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1 Eixo: Marxismo e educação A MERCANTILIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR E OS IMPACTOS NO PROCESSO DE TRABALHO DOCENTE Fábio Mansano de Mello (UESB) 1 Ana Elizabeth Santos Alves (UESB) 2 Resumo:O presente artigo faz parte de uma pesquisa em andamento que versa sobre as transformações ocorridas no processo de trabalho docente e as formas concretas que o mesmo assume na contemporaneidade. O ponto de partida de nossa investigação está centrado na vigência da lei do valor como mecanismo regulador do trabalho social. O professor que atua no ensino superior particular está inserido numa teia peculiar de relações de trabalho que modela sua atividade e explicita sua condição de proletário; o duplo caráter dessa relação consiste no fato de, primeiro, vender sua mercadoria força de trabalho para o capitalista, que a compra com o fito da valorização e, em segundo lugar, da mercantilização da educação com a expansão dos serviços educacionais no nível superior privado, compreendido como qualquer outro negócio. Essa última afirmativa se constitui no objetivo de nosso artigo, que consiste em analisar o fenômeno da mercantilização do ensino superior brasileiro e o seu desdobramento na desqualificação do trabalho docente, à luz do processo de reestruturação produtiva a partir da década de 1990.O conceito de mercantilização que utilizamos no trabalho está ancorado na reflexão feita por Waldemar Sguissardi, que se apoia na perspectiva teórica marxista segundo a qual existe uma tendência da sociedade capitalista de transformar bens materiais ou simbólicos em mercadorias; após apresentarmos as peculiaridades da mercantilização no ensino superior, cujo ápice é a entrada do capital estrangeiro nos negócios educacionais, nos debruçamos no conceito de desqualificação. Tal discussão está pautada na leitura da seção IV d‟O Capital, no qual Marx analisa a constituição do modo especificamente capitalista de produzir, bem como as metamorfoses sofridas pelo processo de trabalho ao se subsumir no capital. A divisão do trabalho aliada ao desenvolvimento das formas de gestão e inovação tecnológica acarreta, de um lado, uma minoria qualificada que ocupa as posições de comando, e de outro uma maioria de trabalhadores que executam uma atividade repetitiva devido à simplificação e universalização do trabalho.Os efeitos concretos da desqualificação do trabalho docente estão materializados nas suas condições de trabalho, tais como as formas de contrato e regime de trabalho, a titulação acadêmica como moeda de troca, a docência como atividade secundária, a divisão do trabalho e o controle gerencial por parte das IES, o produtivismo acadêmico, dentre outros. 1 Fábio Mansano de Mello, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia, Brasil, [email protected] 2 Ana Elizabeth Santos Alves, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia, Brasil,[email protected]

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Eixo: Marxismo e educação

A MERCANTILIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR E OS

IMPACTOS NO PROCESSO DE TRABALHO DOCENTE

Fábio Mansano de Mello (UESB)1

Ana Elizabeth Santos Alves (UESB)2

Resumo:O presente artigo faz parte de uma pesquisa em andamento que versa sobre as

transformações ocorridas no processo de trabalho docente e as formas concretas que o

mesmo assume na contemporaneidade. O ponto de partida de nossa investigação está

centrado na vigência da lei do valor como mecanismo regulador do trabalho social. O

professor que atua no ensino superior particular está inserido numa teia peculiar de

relações de trabalho que modela sua atividade e explicita sua condição de proletário; o

duplo caráter dessa relação consiste no fato de, primeiro, vender sua mercadoria força

de trabalho para o capitalista, que a compra com o fito da valorização e, em segundo

lugar, da mercantilização da educação com a expansão dos serviços educacionais no

nível superior privado, compreendido como qualquer outro negócio. Essa última

afirmativa se constitui no objetivo de nosso artigo, que consiste em analisar o fenômeno

da mercantilização do ensino superior brasileiro e o seu desdobramento na

desqualificação do trabalho docente, à luz do processo de reestruturação produtiva a

partir da década de 1990.O conceito de mercantilização que utilizamos no trabalho está

ancorado na reflexão feita por Waldemar Sguissardi, que se apoia na perspectiva teórica

marxista segundo a qual existe uma tendência da sociedade capitalista de transformar

bens materiais ou simbólicos em mercadorias; após apresentarmos as peculiaridades da

mercantilização no ensino superior, cujo ápice é a entrada do capital estrangeiro nos

negócios educacionais, nos debruçamos no conceito de desqualificação. Tal discussão

está pautada na leitura da seção IV d‟O Capital, no qual Marx analisa a constituição do

modo especificamente capitalista de produzir, bem como as metamorfoses sofridas pelo

processo de trabalho ao se subsumir no capital. A divisão do trabalho aliada ao

desenvolvimento das formas de gestão e inovação tecnológica acarreta, de um lado, uma

minoria qualificada que ocupa as posições de comando, e de outro uma maioria de

trabalhadores que executam uma atividade repetitiva devido à simplificação e

universalização do trabalho.Os efeitos concretos da desqualificação do trabalho docente

estão materializados nas suas condições de trabalho, tais como as formas de contrato e

regime de trabalho, a titulação acadêmica como moeda de troca, a docência como

atividade secundária, a divisão do trabalho e o controle gerencial por parte das IES, o

produtivismo acadêmico, dentre outros.

1Fábio Mansano de Mello, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia, Brasil,

[email protected] 2Ana Elizabeth Santos Alves, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia,

Brasil,[email protected]

2

Palavras-chave: mercantilização da educação; processo de trabalho; precarização do

trabalho.

Introdução

O presente artigo faz parte de uma pesquisa em andamento que versa sobre

as transformações ocorridas no processo de trabalho docente e as formas concretas que

o mesmo assume na contemporaneidade.O ideário do professor comparado a um

trabalhador intelectual, pesquisador, artífice da ciência é contrastado nas Instituições de

Ensino Superior (IES) privadas com o professor sendo um trabalhador tarefeiro, cujos

contratos de trabalho são efetivados pelo número de horas-aula ministradas e pela

desqualificação do trabalho docente característica da lógica capitalista. Nesse sentido as

IES, que para além da visão de instituição formadora de mão de obra qualificada, de

vetor do desenvolvimento técnico e científico, agem como empresas no sentido de

vender a educação-mercadoria e utilizar as técnicas de controle do capital sobre o

trabalho dos professores com a finalidade de potencializar seus lucros.

O ponto de partida de nossa investigação está centrado na vigência da lei do

valor como mecanismo regulador do trabalho social. O produto deste trabalho, a

mercadoria, se apresenta como um resumo do modo de produção capitalista, à medida

que se generaliza e passa a se constituir em todos os setores da sociedade. O professor

que atua no ensino superior particular está inserido numa teia peculiar de relações de

trabalho que modela sua atividade e explicita sua condição de proletário; o duplo caráter

dessa relação consiste no fato de, primeiro, vender sua mercadoria força de trabalho

para o capitalista, que a compra com o fito da valorização e, em segundo lugar, a

mercantilização da educação como crescimento dos serviços educacionais no nível

superior privado que pode ser compreendida como qualquer outra mercadoria. Assim,

esse artigo tem como objetivo apresentar algumas análises preliminares acercado

fenômeno da mercantilização do ensino superior brasileiro, bem como seus

desdobramentos, como a desqualificação do trabalho docente, à luz do processo de

reestruturação produtiva a partir da década de 1990.

A expansão das faculdades privadas no Brasil está inserida num movimento

mais amplo de expansão do setor de serviços na economia capitalista. Dentre os autores

3

que nos ajudam a compreender a tendência do capital de penetrar em todas as esferas da

produção, destacamos a contribuição de Mandel (1982) e Giannotti (1984).

Segundo Mandel, a expansão do setor de serviços que caracteriza o

capitalismo tardio é o resumo das contradições capitalistas; seu crescimento implica a

absorção pelo capital global, que estende a sua maneira de ser e de operar os serviços,

transformando-os crescentemente em atividades produtivas. Afirma o autor que a

dinâmica do capitalismo reside na capacidade de converter “o capital ocioso em capital

de serviços e ao mesmo tempo substituir o capital de serviços por capital produtivo ou,

em outras palavras, substituir serviços por mercadorias” (op. cit., p. 285). Já Giannotti

reforça a ideia de que o capital revoluciona a produção social, quebrando barreiras

impostas pela sua lógica contraditória. Sua finalidade é a universalização das

mercadorias: "Ao mesmo tempo que esteriliza certos trabalhos efetivos, o capital está,

além do mais, integrando produtos que, inicialmente, não se faziam sob a égide de sua

valorização" (GIANNOTTI, 1984, p. 258). Ressalta o autor que os setores da produção

social não podem ser analisados de forma autônoma, como se esses ramos produtivos

não tivessem ligações estreitas entre si. Carece de sentido a análise unilateral do

desenvolvimento da agricultura, da indústria propriamente dita e dos serviços; no

capitalismo moderno essas determinações se fundem, já que o essencial para o

capitalista não é o produto em si, mas sim a mais-valia gerada no processo. Não raro

constatamos a presença de empresários atuando em várias frentes, na qual volumosas

somas de capitais se deslocam desde o ramo fabril metal-mecânico até a produção

alimentícia: “a grande empresa concorre em vários tabuleiros” (GIANNOTTI, id, p.

275).

Isso aparece empiricamente nos serviços educacionais, fornecendo-nos

elementos para compreender a expansão e a mercantilização do ensino superior privado.

Silva Jr & Sguissardi (2000) indicam que as IES privadas, graças à aproximação com o

mercado e com o setor produtivo, estão cada vez mais promovendo o empresariamento

da gestão, aplicando os fundamentos da lógica concorrencial no plano educacional: “As

estruturas organizacionais e a gestão das IES privadas são cópias adaptadas dos

desenhos organizacionais e da gestão de empresas do setor de serviços, tendendo os

gestores de alto escalão a ser (...) acadêmicos de prestígio” (op. cit., p. 172).

4

Os diferentes aspectos da mercantilização do ensino superior

O conceito de mercantilização que utilizamos neste artigo ancora-se nas

reflexõesde Sguissardi (2008). O autor apoia-se na perspectiva teórica marxista segundo

a qual existe uma tendência da sociedade capitalista de transformar bens materiais ou

simbólicos em mercadorias. Essa ideia aparece no Manifesto Comunista (1997), quando

Marx aponta o caráter revolucionário da burguesia, que para garantir seu projeto de

poder constrói uma nova sociabilidade: “Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo

o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com

sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas” (op. cit., p. 69).

As relações de produção na sociedade capitalista estão centradas no “insensível

pagamento em dinheiro”, nas relações sociais travadas não entre os homens, mas entre

as coisas – as mercadorias; a dinâmica de acumulação de capitais preconizada pela

burguesia “transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre,

o poeta, o homem de ciência” (id., ibid.). Além da questão da generalização das

mercadorias, Marx destacou o caráter contraditório da lógica capitalista ao demonstrar

que em determinados períodos históricos ocorre um esgotamento do modo de produção,

momento em que as relações de produção se tornam incompatíveis com as forças

produtivas por elas postas em movimento. É o período das crises generalizadas. A

superação de tais crises, conforme indica Marx, diz respeito aos esforços da burguesia

em destruir uma massa de forças produtivas, de um lado, e de outro buscando abrir e

explorar novos mercados, além da intensa exploração dos antigos.

À luz das reflexões apontadas por Marx em meados do século XIX,

Sguissardi ressalta que apesar das crises econômico-sociais não chegarem ao seu ápice,

redundando no termo da sociedade capitalista (que conforme Marx seria superada pela

revolução socialista), muito se pode apreender do movimento dialético da realidade

social para se compreender o desenvolvimento de inúmeros setores produtivos da

contemporaneidade. Dentre muitos, destaca o autor a ampliação da educação superior,

ramo em expansão no mercado educacional que se consolida ano após ano como uma

mercadoria rentável, aberta para os mais variados investimentos. Para desdobrar sua

5

teoria sobre a mercantilização do ensino superior, Sguissardi recorre ao economista

César Benjamim que resume três perspectivas apontadas por Marx para a sociedade

burguesa, que servirá de pano de fundo para explicitar a articulação entre educação e

mercadoria:

(a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de

mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela

transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria;

no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria

compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito

mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele

participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela

seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades;

(...) Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da

acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica

incessante. Para incluir o máximo de populações no processo

mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador

daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a

cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a

deteria (BENJAMIM apud SGUISSARDI, 2008, p. 994).

Segundo os grifos de Sguissardi, implícitas estão as conexões entre a

dinâmica apontada por Marx e a mercantilização do campo educacional. “No limite,

tudo seria transformado em mercadoria” diz respeito não só ao crescimento do setor

privado das IES, mas também ao próprio Estado que efetiva uma legislação no sentido

de produzir o que Rodrigues (2007) denomina de educação-mercadoria e mercadoria-

educação. “No limite, esse espaço seria todo o planeta”, se refere à internacionalização

do fenômeno mercantilização da educação apresentando o exemplo da entrada de

capitais estrangeiros na educação superior brasileira. Quanto à “invenção de novos bens

e novas necessidades” graças à sanha capitalista de auferir cada vez mais lucros, o

aparato educacional adequará esse indivíduo-consumidor e produtor de mercadorias no

sentido de enquadrá-lo a um padrão de consumo, alterando “profundamente a cultura e

as formas de sociabilidade”. Estabelecidas tais conexões, questiona Sguissardi: “Porque

as premissas válidas para o livre-mercado em geral não se aplicariam ao mercado

educacional?” (id., p. 996).

Após a definição de mercantilização, vamos aos seus desdobramentos; a

partir das leituras de Silva Jr. e Sguissardi (2001) e Enguita (1993), Camargo (2012)

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aponta três características da educação sob a lógica capitalista contemporânea, que

fundamentam nossa reflexão sobre a mercantilização do ensino superior.

A primeira característica é a perspectiva ideológica da educação.

Durkheim (1965) aponta que a educação está diretamente ligada à história e portanto

varia conforme tempo e lugar: na clássica Atenas procurava-se ilustrar os indivíduos

para que pudessem usufruir do belo e da especulação, na Roma antiga a educação se

preocupava em formar homens de ação, na Idade Média a educação era cristã, na

Renascença possui um caráter mais literário, etc. Nessa linha de raciocínio, entendemos

que a educação não é neutra, no âmbito da sociedade capitalista ela está a serviço das

classes economicamente dominantes para atender a seus interesses imediatos3. Em um

estudo sobre os impactos do ideário neoliberal na educação, Marrach (1996) destaca que

o primeiro objetivo dessa apropriação ideológica é exatamente “atrelar educação escolar

à preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às

necessidades da livre iniciativa”. (op. cit., p. 15). Isso quer dizer que parcela do

empresariado tem interesse numa formação qualificada para competir no mercado. Mas

não é só. O outro lado da moeda é a compreensão dessa fatia da burguesia que vê a

ciência como uma força produtiva:

Sobre a associação da pesquisa científica ao ethos empresarial é

preciso lembrar que, segundo Michel Apple, na sociedade

contemporânea a ciência transforma-se em capital técnico-científico.

E as grandes empresas controlam a produção científica e a colocam a

seu serviço de diversas formas: a) por meio do controle de patentes,

isto é, controle de produtos de tecnologia científica. Assim, percebem

as novidades e as empregam, antecipando tendências no mercado; b)

por meio da pesquisa científica industrial organizada na própria

empresa; e c) controlando o que Apple chama de pré-requisitos do

processo de produção científica, isto é, a universidade. A integração

da universidade à produção industrial baseada na ciência em capital

técnico-científico. (MARRACH, op. cit., p. 16).

Nesse sentido, constatamos o interesse do empresariado em fortalecer o

discurso de uma educação voltada para o mercado de trabalho, cuja finalidade é a

3“No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do sistema público de

ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos

orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, que

„tudo se vende, tudo se compra‟, „tudo tem preço‟, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade

que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais

à sua lógica do consumo e lucro” (SADER, 2005, p. 16)

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qualificação do trabalhador. Conforme aponta Bruno (2011), a qualificação da força de

trabalho é compreendida como valor de uso para o capitalista que vai explorá-la, ao

passo que para o trabalhador ela é uma mercadoria alienável, entendida como valor de

troca. “Daí ser do interesse do capitalista controlar os processos formativos, que devem

produzir capacidade de trabalho dentro de certos padrões exigidos pela organização do

trabalho e pela tecnologia utilizada, o que envolve conhecimento e disciplina” (op. cit.,

p. 557). Por outro lado, a apropriação da ciência como força produtiva pelo capital

implica na construção da mercadoria-conhecimento, assim descrita por Trein&

Rodrigues (2011):

Sob o capitalismo, em última instância, o valor de uso de um objeto é

precisamente o seu valor de troca. Em outras palavras, em nossa

sociedade, as coisas, as pessoas, e o próprio conhecimento científico

sofre um empuxo à mercantilização, ou seja, a subsunção de seu valor

de uso ao valor de troca. O conhecimento científico, nessa

perspectiva, só tem valor se tem valor de troca, se é conversível em

outra mercadoria, se pode ser mercantilizado, enfim.

A versão mais pronta e acabada desse processo de conversão do valor

de uso do conhecimento científico em mercadoria, ou seja, em valor

de troca, é a forma-patente. Ou seja, aquele título que assegura ao

“autor” de uma invenção sua propriedade privada e, portanto, seu uso

exclusivo e alienável mediante pagamento (op. cit., p. 776).

A segunda característica diz respeito à expansão da mercadoria-educação,

onde o capitalista industrial compreende o conhecimento como insumo necessário à

produção de outras mercadorias, daí a inversão de capitais das mais variadas esferas no

âmbito das IES privadas; Giannotti (1984) exemplifica esse processo ao tratar da

relação entre capital e riqueza social, demonstrando a circularidade do capital social

total. Na busca da valorização, o capital ora se apresenta na forma dinheiro, ora na

forma capital produtivo, ora como capital mercantil, e depois de cumprir um

determinado ciclo ele reaparece como mercadoria a ser lançada e consumida pela

sociedade. Autores como Sguissardi (2008), Carvalho (2013), Chaves (2010), Oliveira

(2009), demonstram como grupos empresariais adentram a educação superior, com o

amparo de políticas públicas e do capital estrangeiro.

A projeção da mercadoria-educação no ensino superior brasileiro ganha

impulso a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

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(LDBEN), de dezembro de 1996. Essa lei foi promulgada à luz das recomendações do

Banco Mundial, tais como o documento HigherEducation:

thelessonofexperience(1994), e abre brechas para a mercantilização do ensino no

momento em que permite a criação de estabelecimentos educacionais lucrativos. Ora,

atendendo às orientações do Banco Mundial tais como maior diferenciação institucional

(o órgão sugere que as universidades de ensino, sem pesquisa, são mais adequadas para

os países em desenvolvimento do que as universidades de modelo humboldtiano, com

pesquisa e extensão)4 e diversificação do financiamento da educação (o ensino superior

deve ser visto como uma mercadoria, cujos investimentos caberiam sobretudo à

iniciativa privada)5, a LBD (Brasil, 1996) regimenta:

Art. 20. As instituições privadas de ensino se enquadrarão nas

seguintes categorias:

I – particulares em sentido estrito, assim entendidas as que são

instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas de

direito privado que não apresentem as características dos incisos

abaixo;

II – comunitárias, assim entendidas as que são constituídas por grupos

de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive

cooperativas educacionais, sem fins lucrativos, que incluam na sua

entidade mantenedora representantes da comunidade; (Redação dada

pela Lei n° 12.020, de 2009)

III – confessionais, assim entendidas as que são constituídas por

grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que

atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao

disposto no inciso anterior;

IV – filantrópicas, na forma da lei.

O referido artigo foi regulamento pelos decretos n° 2.207 e 2.306, ambos de

1997, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso. Esses documentos forneciam o

aparato legal de diferenciação entre as instituições não-lucrativas e as empresas

educacionais; quem optasse pelo estatuto de empresa lucrativa perderia a isenção sobre

4“Em outras palavras, trata-se da „tese‟ de que a educação superior baseada no princípio da associação

entre ensino, pesquisa e extensão seria, a curto e médio prazo, inviável teórica e financeiramente, disto

decorrendo, entre outras, a recomendação de estabelecer-se de modo claro e oficial a dualidade

institucional universidade de pesquisa (...) e universidade de ensino” (SGUISSARDI, 2000, p. 48). 5“(...) reporta-se à tese de que o conhecimento propiciado pelo ensino superior deve ser visto cada dia

mais como investimento produtivo, garantia de ganhos comparativos consideráveis para os que dele

possam vir a dispor, bem privado ou mercadoria de interesse individual negociável no mercado das

trocas, disto decorrendo, portanto, a recomendação de que o Estado, enfraquecido pelo déficit público,

gradativamente se afaste (ainda mais) da manutenção desse nível de ensino” (id., ibid.)

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o imposto de renda, o patrimônio, os serviços, bem como o acesso ao fundo público. No

entanto, o apoio do Estado é garantido às instituições que aderiram ao Programa

Universidade para Todos (PROUNI) a partir de 2005. Tal adesão possibilitou a isenção

do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e de três contribuições: Contribuição

Social sobre o Lucro Liquido (CSLL), Contribuição Social para o Financiamento da

Seguridade Social (COFINS) e Contribuição para o Programa de Integração Social

(PIS) (CARVALHO 2013).

Carvalho indica ainda que a mercantilização do ensino superior brasileiro

está inserido num cenário ampliado de expansão lucrativa do sistema educacional em

todo o globo; cita o modelo de diferenciação institucional aplicada nos Estados Unidos

e uma tendência que seria mais tarde copiada no caso brasileiro: no início da década de

1990 as instituições de ensino americanas com finalidade lucrativa têm suas ações

negociadas na Associação Nacional Corretora de Valores e Cotações Automatizadas

(NASDAQ) e na Bolsa de Valores de Nova York. A partir de então a educação superior

se efetiva como um negócio rentável e a expansão das matrículas seguem num ritmo

acelerado. No Brasil a mercantilização acentua-se no final dos anos 90, seja através do

aumento da oferta de cursos de graduação (presencial e à distância), seja através do

fortalecimento do comércio de materiais como livros, apostilas e softwares. Do ponto de

vista gerencial, as IES tomaram algumasmedidas, seguindo tendências internacionais,

que Carvalho assim destaca:

1) Profissionalismo da gestão. Nesse cenário altamente competitivo, é imperioso que as

IES possuam uma estrutura organizacional preparada para os novos desafios do

mercado; partindo da realidade nacional onde grande parte das mantenedoras é

administrada por grupos familiares – com um modelo de gestão muitas vezes informal –

tornou-se necessário uma gerência altamente profissional. Essa demanda abre espaço

para um nicho rentável do mercado educacional, que são as consultorias:

A pioneira no ramo é a CM Consultores, que atua desde 1988, cujo

proprietário é o professor Carlos Antônio Monteiro, especializada em

gestão educacional, na oferta de cursos e seminários. Destacam-se

ainda: a PRS Consultores, Lobo & Associados Consultoria e a Hoper

Educacional. A primeira era de propriedade do ex-ministro da

educação Paulo Renato de Souza, que parece estar desativada. A

segunda está em funcionamento desde 1999 e é de propriedade de

Roberto Leal Lobo e Silva Filho, ex-reitor e vice-reitor da

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Universidade de São Paulo (USP) e ex-reitor da Universidade de Mogi

das Cruzes, que oferece assessoria, consultoria, além de ministrar

cursos, seminários, workshops, treinamentos aos gestores das IES

privadas e vender uma série de “produtos” direcionados a atender sua

clientela. (...) A terceira atua nas áreas de consultoria de gestão,

estudos de mercado, educação executiva, produção de conteúdo e

metodologias de ensino; foi fundada pelo professor Ryon Braga em

1997 (CARVALHO, id., p. 766)

As consultorias se ocupam basicamente dos planos de negócios e da

reengenharia institucional, propiciando não somente a saúde financeira da empresa, mas

também possibilitando que a mesma se transforme numa vitrine para atrair as variadas

formas de capital para investimento.

2) Tendência da oligopolização do ensino superior. Trata-se da estratégia de grupos de

empresários que transformam os estabelecimentos de ensino em grandes conglomerados

ou holdings. Chaves (2010) ao analisar a formação desses oligopólios identifica

volumosa movimentação financeira do setor a partir de 2007, momento em que se

destacam quatro empresas nesse mercado: “A Anhanguera Educacional S. A., com sede

em São Paulo; a Estácio Participações, controladora da Universidade Estácio de Sá, do

Rio de Janeiro; a Kloton Educacional, da Rede Pitágoras, com sede em Minas Gerais; e

a Empresa SEB S. A., também conhecida como „Sistema COC de Educação e

Comunicação, com sede em São Paulo” (id., p. 491). Sobre a movimentação das fusões

e aquisições no mercado, destaca Carvalho:

A KPMG Corporate Finance é uma rede global de empresas

independentes que prestam serviços profissionais de audit, tax e

advisory e é responsável pela publicação trimestral sobre a trajetória

das fusões e aquisições na economia brasileira. No ano de 2007,

houve 19 aquisições no setor educacional, o que motivou o

desmembramento, a partir do ano seguinte, da classificação até então

genérica de “outros” para o setor “educação”. Em 2008, foram

registradas 53 transações, o que levou o setor à impressionante

posição de terceiro lugar no ranking nacional. Em 2009, em virtude da

crise internacional que assolou o mercado financeiro em geral, e em

especial o setor educacional, houve redução acentuada para 12

operações, ainda assim, o setor educacional ocupou a décima segunda

posição entre os setores econômicos. Em 2010, ocorreu ligeira

recuperação para 20 operações, mantendo-se o mesmo

posicionamento, e em 2011 ocorreu novo aumento para 27 operações

e a subida de uma posição no ranking das transações (KPMG, 2012)

(id., p. 769).

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Como consequências dessas operações, temos a formação das chamadas

“redes” empresariais, que compram materiais e equipamentos em larga escala,

barateando-os e podendo diminuir o preço das mensalidades; em curto prazo essa

empresas vão superando a concorrência que não consegue ter competitividade no

mercado e acabam sendo compradas/incorporadas a essas redes de ensino.

3) Entrada de capitais estrangeiros nos estabelecimentos nacionais. A mercantilização

do ensino superior está ligada também ao processo de desnacionalização da educação.

Embora exista um projeto de reforma do ensino superior, que tramita desde 2006 no

Congresso Nacional, em cujo texto aponta um limite de 30% do capital total pertencente

a grupos estrangeiros, nada temos de concreto para regulamentar o montante destes

investimentos. Os grupos pioneiros nessa área foram:

(...) a LaureateEducation, que adquiriu 51% do capital da

Universidade Anhembi Morumbi, em 2005, e 90% do Centro

Universitário Hermínio da Fonseca, em 2010; a Whitney

InternationalUniversity System, que adquiriu 60% do capital das

Faculdades Jorge Amado (Bahia), que em 2006 foi transformada em

Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE); e a rede

DeVryUniversity, que adquiriu 69% da Faculdade Nordeste. As três

representam grandes conglomerados provenientes de empresas

americanas com ampla capilaridade no mundo dos negócios.

(CARVALHO, id., p. 770).

4) Investimentos nos fundos privateequity e ações na bolsa de valores. Os fundos de

privateequity são investimentos realizados em empresas de capital aberto ou fechado,

que injetam elevadas somas de recursos no campo educacional, mediante a ação de

grupos fechados de especuladores nacionais ou estrangeiros6. Segundo Oliveira (2009)

estes fundos de investimentos olha com atenção o mercado educacional desde o início

dos anos 2000, período de expansão das matrículas no setor; aponta duas transações

comerciais dessa modalidade de investimento que considera sintomática no que se

refere à internacionalização de capitais na educação superior. A primeira foi a aquisição

6“Enquanto o venture capital está relacionado a empreendimentos em fase inicial, o privateequity está

ligado a empresas mais maduras, em fase de reestruturação, consolidação e/ou expansão de seus negócios.

A essência do investimento está em compartilhar os riscos do negócio, selando uma união de esforços

entre gestores e investidores para agregar valor à empresa investida. Os investimentos podem ser

direcionados para qualquer setor que tenha perspectiva de grande crescimento e rentabilidade no longo

prazo, de acordo com o foco de investimentos definido pelos investidores ou fundos” (ABVCAP apud

OLIVEIRA, 2009, p. 743).

12

da Universidade Anhembi-Morumbi, em dezembro de 2005, pelo grupo americano

Laureate. A segunda foi a aquisição de 70% do grupo Anhanguera Educacional, que

controla um complexo de IES no interior de São Paulo, com mais de 20 mil alunos, por

um fundo de investimento administrado pelo Banco Pátria. Sobre as peculiaridades dos

fundos privateequityno ensino superior, destaca-se a profissionalização da gestão e a

maximização do lucro.

Outro movimento no mercado educacional foi a venda das ações das

empresas de educação na bolsa de valores; em 2007 foram lançadas na BOVESPA as

ações da Anhanguera Educacional, seguida pela Estácio de Sá, Kroton Educacional, do

Grupo Pitágoras e pela Sociedade Educacional Brasileira, movimentando cerca de R$ 2

bilhões de reais no biênio 2007-2008. Como consequência dessafinanceirização da

educação superior, temos o impulso à fusões e a incorporação das pequenas faculdades,

a tendência já apontada do oligopólio, o comprometimento da gerência com os

interesses dos acionistas, bem como a acentuada internacionalização dos capitais

investidos na educação brasileira.

Algumas formas concretas da educação-mercadoria

Uma terceira característica da mercantilização do ensino superior é a

consolidação da educação-mercadoria. Segundo Rodrigues, ocorre um movimento

peculiar das IES privadas a partir da década de 1990, no sentido da reconfiguração do

ensino superior segundo a racionalidade econômica vigente. Trata-se das

transformações das referidas IES em verdadeiras empresas de ensino, incluindo a

comercialização da mercadoria-educação, ao mesmo tempo em que ajustam a formação

acadêmica às demandas do capital produtivo. Dessa forma, “os empresários do ensino

vêm buscando ampliar seus negócios, identificando educação-mercadoria com

mercadoria-educação.” (op. cit., p. 16).Potencializando esses efeitos, o estado brasileiro

consolida uma legislação que privilegia a ideia de educação-mercadoria, criando os

mais variados mecanismos de avaliação e comparação entre as IES, elaborando

rankings que estabelecem uma espécie de controle de qualidade tal como ocorre no

mundo empresarial:

Dessa forma, as instituições de ensino superior no Brasil passam a

cumprir uma série de exigências postas pela legislação federal que

impõe várias recomendações. O discurso do MEC, nesse momento, é

13

o da busca do pleno controle da qualidade da formação em nível

superior. Nesse sentido, estabelece critérios de avaliação institucional,

define comissões de verificação in loco, institui exame nacional de

cursos, propõe estudos sobre a dinâmica do ensino superior, articula

grupos para o estabelecimento de novas diretrizes de formação

profissional, entre tantas outras providências. Esse conjunto de

atividades acaba por mascarar todo o contexto que efetivamente

consolidou o ensino superior como mercadoria. O mérito da

mercantilização não está em questão; portanto, o que se discute, em

tese, é a (pseudo) qualidade e todos os meandros que a define; ou seja,

no projeto neoliberal, o quadro mercantil é irreversível e o controle

sustentado por um contexto de verificação externa, respaldado por um

conjunto de procedimentos previamente definidos e identificados

como “diretrizes curriculares”, “indicadores de qualidade” e

“processos de avaliação”. (CAMARGO, op. cit., p. 80).

A educação-mercadoria, dessa forma, é caracterizada pelo interesse do

capital comercial em vender serviços educacionais, já que o capital investido nessa área

“tenderá a tratar a prática social educacional como uma mercadoria cujo fim é ser

vendida no mercado educacional” (Rodrigues, op. cit., p. 06). Um curso de graduação

oferecido pelas IES privadas é um exemplo pontual de uma educação-mercadoria.

Tabela 1 - Evolução do número de instituições

1995 2003 2013

IES Públicas

210

207

301

IES Privadas 684 1652 2090

Fonte: INEP (2013)

Disponível emhttp://portal.inep.gov.br/superior-censosuperior-sinopse

(Organização dos autores)

A tabela 1 apresenta o crescimento numérico expressivo das IES

particulares a partir de 1995. Podemos destacar a influência da Lei n° 9.394/96 nesse

processo, onde afirma no § 2° do art. 54 que “atribuições de autonomia universitária

poderão ser estendidas a instituições que comprovem alta qualificação para o ensino ou

para a pesquisa, com base em avaliação realizada pelo Poder Público”. Dessa forma,

concede certa autonomia para as instituições que mesmo sem realizar pesquisa e

extensão, possam comprovar qualidade no ensino. Segundo Dias (2006) é o momento

em que as faculdades isoladas se transformam em centros universitários, consolidados

14

pelo Decreto nº 2207, de 15 de abril de 1997. Em seguida, este último foi substituído

pelo Decreto nº 2306, de 19 de agosto do mesmo ano, que mantém as condições gerais

apresentadas no decreto anterior, acrescentando que “além da criação e extinção de

cursos e programas, a possibilidade dos centros universitários remanejarem e mesmo

ampliarem o número de vagas dos cursos existentes” (DIAS, op. cit., p. 67). Na análise

de Camargo (2012), a partir desse momento as instituições procuram novos

investimentos e quando não conseguem, vendem ou buscam uma fusão com quem

evidentemente tenha condições de levar o projeto adiante. Nesse momento temos a

entrada do capital estrangeiro na educação superior, respaldada pela Organização

Mundial do Comércio (OMC):

(...) os encaminhamentos adotados pela OMC possibilitaram a

internacionalização de capitais produtivos na educação superior

brasileira e definiram um panorama empresarial que coloca sob

suspeita qualquer possibilidade de controle por parte do MEC, mesmo

porque o órgão tornou-se ineficaz frente às instituições internacionais

de amparo às transações comerciais. Essa situação se agravou na

medida em que ações de empresas educacionais foram colocadas na

Bolsa de Valores induzindo a um descontrole na origem dos capitais

investidos. (CAMARGO, op. cit., p. 107).

No entanto o desenvolvimento e a realização da educação-mercadoria não se

encerram na venda dos serviços educacionais conforme apontamos; o professor que atua

na empresa privada de ensino tão logo vende sua força de trabalho ao empresário da IES

coloca tal mercadoria a serviço da acumulação capitalista, como peça de uma

engrenagem mais ampla que é o trabalho abstrato criador de valor. Quando se consome

o serviço educação privada, mais do que a possibilidade de acesso a um emprego, está

sendo alimentada uma gama de relações sociais não entre pessoas, mas entre portadores

de mercadorias que se relacionam no mercado: dessa forma, os homens vivem o fetiche

da mercadoria que se amplia no fetichismo do capital.

Atentemos para o caráter produtivo do trabalho docente das IES privadas,

que fundamenta sua condição de mercadoria rentável. Para a manutenção do modo de

produção capitalista, é necessária a exploração do trabalho pelo capital, através da

extração de mais-valia; ora, portanto só é produtivo (do ponto de vista do capital),

aquele trabalho que produz mais-valia. Escreve Marx: “A diferença entre trabalho

15

produtivo e trabalho improdutivo é importante com respeito à acumulação, já que só a

troca por trabalho produtivo constitui condição de reconversão da mais-valia em

capital.” (MARX, 1900, p.120). Salientemos que Marx retoma esses dois termos,

trabalho produtivo e improdutivo, a partir da teoria clássica burguesa, principalmente de

Smith; segundo ele, trabalho produtivo é todo aquele trabalho que gera um lucro, e

trabalho improdutivo aquele que não gera lucro, em linhas gerais. O que Marx critica

nos clássicos é exatamente o caráter da produção num determinado momento histórico,

ou seja, a produção capitalista; sob essas condições, a produção material está ligada à

produção da mais-valia, a essência do capital. Portanto, sob a perspectiva da produção

capitalista, é trabalho produtivo aquele que fornece a mais-valia ao capitalista, e

trabalho improdutivo aquele que não contribui para a valorização do capital. Marx não

só critica a economia clássica por enxergar a produtividade em geral e não a sua

especificidade no sistema capitalista, ou seja, a produção do sobretrabalho, como vai

além; afirma que, através da subsunção real do trabalho no capital, o trabalhador isolado

não é o agente real do processo de trabalho, mas sim um integrante de uma estrutura

mais ampla, o trabalhador coletivo. Esse fato nos remete à seguinte questão: não

importa saber se o trabalhador está mais distante ou mais próximo do produto final do

processo produtivo; o que realmente interessa aqui, do ponto de vista da produção

capitalista, é que o trabalhador está inserido num conjunto de atividades conjuntas cujo

fim é a produção de mercadorias.

Temos ainda que todo trabalho produtivo é assalariado, mas nem todo

assalariado é produtivo; vale aqui explicitar o conceito de proletário que, segundo Marx,

é “economicamente o assalariado que produz e valoriza „capital‟ e é jogado na rua assim

que se torna supérfluo para as necessidades de valorização de „Monsieur Capital‟ como

Pecqueur chama a esse personagem”. (MARX, 1982b, nota 70, p. 188). Podemos

constatar que todo proletário é um trabalhador, mas nem todo trabalhador é proletário.

Se contrato algum serviço para consumí-lo enquanto valor de uso, tal trabalho não

acrescenta valor ao capital, portanto é improdutivo. “Em resumo, o critério é este: o

trabalho produtivo é trocado por capital; o trabalho improdutivo é trocado por renda”.

(NAPOLEONI, 1981, p. 107). O que faz com que o trabalho seja produtivo é o fato de

ser socialmente determinado, produzir um valor de troca; assim sendo, o mesmo

16

trabalho pode ser tanto produtivo quanto improdutivo, dependendo da forma como é

empregado. Vejamos nosso exemplo: um professor de escola pública é um trabalhador

improdutivo, ao passo que o mesmo professor, atuando na escola privada, ou seja, numa

empresa capitalista, é um trabalhador produtivo e proletário. O determinante é a

natureza das relações sociais. Sobre a especificidade da esfera do trabalho produtivo e

do trabalho improdutivo, vejamos esta elucidativa passagem d‟O Capital:

Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção

material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele

não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo

para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha

investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de uma fábrica

de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de trabalho

produtivo, portanto, não encerra de modo algum apenas uma relação

entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho,

mas também uma relação de produção especificamente social,

formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio direto

de valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto,

sorte, mas azar. (MARX, 1982b, pp. 105-6)

Compreendemos, nesse sentido, o caráter produtivo do trabalho docente, sua

condição de proletário – exposto às vicissitudes do mercado de trabalho – além de

verificarmos que o docente que atua nas IES privadas, via de regra, atua como mero

reprodutor de conhecimentos planejados fora do contexto escolar. Mais ainda, esse

professor tem sua autonomia comprometida pelo planejamento da instituição de ensino,

onde os saberes são transmitidos mediante uma bibliografia insuficiente e

disponibilizados através de reprografia, e a investigação científica substituída por uma

formação rápida em nome da dinâmica do mercado de trabalho. Ocorre um duplo

barateamento, tanto do preço dos cursos de graduação que se expandem e se

universalizam, tanto do preço da força de trabalho docente que sofre o impacto da

concorrência do mercado.

Os impactos da mercantilização da educação na desqualificação docente

Entendemos que a reestruturação produtiva produziu impactos nas diversas

áreas da produção; no campo educacional, se faz presente seja através de legislações,

organização de currículos e da própria transformação da dinâmica do trabalho docente.

Os padrões flexíveis do novo modelo de acumulação fundamentam um aparato no

17

processo de trabalho de modo a construir não apenas uma nova subjetividade operária,

mas um novo disciplinamento da força de trabalho. No caso dos docentes do ensino

superior privado, entendemos que o discurso da eficiência e da empregabilidade

utilizado nas IES é mais forte do que as marcas da precarização do trabalho. Em outras

palavras, os professores naturalizam a desqualificação do trabalho a que estão

submetidos por aderirem às imposições do mercado e da lógica do capital, que por sua

vez aumenta cada vez mais o controle sobre o trabalho docente.

O processo de flexibilização demanda transformações na educação que

afetam diretamente o ensino superior, que passa a traçar um novo perfil de

competências e habilidades para que os egressos das IES privadas tenham condições de

inserção no mercado de trabalho. A abertura de novos nichos no mercado redunda numa

massificação do ensino que está distante de uma universalização do mesmo. Bruno

(2011) aponta que embora o mercado tenha exigido cada vez mais um aumento da

escolaridade, “essa produção (...) trata-se apenas de garantir o aprendizado de

conhecimento meramente instrumental e as competências trabalhadas são de caráter

adaptativo às exigências do sistema.” (op. cit., p. 554). Esse pressuposto incide sobre o

docente que agora deve apresentar também outro perfil, novas competências que vão

além do mero processo de ensino-aprendizagem consolidado em nossas universidades.

Para que essa nova exigência se consolide, necessita-se de “um trabalhador vulnerável

quanto à ocupação que executa, mutante quanto ao trabalho que desenvolve, afável no

que se refere à disciplina no ambiente produtivo e tolerante no que tange às relações de

contrato e salário”. (CAMARGO, 2012, p. 94).

A questão da desqualificação do trabalho que incorporamos nessa discussão

está pautada na leitura da seção IV d‟O Capital, onde Marx (1982a) analisa a

constituição do modo especificamente capitalista de produzir, bem como as

metamorfoses sofridas pelo processo de trabalho ao se subsumir no capital: estamos

tratando das reflexões sobre a cooperação, manufatura e grande indústria.A ciência e a

tecnologia sob a égide do capitalismo têm uma particularidade decisiva do ponto de

vista da acumulação: reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário e desqualificar

o trabalhador. Tal processo tem ocorrido nas mais variadas esferas da sociedade, sejam

nas empresas de ensino, nos bancos, escritórios, indústrias, etc. O desenvolvimento das

18

técnicas acarreta, de um lado, uma minoria qualificada que ocupa as posições de

comando e de outro uma maioria de trabalhadores que executam uma atividade

repetitiva devido à simplificação e universalização do trabalho.

No caso da educação superior, Bruno (2011) explica que as medidas de

desqualificação profissional são mecanismos típicos da mais-valia absoluta, o que

redunda em baixos salários, além de prejuízo no que tange à qualidade da educação.

Segundo ele: “O que se denomina hoje, no Brasil, degradação do ensino é, em pelo

menos um aspecto, a dificuldade de se obterem ganhos de produtividade na forma atual

de organização do ensino, tendo de se recorrer à mera redução de custos” (op. cit, p.

559). Em relação aos custos temos questões objetivas de análise deste setor, tais como

os tipos de contrato de trabalho, onde geralmente os docentes são horistas, temporários,

em tempo parcial, muitos deles sem carteira de trabalho assinada e basicamente

atendem à demanda do ensino deixando de lado pesquisa e extensão. Trigueiro (2000)

destaca que os “horistas” compõem parcela significativa do quadro docente das IES

particulares, que “comparecem apenas para dar as suas aulas e corrigir provas ou

trabalhos dos alunos e não desenvolvem outra atividade acadêmica relevante alguma”.

(op. cit., p.73).

Tabela 2 – Funções docentes em exercício e regime de trabalho - 2013

Total Tempo Integral Tempo Parcial Horista

IES Públicas

155.219

126.592

18.485

10.142

IES Privadas 212.063 52.818 74.688 84.557

Fonte: INEP (2013)

Disponível em http://portal.inep.gov.br/superior-censosuperior-sinopse

(Organização dos autores)

Com base no censo do INEP de 2013, num comparativo entre as IES

públicas e privadas, constata-se que nas primeiras instituições 81,5% dos professores

trabalham em regime de tempo integral; no caso das IES particulares o quadro é bem

distinto. Os docentes que atuam em tempo integral representam 24,9% do total, ao

passo que o contrato por tempo parcial ocupa 35,2% e finalmente os horistas

correspondem a 39,9% desses profissionais. Fica reforçado que a condição de horista é

19

um dado marcante no que tange os contratos de trabalho entre as IES particulares. Não

só diz respeito às condições de pesquisa e extensão nesses estabelecimentos, já que os

professores não dispõem de carga horária e remuneração para tais atividades, mas

também explicita a condição de trabalho dos docentes marcada pela desqualificação.

A questão da titulação dos docentes também merece destaque nesse cenário;

dentre as questões que influenciam nesse quesito, primeiramente está posta a letra da

lei. No artigo 52 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20

de dezembro de 1996), que trata da Educação Superior, especificamente no inciso II,

exige das universidades “um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação

acadêmica de mestrado ou doutorado”. Verifica-se que as IES privadas utilizam-se da

estratégia não só de contratar uma força de trabalho barata com um mínimo de

especialização, mas também buscam professores titulados das universidades públicas,

bem como os aposentados dessas instituições, pois necessitam dos referidos títulos

principalmente no momento de credenciamento e reconhecimento de seus cursos.

Tabela 3 – Funções docentes em exercício, por grau de formação - 2013.

Total Sem

Graduação

Graduação Especialização Mestrado Doutorado

IES Públicas

155.219

12

7825

18.884

45.975

82.523

IES Privadas 212.063 4 1180 72.356 99.856 38.667

Fonte: INEP (2013)

Disponível em http://portal.inep.gov.br/superior-censosuperior-sinopse

(Organização dos autores)

A tabela 3 nos mostra que as IES públicas contam com 82,8% de mestres e

doutores em seus quadros, ao passo que as IES privadas possuem 65,3% desses

titulados; destacamos ainda o número absoluto de doutores nas universidades públicas,

apontando a preocupação com o tripé ensino-pesquisa-extensão, bem como a elevada

proporção de especialistas no ensino particular, que abarca 34,2% de profissionais, ao

passo que as IES públicas contam com 12,1% de docentes especialistas. Os mestres e

doutores das instituições particulares, com os referidos regimes de trabalho apresentam

uma face da desqualificação profissional: um indivíduo com certificação elevada sujeito

20

às vicissitudes de um processo de trabalho que, a despeito de sua formação, remunera

mal e realiza um contrato de trabalho precário. Não deixa de se apresentar, tal

fenômeno, como um fetiche da profissionalização: o título ganha vida e importância e o

seu portador está coisificado como mercadoria7.

França (2009) aponta em seu estudo o caráter excludente das relações

capitalistas de produção, que cria um exército industrial de reserva que condiciona os

trabalhadores ativos a aceitarem suas condições concretas de exploração; no mesmo

sentido, reflete sobre a situação do aumento de professores com títulos de mestres e

doutores, formados em série pelas instituições de ensino, constituindo-se num “exército

industrial da educação disponível à espera de uma oportunidade de trabalho na docência

do ensino superior” (op. cit., p. 9). A autora destaca a instabilidade no emprego e o

controle rígido aos quais são submetidos os docentes das IES privadas. A qualidade

mínima do ensino deve se traduzir nas avaliações internas e externas que são

submetidos os alunos, bem como as avaliações que as próprias instituições e estudantes

fazem em relação ao docente. Mais ainda, para a construção de um “vinculo emocional-

afetivo” entre professor-aluno e professor-instituição, o docente precisa estar à

disposição para “atendimento administrativo, relatórios, aulas promocionais,

participação de eventos diversos institucionais fora do seu horário de trabalho” (id.,

ibid.).

Vale ressaltar outros elementos que compõem o cenário da desqualificação

do trabalho docente, tais como: a) número excessivo de estudantes em sala de aula; b)

participação de atividades extracurriculares sem remuneração; c) professores que não

têm na docência sua atividade principal. d) o caráter dúbio da titulação docente, onde a

empresa escolar exige os títulos para garantir a aprovação, reconhecimento e

credenciamento de seus cursos, e por outro lado docentes que precisam “esconder” seus

diplomas porque são qualificados demais para o mercado. e) nivelamento por baixo do

7“Nesse esquema de produção de „diplomas‟, todos executam a mesma tarefa, o que desmancha uma

hierarquia definida pela qualificação, apesar de que a titulação do professor pode estabelecer níveis

diferenciados; contudo, tais níveis não interferem na dinâmica do processo produtivo. Por isso, às vezes, é

mais conveniente o professor menos titulado para determinar o rebaixamento dos salários. O trabalho

qualificado ou titulado é aquele que pode conferir maior valor (direto ou indireto) na mercadoria. Na IES

privada, a titulação é mais uma chancela de propaganda do que a necessidade concreta para a formação

profissional dos trabalhadores”. (CAMARGO, op. cit., p. 86).

21

ensino devido ao nível qualitativo educacional dos alunos das IES privadas que,

teoricamente, é inferior aos dos alunos das IES públicas.

Partindo de uma análise materialista referendada por autores como Jáen,

Apple e Braverman, José Contreras (2002) destaca três elementos que caracterizam a

racionalização8 do trabalho e que podem ser pensados na atividade profissional docente:

a) separação entre concepção e execução das tarefas; b) desqualificação, compreendida

como a perda do conhecimento de planejar, compreender e agir sobre a produção e c)

perda de controle sobre o próprio trabalho.

No que tange a separação entre o pensar e o executar, constata-se que a

racionalização na produção escolar, cujas técnicas são especialmente advindas da

administração escolar norte-americana, tem criado uma enorme massa de trabalhadores

escolares que não frequentam as salas de aula. Esses burocratas do ensino atuam no

sentido de organizar o material didático, determinar o conteúdo das disciplinas, o modo

através do qual esse conhecimento deve ser transmitido ao aluno, bem como as técnicas

apropriadas para a assimilação do mesmo. Isso demonstra que as escolas se organizam

em moldes empresariais e seguem os padrões industriais de gerência sobre o processo

produtivo (APPLE, 1995).

A desqualificação, segundo Contreras, diz respeito à organização cada vez

mais pontual do currículo, às técnicas de diagnósticos e avaliação discente, às técnicas

comportamentais voltadas ao controle disciplinar dos alunos, às cadernetas eletrônicas

sob a responsabilidade de preenchimento do docente, aos manuais didáticos que

determinam as atividades a serem realizadas, etc. Esse processo possui desdobramentos:

Esse processo de desqualificação dos professores vem acompanhado

de novas formas de requalificação (Apple, 1987; Apple e Jungck,

1990), na medida em que tiveram de desenvolver novas habilidades de

acordo com esse processo de racionalização, como é o caso da

8Entendemos por racionalização o conjunto de técnicas com vistas a aumentar o tempo de trabalho

excedente. Trata-se de uma racionalização do ponto de vista do capital, que não delega ao trabalhador a

missão de „trabalhar melhor‟, mas sim „trabalhar mais‟. Cf. Simone Weil, que faz uma crítica ao

taylorismo enquanto técnica de racionalização da produção: “No final das contas, este sistema contém o

essencial daquilo que hoje se chama a racionalização. Os contramestres egípcios tinham chicotes para

levar os operários a produzirem; Taylor substituiu o chicote pelos escritórios e pelos laboratórios, com a

cobertura da ciência.” (WEIL, 1996, p. 145).

22

aprendizagem de novas técnicas de programação ou de avaliação, ou

na medida em que novas especializações se desprenderam das funções

que anteriormente correspondiam aos professores, como é o caso da

orientação (Jiménez Jáen, 1988; Lawn e Ozga, 1988). (CONTRERAS,

op. cit., p. 36-37).

Finalmente temos a questão do controle sobre o próprio trabalho, onde a

racionalização implica também numa intensificação das atividades. O controle sobre o

trabalho gera um estranhamento do trabalhador em relação a sua atividade, que uma vez

mal remunerada, leva o docente a trabalhar em várias instituições, lecionando conteúdos

diferenciados, sem tempo para pesquisa científica. Contreras aponta como consequência

dessa realidade a rotinização do trabalho, que impede o desenvolvimento de atividades

intelectuais reflexivas e colabora com o isolamento do indivíduo com seus pares,

privando-os de trocas de experiências profissionais. A questão do controle do capital

sobre a atividade docente fica aqui explícita:

No atual mundo do trabalho a face da dominação se dilui cada vez

mais, quando o patrão não precisa mais estar personificado, mas, sim

internalizado na ameaça constante do desemprego, da redução salarial,

de punições e da subtração de direitos conquistados, gerando um

clima de medo, desamparo, ansiedade e incertezas. Essa dominação

vem tomando o avanço tecnológico como um grande aliado, através

do ponto eletrônico, nas câmeras instaladas nos ambientes, dos

relatórios preenchidos e enviados on-line, do celular, etc., buscando de

todas as formas o controle do trabalhador. O docente não escapa a

essa conjuntura e esse texto trouxe questões do seu cotidiano,

certamente, geradoras de um desconforto que vai desencadeando

adoecimento psíquico e somático, conforme as circunstâncias a serem

vividas. (FRANÇA, 2009, p. 12).

Considerações finais

Face ao exposto, podemos afirmar que a mercantilização do ensino superior

é um processo ainda em curso que demanda inúmeras transformações em nossa

realidade econômica e educacional. Conforme apontamos, ainda que em linhas gerais,

um impacto considerável do ponto de vista financeiro foi sentido através da entrada de

capital estrangeiro no âmbito da mercadoria-educação, momento em que ocorre uma

reformulação da legislação educacional, fomentada por órgãos como o Banco Mundial,

no sentido de consolidar a ampliação do negócio. Sob o olhar eminentemente

educacional, o questionamento a ser feito é se a expansão do ensino superior privado foi

23

acompanhada pela qualidade dos serviços prestados, e nesse sentido a resposta tende a

ser negativa. A massificação dessa modalidade de ensino ocorrida no Brasil nos últimos

anos, mediante os cursos oferecidos pelas IES que não privilegiam pesquisa e extensão,

alimentam uma máquina mercadológica que produz diplomas de forma indiscriminada

ofertando uma formação limitada, parcial, para considerável parcela da classe

trabalhadora.

Num olhar atento para o processo de trabalho dos docentes das IES

privadas, constata-se que os reflexos da reestruturação produtiva afetam diretamente sua

condição profissional, potencializando a desqualificação dessa atividade. Esse

fenômeno merece ser estudado com maior profundidade, pois seus desdobramentos

ainda são percebidos de diversas maneiras no chão da escola. Braverman afirmou que

haveria uma imensa massa de trabalhadores sem qualificação, com baixos salários e alta

rotatividade de pessoal no local de trabalho; quão contraditório se apresenta a condição

do docente de nível superior, que compartilha salários reduzidos, possui curtos contratos

de trabalho mas, no que tange a qualificação, possui diplomas de mestres e

doutores!Sem apoio sindical, com contratos e remuneração baseado na hora-aula,

lecionando em mais de uma instituição para compor um salário razoável, pouca ou

nenhuma relação com extensão ou pesquisa, o nosso professor-auleiro ainda se submete

a uma nova face da precarização, na qual sua produtividade é verificada e contabilizada

à luz da flexibilidade acadêmica.O ideário de que o professor precisa ser “mais

produtivo” diz respeito não só à quantidade de sua “produção” (aulas, orientações,

publicações, projetos, patentes, etc.), que passa a ser mais importante que a qualidade da

mesma, mas também tange a natureza das pesquisas que são financiadas, com o fito de

potencializar a capacidade de reprodução do capital, se adaptando às exigências dos

editais divulgados.

Entendemos, portanto, que a relevância de um estudo dessa natureza diz

respeito não somente às peculiaridades de um ramo de negócios em franca expansão,

mas, que para além desses fenômenos, possamos compreender à luz do materialismo

histórico os mecanismos de apropriação da mais-valia pelos empresários que mesclam

formas pretéritas de exploração com as últimas novidades da tecnologia. A educação

superior não está isenta dessa lógica exploratória.

24

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