a lógica territorial na génese e formação das cidades …e7%e3o%20das%20cidades%20... ·...

15
Urban ismo 3 de origem portuguesa A Lógica Territorial na Génese e Formação das Cidades Brasileiras; O Caso de Ouro Preto Maria Rosália Guerreiro Comunicação apresentada no Colóquio "A Construção do Brasil Urbano", Convento da Arrábida - Lisboa 2000 INTRODUÇÃO O trabalho que aqui se apresenta é parte integrante dum estudo sobre as estruturas urbanas não planeadas, localizadas em pontos singulares do território, que apresentam uma organização específica e que são frequentemente designadas por «orgânicas», «espontâneas», «irregulares» ou «informais». Procura-se definir a relação existente entre os elementos dessa organização específica (ruas, largos, praças, edifícios singulares), ou seja da estrutura urbana e o seu suporte físico natural, procurando perceber o lugar, a forma e a função desses acontecimentos, ou seja das partes, na formação do todo que é a estrutura urbana. Conscientes de que este tipo de espaços, é sobretudo o produto do desenho de uma colectividade, e que o seu resultado enquanto estrutura urbana apresenta uma tal qualidade estrutural inigualável à das cidades que construímos hoje, torna-se necessário perceber a lógica da sua formação, como base para o projecto a sua reabilitação ou planeamento de novas cidades. Levanta-se assim a hipótese de que a génese e o desenvolvimento, quer da estrutura urbana em geral quer dos elementos que a compõem, obedecem a regras específicas de formação que estão directa ou indirectamente relacionadas com as características do seu suporte físico natural. Parece-nos que cada singularidade do território proporciona uma série de condições de uso, de facilidade de percurso, de áreas de produtividade, de protecção aos ventos, de exposição solar, etc., que predeterminam a apropriação do espaço pelo homem. Neste contexto de dualidade entre a morfologia do sítio e a morfologia urbana, a cidade de Ouro Preto revela-se um caso paradigmático. Seria impensável uma imagem desta cidade sem ter em conta o seu suporte físico natural. Resta-nos saber até que ponto a sua forma urbana se deve efectivamente a esse aspecto. Ora é isso que se pretende averiguar com Página 1 de 15 A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras 30/08/05 http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

Upload: hahuong

Post on 14-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Urban ismo 3 de origem portuguesa

A Lógica Territorial na Génese e Formação das Cidades

Brasileiras; O Caso de Ouro Preto Maria Rosália Guerreiro

Comunicação apresentada no Colóquio "A Construção do Brasil Urbano", Convento da Arrábida - Lisboa 2000

INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se apresenta é parte integrante dum estudo sobre as estruturas urbanas não planeadas, localizadas em pontos singulares do território, que apresentam uma organização específica e que são frequentemente designadas por «orgânicas», «espontâneas», «irregulares» ou «informais».

Procura-se definir a relação existente entre os elementos dessa organização específica (ruas, largos, praças, edifícios singulares), ou seja da estrutura urbana e o seu suporte físico natural, procurando perceber o lugar, a forma e a função desses acontecimentos, ou seja das partes, na formação do todo que é a estrutura urbana.

Conscientes de que este tipo de espaços, é sobretudo o produto do desenho de uma colectividade, e que o seu resultado enquanto estrutura urbana apresenta uma tal qualidade estrutural inigualável à das cidades que construímos hoje, torna-se necessário perceber a lógica da sua formação, como base para o projecto a sua reabilitação ou planeamento de novas cidades.

Levanta-se assim a hipótese de que a génese e o desenvolvimento, quer da estrutura urbana em geral quer dos elementos que a compõem, obedecem a regras específicas de formação que estão directa ou indirectamente relacionadas com as características do seu suporte físico natural. Parece-nos que cada singularidade do território proporciona uma série de condições de uso, de facilidade de percurso, de áreas de produtividade, de protecção aos ventos, de exposição solar, etc., que predeterminam a apropriação do espaço pelo homem.

Neste contexto de dualidade entre a morfologia do sítio e a morfologia urbana, a cidade de Ouro Preto revela-se um caso paradigmático. Seria impensável uma imagem desta cidade sem ter em conta o seu suporte físico natural. Resta-nos saber até que ponto a sua forma urbana se deve efectivamente a esse aspecto. Ora é isso que se pretende averiguar com

Página 1 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

este trabalho através duma interpretação tipológica da génese e do crescimento da forma urbana baseada em técnicas de leitura do território, desenvolvidas pela escola italiana de morfologia urbana. [1]

1. ESTRUTURAS URBANAS ORGÂNICAS E SUA RELAÇÃO COM O TERRITÓRIO

Vários autores, como Pierre Lavedan ou Spiro Kostof assinalam a existência de dois tipos principais de cidade. O primeiro tipo é a cidade planeada, desenhada ou criada, que resulta dum processo de transformação voluntária, está associada a regimes autoritários e é desenhada de uma só vez. Segundo Spiro Kostof, o traçado destas cidades até ao Século XIX, eram diagramas geométricos ordenados; «Na sua mais pura forma esse traçado seria uma grelha, ou então um esquema planeado a partir do centro, tal como um circulo ou um polígono, com um sistema de ruas radiais a partir do centro; mas muitas vezes a geometria é mais complexa, casando as duas formulas puras em combinações por modelação e refracção».[2]

O segundo tipo, a cidade espontânea, orgânica ou não planeada, resulta duma sucessão de intervenções feitas ao longo do tempo subordinadas às condições do terreno. Num local propício, as intervenções humanas dão-se uma a uma e a aglomeração começa com duas casas, que se instalam lado a lado, mas sempre sem uma intenção bem definida. É evidente que neste contexto as sugestões da natureza são facilmente aceites. Segundo o mesmo autor, «A forma resultante, é irregular, não-geométrica, ‘orgânica’, com incidência de ruas curvas e tortas e espaços abertos definidos ao acaso».[3]

No entanto não podemos dizer que as cidades são totalmente planeadas ou totalmente orgânicas, no sentido em que acima lhe foi atribuído. O fenómeno urbano é complexo, onde as duas situações coexistam, e é natural que não encontremos modelos puros quer numa, quer noutra situação. No entanto, podemos avaliar o peso do homem e da natureza nos diferentes períodos de formação da estrutura urbana designando-a assim por orgânica ou planeada, consoante a predominância dum destes aspectos.[4] Podemos então sugerir, que na cidade planeada, o elemento organizador principal é o homem, enquanto que na cidade orgânica é a natureza.

Outra diferenciação habitual que se costuma fazer em relação a este tipo de cidade é relativamente à sua geometria. Diz-se a respeito da cidade não planeada que «A forma resultante, é irregular, não geométrica, ‘orgânica’, com incidência de ruas curvas e tortas e espaços abertos definidos ao acaso» [5]. No mínimo, esta parece ser uma visão muito determinista do mundo que o século XX viu desmoronar-se. Uma visão deste tipo deve-se ao facto de durante muito tempo, a investigação só estar particularmente interessada nos planos regulares, tendo negligenciado o estudo dos fenómenos de irregularidade em morfologia urbana. Talvez, porque um tal estudo, obriga a conhecer propriedades

Página 2 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

mais gerais e complexas que não se apresentam na geometria euclidiana.

2. A INTERPRETAÇÃO ORGÂNICA DO TERRITÓRIO

«A noção de território é a mais vasta e omnicompreensiva, uma vez que implica não só as estruturas propriamente edificadas, o ambiente construído do qual se vale o homem para habitar, para criar um espaço abrigado, um microclima; não só as estruturas de assentamento e urbanas, que compreendem já sistemas de relações; como sejam os trajectos entre edifícios para actividades secundárias e terciárias, como também associa estas estruturas à maioria das estruturas de enlace, que são extra urbanas, e a todas as de produção primária (pastoreio, agricultura, industrias extractivas, etc.), geralmente também extra urbanas. O nosso mundo está cheio não só de casas, aldeias e cidades, mas sobretudo, e em primeiro lugar, pelo menos no sentido estritamente cronológico, de trajectos e áreas de produção.» [6]

Os fenómenos urbanos, em sentido estrito, são uma parte do território, e sobretudo uma parte derivada de outros factores, que constituíram anteriormente, a maior aportação que o homem realiza ao conformar o seu ambiente. A noção de território é abrangente, mas também a de área apropriada, pela cidade, ou seja o sítio urbano.

«O reforço das linhas fundamentais do relevo de uma dada região - festos e talvegues, permite interpretação fisiográfica quase paralela, por assim dizer, com o seu funcionamento orgânico. De facto a configuração anatómica que se adivinha, põe em realce o próprio sistema circulatório e esclarece, de certo modo, o processo dos circuitos». [7]

As linhas de talvegue formam as primeiras grandes unidades estruturais do relevo que são as Bacias Hidrográficas. As linhas de festo estabelecem os limites das bacias hidrográficas que as separam das suas confinantes, qualquer que seja o seu grau na hierarquia da ramificação. A representação destas linhas consiste numa análise em que se marcam as linhas de cumeada, de cotas mais altas ou de separação das águas (festos) e as cotas mais baixas ou de drenagem natural (talvegues).

Em territórios cujo sistema orográfico é relativamente acentuado, como é o caso da região de Minas Gerais ou de Ouro Preto propriamente dita, a construção gráfica da malha constituída pelas linhas de festo ou cumeada, permite reconhecer quase imediatamente o sentido da estrutura do território. A esta malha contrapõe-se aquela traçada pela rede hidrográfica que desde o inicio constitui uma barreira dificilmente ultrapassável. Por esta razão cada linha de festo vem assumir uma função autónoma de eixo principal, que estabelece não só o limite, entre os territórios com características específicas de cada bacia hidrográfica, como também a ligação entre esses territórios de uma forma hierárquica.

É através desses eixos naturais que as principais deslocações e

Página 3 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

assentamentos humanos se vão dando, quer seja através do estabelecimento de caminhos ou através da edificação.

A forma geográfica natural do território determina à priori, por assim dizer, aquelas que serão em seguida todas as fases de evolução sucessiva. Apesar da malha indiferenciada de percursos naturais, passa-se com o tempo e espontaneamente a um reconhecimento hierárquico de todo o sistema, que adquire um valor em função da própria capacidade transitável, da tendência direccional, da posição e por último da capacidade de agregação. [8]

3. LEITURA E TIPOLOGIA DE PERCURSOS TERRITORIAIS

A configuração urbana depende fundamentalmente da rede de percursos, uma vez que «não existe edifício sem um caminho ao qual se lhe possa aceder (...) Antes de construir um edifício tem que haver uma estrutura apropriada para chegar ao lugar onde surgirá, há que chegar a um lugar. O trajecto é por definição a estrutura apropriada para permitir o acesso a um lugar» [9]. Muitos destes trajectos, tornam-se com o tempo estradas importantes, outros vão-se consolidando nas ruas de aldeias e cidades, onde quer que o sítio reúna as condições para a edificação.

Independentemente da escala de análise, quer seja para chegar de um edifício a outro, quer seja para ligar duas ou mais cidades, os percursos que estabelecem essa ligação revelam uma grande conformidade com as formas de relevo, podendo assumir uma classificação baseada nessas formas.

Em primeiro lugar temos os percursos de cumeada que coincidem com a linha natural ou interflúvio, que separa as bacias ou sub-bacias hidrográficas. Constituem segundo Cataldi, a mais antiga estrutura territorial do espaço antrópico [10]. Situa-se ali, onde a linha divisória entre as linhas de água, qualquer que seja a sua hierarquia, é a mais contínua e prolongada, por regra geral, mais importante conforme a consistência das referidas linhas de água. O trajecto situado no interflúvio permite a acessibilidade a uma maior parte da área e melhores condições de deslocamento pelo facto de esta zona sofrer menos os efeitos da erosão provocada pelo escoamento das água do que qualquer outra. Estas linhas são assim estradas naturais, que se estabelecem de uma forma linear pelo território, possibilitando ainda para além das capacidades de percurso uma forma de navegação à vista e de consequente orientação no percurso. O seu reconhecimento prende-se com a individualização da originária fase territorial de formação, cuja leitura interpretativa é feita por forma a identificar a sua hierarquia que corresponde, por sua vez, a uma outra hierarquia presente na bacia hidrográfica que lhes dá origem.

Dependendo das características naturais de cada território, a restituição gráfica dos percursos de cumeada principal e das respectivas derivações permite identificar vários tipos de sistemas de agregação.

Página 4 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

Um outro tipo de percurso, é o percurso de meia encosta ou contra cumeada, que pode ser definido como «aquele percurso natural que segue o andamento altimétrico do terreno, mantendo-se sempre que possível na mesma linha de cota». [11]

Finalmente, temos o percurso de fundo de vale, que é aquele que tende a subir ao longo dum curso de água. Para se efectuar é necessário que o fundo do vale tenha uma rocha sólida e de fácil drenagem. O percurso pode percorrer o fundo do vale oscilando entre as duas margens do rio, aproximando-se ou distanciando-se deste, por forma a reunir melhores condições para a passagem. Nos casos em que o percurso segue o rio muito de perto, resulta obviamente num percurso paralelo a este último.

fig. 1 - Território exemplificativo do percurso de cumeada e do percurso de contra cumeada e dos respectivos assentamento a meia encosta na zona dos mananciais na região da serra da estrela, (fotografia do autor).

4. A LÓGICA TERRITORIAL NA GÉNESE E FORMAÇÃO DA CIDADE DE OURO PRETO

A escolha da cidade de Ouro Preto relativamente aos restantes casos possíveis da região de Minas Gerais, prende-se com o facto da estrutura urbana ser de origem espontânea ou seja, não resultou de um plano ou desenho pré estabelecido. Por outro lado, pelo relevo acentuado e variedade de formas topográficas presentes no sítio. Assim sendo, pressupõe-se que a estrutura urbana actual resulta muito mais das características do suporte físico natural do que qualquer outro factor.

A forma geográfica natural do território determina à priori, por assim dizer, aquelas que serão em seguida todas as fases de evolução sucessiva. Apesar da malha indiferenciada de percursos naturais, passa-se com o tempo e espontaneamente a um reconhecimento hierárquico de todo o sistema, que adquire um valor em função da própria capacidade

Página 5 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

transitável, da tendência direccional, da posição e por último da capacidade de agregação.

Situação geográfica

Ouro Preto, localiza-se no início da Serra do Espinhaço, importante divisor de águas, a separar a bacia do S. Francisco da dos rios orientais que desaguam no Atlântico, mais precisamente na vertente da serra, no lado oposto, mas paralelo, ao ponto onde nasce o rio das Velhas.

O sítio de Ouro Preto localiza-se pois ao nível das ramificações da cumeada matriz, ou seja das linhas de cumeada secundária.

O rio que se destaca na região é o Ribeirão do Funil, cuja nascente está na proximidade de um local denominado Venda Nova. Depois de tomar, sucessivamente, as denominações de Ribeirão do Carmo e Rio do Carmo, desagua no Rio Piranga e divide a serra de Ouro Preto das montanhas em que se destaca o Pico de Italcolomi. O sistema de drenagem é denso, e fortemente declivoso, consequência do relevo movimentado da região.

A sua relação com os caminhos extra urbanos é feita sobretudo por um percurso de meia encosta que liga diversos aglomerados sistematicamente localizados no sopé da serra, sendo os mais próximos Cachoeira do Campo, à direita e Mariana, à esquerda.

Todavia são pioneiros os caminhos de cumeada, bem como os de fundo de vale, que constituíram os caminhos de chegada e ligaram ao longo dos tempos esta cidade ao exterior e em muito contribuíram como podemos ver de seguida para a formação da sua estrutura urbana.

Página 6 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

fig. 2 - Linha de cumeada principal que divide as Bacias do Rio de São Francisco e do Atlântico Leste e linhas de cumeada de derivação que subdividem estas bacias em sub-bacias.

fig. 3 - Cumeada matriz e cumeadas secundárias, onde se localiza a cidade de Ouro Preto.

Página 7 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

O suporte físico natural

Grosso modo, o sítio de Ouro Preto localiza-se entre a meia encosta e o sopé da serra do Veloso ao nível dos mananciais, onde nascem ou se juntam as primeiras linhas de água que formam os dois canais que drenam para o ribeirão do Funil. O relevo da serra divide-se em duas partes distintas. A primeira, na parte superior, apresenta-se com um declive bastante acentuado, quase em escarpa. A segunda, dividida da primeira pela linha de meia encosta, apresenta uma diminuição do declive em direcção ao sopé da serra. Aqui o relevo embora acentuado, permite a existência de algumas zonas planas passíveis de edificação quer pela formação de pequenos planaltos, ou encostas mais suaves ou ainda nos leitos dos rios.

Numa análise mais pormenorizada dir-se-á que o sítio de Ouro Preto é composto por uma série de promontórios paralelos, contrafortes das linhas de cumeada que se ramificam da Serra do Veloso, tornando-se mais salientes, á medida que os canais afluentes do ribeirão do Funil se tornam mais caudalosos cavando assim mais fundo no solo, ou seja a partir da meia encosta ou nível dos mananciais. Estes promontórios terminam com declives acentuados em frente ao rio tributário servido pelos dois canais de cabeceira, que separam os promontórios e que acolheram dois dos principais núcleos geradores da cidade e lhes deram respectivamente os nomes de córrego António Dias e córrego de Ouro Preto .

Na zona de interstício destes dois canais localiza-se o promontório principal que separou e uniu os núcleos atrás referidos. Segundo Canniggia, esta área reúne as condições necessárias para que se forme uma área cultural - É um lugar delimitado, encerrado e elevado relativamente ao território vizinho, condição necessária para que o homem adquira a noção de uma parte do território da sua competência, de sua propriedade [12]. É neste centro físico natural que muito naturalmente vem a surgir o centro urbano da cidade (a actual Praça Tiradentes) e onde sempre se localizaram alguns dos artefactos que simbolizavam o poder político ou religioso.

Numa análise ainda mais detalhada e paralelamente às ramificações de cada um dos canais de cabeceira, temos as ramificações de cada um dos promontórios, os designados espigões, ou neste caso as cumeadas da segunda ramificação relativamente à cumeada matriz, formando arestas nas encostas dos promontórios ou morros que dividem o escoamento das águas para cada uma das ramificações dos canais de cabeceira, dando aos morros um aspecto de pirâmide sem vértice, com os topos planos (planaltos).

Os pontos notáveis do território de Ouro Preto, encontram-se exactamente nos pontos onde surgem estas ramificações, quer sejam das linhas de cumeada (centros de distribuição) ou de talvegue (centros

Página 8 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

de encontro), que são ao fim e ao cabo os centros nevrálgicos (de articulação) da estrutura natural do território e que são também, como podemos ver a seguir, da própria estrutura urbana.

fig.4 - O suporte físico natural da cidade de Ouro Preto, linhas de cumeada e pontos notáveis do território.

A fase de reconhecimento e apropriação do sítio

Tendo em conta os movimentos e caminhos de deslocação pelo território de Minas Gerais e com base na descrição de diversos autores, tudo leva a crer que se chegou ao actual sítio de Ouro Preto, pelas linhas de cumeada que derivam das serras principais, como se pode comprovar a partir das seguintes descrições, respectivamente de Bandeira [13] e Latif [14]:

Narra Antonil que numa entrada de paulistas de Taubaté ao sertão dos Cataguás um mulato da comitiva desceu das alturas do sêrro do Tripuí, antigo nome da região de Ouro Prêto, às margens do córrego do mesmo nome, hoje chamado de Antônio Dias, meteu a gamela até ao fundo, raspando as areias, e quando a retirou viu que vinham com a água uns granitos negros, cuja natureza não reconheceu, embora já tivesse trabalhado nas minas de Paranaguá e Curitiba.

(...) António Dias, galgando as escarpas da serra e seguindo também a leste pelo alto da cumiada, avista afinal o procurado pico de Itacolomí e retira ouro do rio

Página 9 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

Tripuí, onde será fundada a Vila Rica de Ouro Preto.

Esta seria assim a primeira etapa, o momento zero do nascimento da estrutura urbana, aquele que corresponde á chegada a um sítio, traçando um caminho, antes de qualquer assentamento humano, na medida em que não há lugar sem um caminho que lhe possa aceder.

Além das descrições não há dados que nos permitam identificar com exactidão os traçados destes caminhos. No entanto, pela aplicação da tipologia de percursos atrás referida e por aquilo que deles ficou marcado na estrutura urbana actual, somos levados a pensar que tais trajectos se fizeram pelas cumeadas secundárias que dividem os promontórios e depois desciam pelos espigões da encosta até aos referidos córregos que são caminhos naturais mais fáceis de percorrer, onde o declive é sempre menor e permitiam um maior controlo de todo o território.

Desses caminhos de cumeada ou espigão, ainda estão bem presentes, na estrutura urbana actual, na rua que desemboca na Praça Tiradentes, ou na rua que vai da Igreja do Carmo até ao córrego de Ouro Preto e tantas outras.

Também o fundo dos vales, que pela sua continuidade e planura melhor estabelecem a relação com o exterior, seriam locais propícios a caminhos de chegada. Estes caminhos articular-se-iam com os de cumeada no sentido vale – morro, subindo através dos espigões, mas no sentido inverso.

E assim a teia ou matriz da estrutura urbana estaria lançada faltando agora a trama que se processa essencialmente através dos percursos de encosta que ligam os assentamentos humanos e formam o tecido urbano.

fig. 5 - Percursos de Cumeada

Página 10 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

fig. 6 - Percursos de fundo de vale

A fase de assentamento

De uma ou de outra forma de chegada ao sítio de Ouro Preto, é nas margens dos dois principais canais que os primeiros assentamentos se estabelecem. Assim se verificou com a localização dos dois principais núcleos que deram origem à cidade: António Dias, dos paulistas e Ouro Preto, dos portugueses. A ocupação das diversas serras circundantes deu-se rapidamente em forma de núcleos esparsos, estrategicamente localizados junto a córregos de exploração aluvial, ou junto a morros de maior ocorrência aurífera.

Paralelamente identifica-se uma outra forma de assentamento, que é a marcação dos pontos notáveis do território, através da implantação duma cruz ou capela ou até da forca, que constituem hoje importantes pontos da estrutura urbana da cidade e onde se localizam quase todas as igrejas.

Página 11 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

fig. 7 - Os pontos notáveis do território e a localização das Igrejas

A fase de consolidação

O desenvolvimento da cidade fez-se pois, essencialmente, a partir da fusão dos arraiais que se desenvolveram nos vales e morros com pequenas distâncias (cerca de meia légua) e ao nível dos mananciais, nos últimos anos do século XVII.

Verifica-se também, que estes assentamentos foram posteriormente sendo ligados por um percurso de contra cumeada ou de meia encosta, que ainda hoje funciona como o eixo principal de atravessamento da cidade.

Outros percursos de meia encosta surgiram, por forma a ligar edifícios, formando ruas, sempre com a mesma lógica, a de percorrer determinada distância da forma mais horizontal possível.

A consolidação da estrutura urbana dá-se sobretudo, quando se edifica na antiga estrutura de caminhos de cumeada e nos respectivos promontórios em direcção às igrejas pré-estabelecidas. É nesta fase que nasce actual Praça Tiradentes.

Página 12 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

fig. 8 - Percursos de encosta ou contra cumeada

CONCLUSÃO

A malha urbana, aparentemente irregular, que se desenvolveu em torno dos morros e vales que constituem o sítio de Ouro Preto, possui assim uma geometria própria, que resulta do cruzamento de três tipos de assentamentos humanos; cumeada, encosta e vale. Geometria essa que nos é dada pela forma do terreno e consequentemente pela forma como é percorrido. Não é de hoje, que sabemos, que as vias de comunicação desempenham grande papel na estruturação da cidade. Tal como a cidade actual se desenvolve em ordem ao automóvel; acessos mais rápidos, curtos e directos, também a cidade tradicional se estruturou baseada na acessibilidade dos meios de transporte, cujos principais obstáculos eram o relevo, os rios, etc. Daí que o caminhar ao longo do obstáculo, ou a tentativa de vencê-lo com o menor esforço fosse a prática comum, o que deu origem a uma rede de percursos intimamente relacionada com o território; caminhos ao longo dos rios, ao longo das cumeadas ou a meia encosta.

Do que acima ficou dito, importa aqui sublinhar, que os espaços urbanos ditos orgânicos não são ‘irregulares’ e muito menos ‘informais’, ao contrário do que habitualmente são designados em bibliografia específica. Mesmo não sendo ortogonais, eles têm uma geometria própria, que resulta das condições do sítio e têm uma estrutura organizada, tal como a própria palavra ‘orgânico’ indica. O sítio desempenha um papel fundamental para essa organização.

^ voltar ao início < índice de artigos

Página 13 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

NOTAS

[1] Escola que começou com Savero Muratori, tendo como principais seguidores Gianfranco Caniggia e Giancarlo Cataldi

[2] Spiro Kostof, «The city shaped», p.43

[3] Spiro Kostof, «The city shaped», p.43

[4] Pierre Lavedan « Géographie des Villes», p.12

[5] Spiro Kostof, «The city shaped», p.43

[6] Gianfranco Caniggia, et al, «Tipologia de la edification», p.144

[7] António Barreto, et al «Ordenamento Paisagístico do Algarve», p.124.

[8] Giancarlo Cataldi, «Il territorio della Piana di Gioia Tauro», p.28

[9] Gianfranco Caniggia «Tipologia de la Edificacion», p.84

[10] Giancarlo Cataldi, «Il territorio della Piana di Gioia Tauro», p.

[11] Cattaldi «Il território della Piana di Gioia Tauro», p.59

[12] Gianfranco Caniggia «Tipologia de la Edificacion», p.151

[13] Manuel Bandeira, «Guia de Ouro Preto», p.11

[14] Miran Latif, «As Minas Gerais», p.49

^ voltar ao início < índice de artigos

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Aroldo de, «Brasil. A Terra e o Homem», Vol. 1, As Bases

Físicas, Companhia Editorial Nacional, S. Paulo, 1964

BRASIL, Thomaz P. S., «Compendio Elementar de Geographia Geral e

Especial do Brasil», 5ª Edição, Eduardo & Henrique Laemmert, Rio de

Janeiro, 1869

BANDEIRA, Manuel, «Guia de Ouro Preto», Livraria Editora da Casa do

Página 14 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm

Estudante do Brasil, Rio de Janeiro

BARRETO, António F. V. Et al, «Ordenamento Paisagístico do Algarve»,

Revista de Arquitectura, nº121-122, Maio-Agosto, 1971

CATALDI, G., «Per una scienza del território», Firenze, 1993

CATALDI, G. et al, «The Italian school of process typology» in Urban

Morphology, Journal of the Internacional Seminar on Urban Form, Vol.1,

1997

KOSTOF, Spiro, «The city shaped», Thames and Hudson Ltd, London,

1991.

FALCÃO, Edgar de Cerqueira, «Nas Paragens do Aleijadinho», Coleção

Brasil Pitoresco, Tradicional e Artístico, Oficinas da Emprêsa Gráfica da

Revista dos Tribunais, LTDA, S. Paulo, 1955

LATIF, Miran de Barros, «As Minas Gerais», Livraria Cultura Brasileira,

Belo Horizonte

CANIGGIA, G., MAFFEI, G. L., «Lettura dell’edillizia di base», Nona

edizione, Marsilio, Veneza, 1995

LAVEDAN, Pierre, «Géographie des Villes», deuxième édition, Librairie

Gallimard, Paris, 1936

LE CORBUSIER, «Urbanismo», Martins Fontes, São Paulo, 2000

MORRIS, A. E. J., «History of the Urban Form Before the Industrial

Revolution», Third Edition, Longman Scientific & Technical, New York,

1994

^ voltar ao início < índice de artigos

Página 15 de 15A lógica territorial na génese e formação das cidades brasileiras

30/08/05http://urban.iscte.pt/revista/numero3/artigos/artigo_11.htm