a memória recriada: história e imagem em la jetée (1962) e sans soleil (1982) de chris marker

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES TAINAH NEGREIROS OLIVEIRA DE SOUZA A MEMÓRIA RECRIADA: História e Imagem em La jetée (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris Marker

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAO E ARTES

TAINAH NEGREIROS OLIVEIRA DE SOUZA

A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris MarkerSo Paulo2013TAINAH NEGREIROS OLIVEIRA DE SOUZA

A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris MarkerDissertao apresentada Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Meios e Processos Audiovisuais

rea de Concentrao: Teoria, Histria e Crtica

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin

So Paulo

2013Autorizo a reproducao e divulgacao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletronico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Souza, Tainah Negreiros Oliveira de

A Memria Recriada: Histria e Imagem em "La jete" (1962)e "Sans Soleil" (1982) de Chris Marker / Tainah Negreiros Oliveira de Souza. -- So Paulo: T. N. O. Souza, 2013. 95 p.: il.

Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais - Escola de Comunicaes e Artes /Universidade de So Paulo.

Orientador: Eduardo Morettin

Bibliografia

1. Cinema 2. Memria 3. Histria 4. Chris Marker I. Morettin, Eduardo II. Ttulo.

CDD 21.ed. - 791.43

FOLHA DE APROVAO Tainah Negreiros Oliveira de SouzaTtulo: A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris MarkerDissertao apresentada Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Meios e Processos Audiovisuais

rea de Concentrao: Teoria, Histria e CrticaOrientador: Prof. Dr. Eduardo Victorio MorettinBanca examinadora:Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________________ Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________ Agradecimentos

Ao prof. Dr. Eduardo Morettin, pela orientao dedicada, minuciosa, presente e pelas valiosas contribuies em todos os nossos encontros e conversas.

Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa de mestrado concedida e pelo apoio financeiro para realizao da pesquisa.

Ao prof. Dr. Marcos Napolitano e ao Prof. Dr. Mrcio Seligmann-Silva, pelas importantes consideraes na qualificao que muito ajudaram no desenvolvimento do trabalho.

Ao Prof. Dr. Joo Kennedy Eugnio e profa. Me. Maria do Socorro Rangel, pelas leituras, recomendaes e sugestes.

Ao professor Robrt Grlier, pelas conversas, pelo incentivo e pelas consideraes.

Ao Luiz Carlos Oliveira Jr. , pela leitura e pelas valiosas consideraes sobre a dissertao.

Ao prof. Dr. Cristian Borges, pelas sugestes e consideraes importantes para o trabalho.

Virgnia Lello, que me acolheu no meu comeo em So Paulo e sempre foi uma presena amiga.

Ftima Gomes, que contribuiu no meu gosto pelo cinema e me emprestou revistas e filmes fundamentais na minha formao desde que eu me entendo por gente.

Ana Stella Negreiros, pelo apoio, torcida carinhosa e pela inspirao como historiadora e como dedicada madrinha.

Ao Edson Costa, pelas importantes conversas que tivemos sobre Chris Marker e pelo material generosamente compartilhado comigo.

Ao Reinaldo Cardenuto, pelas leituras, pelas conversas, pelo apoio, pelas consideraes e pela generosidade durante o percurso.

Laura Carvalho, pelas conversas, apoio, consideraes e pela sensibilidade partilhada.

Isabella Goulart pelas conversas, pelo apoio, sugestes e importantes trocas de informaes.

Aos amigos Natal Veras, Franciane Barbosa, Clarissa Poty, Lidiane Moreira, Felipe Fontana, Ana Maria Palma, Sanmya Meneses, Lorena Moura, Millie Paniche, Maria Pinho, Aracele Torres, Andr Mendes, Lucas de Deus, Mariana Abbade, Melina Caddah, Lumena Adad, Ana Isabel Carvalho, Fernanda Tuoto, Igor Cordeiro, Cristiano Balzan, Marcelo Fontes, pelo constante apoio, incentivo, sugestes, conversas e pelas alegrias compartilhadas.

Ao meu amor, amigo, companheiro Arthur Tuoto, que esteve comigo durante todo o percurso, mudou de cidade comigo, foi quem me apresentou Chris Marker, e que partilha comigo essa paixo pela obra do diretor, pelo cinema e a vida.

Aos meus queridos pais Raquel Negreiros e Severino Neto, por acreditarem em mim, pelo incentivo, apoio constante, fundamental e pelo imenso e to inspirador amor.RESUMONEGREIROS, Tainah. A Memria Recriada: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris Marker. 2013. 95 p. Dissertao (Mestrado) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.A dissertao dedicada a analisar a relao entre Histria e memria na obra do cineasta francs Chris Marker, focando nos filmes La jete e Sans Soleil. No trabalho, investigamos a concepo esttica dos filmes em contato com aspectos de poca que os constituem.

A dissertao est dividida em trs partes. A primeira dedicada a analisar La jete e o trabalho de representao da memria feito pelo diretor em uma era de catstrofe. A segunda parte dedicada a analisar Sans Soleil, seu carter reflexivo e o modo como o diretor trata da temtica da memria, da relao com as imagens do passado e as experincias de luta da segunda metade do sculo XX. A terceira parte um estudo comparativo das duas obras e das questes que permanecem e mudam na representao da memria nos dois filmes. Palavras-Chave: Cinema, Histria, Memria. ABSTRACTNEGREIROS, Tainah. Recreated Memory: History and Image in La jete (1962) and Sans Soleil (1982) by Chris Marker. 2013. 95 p. Dissertation (Master) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.The research is dedicated to analyze the relation between History, memory in the cinema of the french director Chris Marker, specially the films La jete and Sans Soleil. We investigated the aesthetics conception of films and historical aspects that influenced them.The work is divided into three parts. The first one investigates La jete and the construction of memory representation made by the director in an era of catastrophe. The second part is dedicated to analyze Sans Soleil, its reflective nature and the way the director treats the theme of memory, the relation with images of the past and the social mobilizations experiences of the second half of the twentieth century. The third part is a comparative study of the two films and the issues that remain and change in the representation of memory.Key Words: Cinema, History, Memory.SUMRIOIntroduo..................................................................................................................................1CAPTULO I Os estilhaos do tempo Memria, Histria e fotografia em La jete (1962)....................6PARTE 1 - Memrias, runas e fotografias - A estrutura de La jete1.1 O acesso ao passado atravs das runas..............................................................................10

1.2 O cinema contaminado pela fotografia...............................................................................21PARTE 2 - O futuro passado2.1 Um projeto de cinema historicamente informado...............................................................272.2 A ida ao futuro e o Teorema Markereano...........................................................................31CAPTULO IISans Soleil e a memria recriada...........................................................................................34PARTE 1 - A estrutura de Sans Soleil1.1 A imagem de felicidade......................................................................................................381.2 Comentrio, ensaio e reflexividade....................................................................................401.3 A convivncia temporal e geogrfica..................................................................................421.4 O estrangeiro e a televiso japonesa...................................................................................471.5 A busca pela igualdade de olhar..........................................................................................491.6 A montagem memria atravs dos raccords de souvenir................................................531.7 A radicalizao dos raccords de souvenirs e a construo de uma fico documentria da memria................................................................................................................................57PARTE 2 Histria, Memria e Apropriao2.1 Como lembrar da sede? As possibilidades e impossibilidades das imagens em relao s memrias ..............................................................................................................................612.2 Guin Bissau, Cabo Verde e as mil memrias....................................................................67CAPTULO IIILa jete, Sans Soleil e as conexes na representao da memria......................................751.1O isolamento das imagens de alegria...................................................................................761.2 A montagem memria comum............................................................................................781.3 A herana formal de Vertigo...............................................................................................80

1.4 O homem do futuro.............................................................................................................84Consideraes Finais...............................................................................................................86Referncias Bibliogrficas......................................................................................................90Filmografia..............................................................................................................................94

Introduo

Na introduo de Also Known as Chris Marker, Arnaud Lambert se refere ao diretor francs tratando de sua onipresena no campo das imagens a partir da segunda metade do sculo XX (2008, p.8). Lambert usa o termo onipresena para falar de Marker considerando que a sua obra constitui o cinema do ltimo sculo e suas atualizaes e reinvenes. Mesmo que tenha optado pela mxima discrio de sua vida, de sua imagem, os registros que concebe compe um acervo voltado para as experincia dos ltimos 60 anos em um constante contato e dialtica entre experincia pessoal e coletiva. Ou ainda, se cada filme ou cada criao audiovisual um testemunho sobre o momento de evoluo das tcnicas de filmagem , como afirmou Guy Gauthier (2001, p. 9), Marker atesta esse aspecto de testemunho, ou de uma construo artstica sempre voltada para questes do seu tempo, sobre a forma que, para ele, a poca em que vive deve exigir uma reflexo sobre uma tcnica, sobre uma poltica e uma esttica de representao da vida, das experincias de luta e, principalmente, como nos voltamos nesse trabalho, para a representao da memria e da Histria.

O que temos um artista explorando as dimenses dos registros do tempo nas variadas possibilidades de faz-lo, desde o ensaios escritos no seu incio de carreira para a Revista Esprit, ainda na dcada de 1940, se desdobrando sobre o papel da linguagem depois das experincias dificlimas de apreender como foram as da Segunda Guerra Mundial, passando pelas suas fotografias, pelos seus trabalhos multimdia e pelos filmes na sua diversidade. Toda sua obra revela uma relao de dedicao sobre as questes do seu tempo, seja pelos investimentos artsticos e tcnicos a partir do que sua poca oferece, seja pelo tempo como matria para o cinema, suas duraes, a fragilidade de sua passagem, o que fica e o que inevitavelmente se perde.

Como parte desse projeto artstico sempre ligado a um debate contemporneo, a obra de Chris Marker revela uma constante preocupao em dar forma a essas reflexes constituintes, parte de uma comoo e compromisso do diretor com esses temas e eventos irrecuperveis como as experincias da Segunda Guerra Mundial que vemos ser tratados em filmes como La jete (1962), Sans Soleil (1982), ou Level Five (1997); os movimentos sociais de esquerda, tratados em Carlos Marighella (1970), Le fond de l'air est rouge (1977) e La Spirale (1975) e os processos de independncia africanos e seus ecos tratados em filmes como Le joli mai (1963) e Sans Soleil. Interessa ao diretor discutir, com sua obra, sobre os nossos lugares de construo de discurso, seja atravs da inveno, mas tambm a partir das apropriaes, das outras imagens e outras histrias que que podem ser feitas do vivido. Da a importncia da memria como algo que liga seus filmes nessa costura sobre esses temas. A multiplicidade das memrias, dos discursos diversos sobre o passado, so matria prima para o diretor lidar com essas questes que lhes so caras e formadoras. A memria, nesse trabalho constante de recriao, como antdoto para o que a Histria muitas vezes no lida e para o que a informao na sua urgncia no salva. A sua obra mobilizada por esse aspecto de reinveno constante em que a memria e essa relao com o tempo e sua passagem propicia.

O trabalho dedicado a analisar os filmes La jete (1962) e Sans Soleil (1982) construindo um dilogo com as teorias sobre a memria, a histria e o debate sobre a sua obra para, dessa forma, investigar os procedimentos e a concepo formal do diretor e a sua historicidade. O enfoque se d nesses dois filmes pois revelam uma profunda ligao a partir desses aspectos apontados aqui, dessa relao com o tempo, dessas tentativas de representao da sua passagem, desse contato constante entre experincia ntima e coletiva em uma dinmica revelada atravs do trabalho de montagem.

Analisar La Jete e Sans Soleil permite explicitar alguns desses aspectos da importncia da obra de Chris Marker no campo das imagens na segunda metade do sculo, especialmente na questo da provocao em relao aos documentos, imagens de arquivo e dos registros voltados para a representao do trabalho da memria nessa era de extremos e de catstrofe. O filme de 1962 um curta-metragem em que acompanhamos as memrias de um homem atormentado pelas lembranas do seu passado em um perodo de guerra. Uma fico cientfica em um tempo de guerra feita quase que toda atravs de fotografias. Sans Soleil pode ser definido como um documentrio de viagem, de deslocamentos espaciais e temporais tambm em um processo de reflexo sobre a memria. importante para o trabalho, at mesmo como uma hiptese inicial, explicitar essas conexes entre os dois filmes, o desembocar de aspectos de um no outro, o modo como esses 20 anos entre eles fazem com que o diretor reveja, amadurea e recrie questes trabalhadas no primeiro para o segundo filme.

Essas questes apontadas sero discutidas principalmente atravs do mtodo da anlise flmica, buscando partir sempre dos filmes como modo de obter respostas s questes sobre o trabalho do diretor e aspectos que o informam. Atravs da anlise flmica possvel tambm estabelecer aspectos de ruptura e continuidade entre as duas obras que so fundamentais no entendimento desse projeto de cinema da memria de Chris Marker. Esse percurso de anlise flmica nos leva, tambm, a ligar esse cinema da memria de Chris Marker a outras obras relevantes da poca que se aproximem desse trabalho esttico e temtico como, por exemplo, os filmes de Agns Varda e Alain Resnais feitos no mesmo perodo, autores parceiros e de inquietaes prximas do diretor.

A dissertao ento se divide em trs momentos na investigao sobre essas duas obras: O primeiro captulo, intitulado Os estilhaos do tempo: Memria, Histria e Fotografia em La jete, se prope a analisar a estrutura do filme, as opes estticas do diretor e a forma como a obra construda a partir das viagens no tempo e do uso de fotografias para montar esse ir e vir fragmentado que compe a narrativa. Na incurso sobre essas questes, dialogamos com alguns trabalhos fundamentais na bibliografia dedicada obra de Chris Marker que tratam de pontos importantes que analisamos aqui como a representao da memria feita pelo diretor e a discusso desses aspectos atravs da anlise flmica. Autores como Arnaud Lambert em Also Known as Chris Marker (2008), Philippe Dubois junto a outros pesquisadores na compilao Thorme 6: Recherches sur Chris Marker (2002) e Jane Harbord e seu livro La jete (2009) podem ser considerados nomes relevantes nesse debate em construo sobre a obra do diretor.

Por se tratar de um filme quase que inteiramente feito com fotografias, o trabalho de Raymond Bellour, L'entre-images(1990), importante referncia. Nessa obra o autor analisa o filme iluminando a discusso que envereda para os modos de contaminao do cinema pela fotografia. No texto, essa discusso desemboca na questo da relao entre lembrana e imagem e no dilogo fundamental com os estudos sobre a relao entre memria e imagem do filsofo Paul Ricoeur (2007). Os estudos de Paul Ricoeur nos aproximam das ideias de Henri Bergson e o seu conceito de imagem-lembrana na obra clssica Matria e Memria(1999), de bastante relevncia para o entendimento da forma como Marker estabelece essa conexo no filme. O captulo est voltado, ainda, para como essa concepo de tempo e relao com o passado, proposta por Chris Marker, pode ser entendida a partir de uma aproximao com a filosofia de Walter Benjamin, esse modo de olhar para as runas do passado e a postura diante dessas estilhaos do vivido presente em textos como A imagem de Proust, Experincia e Pobreza, O Narrador e Sobre o Conceito de Histria reunidos no I volume das suas Obras Escolhidas (1985). Nesse contato com Walter Benjamin, dialogamos tambm com o importante trabalho de anlise sobre sua obra, Histria, Memria e Literatura O testemunho na Era das Catstrofes, do autor Mrcio Seligmann-Silva, buscando perceber esses aspectos que ligam Chris Marker ao autor alemo tratados principalmente no texto: Catstrofe, Histria e Memria em Walter Benjamin e Chris Marker: A Escritura da Memria.

O segundo captulo, intitulado Sans Soleil e a memria recriada, est dividido em duas partes. A primeira voltada para a anlise da estrutura do filme e da forma como elaborada partindo de uma imagem orientadora; de como construda buscando uma reflexividade atravs do trabalho equilibrado feito entre imagens e comentrio e, ainda, sobre o esforo de construo de uma encenao do trabalho da memria explicitada pelos recursos da montagem e pela articulao entre imagem e som desses registros feitos pelo mundo. Mais uma vez o trabalho de Arnaud Lambert sobre a obra de Chris Marker uma referncia importante pois em grande parte dedicado a essas construes que o diretor elabora como modo de tratar dessas experincias com os lugares e com o tempo. Um trabalho fundamental tambm o do autor Guy Gauthier, Chris Marker: crivain Multimdia, em que analisa o trabalho de colagem, ou de bricolagem do diretor e o modo como ele mobiliza os diversos meios e mdias na construo dessa experincia geogrfica e, principalmente, temporal nesse filme. A segunda parte dedicada questo da reescritura da memria atravs da montagem e da modificao das imagens, ao trabalho de apropriao no cinema do diretor e crtica feita histria atravs de um questionamento de documentos e do uso de arquivos de found footage. Investigar essas questes em Sans Soleil nos leva ao encontro dos textos de Michael Zryd (2003) e Catherine Russel (1999) sobre found footage e esse trabalho marginal de re--escritura com arquivos encontrados. Como discusso terica nesse momento do texto tambm temos a obra referncia de Jacques Le Goff Histria e Memria e especialmente o texto Documento/Monumento que dialoga bem com essa necessidade de Chris Marker tensionar os arquivos a que tem acesso como forma de provocar sobre questes do passado e o lugar dele no presente e para o futuro.

O terceiro momento do trabalho dedicado a fazer um estudo comparativo das duas obras, uma anlise da conexo revelada pelas opes estticas de representao da memria e, ainda, o uso da fico em La jete e do dilogo com a fico em Sans Soleil para construir essa representao. Esse captulo dedicado, ainda nesse vis comparativo, a analisar a temtica das viagens no tempo presente nos dois filmes e a clara influncia do filme Vertigo, de Alfred Hitchcock, sobre as duas obras.

Chris Marker: Memories of the Future (2005) de Catherine Lupton tambm uma referncia constante para a pesquisa pois, alm de traar um percurso de anlise por toda a carreira do diretor, se dedica de forma muito eficiente aos temas discutidos aqui como a questo da relao de Marker com avanos tecnolgicos do seu tempo que influenciam sua concepo flmica e, ainda, esse seu lugar de catador de imagens (2005, p.11), ou de colecionador, conforme a autora define, que nos ajuda a entender o trabalho feito nesses dois filmes, fruto de uma relao inquieta com o passado e com as imagens feitas dele.

Na anlise dos dois filmes frequente tambm fazer referncia crtica da poca e a forma como no s a obra de Chris Marker, mas as leituras feitas dela foram bastante informadas pelas experincias de luta e violncia da segunda metade do sculo XX, e como o entendimento dessa temporalidade contribui no debate sobre a obra do diretor e sobre o entendimento de questes daquele momento. Entre esses textos importantes esto o de Yann Lardeau para Cahiers du Cinma (1983) e o de Paul Louis Tihard para Positif (1983) em que analisam Sans Soleil e a abordagem das questes de poca feitas pelo diretor e da forma como trabalha temas caros a sua gerao. Outro crtica de poca relevante a de Franois Weyergans sobre La jete para Cahiers du Cinma (1963) em que analisa aspectos como os elementos de fico cientfica no filme e a questo temtica das viagens no tempo sempre relacionando s questes histricas do passado recente como a Segunda Guerra Mundial.

***

Em Julho de 2012 perdemos Chris Marker. E escrever esse trabalho passou a ter o peso disso, de escrever em um mundo sem ele, mesmo que seus filmes, suas imagens, suas questes sejam to presentes, constituintes e inspiradoras. Ou seja, Chris Marker jamais ser uma ausncia, ser associado sempre a teimosia da memria atravs da vida que ela possibilita reinventar atravs de um cinema incansavelmente dedicado a isso. As suas imagens se juntam ao nosso acervo de passado inesquecvel e formador, e esse trabalho busca evidenciar essa importncia e permanncia.I

OS ESTILHAOS DO TEMPO MEMRIA, HISTRIA E FOTOGRAFIA EM LA JETE (1962)

Jane Harbord define La jete, de Chris Marker, como um filme sobre voltar. (2009, p. 5), e o interesse nesse captulo esmiuar esse retorno mostrado nessa obra, de 1962, do diretor francs. Trata-se de um curta metragem de cerca de 25 minutos, filmado em preto e branco, composto de fotografias que narram a histria de um homem marcado por uma imagem do passado, e que, em uma Terceira Guerra Mundial, em meio a uma realidade de runas, ser objeto de uma experincia pelos vencedores. As experincias a que o protagonista submetido so de viagem no tempo. O filme vai ser composto, principalmente, desses acessos ao passado, atravs das imagens que ele consegue alcanar, orientadas pela busca do que viveu com a mulher que no esquece.

Aqui importante que seja exposto em que momento se situa La jete, no projeto de cinema de Chris Marker. O que temos o diretor que, desde a dcada de 1950, junto a cineastas como Agns Varda e Alain Resnais, esteve voltado para a questo da memria, do tempo e de dar forma s suas reflexes contemporneas, relacionadas com os eventos e experincias histricas recentes como as da Segunda Guerra Mundial. As tentativas de representao dessas vivncias do perodo podem ser percebidas tanto nesse trabalho como na parceria anterior La jete entre Marker e Resnais, Noite e Neblina, de 1955. O filme de Resnais, com a colaborao de Marker no roteiro, se volta para os escombros da Shoah e j sinaliza para a postura e para as questes que constituem os diretores nesse momento, como o uso de imagens de arquivo e sua ressignificao atravs da montagem com imagens recentes das regies de campos de concentrao da Segunda Guerra Mundial, no retorno s imagens intocadas, montadas de forma que componham uma releitura, um conjunto inquieto, provocador, numa sucesso melanclica e reflexiva.La jete, que nos conta uma histria passada em uma Terceira Guerra Mundial, pode ser alinhado junto ao trabalho de Resnais nessa tentativa de lidar com as experincias recentes e ainda no superadas de guerra e violncia, como as da Shoah, ou de Hiroshima, como fruto do debate acalorado que informa as posturas tomadas pelos artistas aps esses eventos e como o cinema toma para si um lugar de reflexo atravessado pela impossibilidade de ignorar esse passado recente. Ou ainda, como afirmou Jean Michel-Frodon: A Shoah inscreveu no corao do sculo XX uma crise decisiva que o marcou irremediavelmente. O cinema foi a arte do sculo XX. (FRODON, 2007, p.11)

A obra de Chris Marker mais interessante de ser analisada sempre que pensamos esse contato entre sua concepo formal e os aspectos do seu tempo. Seu cinema, seus vdeos, suas criaes multimdia costumam sempre revelar uma reinveno do uso da forma a partir da temporalidade que as constituem. Em La jete no diferente. Algo como o que Antoine de Baecque definiu (referindo-se a esses contatos) como essa mise en scne especfica que chamo de uma forma cinematogrfica da histria. (2008, p. 20). Voltar-se para a historicidade dessa obra investigar em que momento do projeto de cinema do diretor ela se situa, e que questes do seu tempo orientam essas escolhas estticas que investigamos aqui. Marker passou a ser conhecido, como muitos cineastas da sua gerao, a partir dos movimentos e organizaes criados com o fim da guerra e a libertao de Paris. Seu trabalho vem tona, inserido no debate de que fazem parte artistas e pensadores, em uma reflexo de rumos claramente informada pelas experincias de luta e violncia, como as da Segunda Guerra Mundial e dos processos de descolonizao africanos. O grupo de artistas e pensadores que se organizam nesse momento tem em comum no s o debate sobre o cinema, mas sobre a cultura daquele momento, sobre o que ficou desse perodo, o que est inevitavelmente perdido e sobre como se posicionar diante do que essas experincias representam. Dentre esses grupos est o que se encontra reunido nas publicaes da revista Esprit, criada por Emmanuel Mournier, em 1932, com o vis personalista que defendia o filsofo, em que colaboraram diretores como Alain Resnais, companheiro de trabalho de Marker; Andr Bazin, mentor, amigo, e inspirador; e autores fundamentais para o debate sobre a questo da memria na contemporaneidade, como Paul Ricoeur. Nessas primeiras participaes de Marker na revista, j possvel notar sua preocupao com a questo de uma postura em relao memria.Sobre as memrias compartilhadas de uma gerao, cada poeta impe uma forma e um estilo. A aprovao melanclica das memrias se junta aqui, espalhada por estas pginas cativantes ou engraadas, em uma comovente tentativa de afastar o tempo e permanecer fiel vida. (MARKER, 1948, p. 158).

H um cuidado em dar forma a esse sentimento do mundo, a essa perplexidade que tomou a humanidade aps eventos como a Shoah ou Hiroshima. Se h algo que pode ligar esses homens e mulheres que fizeram a cultura naquele momento essa preocupao em discutir a representao daquelas experincias de violncia nos vrios campos a que se dedicaram.As experincias de guerra certamente deram um novo senso de energia, comprometimento e convico para Mournier e os outros membros do grupo editorial, que incluam o crtico de teatro Pierre-Aim Touchard, o filsofo Paul Ricoeur, o escritor e crtico literrio Ibert Bguin, o romancista Jean Cayrol, que depois trataria de sua experincia de deportao no texto do filme marco do documentrio Noite e Neblina, e o crtico de cinema Andr Bazin. No editorial combativo e otimista para o re-lanamento da revista em dezembro de 1944, a Esprit enfatizou fortemente a sua ambio em criar uma ligao entre os princpios espirituais do Personalismo e da acuidade poltica e engajamento exigida pelo mundo contemporneo, para fazer da revista sinnimo de compromisso, bem como posio intelectual e moral. (LUPTON, 2005, p. 17, traduo nossa)

La jete, filmado em pouco mais de uma dcada depois desses primeiros escritos, de 1948, informado por esse debate que vai se constituindo naquele momento, pela necessidade de uma tomada de postura antifascista, alinha-se s obras voltadas reflexo sobre a representao daquelas experincias de dor e violncia, construo dessa memria, e mais uma vez podemos pensar em Noite e Neblina. Este filme feito a partir do acesso a documentos raros de registros da ocupao e do massacre nazista, montados junto s imagens mais recentes daqueles mesmos lugares, como que em uma espcie de busca do que restou e do que no pode ser esquecido. O trabalho com a imagem, no filme, deseja desequilibrar qualquer calmaria que repouse sobre aqueles lugares e sobre os registros feitos sobre os campos onde as maiores atrocidades ocorreram. Os escombros e as imagens reveladas so o meio de impedir que essa memria seja rejeitada. O diretor investiga a memria desses eventos, revisitando arquivos, estilhaos e compondo uma obra de ruptura na questo do acesso e na revelao de imagens antes obscuras na histria da Segunda Guerra Mundial. La jete se aproxima dessa obra por partilhar de um sentimento em relao s runas, demonstrando uma postura que mostra o desejo de inquiet-las. Esses filmes so fruto de um momento, na Frana, de reunio de documentos e de forte mobilizao pela memria das vtimas do nazismo, dos deportados, da Resistncia e da construo dessa outra histria em que a violncia seja trazida tona. E o cinema vai buscar esses lugares que a memria impregna e subverte a despeito das tentativas de obscurecimento.

Ainda se nos mantivermos nas aproximaes entre os dois diretores, preciso destacar a parceria na direo, no mesmo perodo, em Les Statues Meurent Aussi (1953), em que os diretores mais uma vez se voltam s runas, dessa vez s esttuas africanas, denunciando atravs desses registros, o menor espao dado arte africana em um contexto de colonizao. La jete pode ser relacionado tambm a Hiroshima Mon Amour (1959) de Resnais, do mesmo perodo. No filme, a memria mais uma vez um meio de lidar com as experincias de violncia, tratando dessa tensa relao entre linguagem e o vivido onde os personagens tm dificuldade em falar do que viram e viveram e as as imagens tentam dar conta de experincias difceis de significar, h tambm a tentativa de representao do trabalho fragmentado da memria entre suas potncias e vazios. Essa gerao de diretores em que podemos citar tambm Roberto Rosselini, Jean Luc Godard, ou a companheira Agns Varda, que persegue essa temtica das imagens insuperveis da Shoah em filmes como Une minute pour une image (1968) ou no bem mais recente Ydessa:Les ours et etc (2004), em que a diretora lida com o peso dessa tradio dedicada ao trauma, a violncia extrema e aos desafios da linguagem nessa seara, problematizando essas questes tambm atravs da fotografia, dessa relao entre o que ela salva e o que nela est tambm inevitavelmente perdido. Estamos diante de questes de poca que so fundamentais para o cinema de Chris Marker e que fazem com que nos voltemos para a historicidade de sua obra. Essas questes sero tratadas nesse primeiro captulo, principalmente, quando analisaremos a construo desse futuro passado no filme, desse movimento entre os tempos verbais, atravs das imagens. Trata-se aqui de uma aproximao com os estudos de Histria e Cinema, como inaugurou Marc Ferro, e que tem uma interessante continuidade de autores como Antoine De Baecque, Christian Delage, Vicent Guigueno e Jacques Rancire, que se dedicam a esse perodo aqui abordado. O captulo est organizado de forma a, primeiramente, analisar a estrutura do filme, sua mise en scne elaborada atravs do uso de fotografias e dos recursos da fico cientfica, analisando as opes estticas do diretor, seus recursos mobilizados que revelam sua concepo sobre nossa relao contempornea com o passado.Destacaremos ainda como essa concepo de tempo e relao com o passado, proposta por Chris Marker, no filme, pode ser entendida a partir de uma aproximao com o debate contemporneo sobre a memria, e sobre as tentativas e investimentos do cinema e das artes nessa representao, aproximando Chris Marker de autores que trataram desses temas, como Henri Bergson, Paul Ricoeur e Walter Benjamin; e de que forma esses aspectos so historicamente constitudos por esse repensar da forma que d conta dessas experincias difceis de representar, que so as experincias extremas em tempo de guerra.PARTE 1 MEMRIAS, RUNAS E FOTOGRAFIAS A ESTRUTURA DE LA JETE1.1 O acesso ao passado atravs das runasNo com guardanapos que se junta as migalhasMarguerite DurasPara esse homem que gostaria de ser cosmonauta, a fico cientfica sempre foi uma atrao Robert Grlier em O Bestirio de Chris Marker O letreiro adianta que essa a histria de um homem marcado por uma imagem de infncia vivida no per de Orly, anos antes de uma Terceira Guerra Mundial. o per que vemos no incio do filme, atravs de fotografias em preto e branco dos avies sob o sol e da estrutura do lugar, enquanto ouvimos barulhos que remetem ao aeroporto; avies e chamadas de voos. Vemos tambm famlias que iriam ao per aos domingos, e aquele que pode ser esse homem, na infncia, em uma tentativa inicial de representao do que foi vivido naquele dia. Trechos dessa histria anunciada e do provvel dia da inesquecvel imagem. nesse espao de memria que a imagem do passado nos mostrada, o rosto de uma mulher com o cabelo assanhado pelo vento, uma fotografia que dura na tela (img.1). A narrao nos diz: Nada distingue a lembrana de outros momentos, s mais tarde elas se fazem reconhecer por suas cicatrizes. Dito isto, o rosto ainda est l, a imagem guardada, recolhida, a ser retomada como lugar de continuidade nos tempo ruins. dessa imagem que partimos, do que ela emana, do que esse rosto guarda de alegria e como orienta uma busca. (Fotograma de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Img. 1)

Em La Jete, o instante de doura do rosto da mulher interrompido por um tumulto. O som ajuda a construir uma desorientao nessa sequncia, enquanto vemos a imagem isolada, ouvimos somente a narrao que interrompida pelo barulho de turbinas de avio. Vemos imagens que vo desde a reao assustada da mulher s das demais pessoas no per que olham com ateno e pavor para algo fora do quadro. A narrao nos diz da morte de um homem, mas no vemos a imagem. Nesse momento, Marker deseja que algo falte no conjunto; interessante para ele, no incio, deixar bem claro esses vazios de uma primeira explorao das lembranas.

A histria desse homem que no esquece contada a partir da confuso entre o vivido e o lembrado. O protagonista no sabe definir se a imagem que o acompanha por toda a vida uma inveno ou realmente uma lembrana. Acompanhamos, j no incio, atravs dessas fotografias do per, do rosto da mulher inesquecvel, desses rastros, o trabalho da memria e o que nele a convivncia entre lembrana e o esquecimento, que fazem parte do que prope Marker, dessa convivncia no mesmo tecido, do que fica no meio do caminho no trabalho da memria, ou como Walter Benjamin define: a recordao a trama e o esquecimento a urdidura. (BENJAMIN, 1985, p. 370). A matria prima de Marker em La jete esse tecido esgarado, suas dimenses, suas potncias, seus vazios, e a relao contempornea do homem com o tempo, e como a imagem recurso para o acesso ao vivido. A criana cuja histria contamos se lembraria por muito tempo do sol fixo, da estrutura armada do per, e do rosto de uma mulher. Marker parte da para analisar as circunstncias da persistncia dessas imagens e as razes do seu retorno. O filme deseja conectar o recolhimento do protagonista de imagens ntimas do seu passado s runas do seu presente. Dessa construo incompleta da sequncia do per, somos levados paisagem de runas, destruio de Paris, ao tempo de guerra. A confuso sonora da sequncia anterior d lugar msica que acompanha o tom trgico dessas imagens, os estilhaos do tempo de guerra. Apesar de situadas no futuro, as imagens remetem, na verdade, ao passado ento recente da Europa no ps Segunda Guerra Mundial (imgs. 2 e 3). As runas da histria se confundem com as runas da memria daquele homem, na tentativa de juno dos cacos em um tempo de catstrofe. (Fotogramas de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Imgs. 2 e 3)

Temos ento um movimento da estrutura de La jete ao qual devemos nos deter: desse paralelo entre as runas do vivido a serem recolhidas e as runas fsicas do perodo de guerra mostradas no filme. Por se tratar de um trabalho de juno de cacos diante do esfacelamento, isso exige um trabalho de reconstruo e, para Marker, esse retorno complexo que revela a reminiscncia carece de ser representado e de um exerccio que exponha uma concepo contempornea sobre o tempo e que represente a problemtica dos acessos. Com o que se depara o homem que volta s suas experincias atravs de suas lembranas? Como representar o reencontro com o vivido? Atravs de imagens. Que forma de imagens? Como mont-las? Imagens fixas, fotografias em preto e branco em uma histria fincada em um real difcil de significar. Trata-se de um desafio de encenao da memria que vai atravessar a obra de Chris Marker a partir desse filme.

Em La jete, diante da superfcie inabitvel que nos mostrada, somos levados aos subterrneos. L esto os vencedores da guerra montando guarda sobre um imprio de ratos, onde submetem os vencidos s experincias cujo intuito fazer com que sejam transportados no tempo. O subterrneo que nos mostra La jete cruel e notamos isso, seja atravs dos ambientes sombrios, seja atravs dos rostos assustados, filmados de forma expressionista pelo diretor. Acompanhamos o horror atravs das imagens fixas e trmulas dos rostos destes homens nessas experincias, enquanto ouvimos uma lngua estranha, em um primeiro momento, e que depois possvel notar de que se trata da lngua alem, em mais uma relao com o passado recente da segunda guerra que ser analisada mais adiante.

Um desses homens submetidos experincia no subterrneo o protagonista. Para os cientistas, essas viagens ao passado e ao futuro seriam uma arma para dominar o presente. Temos at a o contedo de uma fico cientfica: viagem no tempo, Terceira Guerra Mundial. Nada, porm, parece futurista, a impresso que temos de uma precariedade, do uso de poucos recursos para falar de lugares e de homens em pedaos. No vemos mquinas, no h alta tecnologia, vemos cacos, os encanamentos e os recursos dos cientistas partindo desses rastros na sua explorao. As referncias histricas esto postas, mas trata-se de uma fbula (HARBORD, 2009, p. 97). Trata-se de um filme futurista precrio; a mquina do tempo substituda por uma rede com dois tampes-curativos nos olhos dos homens, as experincias se do nos subterrneos. Temos a informao de luz e sombra, mas poucos objetos cnicos, a composio se d nessa construo simples, mas de detalhes significativos na concepo dos ambientes e dos planos. importante destacar que essa precariedade no quer dizer despreocupao esttica, pelo contrrio, medida que observamos as imagens de lembrana do homem, vamos percebendo a minuciosa elaborao de Marker. Aparentemente, isso se d devido a essa vontade de fbula, como diz Jane Harbord, ou da esttica que esse tema pede ao diretor. No se trata de um dos seus documentrios dedicados aos processos, ou s apropriaes, como so alguns de seus outros trabalhos. Trata-se do nico filme do diretor no qual existe uma preocupao esttica-formal rgida, em quadros perfeitos de luzes-sombras bem desenhadas, como em um sonho perfeito de escombros. Cabe aqui questionar essa rigidez, e o que ela informa sobre essas questes que Marker deseja tratar, sobre esse seu movimento de se voltar s runas, em seus vrios aspectos, literais e metafricas. Desafiar a lgica atravs do paradoxo do tempo no uma questo simples. Marker consegue faz-lo graas a uma quase elegncia clssica, uma perfeita estruturao e controle dos mecanismos do filme e uma manipulao inteligente no convencional dos elementos de fico cientfica. Os homens do futuro, por exemplo, no so marcianos com trs olhos e antenas. E as nicas criaturas extraordinrias como um toque de travessura, so os animais pr-histricos do museu. [] Nada pitoresco; nenhum aspecto futurista. A que propsito servem quando esta viso de dor certamente demonstra que os monstros esto entre ns? preciso incrivelmente pouco para fazer o truque: eletrodos, olhos mascarados, as cordas da rede onde ocorrem as experincias sendo rodas em agonia, estranhos culos estereoscpios, sussurros guturais, a batida do corao. (JACOB, 1966, p. 167, traduo nossa)Esse rigor nos remete tambm a escolha pela fico; uma escolha incomum, e que vai se revelar nica. Trata-se da nica fico pura, se acompanharmos a carreira do diretor, mesmo que vejamos aspectos de fico em outros de seus filmes. Talvez Marker no encontre ferramentas no contato mais direto com o real para tratar desse drama. No basta ir direto a ele para transform-lo, preciso fabul-lo, preciso o extremo da experincia do homem que no esquece jamais para tratar do que passa e do que no passa nesse tempo de testemunhos difceis. preciso promover uma ruptura no seu cinema para mostrar, de forma original, que, como diz Gilles Jacob, os monstros esto entre ns.

A persistncia da experincia nos subterrneos leva o protagonista s imagens do que viveu, tratadas no filme como imagens de verdade, as imagens do tempo de paz: o quarto do tempo de paz, o quarto de verdade, a criana de verdade, o gato de verdade...os tmulos de verdade, mesmo na confuso j descrita entre vivido e inventado em uma sequncia que busca revelar a descontinuidade nesse conjunto. Esse carter de verdade atribudo parece ser uma forma de dizer que o que resta de certeza, ou fiel ao vivido, so esses momentos fugidios diante do esfacelamento das experincias naquele perodo. A verdade descrita nas imagens dessa primeira viagem parece estar contida naquilo que o protagonista pode se agarrar, imagens essas que vo do per de Orly vazio (img. 4) s outras cenas de felicidade lembradas. Esses primeiros acessos demonstram uma fragmentao, elas vo aparecendo sem nenhuma ligao aparente a no ser de experincias do passado. E dessa forma, Marker constri aquilo que ele define como sendo o museu da memria do protagonista, explicitando o que em um museu h de uma convivncia estranha de vrios tempos, do fato de ser uma referncia do presente sobre o passado e por conter vrios registros heterogneos, mas unidos por serem passado. E ainda assim, Marker subverte esta ideia de museu, pois essas memrias construdas, acrescentadas, criadas, convivem e se modificam; fogem de uma estrutura esttica e controlada. Da se assemelhar imperfeio do trabalho da memria, muito mais que a fixidez do museu.

Esse carter de verdade, atribudo s lembranas, pode ser lido tambm como a tentativa de Marker, ou do prprio viajante do tempo, na sua narrativa sobre o passado, de tratar da materialidade desse alcance do vivido, da forma como as imagens retornam vivas, verdadeiras, em algo que remete ao que Jacques Rancire afirma sobre o cinema como um modo especfico do sensvel, por tratar da energia eltrica da matria unida energia nervosa do esprito (2008, p. 51). Em La jete, essas dimenses que o cinema capaz de captar esto postas. A questo do filme trazer esses dramas do esprito sua concepo formal, atravs da montagem que represente um trabalho dolorido de rememorao. Nesse momento, o esforo do trabalho da memria evidenciado por esses lampejos atingidos, que mesmo frgeis e desconexos, revelam uma potncia sempre acompanhada de um vazio. O trabalho da memria leva o homem at o per vazio, como se fosse , ainda nesse incio, uma memria ainda imperfeita, a ser preenchida. A montagem que concebe Marker vai tentando recobrir esse trabalho de montagem mental. (Fotograma de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Img. 4. ) Para os cientistas, os homens capazes de imaginar ou sonhar outros tempos, seriam talvez capazes de reintegrar-se neles. O diretor vai explorando essas questes, desde a dor do retorno, do homem que volta, procura, delira e sofre, a esse aspecto da memria que tem muito mais a ver com uma reinveno que com a reintegrao que acreditavam os cientistas. No se trata de reviver, mas de persistir, reescrever essas frgeis eternidades, como demonstra o trecho em que vemos mais dessas imagens encontradas atravs da viagem no tempo: a imagem melanclica vista distncia vista de algum sozinho em um barco, o rosto da mulher buscada que nos olha frontalmente enquanto a narrativa nos diz s vezes ele encontra um dia de felicidade, mas diferente. Um rosto de felicidade, mas diferente Uma moa que pode ser a que ele procura. A narrao diz que pode ser porque nesse momento no filme, no primeiro sucesso na experincia de projetar o homem no tempo, as imagens ainda so mostradas como que fora de uma ordem, incertas. As aparies da mulher, a essa altura do filme, so descontnuas entre esses e outros pedaos desconectados, mas poderosas suficientes para serem reencontrados. Nesse retorno, so vrios os momentos mostrados como fragmentos de alegria aparentemente sem ligao, parte desse mosaico que o homem tenta recompor. Na segunda viagem no tempo, acontece o primeiro encontro entre o protagonista e a mulher do seu passado. Passamos ento a ver o homem nas suas prprias lembranas, ele um elemento acrescentado nos quadros em que antes pareciam fazer parte somente de sua contemplao. A partir dessa segunda viagem, j preciso se deter em detalhes reveladores da mise en scne feita por Marker que mostra o que ele acredita como sendo o trabalho da memria. medida que o homem vai revivendo e recriando as imagens do seu passado, elas vo se tornando mais contnuas; as lembranas que antes vinham pulverizadas e indicando, atravs da montagem, momentos muito diferentes, agora remetem a ocasies; compem sequncias que reportam a um dia, a uma tarde de passeio, a uma volta pelo parque entre crianas, a um sorriso que ela lhe d, ou um cochilo sob o sol em que ele a observa. como se a persistncia da memria levasse o homem a imagens cada vez mais organizadas de dias vividos, especialmente junto a essa mulher, at o sublime do despertar dela, por exemplo, a nica imagem em movimento do filme, que talvez tenha essa caracterstica justamente por representar algo que o homem atingiu com seu percurso e sua persistncia. como se esse trabalho mnemnico o levasse a um outro nvel de lembrana, o mais ntido possvel, esse frgil instante recolhido que ele conseguiu recriar em movimento.

Aos poucos, o quebra cabea da memria vai sendo montado e o protagonista vai preenchendo os vazios do que viveu, da sua confuso; e a operao de Marker ir tornar isso visvel, representar cinematograficamente essa juno do cacos. O cineasta vai encenando o trabalho da memria como em uma metfora de preenchimento da imagem, acrescentando elementos, medida que o trabalho da reminiscncia vai acontecendo. Na sequncia do segundo encontro, evidente essa concepo. Encontramos a mulher de perfil em um plano mdio, em seguida vemos o homem acrescentado ao plano (seq. 1) , como se simulasse essa construo aos pedaos, em que esses fragmentos, aos poucos, vo aparecendo.

(Fotogramas de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Seq.1)Foi o cinema que, como prtica mas tambm como paradigma, permitiu a Marker refinar sua percepo singular de imagem e, dessa forma, de espao e de tempo. A montagem o correlato dessa percepo: as imagens espao-tempo devem ser associadas para construir uma viagem, ou seja, uma experincia de tempo, uma temporalidade de substituio. H uma congruncia quase perfeita entre suas reflexes, sua explorao (na forma de fico) e o meio utilizado para expor e as colocar em cena. Obtm-se um deslocamento metonmico revelador do imaginrio markereano: ubiquidade de tipo ednico, analogismo mnemnico, montagem cinematogrfica de documentos. (LAMBERT, 2008, p. 169-170, traduo nossa) Arnaud Lambert preciso ao tratar dessa mobilizao das mdias, dos meios do cinema proposta por Marker, para construir essa viagem e essa temporalidade alternativa, atravs das suas imagens e desse outro tempo construdo atravs do acesso ao passado. O que temos exatamente essa correlao entre percepo e a montagem do filme; um tempo vivido, e um tempo acessado e representado atravs de imagens, com o sentido colado a elas. As fotografias vo revelando pontos atingidos, pedaos montados do que vivencia esse homem projetado no tempo.

At a essa altura do filme, os elementos sonoros j esto praticamente todos postos, e os vimos ser desenvolvidos nas cenas seguintes. Temos a voz over que conta da experincia desse homem; os rudos confusos de sussurros; batidas do corao, misturados lngua alem falada pelos cientistas, tudo isso ouvido principalmente nos subterrneos durante as experincias. H tambm, nessa composio, a msica de Trevor Duncan que ouvimos principalmente quando o personagem atinge essas lembranas, no recolhimento dele nos momentos que pode alcanar. Essa organizao sonora de repeties das msicas, dos sussurros e rudos junto a voz over, vai ajudando a construir esse ciclo de idas e vindas atravs do tempo pelo protagonista.

Quando, no 50 dia de experincia, a viagem leva o homem at o museu de histria natural, ele percebe que atingiu algo. Agora o foco est perfeitamente ajustado. Temos ento a metfora perfeita entre coisa filmada e coisa lembrada. O foco ajustado revela um ponto atingido com perfeio, talvez o que possa se chamar de uma memria perfeita, em uma sequncia que o protagonista consegue reconhecer com clareza. Atirado no momento escolhido ele pode permanecer l e mover-se sem dificuldade, diz a narrao. E o que vemos um conjunto revelador da concepo formal de Marker sobre o que seria o trabalho da memria, dessa teimosia que leva a imagens mais contnuas. Um paralelo construdo entre o ato da memria e aquele de filmar e fotografar, ou seja, que o significado do que capturado pela cmera, ou a imagem apresentada na prpria memria, muitas vezes no facilmente perceptvel nos anos seguintes. (ALTER, 2006, p. 94, traduo nossa)Os trs primeiros planos dessa sequncia demonstram, mais uma vez, o mosaico markereano criado no filme: primeiro, em um plano aberto, percebemos a mulher em meio aos animais do museu de histria natural, depois ele; a seguir, aparece um plano no qual os dois planos anteriores esto contidos. (seq. 2)

Esse encontro com a mulher de suas lembranas evidencia, para alm dessa montagem de planos associada construo das lembranas, uma minuciosa concepo dos gestos que indiquem essa intimidade existente que o homem recupera atravs do alcance dessas imagens do seu passado. Todo o gestual dessa sequncia indica proximidade, afeto, um senso de partilha de um momento importante de ser revisitado nessas viagens. O sonoro, nesse momento, tambm contribui para esse tom de proximidade que as cenas mostram. A msica acompanha esse percurso; delicada, fluida. Trata-se de mais um desses momentos musicais nesse retorno a essas imagens que ele deseja guardar; do retorno ao tempo de alegria. Eles sorriem, veem juntos os animais no lugar; ele olha para ela em meio s esttuas e animais empalhados, congelados no tempo. Em meio a esse lugar de tempo suspenso eles se movimentam, pairam em seu momento. Ela tambm parecia domesticada. Ela aceita como um fenmeno natural a passagem desse visitante que aparece e desaparece, diz a narrao, como se, a partir dessa persistncia dele em revisitar suas lembranas, houvesse por parte dela um reconhecimento disso que foi vivido. Se pensarmos esse homem como um intruso do futuro no passado, o trabalho da memria seria isso: esse corpo de outros tempos que insiste em retornar, em querer fazer presente o que passou.

(Fotogramas de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Seq.2)O que temos a perseguio de imagens que levam at esses encontros, esses reconhecimentos ou essas invenes. Segundo Mark Fisher, Marker teria afirmado que La jete um remake de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock (FISHER, 2002). Mesmo que desconhecssemos essa afirmao, seria possvel aproximar o filme dessa obra do diretor ingls que trata desse homem obcecado por uma mulher do passado e pela imagem dela no presente. Algumas referncias so mais evidentes, como na cena em que o casal, em uma das viagens do tempo, aponta para uma sequia, como acontece no filme de 1958, no momento em que os dois se procuram naquelas linhas do tempo. Outras questes esto imbricadas, principalmente essa perseguio a que nos referimos, que encontra a temtica de Hitchcock em Vertigo, a questo da vertigem do tempo, ou de como a passagem do tempo recai sobre as coisas e sobre as pessoas atravs das imagens, da obsesso por imagens imperfeitas do passado. Assim como Scottie, o personagem de James Stewart persegue uma mulher do seu passado atravs de uma repetio falsa, um duplo, o protagonista de La jete tambm guiado por uma mulher, e por uma imagem de uma mulher do passado, como tambm a imagem que tem Scottie, um registro mental que jamais recobrir o que foi a sua verdadeira Madeleine, a mulher que conheceu, salvou, se apaixonou e depois reencontrou disfarada. Essas aproximaes desvendam essa afirmao de Chris Marker e essa influncia vai ser declarada mais diretamente em seu outro filme trabalhado aqui, Sans Soleil (1982), ao tratar das tentativas de reescritura incompletas de experincias do passado.

O filme de Marker leva seu protagonista at o limite das suas lembranas, at onde seu corpo gostaria de mais uma vez estar como parte dessa vertigem desse seu trnsito pelos vrios momentos de sua vida atravs da memria. Depois da ida ao futuro, promovida pelas experincias no subterrneo, o homem decide voltar ao passado mais uma vez e ser levado ao que faz aluso s primeiras cenas do filme, na busca daquela imagem de felicidade da mulher da sua lembrana. Vemos mais uma vez a mulher, o per, as pessoas no per, um dos cientistas tambm no lugar, para que o homem possa finalmente reencontrar o momento da sua lembrana mais preciosa e encontrar tambm a morte (img.5). A morte do homem que temos notcia no incio era, na verdade, a dele mesmo. Quando se encontra o extremo da lembrana, o que resta? Para Marker, o inevitvel desse alcance a morte. o que temos, talvez para mostrar que seja impossvel recobrir o vivido e que a busca disso limitada, dolorida e extrema. Quando atinge esse ponto da memria, o homem tomba; para ele, no era possvel o futuro pacificado, nem o presente cruel; era preciso repousar naquele que era o momento em que tanto se agarrara para sobreviver.

(Fotograma de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Img.5)1.2 O cinema contaminado pela fotografiaSeguindo o percurso de investigao da concepo formal de Chris Marker em La jete, nos defrontamos com a escolha por fazer um filme atravs de fotografias. Temos aqui um diretor dedicado a tratar de uma relao com o tempo, e refletindo sobre a maneira de representar esses acessos, os alcances, os instantes, todas essas categorias temporais que passam pelos temas da memria, do seu aspecto involuntrio, do que nela trabalho e reconstruo. O filme demonstra o interesse de Marker por algo que Roland Barthes explicitou ao dizer que o que a Fotografia reproduz ao infinito s ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais pode se repetir existencialmente (BARTHES, 1984, p.13). A fotografia, no filme, assume essa posio de representao de algo inalcanvel a partir da persistncia da repetio, da investigao das circunstncias da experincia que no pode ser revivida. A repetio algo que interessa ao diretor e essa forma imperfeita que diz respeito ao registro fotogrfico fundamental para entendermos sua criao nesse filme. Se o trabalho de se voltar s runas, que seja feito atravs de um recurso que d conta dos cacos e que mostre a incompletude de se voltar a essas frgeis infinitudes; que d conta das imagens do que nelas presena, fantasmagoria e falta. Nas mos de Marker, as fotografias no so testemunhas leais do tempo, mas armadilhas da conscincia temporal. (HARBORD, 2009, p. 24) A fotografia um simulacro. Quando muito, uma lembrana, com o que isso implica de ausncia e separao. A lembrana no tem relevo, no tem nada de verdadeiramente presente. Do passado, ela apenas a decomposio. A foto , por natureza, essa decomposio; ela atenta contra o esquecimento, do qual surge a revelao da memria involuntria. S esta, nascida ao acaso, da disponibilidade, metamorfoseia o passado em presente, fazendo com que se juntem na escrita, que ter por objeto fundar a apreenso na durao. (BELLOUR, 1997, p. 70)

La jete expe essas questes fundamentais na temtica da memria e da narrativa ao tratar das lembranas como fotografias, tornando isso cinematogrfico, atravs da montagem, em uma convivncia entre aspectos contnuos e descontnuos. O que temos essa tentativa, atravs da imagem, de explorao das duraes que, em convivncia menos ou mais linear, traz tona as camadas do trabalho da memria. Marker usa desses vrios aspectos de que fala Raymond Bellour para tratar desse drama, desde a decomposio revelada atravs da montagem, reinventando duraes para o que foi vivido, a esse aspecto da fotografia no que contm nela, ao mesmo tempo, de passado e de presente desse recobrimento do passado atravs de parte dele somente o que revela uma inevitvel perda, e ainda assim uma poderosa capacidade de guardar, recolher.

Sabemos que a fotografia, quando usada no cinema, costuma provocar uma suspenso. Aqui Marker escolhe o caminho oposto: o da montagem feita com fotografias que compe o ritmo do filme e a sua narrativa; a suspenso vem atravs da nica imagem em movimento, do despertar da mulher inesquecvel. Acompanhamos os mnimos gestos dela at que 11 plano em que temos os olhos se abrindo em movimento, como em uma persistncia que permite atingir algo mais; um olhar retribudo em movimento (seq. 3). Ou seja, tratar desses acessos ao passado, exige esses vrios estatutos da imagem, esse impregnar do cinema pela fotografia e o contrrio. Ou como tratou Raymond Bellour, La jete parece percorrer novamente todo o espao da lacuna aberta do cinema desde seu incio, se no, desde sua origem at a presena imvel da fotografia (tanto como corpo como ideia) (BELLOUR, 1990, p. 131).

(Fotogramas de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Seq.3)

Isto , o ato de lembrar passa a ser cinematogrfico, o que leva indagao de uma ordem diferente. No somente dos lugares da criana e do homem, do passado e do futuro, indistinguveis, tambm possvel que a memria seja inseparvel da encenao, enquadramento e dispositivos focais da fotografia cinematogrfica. Como a memria infectada pela fotografia e, reciprocamente, os dispositivos fotogrficos tm servido aos requisitos da memria? (HARBORD, 2009, p.1, traduo nossa)O movimento operado por Marker o de dispor os mecanismos da fotografia e do cinema a servio da memria, promovendo essa contaminao desses meios pela dinmica da memria. Os frames, a montagem, o conjunto vai atendendo ao que o trabalho da memria pede na sua representao.

A escolha por fazer um filme atravs de fotografias, nessa dinmica do fotogrfico e cinematogrfico, diz tambm sobre o desejo de Marker usar aspectos inerentes ao recurso, como essa morte que acompanha o sentido da fotografia, da presena, do instantneo, e da ausncia j contida na velocidade da sua passagem, da sua durao. Marker se interessa por esse aspecto que Susan Sontag viria a definir: A fotografia o inventrio da mortalidade. Basta agora um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia pstuma. (SONTAG; 2004, p. 85). Ou ainda: O passado mesmo, uma vez que as mudanas histricas continuam a se acelerar, transformou-se no mais surreal dos temas tornando possvel, como disse Benjamin, ver uma beleza nova no que est em via de desaparecer. (ibid, p. 91). A escolha de Marker pela fotografia informada por esta fragilidade, por isso, de morte que est contida na imagem fotogrfica, na sua durao, nesta potente e frgil capacidade de salvar que est presente tanto na lembrana quanto na fotografia, no que h de eterno e fugidio nas duas. A imagem que acompanha o homem paira sobre o filme, como presena, como ausncia, e como procura, em uma dinmica da memria, do instante, do vivido, do percebido, registrado e da relao que fazemos com estes depois.

Esses modos de contato com o passado, presente e o futuro passam por essa tradio da representao da lembrana atravs da imagem algo impregnado no nosso cotidiano, j que nos referimos a esse acesso atravs de imagens do passado. Essa relao antiga, vem desde a Antiguidade, mas segue como um linha de continuidade na contemporaneidade, como afirma Paul Ricoeur. A questo embaraosa a seguinte: a lembrana uma espcie de imagem, e, em caso afirmativo, qual? E se, por uma anlise eidtica apropriada, se verificasse ser possvel dar conta da diferena essencial entre imagem e lembrana, como explicar seu entrelaamento, e mesmo a confuso entre ambas, no s a nvel da linguagem, mas no plano da experincia viva: no falamos de lembrana imagem, e at de lembrana como uma imagem que fazemos do passado?[...] Como explicar que a lembrana retorne em forma de imagem e que a imaginao, assim mobilizada, chegue a revestir-se das formas que escapam a funo do irreal? (RICOEUR, 2007, p. 61-66)

Ricoeur toca nestas camadas a que se referiram tambm Sontag e que se aproxima dessa confuso intencional que faz Marker entre as lembranas e as fotografias. La jete faz com que reflitamos junto com o autor: em que momento do trabalho da memria a lembrana passa a ser imagem? Que espcie de imagem? A forma como Marker trabalha a lembrana informada por essa tradio em que o passado sempre tratado como experincia visvel, mesmo que imaginada, ou inventada. La jete se aproxima tambm da concluso bergsoniana de Ricoeur ao tratar da passagem da lembrana-pura a lembrana-imagem no qual a segunda parece sempre revelar uma repetio, um dej vu, ou ainda, em algo notrio na representao da memria dessa obra de Marker, o fato da lembrana como imagem sempre estar relacionada com um processo de reconhecimento. (RICOEUR, 2007, p. 68). As imagens ou as fotografias vo revelando esse percurso e esses lampejos que representam uma confuso entre a repetio do vivido que leva a um reconhecimento, ou a uma imagem mais ajustada, mais focada, mantendo aqui a metfora entre o que se lembra e o que se filma.

Em mais uma das experincias de viagem no tempo, o homem volta a encontrar a mulher da sua lembrana: Ele enviado novamente, o tempo passa novamente, o instante volta. Vemos este momento, o perfil da mulher, o instante que tem seu sentido colado ao da fotografia, neste retorno que , na verdade, um re-encontro. Desta vez ele est mais perto dela, fala com ela. Ela o acolhe sem surpresa. Eles no tm lembranas nem projetos. Suas nicas referncias so o sabor do momento que vivem, e os sinais nas paredes. Neste momento do filme, Marker parece desejar trazer essas vrias noes informadas pela tradio da imagem-lembrana, a repetio, o reconhecimento, esse retorno de um presente fugidio, seja nesta volta do instante, ou nesta frgil alegria que tem o casal, sem projetos, aparentemente sem passado e sem futuro, apenas o momento, e os sinais na parede, aquilo que h de visvel, do que poderia ser lembrado como imagem, como fotografia.

Nesse sentido, sua natureza material, no dispositivo singular do filme, isto , seu estatuto hbrido de imagem que no nem (simplesmente) fotogrfica nem (verdadeiramente) cinematogrfica, mas o que eu chamo de (pela verso da noo de fotograma - uma imagem de filme como fotografia) um cinematograma (uma imagem fotogrfica como de filme), essa natureza ambivalente corresponde exatamente ao dado: La Jete ao mesmo tempo nos conta a histria de um filme mental que se deteria em uma fotografia e ao mesmo tempo nesse filme (uma foto que dura). (DUBOIS, 2002 p. 38, traduo nossa)

O que Marker tem em mos um material delicado em que ele escolhe uma fronteira tambm delicada como forma de representao. como afirma Dubois, a imagem-lembrana no filme adquire esse carter dbio, ou contm tanto o sentido cinematogrfico como fotogrfico; um movimento para tratar dessa experincia radical com o passado que retomado como imagem. O que o autor deseja dar conta daquilo que Marie-Jos Mondzian afirma, em seu texto sobre a relao entre cinema, Shoah, ou sobre com o que se depara aquele que se volta na tentativa de capturar um registro sensvel sobre aqueles eventos, como sendo uma eternidade frgil (MONDZAIN, 2007, p. 31) revelada na imagem de felicidade e em todo o percurso do filme nos reencontros fragmentados com a mulher amada. Eternidade frgil que tambm pode ser lida nessa alegria guardada como recurso nos tempos de guerra, como lampejo de felicidade depois do fim do mundo.Se tudo se inscreve na memria psquica e ali permanece gravado intacto, nem tudo volta. O recalcamento originrio, e sempre haver restos perdidos, parcelas inacessveis a conscincia. Sempre haver uma parcela de imagem invisvel. Sempre haver uma espcie de latncia no positivo mais afirmado, a virtualidade de algo que foi perdido (ou transformado no percurso). Nesse sentido a foto sempre ser assombrada, sempre ser em (boa) parte, uma imagem mental. (DUBOIS, 1994, p. 325, 326)

Sobre estes aspectos que acompanham a fotografia a que se refere Dubois, partindo de Freud, acrescentamos no entendimento da escolha pela fotografia, que vai desde esse esforo de representao desse encontro com a lembrana como imagem, at essa sensao que traz de algo irrecupervel, das camadas invisveis a serem preenchidas com o pensamento, ou com estas imagens mentais a que o autor se refere. So estas imagens indefinidas entre o vivido e o inventado de que trata Marker, nessa convivncia entre o que possvel de ser acessado e o que assombra esses registros incompletos. A fotografia para o autor no filme meio, portanto, para construir camadas de significado sobre a lembrana como linguagem. Trata-se de um registro assombrado pelo que se consegue recolher e pelo que est perdido. A fotografia, ou a representao da imagem-lembrana, como tratou Henri Bergson (2010, p. 98-99), reveladora dessa mortalidade melanclica da recordao. O que Chris Marker faz com esse filme nos propor uma representao desse movimento quase que incessante de associao, justaposio, intervalo e reconhecimento. PARTE 2

O FUTURO PASSADO

2.1 Um projeto de cinema historicamente informado

As experincias de violncia das dcadas anteriores, a abertura dos documentos nazistas, o desejo de construir uma memria da Resistncia, a perplexidade e o desejo de signific-la, tudo isso material para Marker conceber sua meditao contempornea sobre a nossa relao com o passado. A ruptura que esses eventos representam informa a ruptura esttica que se d em La jete e que analisamos na primeira parte desse captulo. As experincias de guerra recentes exigem uma inquietao da relao do diretor com a linguagem e com seu prprio cinema.Esse real exige uma nova tica da representao, na medida em que no satisfaz nem com o positivismo inocente que acredita na possibilidade de se dar conta do passado, nem com o relativismo inconsequente que quer resolver a questo da representao eliminando o real. (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 10)

La jete informado pelo contexto turbulento e reflexivo do ps Segunda Guerra Mundial, mas ainda por eventos mais recentes como a Guerra da Arglia (1954-1962) e as experincias de descolonizao do Terceiro Mundo. Essa gerao tem que lidar com essa nova tica da representao, como diz Mrcio Seligmann-Silva. interessante entender de que maneira a ruptura que esses eventos de violncia desencadeiam tambm em um rompimento na concepo do trabalho de Marker, que passa a se voltar constantemente para a temtica da memria. Algo que se introduz com relevncia e notoriedade em La jete, e que o artista no mais abandona, torna-se uma questo que atravessa sua obra, seus filmes, que, de uma forma ou de outra, tratam das memrias constitudas, das rejeitadas, e principalmente da inquietao dos dados estabelecidos atravs de um questionamento de documentos e da construo de um outro saber sobre o seu tempo.

No filme, notamos a temtica ser trabalhada, principalmente, atravs dessas experincias com as runas nessa histria subterrnea. O que temos em La jete so um diretor e um protagonista lidando com o que resta e montando e desmontando imagens mentais como imagens fotogrficas a partir dessa ideia que se relaciona com aquilo que Giorgio Agamben define na sua concepo do contemporneo, como sendo aquele que concerne o escuro de seu tempo que no cessa de interpel-lo [...] que recebe em seu rosto o facho de trevas que provm do seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 64). Marker esse homem voltado para as experincias extremas onde elas teimam em persistir, no trabalho mnemnico e no que nele repetio, falta, reconhecimento, permanncia e no que revela um sentimento de um tempo. La jete demonstra isso, traz tona essa tentativa de dar conta dessa escurido de que fala Agamben, nesse confronto com o presente e com o passado recente que, como afirma Susan Sontag, seria o mais surreal dos temas. Marker nos apresenta um futuro passado difcil de definir e representar, um futuro passado para o qual ainda estamos todos voltados e perplexos. A mesma lio da arte contempornea, assim como a Shoah ser profundamente trabalhada, e, em particular da arte do cinema como arte por excelncia desta poca poca essa que sempre, 60 anos depois da abertura do campo de Auschwitz, a nossa essa lio precisamente a exigncia reformulada de recusa de qualquer sistema fechado, de toda pretenso totalizante ou linear. (FRODON, 2007, p. 26, traduo nossa) Marker se afasta de qualquer pretenso totalizante. Seu desejo conceber uma reflexo sobre seu tempo atravs da experincia do seu protagonista. Um homem errante diante de suas lembranas e do que nelas no consegue alcanar. Os homens que passam pelas viagens no tempo no filme tornam-se confusos e sujeitos com fortes imagens do vivido no seu presente. A imagem que o protagonista no consegue esquecer no filme, e que mostrada, esttica, como uma imagem-lembrana, seria a nica do tempo de paz a chegar ao tempo de guerra. atravs das imagens, que se vive o passado mais uma vez. E viv-lo no era tarefa fcil naquele momento. Ou como afirmou Walter Benjamin:No final da (Primeira) Guerra observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, no mais ricos, e sim mais pobres em experincia comunicvel. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experincia transmitida de boca em boca. No havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia do corpo pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes. Uma gerao que ainda fora escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre em uma paisagem em que nada permanecera, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de foras de torrentes e exploses, o frgil e o minsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1985, p.198)A imagem do futuro que Marker nos apresenta prxima dessa descrita por Benjamin, e os corpos que ele filma remetem a esta imagem, evocada por ele, dos homens desterritorializados nos lugares e no tempo. As experincias dos corpos com os ambientes so radicalmente transformadas, como vemos nas expresses transtornadas dos homens nos subterrneos, eles no oferecem respostas exatas, no levam a lugares definidos do passado, a imperfeio do esprito humano no permite essa exatido. Mesmo o protagonista na sua viagem ao passado, em sua busca pela mulher da imagem da qual ele no esquece, transita por lugares de vrios tempos. No processo, e nas vrias viagens, vemos esse homem ir da confuso at atingir pontos de maior continuidade. Nas primeiras viagens, as imagens so menos certas: que dia da lembrana seria aquele? Trata-se do mesmo dia? Foram tantas idas ao parque, qual seria aquela? Por que ela lida com tanta naturalidade com a presena dele? Seria ela vivida ou inventada? Ou com diz a narrao, Ele nunca sabe se ele a inventa ou se sonha. Marker se interessa pelas diversas camadas da memria e faz isso na sua representao em uma ordem tanto confusa quanto emotiva.

E mais uma vez, diante das reflexes possveis de serem feitas sobre esse filme, o pensamento de Walter Benjamin nos encontra; essa relao com o passado, as formas de lidar com seu aspecto fragmentrio, as limitaes e as potncias desses reencontros. Benjamin j afirmara: A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado s deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que reconhecido. (BENJAMIN, 1985, p. 224). Este pequeno trecho dialoga claramente com o procedimento de criao e o entendimento que Marker tem da memria e deste modo do protagonista acessar o passado. Ou como diz Benjamin, mais uma vez demonstrando ser uma clara influncia para Marker neste filme: Articular historicamente o passado no significa conhec-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um perigo.No seria exagerado ver neste filme uma mise-en-scne da viso da Histria de Benjamin s que realizada do outro ponto de vista, a saber, daquele que se localiza preso do outro lado da catstrofe destruidora. Tambm nesse filme somos confrontados com runas, sofrimento, torsos que desfilam como parte daquilo que o narrador denomina como museu da memria [...]

O filme estrutura-se a partir da rememorao: o presente que comanda a excurso no tempo; o passado visto tanto como um amontoado de runas como tambm como composto por imagens paralisadas que contem em si o germe da salvao. (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 411)

O filme traduz aquele que seria o homem contemporneo para Walter Benjamin. Homens e mulheres marcados por uma imagem de infncia, como o protagonista do filme, e que tem sua relao com a linguagem inquietada diante da ruptura das extremas experincias de violncia. o corpo daqueles homens que acompanhamos nas experincias e sua impotncia diante daquele destino. So homens mudos em que a linguagem permitida a do recordar, do rememorar e reinventar. O frgil e minsculo corpo humano daquele homem, desterritorializado, ancorado somente quelas lembranas, aos dias de alegria vividos, ou talvez inventados como forma de sobreviver.

O homem diz, em seu re-encontro com a mulher buscada, enquanto aponta para sequia e seus mltiplos tempos, que vem do futuro. Essa presena em um tempo outro pode ser entendida a partir do movimento de recordar, de voltar como um corpo velho, marcado, com as cicatrizes do presente e as esperanas do futuro, at algo que no pode ser repetido. Mais uma vez a metfora do recordar e do retorno atravs das imagens faz sentido numa leitura desta obra de Marker, com a presena deste corpo estranho em outros tempos, reconhecveis, mas diferentes. Isso nos remete relao que o autor constri desta imperfeio do retorno e desta dupla dimenso da memria em que a lembrana e o esquecimento esto contidos. Chris Marker faz parte de duas ou trs geraes de artistas e de pensadores que acreditaram (e querem acreditar) que Auschwitz e Hiroshima foram momentos insuperveis da histria da humanidade. Por exemplo, para se deter na Frana e no cinema: Resnais, os Straub, Godard, Duras, Daney.[] Sabe-se que Auschwitz essencial e ao mesmo tempo destinado ao esquecimento o que explica, sem dvida, a relao obsessiva, como uma ferida nunca curada, que esses artistas e pensadores tm com a memria. (BOUQUET, 1998, p. 60, traduo nossa)As experincias de guerra para essa gerao devem ser representadas, expondo essas dimenses que vo de uma inevitvel presena, da teimosia da memria s lacunas, falta, ao esquecimento que faz parte do tecido mnemnico e das dificuldades em significar a violncia vivida. La jete faz parte desse conjunto diverso e dessas tentativas de dar conta da complexidade disso que retornar, mexer no que nunca foi esquecido, mas, por vezes, adormece at mesmo como forma de sobreviver. Essas questes fazem parte do debate sobre o testemunho que informa o trabalho realizado nesse filme. Como aquele que viveu a dor, o abalo da grande violncia, representa isso? E Marker, assim como Benjamin, quer apreender, indicar esse no representvel e inapreensvel: a vida. (SELIGMANN-SILVA, p. 410).2.2 A ida ao futuro e o Teorema MarkereanoEm La jete, o sucesso das experincias de viagem para o passado desperta o interesse dos vencedores em levarem o protagonista ao futuro. Apesar de que, para aquele homem, o futuro seria mais protegido que o passado, ele rejeita o que presencia. Na viagem, o homem se depara com um mundo de mulheres e homens que rejeitam a escria de outra poca. Mesmo com a chance de estar nesse porvir pacificado, ele prefere voltar ao mundo da sua infncia, como numa impossibilidade de abandon-lo, ainda como lugar possvel de se ancorar. Em anlise sobre o filme, Mrcio Seligmann-Silva afirma: Como em Benjamin, tambm o nosso personagem de La jete recusa a imagem de futuro pacificado: ele prefere escavar as suas memrias. Apenas a sociedade tem futuro, o indivduo s possui as imagens do seu passado aprisionadas no seu presente (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 413). O homem compreende que no havia como escapar do tempo, restando-lhe ir ao encontro das suas lembranas, voltar ao per de Orly, e dessa forma encontrar a morte. Vemos como o filme levanta inicialmente questes contemporneas mas falando da nossa poca como uma lembrana. Marker descreve a dificuldade de comunicao, as relaes espao-tempo-movimento, o encontro, o nada, as questes na urgncia que nos tocam, como se tratasse de abordagens j concludas e permitissem o futuro de se instalar. Ele deveria talvez falar mais de uma crtica da fico cientfica, uma vez que uma questo contempornea tratada em flash-back em uma obra que parece se situar no futuro, e que ainda vai situar no futuro do futuro. (WEYERGANS, 1963, p. 37, traduo nossa)

Para Marker, em La jete, preciso transitar primeiro pelo passado, partindo do presente para que ento o futuro possa se instalar. Algo que pode, como aponta Franois Weyergans, na ocasio do lanamento do filme, ser considerada uma provocao em relao s fices cientficas que costumam se projetar direto para o futuro. O homem volta ao local da imagem inesquecvel, ao per, a essa sucesso, aos avies sob o sol, e procura da mulher aquele que seria o momento de sua prpria morte. No era possvel escapar do tempo. Marker tambm no escapa, e no o recusa, ele vai ao futuro, mas, para tratar do nosso tempo, sobre questes no superadas, para mexer mais uma vez com elas. Esse ir e vir sempre pareceu necessrio para Chris Marker lidar com as questes de sua poca e as que se dedicou com seu cinema. Esse drama contemporneo exige um movimento pelos tempos verbais que possibilite a reflexo, pois o tempo produz sua prpria alteridade (HARBORD, 2009, p. 95). Da a necessidade de Marker dar tempo s imagens, de mostr-las primeiro em uma montagem incompleta, como a da morte do protagonista, para depois, com a carga do tempo, ser reencontrada.Mais tarde, ele entendeu. justamente esse o mecanismo (teorema) markereano do distanciamento e da compreenso adiada, tratado aqui no modo narrativo de reencarnao do passado que nos leva ao fim do filme, seu eplogo, que retoma exatamente a mesma cena, mas mudando o objeto e o ponto de vista. Recuperao, reviso. Pode-se dizer que entre essas duas "verses" da mesma cena que h, finalmente, alternncia. (DUBOIS, 2002, p. 27, traduo nossa)

Este teorema markereano, proposto por Philippe Dubois, atravessa sua obra em que as imagens so constantemente repetidas em circunstncias diversas, em tempos diferentes; primeiro como imagens isoladas, depois com a carga dos registros que convivem com elas, e levam at elas. Como no caso de Sans Soleil (1982) e a imagem de felicidade das crianas na Islndia, mostrada no incio na impossibilidade de montagem com outras, e no final do filme, mostrada em tempo maior, impura, na convivncia com os outros registros. Como diz a narrativa no incio de La jete, Nada distingue a lembrana de outros momentos, s mais tarde elas se fazem reconhecer por suas cicatrizes. Isso faz parte da crena de Marker do tempo que as imagens precisam para ganharem novos sentidos, os sentidos do tempo, da serem retomadas, repetidas, da em muitos filmes o uso de materiais filmados por outros, em outros tempos que Marker d o sentido da leitura do seu tempo, trazendo a inquietao da sua significao.A ideia do mosaico ou do quebra-cabea das lembranas, a ser montado, tambm est presente nessa ideia da imagem que sempre precisa de um futuro. interessante notar como essas questes esmiuadas por Chris Marker em La jete o acompanhariam. Esse mecanismo, ou teorema, como aponta Dubois, como se fosse um postulado da sua investigao sobre a memria, atravs da imagem que atravessa sua carreira entre aspectos de ruptura e continuidade. O que temos nesse filme, nessa explorao da temtica da lembrana colada ao sentido da imagem e representada atravs de uma mise en scne mnemnica, tambm desemboca em Sans Soleil. Nele, novamente, teremos esta investigao dos acessos, das representaes, das imagens possveis de se fazer do passado, onde novamente veremos imagens que no largam, e a convivncia delas com outros registros. IISANS SOLEIL E A MEMRIA RECRIADA

Toda memria subversiva porque diferente,

todo projeto de futuro tambm.Eduardo Galeano

Documentrio, filme-ensaio, nico documentrio de fico cientfica na histria do cinema (NINEY, 2002, p.105), so muitas as definies para Sans Soleil, filme de Chris Marker de 1982, no qual acompanhamos os registros de viagem de um homem pelo mundo, suas impresses e uma reflexo contempornea sobre a memria e as experincias de luta da segunda metade do sculo XX. O que temos um filme voltado para essas imagens de viagem que se lana sobre questes do presente, mas em um constante retorno s imagens da dcada de 1960, aos ecos e assombros das experincias de luta do perodo para as dcadas seguintes. Le fond de l`air est rouge , filme de Chris Marker de 1977, j demonstrava esse peso do tempo, quando o diretor se voltou s imagens dos movimentos sociais da dcada de 1960 dando-lhe o sentido da leitura da dcada seguinte, com seu mtodo de ressignificao das imagens, atribuindo-lhe novos sentidos.

Na poca do lanamento, boa parte da crtica interpretou Sans Soleil como parte de um projeto de maturao desse desejo que j aparecia em filmes como o de 1977, ressaltando esse carter de balano na obra que passa por essa relao do diretor com os grandes temas da sua gerao, como a Segunda Guerra Mundial e os processos de descolonizao africanos, na impossibilidade de abandonar essas questes, mas em um momento de reflexo sobre o modo de abordagem delas.

Yann Lardeau, em seu texto sobre Sans Soleil para Cahiers du Cinema, em 1983, demonstra essa tentativa de entender de que modo esta obra informada historicamente, e de como esse trabalho revela uma reflexo ps-60, feita pelo diretor. Lardeau tem uma leitura do filme como uma maneira de lidar com a melancolia da falncia ideolgica ps-60 algo que uma reflexo posterior queles anos, e no momento do lanamento de Sans Soleil trazida tona. O ltimo suspiro dos anos 60. Dois contextos diferentes que interrogam o cmera sobre sua prtica profissional, seu desejo de deixar a guerra, a macro poltica, para no tratar mais de rituais cotidianos. Mas Marker no pode deixar de ser srio. Ele filma muito bem a fundo as contradies com que se depara. Ele adoraria filmar o cotidiano, o banal, a sobrevivncia comum, no a realidade da guerra, nem o teatro das lutas militantes, mas ele incapaz, ele recai sempre sobre as mesmas imagens, as mesmas obsesses que tinha h dez anos: as manifestaes no aeroporto de Tquio, o fascismo, a essncia da pequena burguesia de esquerda, o capital e os trabalhadores. Ele adoraria filmar o Japo como Barthes descreveu em L'Empire des Signes, mas ele no pode reunir suas imagens sob forma de abstraes como na guerra, na luta, na independncia nacional ou na festa, de modo que a monotonia de Sans Soleil, apesar dos seus ensaios de vdeo, fruto de uma profunda melancolia dos anos 60, de um luto que no chega a ser resolvido e s se nota na sua distoro, seu atraso, para se aproximar da plasticidade social da gerao contestadora dos anos 60. (LARDEAU, 1983, p. 60, traduo nossa)

Lardeau, que escreve em uma Cahiers du Cinma tambm em um momento de reflexo sobre rumos de seus caminhos, como se dava na dcada de 1980, mostra aqui sua leitura da forma como convivem as rupturas e permanncias em Sans Soleil, no mtodo que poderia ser reorientado, voltado ao banal, ao desejo de se voltar ao cotidiano, e a impossibilidade de se desvincular dos grandes temas. Lardeau acredita que Marker no consegue se desligar deles, por mais que tente se voltar a outras questes, apesar de que o filme se prope justamente a trabalhar nessa dinmica entre o banal e os grandes temas, ou de forma que as imagens cotidianas de viagem acionem essas reflexes sobre as questes de poca.

Tambm na ocasio do lanamento do filme, Paul-Louis Thihard escreveu para Positif sobre uma dialtica poltica, ou ainda, sobre a construo de uma dialtica da finalidade e do caminho (1983) em Sans Soleil, traduzindo essa tentativa de Marker de construir uma obra reflexiva sobre aquelas experincias e sobre o seu cinema dentro do debate da memria e o debate de esquerda. Para ele, a soluo para no cair em uma abordagem antiquada dos velhos temas se voltar a eles (nesse foco) no percurso, na viagem, no interesse pelo cotidiano, pelas festas de bairro, as cerimnias, nas imagens que vo lanando o viajante de um lugar para outro; por esses pases e pelos ecos das experincias de luta e violncia que os constituem.

Tambm em 1982, a amiga e companheira de trabalho de Chris Marker, Agns Varda, lanou Ulisses, curta metragem em que possvel notar um movimento de balano parecido ao de Chris Marker nesse filme, em que a diretora promove uma investigao sobre o seu passado, sobre a histria da sua vida, a partir de uma imagem orientadora e do constante contato entre experincia ntima e coletiva. Essa obra, em muitos momentos, pode ser aproximada dessa, no s pela relao estabelecida entre os autores, mas pelo enfoque dado pelos diretores nesse momento de reflexo e por representarem esse momento de meditao sobre o tempo e a passagem dele nessas conexes entre intimidade e experincia coletivas constituintes. Desde a dcada de 1980, possvel constatar uma distncia irnica e autorreflexiva da retrica revolucionria e nacionalista. A direita proclama o fim da histria e o acesso universal ao capitalismo e democracia, entendidos como parceiros inevitveis. Na esquerda, enquanto isso, um vocabulrio revolucionrio se viu ofuscado por uma nova linguagem de resistncia, indicativa de uma crise nas narrativas totalizadoras e de uma diviso modificada de projeto emancipatrio. Conceitos substantivos como revoluo e liberao transmutaram-se em oposio fundamentalmente adjetiva: contra-hegemnico, subversivo, antagonista. Em lugar de uma macronarrativa da revoluo, existe agora uma multiplicidade descentralizada de lutas micropolticas localizadas. (STAM, 2003, p.328)

Essa virada que Robert Stam verifica se dar na dcada de 1980 possvel de ser notada nesses filmes, nessa re-orientao, informada pelas atualizaes do debate. Marker, que fortemente influenciado pelo debate da esquerda, e pelo materialismo histrico marxista, aqui se reinventa na discusso usando ferramentas dela e subvertendo-as algo que se revela principalmente na relao que estabelece com o tempo. O tempo para Marker, em Sans Soleil, no teleolgico como materialismo histrico previa; fragmentrio, imprevisvel, e contraria as expectativas, e o que se espera principalmente aps significantes experincias revolucionrias, como o caso do movimento por independncia de Guin Bissau e Cabo Verde (1975). Apesar de Sans Soleil revelar muitas continuidades do que j foi visto na obra de Chris Marker, do uso das imagens de arquivos, das apropriaes, das montagens questionadoras dos documentos, aqui ele radicaliza ao levar sua montagem para uma dimenso bastante pessoal da memria, tratando de seus lugares de reinveno e se afastando de uma monumentalizao. A memria se torna recurso para o diretor lidar com essas rupturas e continuidades sem os artificialismos de um discurso que deseja abarcar e reconstituir experincias. Em Sans Soleil, ele precisa do que na memria incompleto, frgil, e no por isso menos poderoso, para lidar com as questes que ele teima em no largar e que ele repensa e expe atravs da concepo do filme.

Neste captulo, a proposta de investigar a relao entre histria, memria e imagem presente no filme e buscar, por meio da anlise flmica e do encontro com o que j foi dito no debate em torno da obra do diretor, construir uma leitura que contribua com essa discusso. Marker, o cineasta, fotgrafo, militante, viajante, criou uma obra emblemtica que reflete no s esses temas, mas que busca atravs deles discutir, a partir de deslocamentos geogrficos, uma relao contempornea com o tempo, para dessa forma tambm discutir sobre como o seu cinema se situa em um trabalho de