem-sucedido a qualquer custo. Mas é pre-ciso convir que essa é uma identidade capenga, pois, deixando de fora muita coisa, empobrece o ser humano. Nos dias de hoje, há, porém, contra-movimentos. Recentemente, surgiu na Califórnia um grupo de pessoas que se apresentam como os losers; eles se auto intitulam os perdedores. Trabalham muito até um determinado momento da vida e, depois, passam a viver com o estrita-mente necessário. São contrários à sociedade de

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consumo. Colocam-se como perdedores, porque não querem entrar nessa lógica do êxito letal do ser bem-sucedido, dar certo o tempo todo, tirar vantagem de todas as situações. Tenho a impres-são de que nós, seres da contemporaneidade, precisamos cuidar para não nos tornarmos pes-soas cada vez mais amputadas. Ao tentar rein-tegrar a morte no nosso horizonte de reflexão e de vivência, estamos procurando, de alguma maneira, caminhar em direção a algo maior que nos envolve e ultrapassa.

Plateia: Dentre os vários pontos da sua fala, um me chamou atenção de maneira particu-lar e eu gostaria de saber a sua opinião sobre como deveríamos pensar a morte, para quem sabe, repensar a moral. Como eu devo pen-sar na morte para ser mais moral no mundo onde estamos?

S.M.: A partir do momento em que entendemos que a morte nos proporciona uma oportunidade para investigarmos o sentido que estamos dan-do às nossas vidas, a questão moral já se coloca. Quais estão sendo as minhas escolhas? Quais são os valores que norteiam a minha conduta? Quais são as minhas prioridades?

A meu ver, o termo valor, aqui, é central. A pergunta pelo sentido da vida traz com ela a pergunta pelos valores morais. E se aproveitar-mos as ocasiões que as experiências oferecem para levantarmos essa pergunta, então, também estaremos refletindo sobre os nossos próprios valores. Assim poderemos pôr em prática outras maneiras de pensar, agir e sentir.

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Plateia: Antigamente cuidávamos dos enfer-mos em casa, esperávamos que falecessem em nossos braços. Então, convivíamos com a mor-te como uma coisa rotineira. Hoje, você pega o seu enfermo, leva ao hospital e fica esperando o médico te ligar e dizer se ele melhorou ou fale-ceu. Muitas vezes você vai aos leitos hospitalares e não há uma convivência familiar. Gostaria que falasse dessa questão do individualismo.

S.M.: A própria estrutura familiar na nossa so-ciedade está passando por sérias alterações. É o que notamos em relação aos enfermos, muitos deles deixados nos hospitais, e aos idosos, aban-donados nas casas de repouso. É bem verdade que vários fatores entram em cena: as exigências do mercado de trabalho e a falta de disponibili-dade de tempo, por exemplo. Portanto, trata-se de um fenômeno generalizado da nossa socie-dade. Mas, também neste caso, há contramovi-mentos. Gostaria de terminar pensando neles, porque me parece importante ressaltar que não devemos nos sentir tão derrotados, tão fracassa-dos, a ponto de abrir mão das pequenas tarefas que nos cabem. É nesse contexto que me ocorre trazer, talvez de forma abrupta, a figura da Ma-dre Teresa de Calcutá; ela dizia que não devemos procurar fazer grandes coisas, e sim pequenas coisas com grande amor.

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Esta edição foi composta pela Editora Universitária PUCPRESS eimpressa em sistema offset, papel Avena 90g/m² (miolo) e

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Em tempos em que transformamos a morte num tabu — “melhor não falar dela, porque pode atrair!” — este ensaio, perspicaz e provocador, da pensadora Scarlett Marton, nos recorda que este acontecimento não é um mero detalhe de nossa existência. Trata-se da maior e mais definitiva ruptura. Para alguns o fim; para outros uma passagem; para outros, ainda, uma chance de recomeçar. Assunto comum às religiões, a morte não é um tema menos importante para a Filo-sofia, para a Literatura, para a Psicanálise, para a Histó-ria, para as Ciências Naturais. Ao lado da pergunta pela origem, ela se apresenta como o mais profundo misté-rio humano. E frente a isso que se mostra, pelo menos por enquanto, como nosso destino irremediável, tal-vez tenha chegado o momento de retornarmos à sa-bedoria do antigos Gregos, que com seu exercício da melete thanatou tornavam a morte algo familiar. Depois disso então, poderemos, como Sêneca em sua carta 12, afirmar que uma vida inteira deve caber num dia: “No momento de dormir, digamos com alegria e com o semblante risonho: eu vivi”.

Fabiano IncertiInstituto Ciência e Fé da PUCPR