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A Modernização
António Fragoso
[ESCRITO PARA OS ESTUDANTES – NÃO CITAR]
O paradigma da modernização ganhou força a seguir à Segunda Guerra Mundial,
manteve-se com uma hegemonia confortável até finais dos anos 60 e, mesmo debaixo
de críticas variadas e no seguimento de uma crise intensa, só nos anos 80 acabou por ser
«substituído» pelo neo-liberalismo. As teorias da modernização basearam-se na
racionalidade keynesiana, que por sua vez encontrou espaço de expansão depois da
brutal crise internacional de 1929. Então se legitimou uma intensa intervenção do
Estado nas economias, razão pela qual o keynesianismo também ficou conhecido pelo
modelo do intervencionismo estatal (ou ainda da redefinição do capitalismo). E para o
nosso estudo talvez convenha apenas recordar um ou dois princípios básicos da
racionalidade keynesiana, segundo Pimenta (1996): i) na economia capitalista não
existem mecanismos espontâneos que permitam a obtenção do pleno emprego; ii) deve
existir uma acção do Estado na economia não só para atender às funções específicas
exigidas pelo mercado, mas também para contrariar as tendências espontâneas. Torna-se
assim central para o keynesianismo combater as crises económicas atingindo-se maiores
níveis de equilíbrio que aqueles naturalmente permitidos pelo capitalismo, sendo
igualmente central uma protecção estatal ao emprego.
Os teóricos da modernização retiveram estes princípios básicos, mas a sua acção
e ideologia foi muito mais além. Fundamentalmente, viam as economias «atrasadas»
dos países mais pobres dominadas por uma agricultura de subsistência; caracterizadas
por baixas taxas de acumulação de capital e investimento; por um sector de comércio
externo diminuto; por uma baixíssima produtividade apesar do seu potencial de trabalho
abundante e, finalmente, caracterizadas por um baixo índice de crescimento económico.
Seria precisamente contra estas tendências que se haveria de desenvolver a estratégia
económica da modernização (Youngman, 2000), o que implicaria a criação de um
terceiro sector muito forte, baseado na industrialização e na agricultura comercial. Neste
sentido, seria inevitável a movimentação do trabalho agrícola excedente para os
restantes sectores e muito em particular para os serviços. Acreditava-se nesta
«movimentação» como se fosse algo muito evidente, uma simples transferência de
trabalhadores do sector primário que não teria consequências de maior, na medida em
que o crescimento do terciário absorveria o trabalho excedente – quando em muitos
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países a realidade foi antes marcada por falências dos agricultores incapazes de
acompanhar as exigências de mecanização e comercialização internacional da produção,
e pelo desemprego crescente, até porque a mecanização crescente acabou por criar
dificuldades também no terciário. No Terceiro Mundo, por exemplo, o processo da
modernização dependia do deslocamento de um sector tradicional (agrícola) por um
sector moderno (industrial), dado que o primeiro não era dinâmico. Como sublinha
Brohman (1996), esse sector tradicional nunca foi visto como uma fonte de
desenvolvimento, mas apenas como uma mera reserva a partir da qual foi possível
extrair trabalho e outros serviços.
O desenvolvimento é visto essencialmente como crescimento económico, ou
seja, como a produção que se vai aumentando devido à expansão desse sector moderno
e devido à exportação de produtos primários – que será tanto maior quanto mais eficaz
for a integração de novos países no sistema económico e financeiro do capitalismo
internacional. Daqui se compreende a necessidade da implantação de medidas políticas
e económicas que promovam, ou mesmo forcem esta integração de cada vez mais
países, o que paralelamente constituirá uma medida de luta contra os do «bloco
soviético».
Como já dissemos anteriormente, as teorias da modernização são apenas
baseadas na racionalidade keynesiana. Quer isto dizer que ao longo dos anos foram
surgindo diversos modelos que imprimiram outros matizes à interpretação
macroeconómica de Keynes. É o caso do conhecido modelo de Harrod e Domar1, que
lhe oferece uma perspectiva de longo prazo (Riddel, 1988), e segundo o qual o único
obstáculo ao crescimento económico seria a escassez de capital. Para aumentar as taxas
de crescimento económico seria necessário estimular o investimento, para que uma dada
economia pudesse atingir o take-off, a partir do qual o crescimento se tornaria
hipoteticamente auto-sustentado.
As concepções fordistas foram igualmente determinantes em relação à sua
capacidade para guiar o crescimento, ou o crescimento como sinónimo de
desenvolvimento. Já há muitos anos atrás que a Ford Motor Company havia inventado a
montagem em cadeia, literalmente criando um paradigma ideológico que, aplicado às
organizações económicas, tem sido recentemente designado por fordismo. Como
1 O modelo de Harrod (1948) e Domar (1957) é um modelo de poupança e investimento. Também se poderiam mencionar outros como o dos estádios de crescimento de Rostow (1956), ou o das externalidades de Scitovsky (1954), para referir apenas alguns.
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organização da produção, a concepção fordista baseava-se na produção perfeitamente
normalizada para consumo de massas, visando a diminuição do custo por unidade
produzida. O que se convencionou chamar por “ciclo virtuoso do fordismo”, consistia
nos aumentos simultâneos da produção industrializada e dos salários dos trabalhadores,
o que resultaria no aumento do consumo, que por sua vez teria efeitos retroactivos na
produção e, em consequência, no emprego e nos salários. Durante muitos anos, este
pareceu um ciclo sem falhas. Estão já normalizadas as análises que dizem que o
fordismo deve o seu êxito fundamentalmente aos mecanismos políticos e sociais que
implica, representando um meio extraordinariamente eficaz de controlo dos processos
do trabalho. Em suma e utilizando uma formulação bem conhecida, o fordismo
transformou os trabalhadores em trabalhadores instrumentais (Waters, 1999). É claro
que o próprio fordismo se apoiou com sucesso no taylorismo, que resolve algumas
questões deixadas «pendentes» pelo primeiro, especificando por exemplo a separação
radical entre as funções de gestão e as laborais.
Mas esta associação entre paradigmas que se complementam serve sobretudo
para ilustrar uma questão que está profundamente relacionada com a modernização e
que nos parece fundamental: é que o projecto da modernização nunca teria conhecido
uma expansão e uma amplitude tão amplas, se não fora pela sua capacidade de
promover ideais ou mitos que nada têm que ver com a esfera económica! As grandes
preocupações em torno do crescimento económico acabam por atrair conjuntos de ideias
e conceitos de muitos outros campos de conhecimento. A concepção de que a área
económica determina as escolhas de grupos e de sociedades, e que outras dimensões da
vida social se comportam à sua imagem, constituiu-se por conseguinte num dos
pressupostos fortes da modernização (Sousa, 1991). Mais do que impulsionar mudanças
de índole económica, o desenvolvimento sempre necessitou de promover o
aparecimento de novos valores, normas, instituições e organizações que têm de facto
sido introduzidas visando a transformação da ordem social (Brohman, 1996), e seria
uma quase ingenuidade pensar o contrário. A pergunta a colocar poderia formular-se da
seguinte forma: quais são, assim, algumas das bases culturais, educativas, psicológicas
ou até sociológicas que contribuem para a formação do homem moderno, dotado de
uma nova racionalidade moderna? – Posto que só o «novo homem moderno» poderia
adequadamente participar numa modernização que implica o afastamento radical em
relação à tradição e aos valores por ela implicados. As nossas respostas são
necessariamente curtas, mas teremos espaço para pelo menos balizarmos algumas
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tendências gerais determinantes. Talvez que em primeiro lugar seja de referir a escola
de sociologia dominante nos Estados Unidos durante os anos 50, a do funcionalismo
estrutural de Talcott Parsons, que considerava a mudança social como um processo de
evolução do simples ao complexo: desde as sociedades tradicionais até às sociedades
industriais modernas (perspectiva que aparece de forma esmiuçada e transformada no
famoso modelo de Walt Rostow que mais adiante mencionaremos). Parece-nos claro
que é esta teoria sociológica que enquadra uma perspectiva simplista de um único trilho
para o desenvolvimento, e para as possibilidades de interpretação das situações
particulares de cada país / zonas do globo em torno desta evolução demasiado linear.
Mas associada a esta perspectiva foram aparecendo teorias psicológicas que também
nos extremos da evolução moderna postulam uma «personalidade moderna», que inclui
inequivocamente termos como a motivação, o sucesso ou uma determinada
racionalidade. Como refere Youngman (2000), a associação destas dimensões,
explanadas à volta de uma dicotomia tradição / modernidade, tem como resultado a
ideia que haveria que moldar os comportamentos humanos modernos, condição
primordial para conseguir o funcionamento pleno das instituições económicas e
políticas modernas. E como parece óbvio, a educação representaria um instrumento
central para conseguir as mudanças necessárias e assim produzir a nova individualidade
moderna.
Cremos ser o momento ideal para sintetizarmos duas das premissas fulcrais da
modernização.
1. Existiria um único processo de evolução social, sendo o seu estádio de
desenvolvimento mais avançado aquele que foi atingido pelos Estados
Unidos na década de 50.
2. O crescimento económico é eleito como uma grande finalidade do
desenvolvimento, posto que se acreditava que os rendimentos obtidos através
dos aumentos da produção haveriam de beneficiar de forma relativamente
igualitária as pessoas das mais diferentes sociedades.
Tentaremos em seguida conduzir uma pequena discussão sobre estas duas
premissas. Se o desenvolvimento é, para o modernização, uma espécie de trilho único
em que os da frente querem ajudar os últimos a recuperar, deveremos analisar os
instrumentos criados pelos países ocidentais para atingir essa finalidade louvável. Trata-
se de fazer uma pequena síntese acerca do complicado sistema de ajuda internacional,
nascido durante os anos 40.
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Em Julho de 1944 já se divisava o final da guerra; Mussolini havia sido
derrotado, e os aliados tinham já desembarcado na Normandia, ainda que só dez meses
mais tarde se consumasse a queda final de Hitler. Foi nesse momento histórico de
viragem que se realizou a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas2, no
hotel de Bretton Woods, que assim veria o seu nome ligado a acontecimentos históricos
de vulto. Os líderes económicos que aí se reuniram olhavam para além do final da
guerra com todos os sonhos de um novo mundo unido pela paz e pelo progresso – e a
sua finalidade específica era a de criar as instituições que pudessem sustentar essa visão.
As reuniões desembocaram na criação do Banco Mundial (BM), do Fundo
Monetário Internacional (FMI), do Banco Internacional para a Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD), e ainda nos fundamentos para o que mais tarde viria a ser o
Acordo Geral para as Tarifas e Comércio (AGTC, mais conhecido pelas siglas inglesas
GATT). O FMI deveria permitir a estabilidade monetária internacional, o BIRD
fornecer o capital para investimentos e o AGTC regulamentar o comércio internacional
e iniciar, ainda que progressivamente, programas para a liberalização do comércio
internacional através da redução dos «obstáculos» à circulação de produtos e serviços.
O FMI e o BIRD centraram-se numa primeira fase na ajuda à reconstrução da Europa –
o Plano Marshall pode ser visto como um grande ensaio para a futura estabilização de
todo um sistema – e só um pouco mais tarde se viraram para a ajuda aos países do
Terceiro Mundo.
A intenção proclamada do Plano Marshall é ainda hoje bem conhecida: estaria
em causa a reconstrução da Europa devastada pela guerra, bem como a sua estabilidade
política e, evidentemente, o combate à possibilidade de expansão do socialismo
soviético. Para alguns autores como Wood (1986), no entanto, a contribuição para a
recuperação económica era menos significativa que o facto de através do plano se poder
firmar um sistema de finanças externas concessionais, que representavam na verdade
um elemento chave para um novo domínio dos Estados Unidos num ordem mundial a
reconstruir. Visto desta forma, o Plano Marshall é um acto político subtil de perfeita
realização, sobretudo porque foi apresentado tanto para a população dos Estados Unidos
como para as populações receptoras da ajuda, como um acto generoso no seu sentido
literal. Também Gronemeyer (1999) realça que os Estados Unidos obtiveram grandes
vantagens práticas através do Plano Marshall: por um lado, a ajuda foi fundamental para
2As Nações Unidas foram criadas em 1943.
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a economia norte-americana que se encontrava em modo de pausa, tentando reorientar-
se para uma produção em tempos de paz. Neste sentido, apenas uma Europa recuperada
em termos industriais e portanto económicos poderia criar o mercado para os produtos e
serviços saídos dos Estados Unidos. Por outro lado, não restam dúvidas de que o
programa de ajuda confirmou a posição dos Estados Unidos como a nação líder do
«mundo livre». Finalmente, Brohman (1996) afirma que a experiência do Plano
Marshall veio a legitimar a ideia de que a intervenção planificada, desde que
racionalmente concebida e cientificamente gerida, podia efectivamente estimular um
rápido desenvolvimento. Por outras palavras, depois da recuperação exemplar da
Europa seria a vez de fornecer assistência ao Terceiro Mundo. Como sabemos, neste
caso a história desenrolou-se de forma completamente diferente, sendo necessário juntar
mais elementos ao nosso cenário para entender a questão de forma mais completa.
A ajuda é uma parte integrante das relações internacionais, e surge como um
instrumento privilegiado da política externa das antigas potências coloniais no contexto
geopolítico da guerra-fria (Alves, 1996). A ajuda é canalizada para os países receptores
através de uma ampla diversidade de organizações, que se podem agrupar em três tipos
distintos (Browne, 1990):
1. Bilateral. As agências bilaterais são estatais e canalizam a ajuda directamente
do país dador para o receptor, reflectindo interesses políticos internacionais dos
respectivos governos. Os países dadores capitalistas estão agrupados na comissão de
assistência ao desenvolvimento da Organização para a Cooperação Económica e
Desenvolvimento (OCED).
2. Multilateral. Existe um primeiro tipo de organizações multilaterais inseridas
no sistema das Nações Unidas. Os membros governamentais têm direito a votos iguais
no contexto destas organizações, permitindo que os países receptores tenham, pelo
menos em teoria, o direito a ser escutados. O segundo tipo é formado pelos bancos
multilaterais (o principal será o BM), entidades controladas por corpos governativos em
que todos os países estão representados. No entanto, os direitos de voto têm um peso
ajustado à participação de cada país, exactamente como acontece com os accionistas de
qualquer empresa. Não espanta por isso que os Estados Unidos sejam o maior accionista
do BM, e que conjuntamente com o Japão, Reino Unido, França e Alemanha detenham
cerca de 44% dos direitos de voto. A possibilidade de se ser membro do BM está
condicionada à pertença ao FMI, instituição que geralmente não se considera de ajuda,
porque apenas concede empréstimos a países com problemas na balança de pagamentos,
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sendo que parte dos seus adiantamentos financeiros não são concessionais. Mas para
que os países tenham direito a fontes de financiamento, é necessária a aprovação do
FMI no que diz respeito às políticas económicas domésticas. Assim, o FMI pode
impedir, limitar ou favorecer a ajuda e, em nossa opinião, está por isso de facto
integrado no sistema de ajuda.
3. Privada. Constituída por organizações privadas sem fins lucrativos (como as
ONG’s) e fundações também privadas mas de naturezas variadas. Este tipo de ajuda tem
crescido ao longo do tempo (já no início da década de 90 existiam cerca de duas mil
ONG’s direccionadas para o desenvolvimento, apenas nos países industrializados),
assumindo-se como fontes de ajuda muito significativas.
Depois deste pequeno parêntesis, há que dizer que se um sistema financeiro é
efectivamente de ajuda há duas condições que têm que ser verificadas: i) a transferência
de recursos financeiros, seja qual for a fonte, tem que ser efectuada a condições mais
favoráveis que as do mercado; ii) a finalidade da concessão tem que ser o
desenvolvimento do país receptor.
Quanto à primeira condição, o dinheiro era cedido aos países do Terceiro Mundo
por um maior período de tempo e a taxas de juro mais baixas que o mercado. Mas há
aqui uma questão subtil que faz com que o branco seja preto e o preto branco: os
acordos assinados quase por norma obrigam os países receptores a comprar os bens e
serviços necessários aos dadores. Ou seja, o dinheiro em si custa menos mas, sobretudo
nos acordos bilaterais, toda a tecnologia e os serviços que implicam custam geralmente
mais que os preços do mercado, consequentemente diminuindo-se o valor da ajuda em
causa. Por exemplo, os projectos de desenvolvimento rural na Guiné-Bissau financiados
pela Suécia obrigavam a que todos os técnicos fossem suecos, bem como as máquinas,
apesar de muitas delas serem de adequação duvidosa às condições no terreno, e
independentemente de o seu preço ser mais baixo se compradas a outro país (Afonso,
1995). Nestas condições ajudar é um negócio excelente… para os países ocidentais e
por motivos básicos: a ajuda ligada possibilita a exportação dos seus produtos
manufacturados, tecnologia e serviços, ao mesmo tempo que o fluxo de capitais se dá
no sentido totalmente oposto ao pretendido, isto é, do sul para o norte. A ajuda acabou
por ser uma forma de promover as economias e o crescimento económico dos países
ricos, e em pouco ou nada melhorou as condições estruturais dos países pobres. Em toda
esta questão nem a semântica abona a favor de ninguém: falamos de países dadores que
efectivamente não dão nada e recebem mais do que emprestam, de países receptores que
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pagam mais do que aquilo que pedem emprestado, e de um sistema de ajuda que acaba
por não ajudar ao desenvolvimento dos mais pobres, mas pelo contrário impulsiona o
crescimento económico dos mais ricos.
Há ainda uma outra dimensão no sistema de ajuda internacional que merece a
pena referir, e que é a da política externa. Neste campo, restam poucas dúvidas em
reconhecer que a ajuda não foi cedida para o desenvolvimento dos países necessitados,
mas sim para o desenvolvimento dos países que seguiam as políticas que interessavam,
em sentido estratégico, às grandes potências do ocidente (Afonso, 1995). O facto torna-
se extremamente nítido na dimensão da política externa dos Estados Unidos
(Youngman, 2000), que cedeu ajuda para apoiar os seus aliados (como no Vietname do
Sul nos anos 60), enquanto que a negava aos países que seguiam políticas opostas
(Chile em 1970-73, Zimbabwé em 1983). Mas seria uma enorme hipocrisia não referir
que também a ajuda dos restantes países, provavelmente com destaque para a França ou
Reino Unido, reflectia e reflecte os respectivos alinhamentos políticos, particularmente
evidentes quando se trata de países que constituíram antigas colónias. Mais, não
devemos esquecer que as grandes potências ocidentais cedo aprenderam a utilizar a
violência «legítima» para atingir os seus fins. O desenvolvimento justificou quase desde
sempre uma quantidade significativa de actos atrozes. A nova realidade do
desenvolvimento planificado apenas veio pôr nesta equação novas instituições, e
portanto novos nomes, mas não faltam exemplos para demonstrar que nem o prestígio
que as ditas instituições pareciam deter junto a alguns sectores as faziam recuar nas suas
intenções, muitas vezes diferentes das proclamadas:
“Claro que quando um governo não favorável aos interesses ocidentais consiga de alguma forma alcançar o poder, os governos ocidentais utilizarão todos os meios para eliminá-los da sua função. Assim em 1954 os Estados Unidos organizaram o derrube militar do governo da Guatemala que havia nacionalizado as plantações de banana possuídas pelos Estados Unidos, e fizeram o mesmo ao governo de José Goulart no Brasil nos anos 60. Goulart queria impor um limite à quantidade de dinheiro que as corporações estrangeiras podiam retirar do país. Ainda mais grave, iniciou um programa de reforma de terras que devolveria o controlo dos recursos minerais ao país, retirando-o das corporações transnacionais ocidentais. Também deu aos trabalhadores um aumento de salário, consequentemente aumentando os custos do trabalho às empresas transnacionais, desafiando as instruções do FMI. Como resultado das acções de Goulart, a ajuda foi imediatamente cortada, e uma aliança da CIA, investidores dos Estados Unidos, e elites de proprietários brasileiros engendraram um golpe de estado que levou uma junta militar ao poder. Os militares anularam as reformas de Goulart e reintroduziram aquelas que melhor satisfaziam os interesses comerciais dos Estados Unidos” (Goldsmith, 1996: 258).
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Tentaremos então concluir esta questão da ajuda internacional. A ideia inicial
seria a de transferir para os países mais pobres aquilo que lhes faltava para o seu
desenvolvimento, na visão da modernização: o capital, mas também a tecnologia e os
serviços especializados necessários para aumentar a produção. Estando presentes estas
condições, restava esperar o crescimento, de forma que se esperava que a ajuda pudesse
ir diminuindo com o tempo. Já vimos que os resultados foram diametralmente opostos.
Através dos vários tipos de ajuda foram transferidos biliões de dólares para projectos
dispendiosos de infra-estruturas e para a importação de altas tecnologias, capital-
intensivas. Mas para financiar a importação das tecnologias modernas, os países do
Terceiro Mundo viram-se obrigados a exportar os bens primários que possuíam,
principalmente recursos como a madeira, o petróleo, minerais ou colheitas de
exportação que modificavam as suas próprias colheitas e alteravam as lógicas dos
mercados internos, às vezes com consequências dramáticas (Khor, 1996). Assim, para
conseguir pagar a ajuda os países desfavorecidos aumentaram a sua dependência em
relação à ajuda! Ironicamente, começaram a aparecer muitas situações em que a única
forma de garantir os pagamentos das dívidas acumuladas aos países mais ricos, seria a
concessão adicional de financiamentos. Este ciclo vai empobrecendo os que já eram
pobres, ao mesmo tempo que enriquece os mais ricos.
Os governantes dos países do Terceiro Mundo aperceberam-se dos riscos
imensos que corriam. Talvez por isso, nos finais dos anos 50 pediram, através das
Nações Unidas, a criação de uma instituição para fornecer capital e assistência – mas
uma instituição que pudessem controlar, ao contrário do que acontecia por exemplo com
o BIRD. E neste momento já não deve parecer estranho nem inocente que tal pedido
haja sido veementemente negado.
Retomando as premissas centrais da modernização, há que dizer que a que
postula um único processo de evolução das sociedades foi propagada fundamentalmente
por Walt Rostow no seu livro The Stages of Economic Growth: A Non-Communist
Manifesto, publicado em 1960 – o subtítulo mostra bem, aliás, o quanto o clima da
guerra-fria influenciava os problemas do desenvolvimento. O livro, que conseguiu uma
projecção pública notável, delimitava historicamente os diversos estádios do
crescimento económico, desde as sociedades tradicionais até ao ponto máximo de
evolução, as sociedades de consumo de massas modernas. Rostow afirma sem
ambiguidades que “é possível identificar todas as sociedades, nas suas dimensões
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económicas, como estando em uma das cinco categorias seguintes: a sociedade
tradicional, as pré-condições para o take-off, o take-off, a maturidade, e a era de alto
consumo de massas” (2000 [1960]: 110). O manifesto de Rostow estava longe de
constituir uma análise económica estrita. Refutava a modelo de desenvolvimento
socialista, dizendo Rostow (2000 [1960]) que tinha a intenção de acabar de vez com o
marxismo e convidava os leitores a identificar, tanto as semelhanças como as diferenças
entre as análises marxistas e os seus estádios de crescimento.
O desafio foi aceite por Baran e por Hobsbawm, e se mencionamos o facto é por
dois motivos simples: primeiro, para ilustrar o clima intelectual em vigor durante a
guerra-fria e segundo, porque a Paul Baran se atribui muitas vezes a estatuto de pai das
teorias da dependência, apesar de serem outros autores que posteriormente as
conceptualizaram como tal. Baran & Hobsbawm (1969) publicaram então um artigo3 no
qual tentam combater as ideias de Rostow, assinalando que a teoria dos estádios reduz o
crescimento económico a um único padrão, como se fosse possível com esse ar de
generalidade aplicá-lo a todos as economias mundiais sem distinção, desde a URSS aos
Estados Unidos, da China ao Brasil. O rol das críticas e contra-ataques é longo, de tal
modo que chegam os autores a pedir desculpas aos leitores pela revisão demasiado
longa; dizendo ainda que não obstante a realizaram por considerar a obra de Rostow
como um importante documento: “demonstra de forma particularmente contundente o
baixo estado a que chegou o pensamento social Ocidental na presente era da Guerra
Fria” (Baran & Hobsbawm, 1969: 66).
Independentemente do que pensemos sobre a teoria de Rostow, a realidade é que
a ideia central do processo de evolução único para todas as sociedades se arraigou de
forma surpreendente, legitimando de maneira indiscutível a transferência dos modelos
de desenvolvimento criados no Primeiro Mundo para o Terceiro, o que a curto e médio
prazo penalizou este último. As condições existentes nos países mais pobres são
apresentadas como meros ciclos viciosos de pobreza e ignorância. Em consequência,
politicamente o Terceiro Mundo passa a significar um objecto técnico que tem que ser
normalizado e moldado através do planeamento ocidental, de forma a conseguir uma
modernização que faz tábua rasa da história e cultura daquelas sociedades (Escobar,
1999). Esta legitimação discursiva revelou-se eficaz; foram as próprias populações dos
países pobres e, ainda mais, as suas elites, que acolheram com entusiasmo o
3 Originalmente publicado em 1961.
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desenvolvimento, a ciência e a tecnologia ocidentais, acreditando que todos eles
estariam intimamente relacionados num ciclo que, vendo os seus elementos reforçarem-
se uns aos outros, haveria de conduzir ao desenvolvimento com dê grande e ao
progresso tão almejado.
Até agora só indirectamente falámos da segunda premissa da modernização, que
nos informa que o crescimento económico deveria beneficiar as populações por igual.
Mas na verdade gostaríamos de relacionar esta discussão com outras; efectivamente, a
partir do final dos anos 60 geram-se uma série de manifestações e críticas à
modernização e aos modelos políticos e sociais até então seguidos, que iniciaram um
longo período de crise da mesma.
Talvez possamos começar por um movimento que veio de dentro dos próprios
teóricos da modernização. Passados alguns anos da implantação das suas políticas, era
evidente o fosso crescente entre os países do primeiro e Terceiro Mundos, e os fracassos
rotundos destes últimos, com destaque negativo para os países Africanos a Sul do
Sahara. Mais, um olhar directo para as grandes questões do desenvolvimento trazia uma
sensação que já não era de desconforto, mas tão-somente a verificação de que a pobreza,
o desemprego e a desigualdade, todos estavam a aumentar; e o resultado final destas
tendências não poderia ser chamado de desenvolvimento, ainda que o rendimento per
capita pudesse estar simultaneamente a aumentar. Foram sobretudo autores europeus,
como Dudley Seers, que vieram a constituir uma movimento de reforma à
modernização que procurou redefinir o significado do desenvolvimento, com a intenção
de incluir as tendências da pobreza, distribuição de rendimentos e emprego. Estes
autores mostraram uma preocupação especial na dimensão social, em particular
sugerindo uma ampliação da participação popular no processo do desenvolvimento.
Para além destes movimentos de renovação, outros acontecimentos houve de
grande projecção pública, que foram capazes de despertar uma consciência social
adormecida. Falamos dos acontecimentos do Maio de 68 em França, por exemplo. À
partida, estas manifestações não tiveram impacto concreto sobre o panorama
económico, inclusivamente porque os protestos populares foram diminuindo de
intensidade e frequência e nos finais dos anos 60 os Estados retomaram o controlo da
situação. No entanto, o futuro mostraria que a política dos movimentos sociais não
estava morta, antes tinha vindo para ficar. Como assinala Friedmann (1996), a única
coisa que mudou foi a natureza dos próprios movimentos. Os novos movimentos
sociais, ecologistas, pacifistas e feministas, embora menos espectaculares que a
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revolução cultural ou o black power, continuaram a exercerem as pressões dos
precedentes.
Para o descrédito crescente da modernização contribuíram ainda fenómenos de
índole mais económica. Um deles foi uma consequência não prevista da tendência para
a tercerização das economias, que fez crescer as necessidades intensivas em serviços.
Tal como nos explica Murteira (1986), começaram a aparecer sinais de dificuldades na
obtenção de crescimentos de produtividade, colocando-se demasiada pressão nas
finanças públicas, com o aumento dos custos públicos e deficits correntes do Estado.
Este e outros factores vêm mostrar que as políticas nacionais já não conseguem regular
de forma eficaz as suas próprias criações, até porque as grandes empresas transnacionais
ocupavam já uma posição de destaque no comércio internacional – realçar o facto é
importante, porque hoje em dia é moda falar do seu domínio como se fosse,
exclusivamente, um resultado de uma globalização recém-chegada (?), ignorando-se
que todos estes fenómenos são graduais, não nascendo de um dia para o outro.
A partir de determinada altura, a modernização encontrava-se num campo de
batalha complicado. Para além dos factos já mencionados, tinha que se confrontar com
fortes críticas que vinham de todos os sectores políticos. A direita neo-liberal criticava
fortemente o intervencionismo estatal, voltando-se a falar das noções de um hipotético
mercado livre. A crise económica que se começava a fazer sentir – e que seria
brutalmente agravada com a crise petrolífera de 73 – era explicada pela direita pelas
más políticas seguidas pela modernização. Por outro lado, também a esquerda fazia
ouvir as suas críticas, chamando a atenção para os efeitos perversos da ajuda, analisando
as desvirtudes do sistema criado através das enormes dependências a que o Terceiro
Mundo havia sido sujeito e que em nada o haviam ajudado.
Para último lugar deixámos a crise petrolífera de 1973 e não por acaso. A nossa
intenção é a de mostrar que foram múltiplos os factores que progressivamente vieram
desgastando a modernização e que seria quase ridículo afirmar que a crise petrolífera,
por si só, poderia exercer esse efeito. É no entanto inegável que a passagem de um
cenário de forte crescimento económico para outro de crescimento vacilante, com todas
as consequências que daí advieram, coincidiu com a crise de 73/74, quando o preço do
petróleo subiu quatro vezes de uma só vez. A medida correspondeu a uma tentativa que
alguns apelidarão de desesperada por parte dos cartéis organizados do Terceiro Mundo,
chamando a atenção para o facto de que também eles eram capazes de colocar engulhos
à economia mundial. Numa determinada perspectiva, a acção revelou-se eficaz, posto
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que se despoletou uma crise internacional que daria o golpe quase final numa
modernização já debilitada por ataques vários, como vimos mostrando. O sistema
monetário fundado desde os tempos de Bretton Woods parecia desorganizar-se por
completo e, durante algum tempo, os países de Terceiro Mundo conseguiram
efectivamente reduzir a sua dependência e inclusivamente verificou-se um aumento na
ajuda não concessionada.
É ainda em Murteira (1986) que nos apoiamos para afirmar que as
consequências da crise se têm que analisar mais para além destes efeitos imediatos; e
que o processo de adaptação à crise não trouxe boas notícias para os países que até
então se afundavam, prisioneiros de uma dependência sem saída à vista. De facto, os
países industrializados capitalistas recuperaram com relativa facilidade depois do
primeiro choque e o mesmo aconteceu depois do segundo choque petrolífero de 1979.
Os défices aumentam até 1981 mas de seguida a tendência inverteu-se, à custa de
medidas que desaceleram o crescimento e paralelamente fizeram aumentar tanto o
desemprego como as exportações. Por outro lado, em 1979 o governo dos Estados
Unidos modifica subitamente a sua política monetária. A subida espectacular do dólar e
das taxas de juro agravam de forma impressionante a dívida externa do Terceiro Mundo.
Explode a crise do pagamento das dívidas quando em 1982 o México, apesar de grande
produtor de petróleo, se declarou incapaz de pagar o que devia; outros se lhe seguiriam
mostrando que a dívida externa era já muito maior que o próprio volume de ajuda
conduzida para esses países.
O resultado cru e nu de tudo isto é que não obstante um enorme esforço por
parte dos países do Terceiro Mundo, não obstante novos aumentos nas exportações para
tentar pagar as dívidas, não obstante os sacrifícios imensos das suas populações
maioritariamente votadas à pobreza e à vida sub-humana pelos padrões ocidentais, o
desenvolvimento de dezenas de países no final da década de 70, segundo o próprio
Banco Mundial, tinha regredido mais de uma década. Os trinta anos dourados,
caracterizados por um impressionante crescimento económico, ou os sonhos de paz e
prosperidade para todos, transformavam-se agora numa espécie de pesadelo de destino
incerto.
Referências
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