a loucura de deus num profeta da amazônia! · 2014-02-24 · loucos profetas que deus escolheu...

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1 A loucura de Deus num profeta da Amazônia! Pe. Cláudio Perani sj e Missão da Equipe Itinerante 1 : Um pé dentro e um pé fora...Homenagem ao 4º aniversário da itinerância do companheiro CLÁUDIO para a casa do Pai. Arizete M. Dinelly cns, [email protected] ; Fernando López sj, [email protected] Graça Gomes cf, [email protected] ; Roselei Bertoldo ICM, [email protected] Paco Almenar sj, [email protected] ; Mariza Miranda Dinelly, [email protected] Equipe Itinerante: [email protected] Introdução Dois anos depois da Itinerância Definitiva e Plena do Pe. Cláudio Perani sj (+8/8/2008), Dom Moacyr Grechi, Arcebispo emérito de Porto Velho (RO, Amazônia), comentou com carinho e saudade: “Quanta falta nos faz o amigo Cláudio! Ele nos ajudava a alçar a vista e alargar a mirada mais longe, para discernir nossa missão na Amazônia!”. Cláudio foi o primeiro superior do Distrito dos Jesuítas da Amazônia (DIA) 2 , criado em 1995 para discernir a missão amazônica “desde dentro”, a partir da Amazônia e do caminhar respeitoso, próximo, paciente e amoroso junto a seus povos, em diálogo com eles. E não mais pensar, discernir e decidir a missão na Amazônia “desde fora”, a partir do litoral ou centro- sul do Brasil, dos grandes centros de decisão ou poderosas corporações dos países hegemônicos. Assim se fez historicamente ao longo do período colonial e até hoje se reproduz em modelos de desenvolvimento fortemente agressivos, marcos legais que ferem a justiça socioambiental, políticas públicas que facilitam a depredação da região e uma violenta agressão aos direitos humanos e cósmicos de seus povos. Para discernir a missão na Amazônia, “desde dentro”, com seus povos e aliados, Cláudio insistia: “Andem pela amazônica e escutem atentamente o que o povo fala... Participem da vida cotidiana do povo... Anotem e registrem tudo cuidadosamente... Não se preocupem com os resultados; o Espírito irá mostrando o caminho... Coragem! Comecem por onde possam...1 Equipe Itinerante (EI): Nasceu inspirado pelo Pe. Cláudio Perani sj em 1998 como uma iniciativa inicial dos Jesuítas da Amazônia. Porém, já neste primeiro ano a experiência foi integrada pela Congregação de Nossa Senhora (CSA) - Intercongregacionalidade. 2 Em 2005 o Distrito dos Jesuítas da Amazônia (DIA) passou a Região Dependente dos Jesuítas da Amazônia Brasileira (BAM).

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A loucura de Deus num profeta da Amazônia!

Pe. Cláudio Perani sj e Missão da Equipe Itinerante1:

“Um pé dentro e um pé fora...”

Homenagem ao 4º aniversário da itinerância do companheiro CLÁUDIO para a casa do Pai.

Arizete M. Dinelly cns, [email protected]; Fernando López sj, [email protected]

Graça Gomes cf, [email protected]; Roselei Bertoldo ICM, [email protected]

Paco Almenar sj, [email protected]; Mariza Miranda Dinelly, [email protected]

Equipe Itinerante: [email protected]

Introdução

Dois anos depois da Itinerância

Definitiva e Plena do Pe. Cláudio Perani

sj (+8/8/2008), Dom Moacyr Grechi,

Arcebispo emérito de Porto Velho (RO,

Amazônia), comentou com carinho e

saudade: “Quanta falta nos faz o amigo

Cláudio! Ele nos ajudava a alçar a vista

e alargar a mirada mais longe, para

discernir nossa missão na Amazônia!”.

Cláudio foi o primeiro superior do

Distrito dos Jesuítas da Amazônia

(DIA)2, criado em 1995 para discernir

a missão amazônica “desde dentro”, a

partir da Amazônia e do caminhar respeitoso, próximo, paciente e amoroso junto a seus povos, em diálogo com

eles. E não mais pensar, discernir e decidir a missão na Amazônia “desde fora”, a partir do litoral ou centro-

sul do Brasil, dos grandes centros de decisão ou poderosas corporações dos países hegemônicos. Assim se fez

historicamente ao longo do período colonial e até hoje se reproduz em modelos de desenvolvimento

fortemente agressivos, marcos legais que ferem a justiça socioambiental, políticas públicas que facilitam a

depredação da região e uma violenta agressão aos direitos humanos e cósmicos de seus povos.

Para discernir a missão na Amazônia, “desde dentro”, com seus povos e aliados, Cláudio insistia: “Andem pela

amazônica e escutem atentamente o que o povo fala... Participem da vida cotidiana do povo... Anotem e

registrem tudo cuidadosamente... Não se preocupem com os resultados; o Espírito irá mostrando o caminho...

Coragem! Comecem por onde possam...”

1 Equipe Itinerante (EI): Nasceu inspirado pelo Pe. Cláudio Perani sj em 1998 como uma iniciativa inicial dos Jesuítas da Amazônia. Porém,

já neste primeiro ano a experiência foi integrada pela Congregação de Nossa Senhora (CSA) - Intercongregacionalidade. 2 Em 2005 o Distrito dos Jesuítas da Amazônia (DIA) passou a Região Dependente dos Jesuítas da Amazônia Brasileira (BAM).

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Recentemente a Conferência d@s Religios@s do Brasil (CRB) realizou um importante seminário nacional com o

título: “Vida Religiosa: A loucura que Deus escolheu para confundir o mundo” (1 Cor 1,27) 3. Participaram mais

de 400 provinciais. Tod@s com o desejo de recuperar essa loucura que Deus escolheu, em nossa vida pessoal

e congregacional, na vida de nossas instituições e da própria Igreja. Como recuperar essa loucura que Deus

semeou n@s noss@s fundador@s, mártires, profetas e profetizas de todos os tempos? Cláudio foi um desses

loucos profetas que Deus escolheu para confundir a lógica do mundo, muitas vezes presente na nossa prática

cotidiana, na vida pessoal e de nossas instituições. Ele foi um profeta enlouquecido pela busca apaixonada do

Reino e sua Justiça (Mt 6,22); acolheu e semeou o dom da “loucura de Deus” assumindo essa tarefa nas

periferias da Pan-Amazônia, atravessando suas fronteiras, geográficas e simbólicas, nos dois sentidos.

Para Cláudio, o missionário tem sempre “um pé dentro e um pé fora”. A missão na Amazônia, e toda missão na

perspectiva do Reino, é encarnada e inculturada a partir de seus povos. Toda missão se amassa no bater dos

pés no chão sagrado das estradas da vida, com a poeira do caminho e a benção da chuva do céu; nas trilhas da

floresta e nos meandros e praias dos rios; nas itinerâncias internas e externas; na partilha do cotidiano da

vida com os povos da Amazônia, com @s pobres, excluíd@s e diferentes; no diálogo fraterno e discernimento

conjunto com @s de “dentro”; e em diálogo respeitoso e recíproco com @s aliad@s de “fora”.

Perani insistia que a EI deve ter “um pé dentro e um pé fora”: um pé dentro da gente e um pé fora de nós

mesmos; um pé nos membros da EI e um pé fora deles, nos outros; um pé na própria cultura e um pé nas

outras culturas; um pé na própria experiência religiosa e espiritual, e um pé nas outras experiências religiosas

e espirituais; um pé nas nossas congregações e instituições e um pé nas instituições e congregações afins; um

pé na inserção e um pé na itinerância; um pé neste lado da fronteira e um pé no outro lado; um pé na margem

direita e um pé na esquerda do rio; um pé nos espaços da igreja e outro pé em outros espaços não eclesiais;

etc. Sempre um pé dentro e um pé fora...

I. Três perguntas

fundamentais no

discernimento da

Missão da EI na

Amazônia

a) Com quem Deus nos convida a

comprometer nossa vida em

missão na Amazônia?

Nas andanças pela Amazônia

escutando seus povos, quatro

rostos concretos surgiram:

indígenas, ribeirinh@s e as

pessoas das periferias urbanas empurradas do interior para as margens das cidades amazônicas; e vinculado

intimamente a esses rostos e a seus processos de exclusão está o rosto da Mãe-Terra violentada e depredada

na Amazônia. Estes quatro rostos estão intimamente inter-relacionados. Os ribeirinh@s são fruto do

encontro, muitas vezes violento, entre viajantes, comerciantes, aventureiros, militares, “soldados da

3 Itaici (SP), Fevereiro de 2012, http://crbnacional.org.br/homologacao/2012/02/23/a-loucura-de-deus/

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borracha” nordestinos e mulheres indígenas. Todos estes povos tradicionais da Amazônia mantêm uma relação

de reciprocidade (não-depredadora) com a Mãe-Terra. E hoje 70% da população amazônica se concentram nas

grandes cidades da região. A lógica é perversa: esvaziar o interior da Amazônia empurrando o povo para as

periferias das grandes cidades para poder entregá-lo às grandes empresas e corporações para que possam

explorar os recursos naturais sem conflito social. Contra esta lógica perversa há que energicamente opor-se.

Por tanto, é urgente ajudar a fixar o povo na terra, em seus territórios, com políticas públicas dignas, em

favor da vida. Para isso nossa vida em missão, nossas comunidades e obras, nossas instituições devem

interiorizar-se, ruralizar-se, “paganizar-se” (voltar para os pagos, zona rural). Sair dos centros urbanos para

as margens e periferias das áreas rurais. Sair de Jerusalém para a Galiléia dos gentis.

A pergunta inicial para o discernimento da missão não foi o que vamos fazer na Amazônia. A primeira pergunta

foi: com quem Deus nos convida a comprometer nossa vida em missão na Amazônia? A primeira atitude foi

andar pela Amazônia e escutar seus povos, descer ao encontro do povo e escutá-lo, como o próprio Deus do

Êxodo fez (Ex 2,23-25). A partir dos gritos da Amazônia e junto com seus povos vamos discernir e caminhar

no êxodo de libertação rumo à Terra sem Males, Yvy Marane´y (em guarani).

b) Onde estão esses rostos, as feridas mais abertas e a vida mais ameaçada?

Esses rostos se encontram além das nossas fronteiras (“um pé fora”) e nas fronteiras geográficas e

simbólicas da Amazônia, aonde os poderes constituídos dos estados-nação não chegam ou chegam ineficiente,

deixando a porta aberta às máfias: tráfico humano, narcotráfico, exploração de recursos naturais, etc. Por

isso, o serviço que a EI presta é inter-fronteiriço, atravessando as fronteiras geográficas e simbólicas da

Amazônia nos dois sentidos.

c) Como chegar às fronteiras geográficas e simbólicas, onde as feridas estão mais abertas e a vida

mais ameaçada?

Sobre esta terceira pergunta, três intuições fundamentais surgiram no discernimento: Itinerância, Inserção

e Inter-Institucionalidade.

II. Principais Componentes ou

Dimensões de Serviço do

Projeto da Equipe Itinerante

Ao longo destes 14 anos de caminhada (1998-

2012), foram cristalizando as intuições

proféticas do Cláudio nos seguintes elementos

de identidade da EI.

Por um lado, foram discernidos e escolhidos

quatro rostos preferenciais dentro do

contexto amazônico atual:

a) Indígenas; b) Ribeirinhos; c) Povo Marginalizado nas e das periferias urbanas; d) Rosto da Mãe-Terra

explorada e depredada. Nestes rostos, três deles sujeitos históricos, fixamos nossos olhares e aguçamos

nossos ouvidos para escutar e sentir seus clamores, sonhos e esperanças, e para caminhar solidariamente a

seu lado, na complexa travessia histórica que vive hoje a Amazônia no contexto global. É importante ter em

mente que esses quatro rostos estão profundamente inter-relacionados entre si.

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Por outro lado, ao longo destes anos, foram perfilando-se melhor as quatro componentes principais ou

dimensões de serviço que configuram hoje o projeto da EI e sua missão na Amazônia junto a seus povos:

a) Itinerância; b) Inserção; c) Inter-Institucionalidade; d) Inter-Fronteiriço.

1. Itinerância:

“Andem pela Amazônia e

escutem o que o povo fala”.

“Um pé dentro (itinerância

interior) e um pé fora

(itinerância geográfica)”.

Ir ao encontro do povo; não ficar

esperando a que o povo venha... Caminhar com ele lado a lado, nem na frente nem atrás.

Itinerância fala de caminho e caminhada. E caminhar é o processo de passagem de um estado de equilíbrio

para outro de desequilíbrio, para logo voltar a reequilibrar-se, e assim sucessivamente. Só podemos avançar

se estamos dispostos a desequilibrar-nos e reequilibrar-nos sucessivamente. Quem quer estar continuamente

equilibrado na vida, com os dois pés fixos, não poderá avançar e crescer nela. Deus continuamente nos convida

a sair da “terra própria” e itinerar rumo à “terra prometida” (Abraão, Gn 12,1). O próprio Deus-Trindade se

“desequilibrou” enviando seu Filho Único, encarnando-se em Jesus filho de Maria... E o desequilíbrio divino

tem a ver com o amor, com a paixão e compaixão, com a radicalidade, com a loucura-amorosa de Deus: “Pois

Deus amou tanto o mundo que enviou seu Filho Único, para que todo aquele que nEle acredite não morra, mas

tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Também, por loucura de amor, Ele nos convida a desequilibrar-nos juntos para

amar-servir-cuidar com radicalidade, compaixão e paixão, @s ferid@s e crucificad@s deste mundo.

Deus sempre nos convida a itinerar: a sair do conhecido ao desconhecido, do seguro ao inseguro, do estável ao

instável, do confortável ao inconfortável, do equilíbrio acomodado para o desequilíbrio desacomodado... Só

nesse contínuo sair e itinerar podemos caminhar nas diferentes estradas, trilhas, rios e selvas da vida, no

compromisso radical com seu Reino de Vida Abundante (Jo 10,10) para tod@s e para o amanhã, não só para

uns pouc@s e para o hoje.

O teólogo José Antonio Pagola, no livro “Jesus, Aproximação histórica”, insiste em que Jesus foi um “Profeta

Itinerante”4: ”A vida itinerante de Jesus no meio deles [d@s pobres] é símbolo vivo de sua liberdade e de sua

fé no Reino de Deus. Ele não vive de um trabalho remunerado; não possui casa nem terra alguma; não precisa

responder diante de nenhum arrecadador; não leva consigo moeda alguma com a imagem de César. Abandonou

a segurança do sistema para `entrar´ confiadamente no Reino de Deus. Por outro lado, sua vida itinerante a

serviço dos pobres deixa claro que o Reino de Deus não tem um centro de poder a partir do qual deva ser

controlado. Não é como o Império, (...), nem como a religião judaica, vigiada a partir do templo de Jerusalém

pelas elites sacerdotais. O Reino de Deus vai se gestando ali onde ocorrem coisas boas para os pobres.”

O serviço itinerante não é independente ou isolado dos outros serviços importantes e necessários para o bom

desenvolvimento da missão. A itinerância é compreendida como um serviço complementário aos outros mais

institucionais e inseridos da missão. Cada um destes contribui com sua especificidade à missão do Corpo que

tem Cristo por cabeça (cf. 1Cor 12).

4 Pagola, José Antonio: “Jesus, Aproximação Histórica”, Editora Vozes, Petrópolis, 2011. Pag. 109.

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a) O serviço institucional contribui com aspetos mais vinculados à estabilidade e continuidade da missão,

nos processos de transformação de estruturas e construção dos valores do Reino e sua Justiça social e

ambiental.

b) O serviço de inserção é sinal da proximidade carinhosa de Deus e de sua encarnação amorosa no meio de

seus filh@s predilet@s, @s pobres e excluíd@s. A inserção é uma forma concreta de responder ao

chamado de Deus que nos convida a encarnar-nos com Ele onde as feridas estão mais abertas e a vida mais

ameaçada; a fazer-nos próxim@s d@s jogad@s à beira da estrada (Lc 10,25-37); a carregar Sua Cruz com

@s crucificad@s da terra, para com Ele e com el@s resuscitar à vida plena.

c) O serviço itinerante contribui com os processos de conectividade e inclusão. Conectividade entre os

distintos “membros do corpo” (1 Cor 12). A itinerância é como o sangue que percorre todos os membros do

corpo. Serviço de inter-relação entre as diferentes instituições e inserções. Por outro lado, a itinerância

ajuda na inclusão daquelas pessoas e

realidades que ficam de fora dos

serviços mais institucionais e aonde não

chegam os mais fixos e inseridos. Ela

permite incluir @s que estão “fora”, do

outro lado das fronteiras, geográficas e

simbólicas, que ainda não estão ainda

incluídos. A itinerância é o que propõe a

parábola da “ovelha perdida” (Lc, 15,3-

7): “deixou as noventa e nove e foi atrás

da ovelha perdida”. Parábola que em

nossos dias teríamos que reinterpretar:

“deixou uma que estava dentro e foi

atrás das noventa e nove que estavam

fora”. A itinerância é um convite a ter

“um pé dentro e um pé fora”, aonde há

maior necessidade...

Esses três serviços à missão estão profundamente articulados entre si a favor da vida, como “membros de um

mesmo corpo que tem Cristo por cabeça” (1 Cor 12):

a) A partir da Teologia Trinitária iluminamos estas três dimensões do serviço à missão: Deus Pai – Serviço

Institucional; Deus Filho – Serviço de Inserção (princípio encarnatório); Deus Espírito Santo – Serviço de

Itinerância. O mistério da Trindade nos convida a contemplar as “Três Pessoas Divinas” em “Um só Deus”;

unidade na diversidade, não na uniformidade. Assim também compreendemos em estreita relação

complementária essas três dimensões de serviço à missão.

b) A partir da Teologia Batismal todo cristão pelo batismo é chamado a ser Sacerdote-Profeta-Rei. O

serviço do Rei, organização e governo, é mais identificado com a dimensão institucional da missão. O

serviço do Sacerdote – segundo o sacerdócio de Cristo na carta aos Hebreus – é trazer presente o Amor

Encarnado, salvífico e libertador de Deus no meio dos pobres, onde as feridas estão mais abertas e a vida

mais ameaçada, junto aos crucificados deste mundo; esta é a dimensão missionária da inserção no meio dos

mais pobres e excluídos. O serviço do Profeta é a denúncia de tudo aquilo que mata a vida e o anúncio do

projeto de Vida Abundante que Deus quer para tod@s; o profeta busca a inclusão dos excluídos deste

mundo. Esta dimensão de inclusão, anúncio e denúncia, de conectividade é realizada pela itinerância.

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Também esses três serviços (sacerdotal, profético e real) estão intimamente relacionados e são

complementários na missão do Reino.

c) A partir da Teologia da Vida Religiosa, os três votos se identificam respectivamente com estas três

dimensões de serviço à missão. O voto de obediência com a dimensão mais institucional; o voto de pobreza

com a dimensão mais inserida; e por fim, o voto de castidade com a dimensão de itinerância, ter um

coração livre para irmanar, fazer-nos irmãos e irmãs todos os seres da Criação no projeto do Reinado do

Deus da Vida. Também os três votos estão intimamente interligados e são complementários entre si.

A leveza institucional para a missão tem muito a ver com o equilíbrio e a relação entre estas três dimensões

de serviço missionário dentro de nossos corpos institucionais. Hoje em dia esta leveza para a missão é muito

procurada por nossas congregações, instituições e também pela própria igreja amazônica: “A Igreja se faz

carne e arma sua tenda na Amazônia” (CNBB, Encontro de Manaus, 1997)5. Este foi o título do documento dos

bispos dos regionais amazônicos da CNBB onde refletiram sobre a necessidade de uma igreja mais encarnada

nas realidades amazônicas e com estruturas leves e móveis, igreja de tendas, tapiris6 e “acampamentos”.

Se priorizarmos os serviços mais institucionais, destinando a maior parte dos recursos humanos, materiais e

econômicos a eles – em prejuízo dos outros serviços mais inseridos e itinerantes –, não nos queixemos depois

de que nossas congregações ou instituições sejam pesadas e as pessoas que nelas vivem e trabalham se sintam

sobrecarregadas, sem vida e sem espírito. Estruturas pesadas geram pessoas pesadas; estruturas leves

geram pessoas leves. A leveza institucional para a missão depende do equilíbrio e a relação entre os recursos

humanos, econômicos e materiais destinados a cada um dos três serviços institucionais, inseridos e

itinerantes.

Itinerância Geográfica e Itinerância Interior. Não há itinerância geográfica sem itinerância interior. A

itinerância verdadeira na travessia da vida tem estas duas dimensões inseparáveis: interior e exterior. Não se

da uma verdadeira itinerância

geográfica e exterior sem um

processo profundo de

itinerância simbólica e interior

em distintos níveis: pessoal,

grupal, institucional e

interinstitucional. Quem não

está disposto a viver esta

itinerância interior, suas

itinerâncias geográficas ficarão

superficiais, num “turismo

descomprometido”, que não

provoca transformações

profundas de conversão, nem

nas próprias pessoas que

itineram, nem nos sujeitos e

nem nas realidades que

encontram nas itinerâncias da

vida.

5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Regionais Amazônicos. Encontro de Manaus, 1997: “A Igreja se faz carne e arma sua

tenda na Amazônia” (Cf. Jo 1,14). O Pe. Cláudio Perani sj foi um dos assessores desse importante encontro. 6 Tapiri: casa provisória na floresta.

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2. Inserção:

“Participem da vida cotidiana do povo”.

“Um pé em casa e um pé na casa do vizinho”;

“Um pé na itinerância e um pé na inserção”.

Inicialmente Itinerância e Inserção pareceriam conceitos

contrapostos e excludentes: ou se vive inserido ou se vive

itinerante... Juntar estes dois componentes parecia até

impossível. Pois essa é outra sadia e criativa tensão que a

EI assumiu nessa lógica dialética de “um pé dentro e um

pé fora”. “Um pé na inserção e um pé na itinerância”. Sem renunciar ao serviço itinerante, a EI tenta viver

dois níveis do serviço de inserção: Viver na Comunidade Itinerante (CI) inserida e prestar um serviço

missionário itinerante também inserido, de comunidade em comunidade. Estes dois níveis de inserção

respondem a essa intuição fundamental do Cláudio: “participem da vida cotidiana do povo”.

Durante os dois primeiros anos da EI (1998-1999), os membros viviam nas comunidades institucionais e se

encontravam para partilhar as viagens, refletir, rezar e discernir o projeto, e para preparar as novas

itinerâncias e assessorias que faziam, em duplas ou trios, pelas diversas regiões do interior da Amazônia ou

pelas periferias urbanas de algumas cidades (Manaus, Parintins, Maués, etc.). Nos primeiros anos de

caminhada, foram discernindo o lugar desde onde sentiam que o Senhor lhes convidava a inserir-se e desde aí

itinerar pela Amazônia... Em fevereiro de 2000, sete pessoas de quatro instituições diferentes iniciaram a

primeira Comunidade Itinerante (CI), organizada em três casas palafitas no igarapé do Franco, bairro Vila da

Prata, Manaus (AM). Quatro pessoas daquele grupo inicial vinham de fortes e longas experiências de inserção

no mundo das periferias urbanas, rural ou com comunidades indígenas. O Pe. Cláudio Perani sj apoiou com

firmeza o discernimento e decisão de criar a CI. Ele só perguntou: “Vocês têm discernido bem?” E com

sabedoria insistia na importância de ter “um pé na inserção e um pé na itinerância”.

Comunidade Trindade, Manaus: Primeiro no bairro Vila da Prata, 2000-2006; Depois na Travessa Arthur Bernardes 2006-2012

Quatro anos depois, março/2004, teve início o segundo núcleo da EI na tríplice fronteira amazônica de

Brasil-Colômbia-Peru, no alto rio Solimões ou Amazonas. Discerniram e decidiram criar a segunda CI inserida

no bairro de palafitas “La Unión”, situado no igarapé Santo Antônio que faz divisa entre a cidade colombiana

de Letícia e a cidade brasileira de Tabatinga (AM). A intuição foi interessante: situar a CI inserida no lado

colombiano onde se fala espanhol, e o escritório do núcleo do lado brasileiro de fala portuguesa. Assim, os

próprios membros do núcleo experimentam essa dinâmica inter-fronteiriça de mobilidade humana.

Comunidade Três Fronteiras Brasil-Colômbia-Peru, Bairro “La Unión”, Leticia, Colômbia, 2004 até hoje

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Por último, no ano 2008 abriu-se o terceiro núcleo da EI com base em Boa Vista, Roraima, perto das

fronteiras de Brasil com Venezuela e Guiana. Em dezembro de 2009 Dom Roque Paloschi, bispo da Diocese de

Roraima, emprestou de forma gratuita uma casa simples, não inserida, para moradia da CI desse novo núcleo.

Comunidade Itinerante de Boa Vista, Roraima, Bairro Calunga, 2008 a ...

Assim, na experiência da EI, a Comunidade Itinerante Inserida é um elemento essencial que configura o

projeto e lhe dá uma particular característica. Manter esta articulação e sadia tensão entre inserção e

itinerância, entre comunidade inserida (“um pé na inserção...”) e missão itinerante (“... e um pé na itinerância”)

é um elemento constitutivo da identidade da EI. Contudo, já foi claro nos primeiros anos da EI que morar nas

Comunidades Itinerantes Inseridas era uma opção livre das pessoas que integravam o projeto. Assim pode-se

fazer parte da missão da EI sem ter que morar numa de suas comunidades inseridas, seja por razões pessoais

ou institucionais.

Outro nível fundamental de inserção da EI é o modo inserido de viver a missão: “de comunidade em

comunidade”; viajando sempre que possível com os meios de transporte que usam as comunidades; morando

com as famílias, comendo e bebendo o que eles nos oferecem; pescando, caçando e ajudando nos trabalhos da

casa e da comunidade; rezando, rindo, chorando, celebrando e partilhando a sua vida cotidiana. Nessa partilha

de vida, da muita alegria escutar: “Que bom que vocês estão aqui sem pressa!” “Que bom que gostam de nossa

comida!” “Voltem sempre!”7

Por opção, a equipe não tem transporte próprio. Assim nos obrigamos a ter que depender dos outros em

alguma coisa... Se quando realizamos uma missão, em nada dependemos dos outros, mau sinal... Em algo temos

que ser inter-dependentes, só assim a relação missionária será respeitosa, recíproca entre sujeitos. É

fundamental que todos partilhemos nossa pobreza, colocando cada um em comum, complementariamente, seu

ser e ter... Caminhando lado a lado, nem à frente nem atrás... Só assim poderemos realizar a missão comum à

que Deus nos chama e envia.

7 Catequista Bene, Comunidade Timbira, São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro, Amazonas, 2003.

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3. Inter-Institucionalidade: A nossa missão

comum é tão importante quanto a minha missão

pessoal ou institucional.8

“Um pé na minha instituição e um pé nas

instituições dos outros”.

Se frente aos grandes desafios da missão hoje, todos

reconhecemos que sozinhos não podemos chegar porque não

temos recursos humanos, nem materiais, nem econômicos

suficientes, há duas possibilidades: Ou Deus se esqueceu

de seus filhos e filhas mais crucificad@s, onde as feridas

estão mais abertas e a vida mais ameaçada, ou Deus nos

pede trabalhar de outro modo: somar para chegarmos

juntos onde sozinho ninguém consegue chegar! Porém, devemos somar não só porque não temos recursos

frente aos grandes desafios amazônicos; devemos juntar-nos, sobretudo, porque a visão e missão ficam mais

“divina”, mais trinitária, mais complementária, mais profética frente a um mundo fragmentado e individualista.

A pergunta é: Estamos abert@s pessoal, congregacional e interinstitucionalmente a deixar-nos fecundar por

Deus neste caminho do “INTER”?

O apóstolo Paulo, a partir de sua experiência pessoal nos diz: “Quando sou fraco é então que sou forte” (2Cor

12,10). É na nossa fraqueza pessoal e institucional que se manifesta a fortaleza de Deus. Só quando

reconhecemos humildemente que sozinhos não podemos, nem pessoal nem institucionalmente, Deus pode fazer

o milagre de fecundar-nos e fortalecer-nos criativamente no encontro com os outros. Quando somos ou nos

consideramos poderosos (pessoal ou institucionalmente), nem Deus consegue entrar e fazer o milagre. A

inter-institucionalidade na missão requer muita humildade e abertura, pessoal e institucional. E a verdadeira

humildade nos abre à criatividade que nos fecunda no encontro com @s outr@s.

Os fundamentos da inter-congregacionalidade e inter-

institucionalidade na missão os encontramos na própria teologia

Trinitária e na Cristologia Paulina. Fomos “criados a imagem e

semelhança de Deus” (cf. Gn 1,26-27). O próprio Deus-

Trindade nos cria a imagem e semelhança dEle, unidade divina

na diversidade de Pessoas. Somos seres relacionais. Crescemos

e nos desenvolvemos na relação com nós mesmos, com @s

outr@s “diferentes” e com o “Outro”...

Paulo lembra que “somos membros de um mesmo corpo que tem

a Cristo por cabeça” (1 Cor 12), e que todos os membros são

necessários e importantes para a vida e missão do corpo.

A Inter-Congregacionalidade e Inter-Institucionalidade é um

convite a partilhar nossa pobreza, partilhar nossos recursos

(humanos, econômicos e materiais), o que somos e temos. Fomos chamados a partilhar o que somos e temos na

nossa vida em missão: “Ele chamou @s que quis para estar com Ele e enviá-l@s em missão” (cf. Mc 3,13-15).

8 Equipe Itinerante: “Interinstitucionalidade: O nosso tão importante quanto o meu!”, em Convergência, Conferência d@s Religios@s do

Brasil (CRB), Janeiro-Fevereiro/2009, XLIV, n.418.

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Assim, a EI é um espaço inter-institucional

de serviços às comunidades, igrejas,

organizações, movimentos, grupos e povos

da Amazônia. Não é uma outra

“congregação” ou uma Organização Não

Governamental (ONG), nem uma instituição

juridicamente constituída. A EI não tem

personalidade jurídica própria, e não quer

ter, para poder ensaiar novas formas

organizativas, mais leves e que lhe

permitam ser “invisível” (juridicamente

falando) para atravessar as fronteiras. Ela

não tem identidade jurídica própria, porque

já tem e aproveita de toda a força

interinstitucional das organizações que

somam na proposta. A leveza institucional

da EI se da graças ao compromisso interinstitucional das organizações membros. Sem as congregações,

instituições e grupos que apoiam e enviam recursos humanos, econômicos e materiais, a EI não existiria. A EI

é um espaço inter-institucional de serviços missionários que só existe porque existem congregações,

instituições e grupos que decidem somar corresponsavelmente numa mesma missão.

As pessoas da EI são enviadas por uma instituição, congregação ou grupo, que também busca os recursos

econômicos necessários para sustentá-la e contribuir com o caixa comum da missão, conforme o estipulado no

projeto. Se a instituição, congregação ou grupo que envia uma pessoa não tem recursos próprios, deve buscá-

los junto a outras agências de cooperação ou grupos de solidariedade.

Para que a Inter-Institucionalidade na missão aconteça todos devem “partilhar sua pobreza”, contribuindo

corresponsavelmente com seu grão de areia: Capuchinhos (VIPROCAR), com a sala para a secretaria; CNBB

(Norte 1), com a pessoa que colabora na secretaria; Irmãs de Nossa Senhora, com o acompanhamento à

secretaria; Jesuítas (BAM), com uma conta bancária ao serviço da EI; Maristas, com a assessoria; etc. Assim,

todas as instituições contribuem segundo suas possibilidades: recursos humanos, materiais, econômicos.

A inter-institucionalidade é um modo particular de resposta ao convite feito pelo Senhor a “estar com Ele e

ser enviados em missão” (cf. Mc 3,13-15). A Inter-

Institucionalidade exige que todos tenham “um pé

dentro de sua instituição e um pé fora, nas

instituições dos outros”. Também é fundamental que

se assuma a missão comum corresponsavelmente,

com igual responsabilidade que se abraça a própria

missão pessoal ou institucional. “Inter-

Institucionalidade: o nosso tão importante quanto o

meu”. Só assim a inter-institucionalidade na missão é

possível.

Na atualidade a EI está integrada por umas 10

instituições e tem perspectiva da chegada de

outras. Também há instituições que vem colaborando

nestes anos de distintas formas com a EI.

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4. Inter-Fronteiriço: “Chamad@s

a atravessar as fronteiras,

geográficas e simbólicas, nos dois

sentidos”.9 “Um pé neste lado da

fronteira (geográfica ou simbólica)

e um pé no outro lado”.

O Evangelho de Mateus nos conta que

“Jesus obrigou os discípulos a entrar na

barca e ir para a outra margem do mar” (Mt

14,22). E que atravessando o próprio Jesus

à outra margem do lago, uma mulher siro-

fenicia – de cultura, língua e religião diferente à sua – o “converteu”, ajudando-o a entender que o projeto do

Pai era para todos e não só para o povo judeu (Mt 15,21-28). Também Paulo faz a mesma experiência:

atravessando as fronteiras do mundo judeu descobre que o Espírito de Deus já estava presente e atuante

entre os pagãos (helenistas)... Voltando Paulo a Jerusalém, teve que enfrentar Pedro e Tiago que queriam

impor aos irmãos helenistas os rituais, costumes e tradições do povo judeu (“povo eleito”) como condição

necessária para entrar na comunidade cristã. Paulo insiste em que foi o próprio Espírito de Deus quem

escolheu eles e que não tinham que circuncidar-se para entrar na comunidade cristã (cf. At 15).

A história se repete: Deus sempre nos espera e surpreende revelando-se como novidade, como dom e como

graça na outra margem, no outro lado da fronteira geográfica ou simbólica, no outro diferente...

Os bispos da América Latina em Aparecida insistem: “Devemos nos formar como discípulos missionários sem

fronteiras, dispostos a ir à outra margem” (DAp 376). Depois de 14 anos itinerando pela Amazônia

confirmamos que nas fronteiras, geográficas e simbólicas, as feridas estão mais abertas e a vida mais

ameaçada. Por isso é importante a indicação da proposta de Aparecida: ”Estabelecer entre as Igrejas

[congregações, organizações...]10 locais de diversos países sul-americanos que estão na bacia amazônica uma

pastoral [missão]11 de conjunto, com prioridades diferenciadas, para criar um modelo de desenvolvimento que

privilegie os pobres e sirva ao bem comum” (DAp 475, b).

O missionário sempre deve ter um pé dentro, deste lado da fronteira, e um pé fora, do outro lado da

fronteira. Somos chamad@s a entrar nas fronteiras onde as feridas da história, da humanidade, da mãe-

terra e do cosmos estão mais abertas e a vida mais ameaçada. Atravessar as fronteiras exige risco, despir-

nos de nossas “velhas roupas”, esquemas e lógicas; deixar morrer a “humanidade velha” para renascer a

“humanidade nova” (cf. Ef 4,17-32); “vinho novo em barris novos!” (Mc 2,22). Esse é o desafio que vivemos na

Amazônia, onde somos convidad@s a atravessar nossa “monocultura” de visão e lógica lineal para uma “ecologia

de culturas”12, com uma enorme diversidade de visões e lógicas mais holísticas, com diversidade de espaço-

9 Fernando López sj, Arizete Miranda cns, e Elías López sj: “Equipo Itinerante de la Amazonia: Llamados e enviados a atravesar las `fronteras´ en los dos sentidos”, em Testimonio, Conferre, n. 245, Santiago de Chile, 2011. 10 Os acréscimos entre [...] são nossos. 11 Idem. 11 Idem. 12 Boaventura de Souza: “A gramática do tempo”

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temporalidades. Só assim é possível captar e compreender as novidades que se encontram do outro lado das

fronteiras e que @s outr@s diferentes nos revelam e oferecem.

Porém, não basta atravessar as fronteiras num único sentido. É necessário atravessar as fronteiras,

geográficas e simbólicas, nos dois sentidos. Há que “sair” ao outro lado da fronteira e depois voltar a “entrar”

trazendo e traduzindo em categorias compreensíveis as novidades encontradas ao outro lado. Somente assim,

atravessando as fronteiras nos dois sentidos, poderemos avançar, desconstruir os velhos modelos que não dão

conta dos tempos em que vivemos, e recriar novos paradigmas que respondam aos grandes desafios que a

Amazônia e o mundo nos apresentam hoje.

Na atualidade, a EI está constituída em três núcleos:

1) Núcleo Manaus, capital do Estado de Amazonas,

Brasil (1998);

2) Núcleo BraCoPe, em Tabatinga-Leticia, no alto rio

Solimões, na tríplice fronteira amazônica (2004);

3) Núcleo BraVeGui, em Boa Vista, Estado de Roraima,

na tríplice fronteira amazônica de Brasil-Veneluela-

Guiana (2008).

Com a chegada de novas pessoas esperamos abrir em

2013 o novo núcleo de BolPeBra (Assis Brasil – Iñapari

– San Pedro), na tríplice fronteira amazônica de Brasil (Acre) – Bolívia (Pando) – Peru (Madre de Dios).

Equipe Itinerante: “Abelhas na floresta”

A EI presta um serviço semelhante ao das abelhas na floresta:

1. Polinizar: As abelhas levam o pólen de uma flor para a outra fazendo que todas as árvores e a floresta se

fecundem e produzam muitos frutos. Quando em um pomar ou na floresta não há abelhas, ou poucas

abelhas, a fecundidade das plantas diminui muito. A EI presta o serviço parecido ao das abelhas: leva o

pólen das experiências positivas de umas regiões da Amazônia para outras. Com esse intercâmbio todos vão

aprendendo, vão fecundando-se e produzindo mais e melhores frutos.

2. Produzir o mel: Também ás abelhas recolhem os néctares das variadas flores e árvores da floresta. Com

essa imensa variedade de néctares elas elaboram o rico e nutritivo mel que a todos encanta e alimenta. A

EI vai recolhendo informações e sistematizando as distintas realidades e valiosas experiências que

encontra ao longo de suas itinerâncias pelos rios e florestas da Amazônia. Depois devolve estas

experiências e informações sistematizadas para que todos

possam aproveitar essa enorme diversidade e riqueza

amazônica e assim melhorem suas práticas e serviços

junto aos povos da região.

2. Ferroar: Por último, as abelhas têm um ferrão para

defender-se daqueles que ameaçam a vida. Assim também

a EI recolhe informações e denuncia as situações de

violência depredadora e injustiça socioambiental que

matam a vida da Amazônia e de seus povos. Ela denuncia

os projetos de morte, mas também anuncia o Deus da Vida

e seu projeto de Vida Abundante (cf. Jo 10,10).

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Para continuar itinerando…

Não queremos concluir este texto, pois a itinerância requer sempre

uma abertura ao novo, um “’pé fora” e um “pé dentro” para acolher

nas diversas culturas à graça de Deus que se revela a nós de muitas

e diferentes formas. Ficam muitas inquietações que nascem deste

chão fértil da Amazônia, banhada pelas suas águas, já intuídas por

Cláudio e que o teólogo Victor Codina sj reforça e fundamenta:

“Tudo isso indica que vamos rumo a um novo estilo de vocação religiosa, mais reduzida e minoritária, mais mística e profética, mais pobre, com uma maior relação com os leigos e com outras congregações (inter-congregacionalidade), com vocações mais maduras e adultas e não tão jovens, abrindo-se a novas formas de comunidade e de compromissos, com mais fermento do que cimento, e de forma mais significativa, mais carismática e livre, que repense seus trabalhos e ministérios (por exemplo, revisar a paroquialização da vocação religiosa masculina clerical!), mais semelhante às suas origens, que vivam uma aventura evangélica e uma insegurança de nômades, sempre abertos ao sopro do Espírito.”13

Obrigad@ Cláudio por teu testemunho de vida em missão “com um pé dentro e outro pé fora”, por tua ousadia

e profecia.

13 Entrevista ao teólogo Victor Codina sj em IHU.

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2659&secao=299