a mercearia do meu pai... também havia mistérios na mercearia do meu pai. as gavetas proibidas que...
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PE Episódio #41
Nível III – Avançado (C1-C2)
Texto: Ana Isabel Simões
Voz: Catarina Stichini
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A MERCEARIA DO MEU PAI
Era um lugar mágico, a mercearia do meu pai. Comida, louças, velas, cadernos, pentes, tintas, bacios,
parafusos e brinquedos conviviam lado a lado, nos armários altos, de madeira amarela e grandes
portas de vidro, a cujos puxadores eu ainda não conseguia chegar.
Naquela mercearia vendia-se e falava-se de tudo. Das aldeias vizinhas vinha gente a pé, de carroça e
raramente de carro, munida de cestas e uma saca de serapilheira à cabeça, não fosse chover. Ali se
selavam negócios, discutia-se a lavoura, a jorna, a venda do gado, a vida alheia, ou falava-se do
tempo porque se estava em ditadura e havia que ter tento na língua. No café ao lado, um PIDE. Era o
que constava. Ainda hoje ninguém sabe ao certo. O certo é que as cestas dos mais remediados saíam
dali bem aviadas com os mais variados produtos, desde a mais fina porcelana a petróleo vendido ao
litro e até peixe congelado, pois a camioneta do peixe fresco, de caixa aberta coberta por um oleado
verde, só vinha à aldeia uma vez por semana, anunciada pela correria dos gatos que se juntavam no
largo já a antever o petisco. Os mais pobres compravam fiado. Alguns, poucos, viam a dívida
perdoada.
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Às terças, vinha o caixeiro-viajante, um homem sorridente, de pernas altas e bigode farfalhudo, que
me fazia cócegas até eu capitular, estendida no chão, escapulindo-me de seguida escada acima para
a segurança do primeiro andar onde vivíamos. Por vezes, ficava atrás do balcão a espreitá-lo e
estranhava como se punha sério ao percorrer com o meu pai o seu catálogo de produtos.
- Café?
- Ainda tenho.
- Bolachas?
- Maria e Torrada. Duas caixas de cada, por favor.
As bolachas que o meu pai vendia avulso, embaladas em saquinhos que ele próprio pesava
pacientemente e selava com uma vareta de metal aquecida na chama duma vela – a meus olhos, um
autêntico truque de magia. E no fim do ritual, eu ganhava uma bolacha, que roía a toda a volta,
comendo no fim as letras que ainda não sabia ler.
Mas o maior de todos os prazeres era brincar com a caixa registadora. Marcar um preço, dar à
manivela e ouvir o “plim” da campainha, ao mesmo tempo que a gaveta do dinheiro se abria
magicamente.
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Também havia mistérios na mercearia do meu pai. As gavetas proibidas que eu abria à socapa para
logo me desiludir com o seu conteúdo; a casinha dos pesticidas, onde nunca ousei entrar; os
brinquedos coloridos, nos quais não podia mexer; a guitarra que passei horas a olhar e que num
Natal me foi parar ao sapatinho – o melhor de todos os presentes; o rapa com que fazíamos juntos o
totobola. 1, X, 2; o cão que ali se aninhou num dia de chuva para não mais sair, e com o qual eu
rodopiava numa dança cambaleante que levava o meu pai – e o cão – ao desespero. Era assim, a
mercearia do meu pai. Um dia, fechou para não mais abrir.
Fotos de Ana Isabel Simões.
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GLOSSÁRIO
O significado destas palavras neste texto.
Mercearia, a – pequena loja de géneros alimentícios e artigos de uso doméstico
Bacio, o – penico, pequeno recipiente para urina ou dejetos humanos
Parafuso, o – peça semelhante a um prego, mas em espiral
Puxador, o – peça de formato variado fixa em portas, para as abrir
Carroça, a – carro grosseio para transportar carga
Munido – abastecido
Cesta, a – recipiente, geralmente de vime ou varas, para transporte de fruta ou hortaliças
Saca de sarapilheira, a – saco grande em tecido grosseiro
Selar – fechar
Lavoura, a – amanho e cultivo da terra
Jorna, a – trabalho do dia
Gado, o – conjunto de touros, bois, vacas ou cabras
Alheio – dos outros
Tento, o – cuidado
PIDE – agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado
Remediado – com uma situação financeira suficiente para os gastos necessários
Aviar – servir
Oleado, o – tecido tornado impermeável
Antever – adivinhar
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Petisco, o – comida apetitosa servida em pequenas quantidades
Farfalhudo – peludo
Capitular – render-se, desistir
Escapulir-se – fugir
Avulso – embalado na altura
Vareta, a – vara pequena
Chama, a – parte luminosa e ardente de uma vela acesa
Roer – comer mordendo
Manivela, a – peça mecânica ativada manualmente
À socapa – de forma disfarçada
Ousar – atrever-se a
Rapa, o – jogo que consiste em fazer girar uma espécie de pião com quatro faces, com uma das
quatro palavras: rapa, tira, deixa e põe
Aninhar-se – abrigar-se
Rodopiar – girar como um pião
Cambaleante – que anda de forma incerta
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EXERCÍCIOS
I. Ouça o texto e preencha os espaços em branco com as palavras/expressões que faltam neste
excerto.
Era um lugar mágico, a mercearia do meu pai. Comida, a)_____________, velas, cadernos, pentes,
tintas, bacios, parafusos e brinquedos conviviam lado a lado, nos armários altos, de madeira amarela
e grandes portas de vidro, a cujos puxadores eu ainda não conseguia chegar.
Naquela mercearia vendia-se e falava-se de tudo. Das aldeias b)_____________ vinha gente a pé, de
carroça e raramente de carro, munida de cestas e uma saca de serapilheira à cabeça, não fosse
chover. Ali se selavam c)_____________, discutia-se a lavoura, a jorna, a venda do gado, a vida
alheia, ou falava-se do tempo porque se estava em ditadura e havia que ter tento na língua. No café
ao lado, um PIDE. Era o que constava. Ainda hoje ninguém sabe ao certo. O certo é que as
d)_____________ dos mais remediados saíam dali bem aviadas com os mais variados produtos,
desde a mais fina porcelana a petróleo vendido ao litro e até peixe congelado, pois a camioneta do
peixe fresco, de caixa aberta coberta por um oleado verde, só vinha à e)_____________ uma vez por
semana, anunciada pela correria dos gatos que se juntavam no largo já a antever o petisco. Os mais
pobres compravam fiado. Alguns, poucos, viam a dívida perdoada.
Às terças, vinha o caixeiro-viajante, um homem f)_____________, de pernas altas e bigode
farfalhudo, que me fazia cócegas até eu capitular, estendida no chão, escapulindo-me de seguida
escada acima para a segurança do primeiro andar onde vivíamos. Por vezes, ficava atrás do balcão a
espreitá-lo e estranhava como se punha sério ao percorrer com o meu pai o seu g)_____________ de
produtos.
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II. Escolha a resposta correta, de acordo com a informação do texto.
a. A narradora do texto:
1) recorda momentos da sua infância.
2) tinha uma mercearia.
3) ia às aldeias vender bolachas.
4) tem más recordações da infância.
b. A mercearia:
1) era frequentada pela PIDE.
2) era um posto secreto da resistência.
3) era um ponto de encontro para os habitantes da aldeia e arredores.
4) era o local aonde os habitantes se dirigiam para comprar gado e peixe.
c. O dono da mercearia:
1) embalava pessoalmente tudo o que vendia.
2) vendia de tudo um pouco.
3) fazia cestas para os clientes.
4) compactuava com a PIDE.
d. Na mercearia havia espaços:
1) para guardar o gado.
2) para os viajantes pernoitarem.
3) onde se festejava o natal.
4) vedados a crianças.
e. A mercearia:
1) ainda existe.
2) foi transformada num café.
3) já fechou as portas.
4) foi mandada fechar pela PIDE.
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III. Encontre no texto palavras/expressões sinónimas das dadas abaixo.
a. Vida dos outros __________________________
b. Ter cuidado __________________________
c. Abastados __________________________
d. A crédito __________________________
e. Separado e embalado na altura __________________________
f. Furtivamente __________________________
IV. Transforme as duas frases numa só, substituindo a informação repetida por um pronome
relativo. Faça as alterações necessárias.
Exemplo
Tudo estava nos armários. Eu não chegava aos puxadores dos armários.
Tudo estava nos armários, a cujos puxadores eu não chegava.
a. Na mercearia discutia-se o que se passava na aldeia. Lá havia de comida a parafusos.
_________________________________________________________________________
b. O caixeiro-viajante vinha às terças. Ele era um homem bem-disposto.
_________________________________________________________________________
c. As bolachas eram embaladas pelo meu pai. Eu adorava as bolachas.
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d. O que mais me fascinava era a máquina registadora. A campainha dela fazia “plim”.
_____________________________________________________________________________
e. Eu sonhava com o Natal. Nessa altura recebia sempre um presente de sonho.
_____________________________________________________________________________
f. Acabamos por ficar com o cão. Os olhos dele eram muito meigos.
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V. Reescreva as frases utilizando a palavra apassivante SE, tal como no exemplo.
Exemplo
Naquela mercearia nós vendíamos tudo. – Naquela mercearia vendia-se tudo.
Naquela mercearia nós vendíamos muitas coisas. – Naquela mercearia vendiam-se muitas coisas.
a. Nós falávamos do tempo.
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b. Discutíamos a vida alheia.
___________________________________________________________________________
c. As pessoas compravam fiado.
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d. O meu pai comentava a venda do gado com os clientes.
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e. As crianças provavam bolachas.
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f. Nós guardávamos os pesticidas fora do alcance dos mais novos.
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g. Fazíamos pequenos e grandes negócios.
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SOLUÇÕES
I.
a. louças
b. vizinhas
c. negócios
d. cestas
e. aldeia
f. sorridente
g. catálogo
II.
a. 1) recorda momentos da sua infância.
b. 3) era um ponto de encontro para os habitantes da aldeia e arredores.
c. 2) vendia de tudo um pouco.
d. 4) vedados a crianças.
e. 3) já fechou as portas.
III.
a. vida dos outros
b. ter tento na língua
c. remediados
d. fiado
e. avulso
f. à socapa
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IV.
a) Na mercearia, onde havia de comida a parafusos, discutia-se o que se passava na aldeia.
b) O caixeiro-viajante, que era um homem bem-disposto, vinha às terças.
c) As bolachas, que eu adorava, eram embaladas pelo meu pai.
d) O que mais me fascinava era a máquina registadora, cuja campainha fazia “plim”.
e) Eu sonhava com o Natal quando recebia sempre um presente de sonho.
f) Acabamos por ficar com o cão, cujos olhos eram muito meigos.
V.
a. Falava-se do tempo.
b. Discutia-se a vida alheia.
c. As pessoas compravam fiado.
d. Comentava-se a venda do gado com os clientes.
e. Provavam-se bolachas.
f. Guardavam-se os pesticidas fora do alcance dos mais novos.
g. Faziam-se pequenos e grandes negócios.