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A literatura oral tradicional lusfona

no ensino/aprendizagem do PLE

Gabriela Pereira Tavares Sndor

Dissertao realizada no mbito do Mestrado em Portugus Lngua Segunda/Lngua

Estrangeira, orientada pelo Professor Doutor Lus Fardilha

Membros do Jri

Professora Doutora Isabel Margarida Ribeiro de Oliveira Duarte

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professor Doutor Francisco Jos de Jesus Topa

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professor Doutor Lus Fernando de S Fardilha

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Classificao obtida: 19 valores

Aos meus alunos.

Agradecimentos

Ao professor Doutor Lus Fardilha, pela sua orientao e pelas agradveis e teis

conversas que tivemos.

s professoras Doutora Ildik Szijj e Katalin Nagy Andorn, pela preciosa ajuda

na rea da Lingustica e no sistema de ensino hngaro, respetivamente.

professora Magdolna Peres, da escola Tamsi ron de Budapeste, sempre atenta

ao meu trabalho, mas nunca me tirando a liberdade para experimentar.

Ao meu pai, ao meu marido e minha irm, pelo seu apoio discreto mas sempre

presente.

minha amiga Clara Riso, sem a qual no teria enveredado por este caminho do

ensino do PLE.

Mamu, sempre carinhosa e disposta a ajudar.

Aos meus alunos, que me ensinam todas as aulas.

Aos meus filhos, que me ensinam todos os dias.

Sumrio

Resumo ....................................................................................................................... .vii

Abstract ....................................................................................................................... viii

Lista de siglas ................................................................................................................ ix

Introduo ..................................................................................................................... 11

Captulo I: A literatura oral tradicional ......................................................................... 17

A literatura oral tradicional como Literatura ......................................................... 20

A expresso literatura oral tradicional ................................................................... 25

Classificaes da literatura oral tradicional ........................................................... 27

Caractersticas da literatura oral tradicional ........................................................... 31

Captulo II: A Literatura no ensino/aprendizagem de LE: o caso

da literatura oral tradicional lusfona .................................................................... 35

A funo cognitiva da Literatura ........................................................................... 38

Ensino de lngua/ensino de Literatura ................................................................... 45

A Literatura no ensino/aprendizagem de LE ......................................................... 57

O caso da literatura oral tradicional lusfona ........................................................ 61

Captulo III: A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia intercultural ...................................................... 67

Identidade e cultura ............................................................................................... 71

A abordagem intercultural na didtica de LE ........................................................ 72

Sobre a lusofonia .................................................................................................... 78

A lusofonia na aula de PLE .................................................................................... 86

A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia intercultural ...................................................... 89

Captulo IV: A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia de compreenso oral ........................................ 99

A oralidade na aprendizagem de LE .................................................................... 103

A compreenso oral: conceitos e dificuldades ..................................................... 107

Aprender ouvindo ou aprender a ouvir? ........................................................... 113

A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia de compreenso oral ...................................... 119

Concluso ...................................................................................................................... 129

Bibliografia e webgrafia ................................................................................................ 131

Anexos

Anexo 1 ................................................................................................................ 145

Anexo 2 ................................................................................................................ 147

Anexo 3a .............................................................................................................. 149

Anexo 3b .............................................................................................................. 153

Anexo 3c .............................................................................................................. 155

Anexo 4 ................................................................................................................ 159

vii

Resumo

Este trabalho prope descrever e analisar a literatura oral tradicional lusfona como

uma rea com diversas potencialidades suscetveis de explorao no mbito do processo

de ensino/aprendizagem do PLE. O tema ser desenvolvido e fundamentado tendo em

conta as perspetivas da teoria literria, da interculturalidade e da psicologia cognitiva,

conjugadas com a didtica de LE e do PLE. Dividido em quatro captulos, o texto focar

conceitos fundamentais, assim como processos, problemticas e solues possveis

relativas ao trabalho didtico com a literatura oral tradicional lusfona no contexto de

aprendizagem formal do PLE. O enquadramento terico ser integrado com a descrio

de alguns exemplos de atividades realizadas na sala de aula, com o tema deste trabalho,

desenvolvidas no decurso da minha experincia como professora de PLE em trs

instituies de ensino hngaras diferentes.

Palavras-chave: literatura oral tradicional; lusofonia; interculturalidade; oralidade;

didtica do PLE.

viii

Abstract

This work intends to describe and analyse the lusophfone oral traditional

literature as an area with several potentialities capable of exploration within the teaching-

-learning process of PFL (Portuguese as Foreign Language). The theme will be developed

and supported taking into account the perspectives of the literary theory, interculturality

and cognitive psychology, combined with the didactics of FL (Foreign Language) and

PFL. The text, in four chapters, will focus on fundamental concepts, as well as processes,

problems and possible solutions related to the didactic work with the lusophone oral

traditional literature in the formal context of PFL. The theoretical framework will include

the description of some samples of activities performed in classroom on this work subject,

developed in the course of my experience as a teacher of PFL in three different Hungarian

education institutions.

Key words: oral traditional literature; lusophony; interculturity; oral tradition; didactics

of PFL.

ix

Lista de siglas

BA Bachelor of arts (de acordo com o sistema de Bolonha, correspondente ao 1

ciclo de estudos universitrios com durao de 6 semestres e 180 crditos

ECTS)

LE Lngua(s) estrangeira(s)

LE2 Segunda lngua estrangeira

LM Lngua(s) materna(s)

LP Lngua portuguesa

MA Master of arts (de acordo com o sistema de Bolonha, correspondente ao 2

ciclo de estudos universitrios com durao de 4 semestres e 120 crditos

ECTS)

PB Portugus do Brasil

PE Portugus europeu

PLE Portugus lngua estrangeira

TIC Tecnologias de informao e comunicao

UE Unio Europeia

11

Introduo

O meu percurso como professora de PLE foi feito no sentido inverso do que o

percurso habitual de um professor: comecei por ensinar para s depois aprender a ensinar.

O comeo da minha vida profissional como docente foi resultado de uma confluncia de

acontecimentos e acasos que hoje sei terem sido felizes: mudei-me, por motivos pessoais,

para Budapeste, onde fui levada a desistir da Arquitetura o meu primeiro percurso

acadmico e profissional , tendo sido logo contactada para dar aulas particulares (na

altura havia muito poucos portugueses a morar em Budapeste); esses primeiros anos da

minha nova vida foram tambm os primeiros anos de vida dos meus filhos e, como tinha

maior disponibilidade de tempo, tive a sorte de poder acompanhar mais de perto o seu

desenvolvimento psquico, cognitivo e motor, assim como de observar atentamente os

seus progressos na aquisio das lnguas portuguesa e hngara. Estes factos, conjugados

com a presena de uma colega e amiga que desde cedo me incentivou a seguir o caminho

do ensino do PLE, guiando-me nos meus primeiros passos, conduziram-me at este

trabalho.

Hoje em dia tenho a sorte de me poder dedicar, em paralelo, a ensinar e a aprender

a ensinar; no entanto, apesar da base cientfica que tenho adquirido com o estudo de

disciplinas ligadas Educao, a minha atitude nas aulas continua muito marcada pelo

modo como inicialmente comecei a ensinar: uma aprendizagem emprica, feita base de

intuies, de lembranas do meu percurso como estudante incluindo sentimentos,

expetativas e desiluses em relao a matrias e professores , e da conscincia da minha

prpria evoluo na aprendizagem da lngua hngara.

Se descrevo aqui factos e acontecimentos da minha vida pessoal, para que o(s)

leitor(es) deste trabalho possa(m) compreender a diversidade de temas que ele inclui, e

que de algum modo pode ser explicada pela amplitude de reas que marcaram e marcam

o meu percurso acadmico e profissional ligado ao Ensino, que passam pelas artes, o

desporto, a Pedagogia, a didtica do PLE e tambm a Economia e Relaes

12

internacionais. Esta diversidade de interesses e experincias deve-se sobretudo ao facto

de ter trabalhado e continuar a trabalhar em diferentes lugares, com diferentes contextos

educativos.

Uma vez descrito o caminho pessoal que me trouxe a este momento, importa agora

explicar o porqu da escolha deste tema. Mais uma vez, no houve apenas um facto, mas

vrios, que me conduziram at literatura oral tradicional lusfona. O primeiro foi o

encontro com esta, na Universidade Aberta, na disciplina Patrimnio oral e Literatura

tradicional, lecionada pela professora Doutora Isabel Barros Dias 1; pessoalmente, o

assunto j era por si s motivador, mas o entusiasmo da professora teve como resultado

imediato a vontade de aprofundar o meu conhecimento neste tema e de querer transmiti-

-lo a outros. Coincidentemente, no momento em que mergulhava no universo da literatura

oral tradicional, procurava exatamente um tema ou mtodo que me permitisse praticar

mais a oralidade (expresso e compreenso) com os meus alunos da escola secundria; a

literatura oral tradicional lusfona apareceu deste modo como uma soluo evidente.

Devo acrescentar ainda que, nessa mesma altura, os meus filhos estavam em plena fase

de histrias da carochinha, lengalengas e canes de embalar, e foi com eles que iniciei

as minhas primeiras experincias com a literatura oral tradicional.2

Munida de um certo conhecimento terico sobre o tema, comecei ento a

experiment-lo nas minhas aulas de PLE, com alunos de trs instituies diferentes: a

Escola Secundria Tamsi ron, a Faculdade de Letras da Universidade Etvs Lornd

de Budapeste e a Faculdade de Cincias Sociais da Universidade Corvinus de Budapeste.3

Neste trabalho descreverei algumas dessas experincias no todas, o que seria

1 O programa da disciplina estava dividido em duas partes: uma primeira, centrada na Problematizao da

temtica da unidade curricular: Conceitos e Realizaes (que inclua noes de base, Vladimir Propp e

a escola formalista, Bruno Bettelheim e as aplicaes do estruturalismo, e Parry & Lord e o estudo da

oralidade) e uma segunda parte, sobre O conto tradicional no mundo lusfono: Leituras e anlises

(contos populares portugueses e a dimenso lusfona). 2 Um breve parntesis: foi tambm com os meus filhos que comecei a praticar a leitura em voz

alta/declamao; para algum que no seja professor parecer sem dvida uma competncia inata ou fcil

de adquirir, mas raramente a vida, ou mesmo os cursos relacionados com a Educao, ensinam ao

professor tcnicas de leitura oral. Fechando o parntesis, acrescento que, embora possa parecer apenas um

pormenor com pouca importncia, a performance vocal do professor pode ter influncia na sala de aula,

nomeadamente na definio da sua autoridade perante os alunos. 3 Respetivamente: Tamsi ron ltalnos Iskola s Nmet Kt Tannyelv Nemzetisgi Gimnzium /

Blcsszettudomnyi Kar, Etvs Lornd Tudomnyegyetem / Trsadalomtudomnyi Kar, Budapesti

Corvinus Egyetem.

13

impossvel nos limites impostos a este texto , com o objetivo de exemplificar com

atividades prticas o enquadramento terico.

Relativamente estrutura do trabalho, este est organizado em quatro captulos: um

captulo inicial, apenas terico, de anlise e fundamentao do significado da expresso

literatura oral tradicional presente no ttulo desta tese, e trs captulos mais longos, nos

quais, para alm da fundamentao terica, incluo a descrio de atividades levadas a

cabo nos contextos mencionados anteriormente4. Para alm do contedo terico e prtico,

cada captulo inicia-se com uma introduo, onde descrevo factos e acontecimentos

normalmente falhas ou dificuldades educativas que observei durante a prtica de ensino,

e que se relacionam diretamente com o assunto abordado nesse captulo.

Em relao ao Captulo I - A literatura oral tradicional, este um captulo menor,

de introduo ao tema, numa perspetiva da teoria da Literatura. Neste captulo, para alm

da anlise de conceitos e problemticas em torno da oralidade literria, exponho a minha

posio pessoal: a literatura oral tradicional no deve ser marginalizada, mas aceite como

parte da arte/sistema/instituio que designamos por Literatura. A indivisibilidade entre

a oralidade e a escrita de cariz literrio, defendida por alguns autores e refutada por outros,

encontra-se expressa de maneira eloquente nas seguintes palavras de Adolfo Coelho:

Do mesmo modo que as lnguas literrias vivem principalmente custa

das riquezas que lhes oferecem as lnguas populares, como diamantes

brutos que aquelas s tm de polir e fazer valer pela disposio artstica,

assim as literaturas s tm valor verdadeiro quando aproveitam as

minas da tradio popular, haurem delas as formas cujo sentido humano

provado pela sua generalizao no tempo e no espao, vazando nelas

os sentimentos e concepes de uma poca e imprimindo-lhes o cunho

de uma grande individualidade potica. (1979/2005, p. 49)

O Captulo II - A Literatura no ensino aprendizagem de LE: o caso da

literatura oral tradicional lusfona tem como objetivo defender a (re)incluso da

Literatura na aprendizagem de LE, semelhana do que acontece no mbito das LM.

4 Para melhor leitura, as descries das atividades na sala de aula esto graficamente marcadas por

molduras.

14

Vrias so as razes que tornam importante esta incluso, mas vale a pena sublinhar duas.

A primeira que, se os mtodos comunicativos trouxeram mudanas positivas didtica

das LE, o reverso da moeda foi a excluso de tudo o que no sirva o desenvolvimento de

competncias comunicativas utilitrias; de facto, uma das principiais crticas abordagem

comunicativa a sua tendncia por vezes demasiado utilitarista. Por si s, esta diretiva

no representaria um problema, no fosse o pressuposto de, nestas abordagens, o domnio

esttico da lngua no ser considerado uma utilidade. A segunda razo para integrar o

discurso literrio nas aulas de LE a necessidade de fomentar o amor pela Literatura,

principalmente junto dos jovens, que cada vez mais substituem a palavra pela imagem;

em meu entender, esta responsabilidade de promoo da Literatura no deve ser apenas

dos professores de LM ou de Literatura, mas pode e deve ser partilhada por diferentes

reas disciplinares educativas, nomeadamente a de LE.

O Captulo III - A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia intercultural foca essencialmente duas questes a

lusofonia e a abordagem intercultural , que no ltimo subcaptulo so relacionadas e

aplicadas ao tema desta tese. No que diz respeito primeira questo, a da lusofonia, este

sem dvida um tema que incomoda e divide. Infelizmente, somos muitas vezes levados

a formar opinies com base nas informaes que recebemos atravs dos media, sem nos

darmos ao cuidado (muitas vezes por falta de tempo) de estudar bem o assunto; assim foi

a minha relao inicial com a problemtica da lusofonia. No entanto, quando passei da

Faculdade de Letras para a Faculdade de Cincias Sociais, fui obrigada a estudar o assunto

e, consequentemente, consegui construir uma opinio mais fundamentada. Posso dizer

por experincia prpria que este um passo que todos os professores de PLE deveriam

dar, pois tanto estes como os alunos podero ganhar muito com o estudo e a incluso da

lusofonia no ensino/aprendizagem do PLE. O segundo tema que analiso neste captulo

o da relao intrnseca entre cultura e lngua, mais precisamente entre cultura e LE; a

educao para a interculturalidade tem sido uma das principais estratgias da UE, que tem

poupado poucos esforos prossecuo deste objetivo, quer atravs de programas de

intercmbio, quer promovendo a edio e divulgao de estudos e diretivas. Cabe ao

professor de LE aproveitar esta poltica para promover nas suas aulas o desenvolvimento

15

da competncia intercultural, competncia esta essencial formao de cidados

conscientes e solidrios.

O Captulo IV - A literatura oral tradicional lusfona como meio para o

desenvolvimento da competncia de compreenso oral analisa a questo da

importncia da oralidade no processo de aprendizagem de LE. Uma das consequncias

positivas do surgimento das abordagens comunicativas na didtica de LE foi o relevo

dado s competncias de comunicao oral no processo de ensino/aprendizagem de LE.5

Sendo o objetivo primeiro daquelas abordagens o domnio da lngua tal como ela se utiliza

na realidade, a nfase nas competncias orais fundamentada na prioridade do uso da

oralidade na comunicao humana. Por outro lado, e uma vez que este trabalho inclui a

Literatura, no nos podemos esquecer de que, semelhana da anterioridade da oralidade

em relao escrita, a linguagem literria originalmente oral e que a essncia da

oralidade literria se prolongou na literatura escrita; como afirmou Sophia de Mello

Breyner Andresen, a inteireza da palavra oral e no escrita (citada por Carlos Mendes

de Sousa, 2000, p. 19). Relativamente ao contedo deste captulo, ele focar sobretudo a

competncia de compreenso oral, pois foi sobre o desenvolvimento desta que mais

trabalhei com o tema da literatura oral tradicional lusfona nas minhas aulas.

Finalmente, a Concluso final deste trabalho inclui um resumo integrando as

diferentes perspetivas focadas nos captulos anteriores, assim como algumas

consideraes finais sobre o tema.

5 Abro um novo parntesis para dizer que a anterioridade e prioridade da oralidade na lngua no foi o

princpio-base com que comecei a ensinar, uma vez que as lnguas estrangeiras que aprendi, aprendi-as

com livros, com uma base escrita, portanto (para no falar no estudo de lingustica portuguesa), e que,

como escrevi no incio desta introduo, as minhas aprendizagens influenciaram muito o modo como

ensinava e ensino; no entanto, quer por orientaes exteriores (dar aulas de comunicao) quer pelo

facto de comear a compreender melhor as necessidades reais dos alunos e o processo de aprendizagem

de LE, e tambm pela minha prpria experincia com a lngua hngara, percebi que a oralidade foi e o

princpio fundador e transformador de uma lngua natural viva. Atualmente, deste pressuposto que parte

a minha viso educativa no ensino do PLE.

I

A literatura oral tradicional

A literatura oral tradicional como Literatura

A expresso literatura oral tradicional

Classificaes da literatura oral tradicional

Caractersticas da literatura oral tradicional

Um verdadeiro artista, um squilo, um Sfocles, um Dante, um

Shakespeare, um Goethe acha na tradio popular todas as formas para

exprimir a sua concepo da natureza e da humanidade.

(Adolfo Coelho, 1979/2005, p. 49)

19

No curso de Estudos portugueses da Faculdade de Letras de Budapeste, os alunos

do nvel MA entram em contacto com a literatura oral tradicional quando frequentam as

disciplinas de literaturas africanas; a abordagem diga-se de passagem, muito superficial

da oralidade literria s feita com o intuito de melhor compreender autores como Mia

Couto, por exemplo. Ou seja, os alunos procuram explicar caractersticas literrias das

obras estudadas recorrendo literatura oral, mas no se dedicam ao estudo desta.

Este facto um exemplo de duas tendncias, que se verificam em diversos

contextos: (1) existe por vezes uma certa inferiorizao ou marginalizao da literatura

oral tradicional em relao literatura escrita canonizada (salvo raras excees, como a

poesia homrica, por exemplo), e (2) a literatura oral tradicional nem sempre valorizada

por si, ou seja, a literatura escrita o ponto de partida, o objeto de estudo, sendo a primeira

olhada na perspetiva da segunda.

Muitos autores consideram a literatura oral tradicional como paraliteratura,

olhando-a como uma pr-Literatura, origem arcaica da Literatura, mas ultrapassada por

esta. Pessoalmente, julgo que esta perspetiva no correta, pois, se a literatura escrita

sem dvida a mais divulgada, nela ainda se encontram inscritos os processos e motivos

oriundos da literatura oral tradicional que primeiramente transformaram o discurso verbal

num discurso literrio. Acrescente-se ainda que, com o desenvolvimento das novas TIC,

o equilbrio entre a escrita e a oralidade tem vindo a ser reequacionado, o que poder

significar uma revalorizao do discurso oral performativo.

No sendo objetivo desta tese uma anlise cientfica aprofundada da produo

literria com origem na tradio oral, no deixa de ser necessrio abordar o assunto, para

fundamentar o ttulo deste trabalho. Neste captulo, em primeiro lugar proponho-me

defender a literatura oral tradicional como Literatura, incluso que julgo pertinente e

que tento fundamentar neste primeiro subcaptulo, descrevendo as caractersticas que

ambas partilham, apontando tambm algumas diferenas. Os restantes subcaptulos sero

dedicados exclusivamente literatura oral tradicional: comearei por fundamentar a

opo pela expresso literatura oral tradicional em detrimento de outras possibilidades,

para em seguida analisar as classificaes da literatura oral tradicional; para concluir,

descrevo as caractersticas da literatura oral tradicional, que a distinguem da literatura

escrita.

20

A literatura oral tradicional como Literatura

Antes de descrever a literatura tradicional oral, importa definir de um modo preciso

o objeto que a expresso nomeia um corpus e um sistema.

Em relao ao corpus, este ser identificado com mais pormenor no subcaptulo

Classificaes da literatura oral tradicional; quanto sua definio como sistema,

institucionalizado ou no, este problema remete para questes como a da literariedade e

do cnone literrio.

Atendamos primeiro problemtica em torno da literariedade.

O questionamento sobre a possibilidade de existirem propriedades universais e

atemporais que transformaro um ato verbal num ato literrio igualmente vlido quando

falamos da literatura oral tradicional. Tal como nas obras da literatura escrita6, o texto

literrio oral distingue-se de outros tipos de linguagens verbais pelo modo como

estruturado, pela enfatizao da sua funo esttica, pelo seu lxico motivado.

Falando de literariedade, uma vez ultrapassada a conceo formalista acontextual,

interessa debater a problemtica do ponto de vista da semitica comunicacional. A nova

viso, surgida com base nos estudos de pragmtica lingustica, defende que, a existirem,

os elementos formais responsveis pela literariedade do texto 7 se submetem

incondicionalmente a mecanismos de comunicao, uma vez que a obra literria

apresenta introjectados, inscritos na sua prpria textualidade, um emissor, um receptor

e um referente. O leitor, a fim de ler o texto literrio como literatura, tem de aceitar esta

conveno (Aguiar e Silva, 2004, p. 47). Algumas perspetivas mais radicais chegam

6 Vrias so as possibilidades para designar a literatura do corpus consensualmente tido como literrio, tais

como literatura oficial, literatura cannica, literatura legtima, literatura-instituio; opto pela expresso

literatura escrita por querer enfatizar a oposio oralidade, e achar que, embora em nmero menos

significativo, podemos encontrar na oralidade literria obras cannicas, tais como a poesia homrica, para

alm de que existe atualmente um esforo para a instituio e legitimao da literatura oral. De notar que,

no contexto deste trabalho, literatura escrita no significa literatura transcrita, mas sim a literatura que

nasce para a escrita. 7 Para este trabalho, utilizo o termo texto de acordo com o significado de Aguiar e Silva: realizao

concreta, numa determinada situao comunicativa, do sistema lingustico, definio aplicvel tanto a

produes escritas como orais. (2004, p. 187).

21

mesmo a negar que o ser literrio possa ser determinado pelo autor, defendendo a

literariedade como uma propriedade totalmente definida pela interpretao particular de

cada recetor.

Relativamente conveno mencionada por Aguiar e Silva, a existncia de um

contrato entre emissor e recetor igualmente obrigatria quando falamos de literatura

oral tradicional: por exemplo, o recetor s identificar um conto tradicional como tal, se

conhecer e aceitar as caractersticas que definem estes gneros narrativos. Ao ouvir a

expresso era uma vez, o recetor instantaneamente levado a acreditar estar prestes a

ouvir um conto tradicional (e no uma notcia de imprensa, por exemplo). No entanto, a

existncia de uma conveno entre emissor e recetor no por si s condio definidora

do ato literrio, uma vez que em todos os atos de comunicao no nosso dia a dia, s

possvel decifrar corretamente a mensagem aceitando uma determinada conveno.

Se tudo comunicao, e o ato literrio sempre um ato comunicativo

convencionado, este no deixa de ter caractersticas prprias, que o distinguem de outros

atos comunicativos. semelhana do que acontece com a literatura escrita, a literatura

oral tambm um sistema semitico de segundo grau. No entanto, se na literatura oral

tradicional o cdigo lingustico conotativo, a funo comunicativa , por excelncia, e

por vezes explicitamente, pedaggica, o que se verifica mais raramente na literatura

escrita. Se atendermos a que nesta os polos opostos da fora pedaggica, chamemos-lhe

assim, se situam entre o realismo/naturalismo e a arte pela arte, no caso da literatura

oral tradicional a variao poder ser exemplificada com o par fbulas/cantigas. Por

outras palavras, na literatura escrita a fora pedaggica depende normalmente do

momento histrico, ao passo que na literatura oral tradicional a variao depende da

forma literria.

Uma possibilidade de conciliao entre as duas vises de literariedade a

pragmtica radical e a esttica autotlica poder ser encontrada na teoria dos atos

discursivos. Nas palavras de Carlos Reis, o discurso literrio pode ser entendido como

um quase-acto discursivo, capaz de imitar uma fora ilocutria, que , finalmente, apenas

ilusria (1995, p. 116). Ou seja, segundo o autor, o ato literrio constituir apenas um

jogo discursivo, onde no so enunciadas verdadeiras asseres, apenas imitaes destas.

Esta iluso comunicativa liga-se a um outro aspeto definidor do ato literrio, a

22

ficcionalidade, propriedade aplicvel tanto literatura escrita como literatura oral

tradicional.

Apesar de a procura de caractersticas universais e atemporais que definam o ato

verbal como literrio continuar a ser um problema central nos estudos literrios, preciso

aceitar que a definio de literrio antes de mais uma classificao de uso, determinada

por critrios no necessariamente literrios, mas antes histricos e culturais, variando por

isso no espao e no tempo. Nas palavras de Tynianov, ce qui est fait littraire pour une

poque, ser un phnomne linguistique relevant de la vie sociale pour une autre et

inversement, selon le systme littraire par rapport auquel ce fait se situe (citado em

Reis, 1995, p. 113).

A questo da aceitao de um texto como sendo ou no literrio que depende do

que cada poca e lugar determinar que seja leva-nos diretamente ao tema do cnone

literrio e da institucionalizao da literatura oral tradicional.

Conforme teoriza Bernard Mouralis, a Literatura Popular no acede e

empregamos quase ironicamente o termo dignidade de instituio como acontece com

a literatura culta (Pinto-Correia, 1988, p. 20); de facto, se a literatura oral tradicional

se aproxima da literatura escrita enquanto sistema comunicativo esttico, o mesmo j no

acontece quando falamos sobre institucionalizao e canonizao.

De acordo com a definio do E-Dicionrio de Termos Literrios, o cnone

configura o corpo das obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas

grandes, geniais, perenes, comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas

de serem estudadas e transmitidas de gerao em gerao (Duarte, s.d.). O discurso

cannico por natureza normativo, sendo definido por diferentes entidades, tais como a

crtica e os prmios literrios, agentes e editoras literrias, as instituies de ensino, o

poder institucionalizado e os prprios escritores.

Relativamente literatura oral tradicional, sobressai imediatamente o facto de a

crtica e os prmios literrios no contriburem para a incluso daquela no cnone

literrio, devido ausncia de um autor identificvel e sua atemporalidade. Ao contrrio

da literatura tradicional, tanto a crtica como os prmios literrios so entidades que se

relacionam com uma coordenada histrica e/ou geogrfica, destinados a obras ou autores

23

especficos, muitas vezes a jovens escritores com o intuito de motivao. A crtica e os

prmios vivem no presente e para o futuro.

certo que se podem premiar investigadores, coletores e difusores do patrimnio

literrio oral; por outro lado, a distino Patrimnio Cultural Imaterial da Humanidade

da UNESCO tem contribudo de forma essencial para destacar e divulgar a importncia

do patrimnio literrio oral tradicional. No entanto, em nenhum dos casos poderemos

falar em prmios literrios, uma vez que no primeiro caso falamos no de Literatura

mas sim de estudos literrios, e no segundo caso tambm no so as qualidades literrias

em si que so valorizadas, mas a funo simblica cultural do ato literrio.8

Em relao aos agentes e editoras literrias, estes tanto ditam como so obrigados

a seguir o gosto pblico e a moda do momento. J no que diz respeito autoridade

institucionalizada, para alm de poder atuar atravs de mecanismos diretos de censura

literria, a sua ao mais eficiente e com resultados a longo prazo ser sem dvida atravs

da determinao dos programas escolares, no caso especfico de Portugal com a definio

das Metas Curriculares de Portugus e das obras literrias de referncia.9 efetivamente

o Ensino mtodos e projetos educativos, programas curriculares e instituies escolares

e universitrias o maior responsvel pela divulgao do cnone literrio, e

consequentemente pelo possvel entendimento do patrimnio literrio oral tradicional

como parte desse cnone.

Uma ltima referncia deve ser feita sobre o papel que os escritores podem ter na

viso da literatura oral tradicional como literatura no marginalizada. As literaturas ps-

-coloniais com filiao na tradio literria europeia e nas suas prprias tradies locais

tm contribudo para a desconstruo da perspetiva tradicional europeia de Literatura.

A relao, por vezes direta, que as obras literrias ps-coloniais mantm com a tradio

literria oral, tem levado ao questionamento e procura de um novo entendimento da

Literatura.

8 Duas notas importantes: as tradies literrias orais distinguidas como Patrimnio Imaterial da

Humanidade so tambm atos performativos teatrais, musicais ou de dana. Por outro lado, note-se que,

em sentido estrito, um prmio literrio no verdadeiramente literrio mas metaliterrio. 9 Estas metas, estabelecidas pela Direo-Geral da Educao, podem ser consultadas na pgina desta

entidade: http://dge.mec.pt/metascurriculares/index.php?s=directorio&pid=16.

24

A par da emergncia das literaturas ps-coloniais, esto algumas mudanas sociais

e culturais, tais como o pensamento relativista moderno, a massificao da cultura e o

multiculturalismo, responsveis tambm pelo questionamento do cnone literrio.

Embora algumas obras sejam consensualmente consideradas cannicas, a falta de

consenso perante diversos outros casos indicativa do relativismo do ser literrio. Por

outro lado, a massificao da cultura e a proliferao de literaturas marginais, fenmenos

associados emergncia dos mass media, tornaram ainda mais difcil uma definio

inquestionvel de literrio.

Voltando questo da emergncia das literaturas ps-coloniais, como mencionei

anteriormente, estas so importantes por questionarem o cnone literrio europeu de

cariz universalista , obrigando a um novo modo de olhar e definir Literatura.

Ana Mafalda Leite, na sua obra Literaturas Africanas e Formulaes Ps-

-coloniais, escreve precisamente sobre a influncia das literaturas ps-coloniais

africanas na definio e estudo da Literatura, referindo que as mesmas salientam () a

importncia da variante em relao norma e levantam questes acerca do gnero de

escrita que cabe ou pode preencher a categoria de literatura (2003, p. 25). Mais frente

a autora escreve tambm que

as literaturas africanas, como resultado da combinao com narrativas

tradicionais orais, oferecem alternativas maneira de conceber a

estrutura narrativa; ao inclurem muitas formas de arte performativa,

como o provrbio, o canto, a dramatizao, criam uma discusso

transcultural acerca da estrutura e das formas. (op. cit., p. 27)

Nesta obra, Ana Mafalda Leite apresenta ainda exemplos de autores e obras ps-

-coloniais africanas em que visvel uma dialtica entre a oralidade e a escrita, atravs

da insero de textos (provrbios, por exemplo) da tradio oral, ou ainda ao nvel

estrutural. 10 Sobre esta dialtica, a autora explica que o termo intertextualidade

insuficiente, propondo o termo intersemitica, uma vez que no so apenas textos da

10 Por exemplo, no uso de uma estrutura linear da intriga, na mobilidade temporal e espacial, e ainda no

recurso viagem inicitica, ao carcter autobiogrfico, estrutura dialogal, e mistura de gneros (ibid.,

p. 86).

25

oralidade que so utilizados, mas tambm se faz uso de motivos, smbolos, gestos rituais

e mesmo assumpes inarticuladas que acompanham as execues orais (ibid. p. 46).

Finalmente, num captulo dedicado ao romance Terra Sonmbula, de Mia Couto,

Ana Mafalda Leite sintetiza justamente o que vrios autores tm vindo a defender, o ser

necessrio reinvestir a memria da tradio oral de um estatuto literrio.11

A expresso literatura oral tradicional

Uma vez fundamentada a importncia da literatura oral tradicional, e a sua incluso,

por direito prprio, no campo alargado da Literatura, passemos agora a analisar mais

pormenorizadamente o conceito e corpus que engloba.

A definio de Literatura, mesmo quando entendida como literatura escrita, no

uma tarefa fcil devido polissemia do vocbulo; no entanto, quando falamos da tradio

literria oral, a questo torna-se ainda mais complicada, uma vez que logo partida nos

confrontamos com a falta de consenso quanto forma de nomear este modo de expresso

literria.

Vrias tm sido as alternativas propostas para definir um mesmo objeto de estudo:

patrimnio oral, literatura oral tradicional, literatura oral popular, literatura de

expresso oral, ou literatura tradicional de expresso e transmisso oral. Outras

expresses h ainda literatura tradicional, literatura popular, literatura tnica que

preferem omitir o termo oral, devido visvel contradio entre os vocbulos literatura

(do latim lettera letra, carater alfabtico) e oral, ou por defenderem que a presena deste

termo tender a excluir as produes transcritas; na tradio anglfona de estudos

literrios a escolha divide-se normalmente entre oral literature e folk literature.

Alguns estudiosos, como Ruth Finnegan, defendem no entanto a utilizao de um

termo completamente original oratura , inicialmente proposto pelo linguista ugands

Pio Zirimu, em 1970, em substituio equitativa da expresso literatura oral. Mas, apesar

11 O ttulo completo do captulo Gneros orais representados em Terra Sonmbula de Mia Couto

reinvestir a memria da tradio oral de um estatuto literrio (ibid., p. 43).

26

de o termo figurar em vrios estudos sobre a matria, muitos autores mostram-se

relutantes em aceitar o novo vocbulo, apontando como principal crtica o facto de

oratura poder indicar uma total separao em relao Literatura, separao essa pouco

aceite. Deste modo, oratura tem vindo a adquirir um novo significado, sobretudo na rea

de estudos das artes performativas, designando a genre of written literature at the cusp

between spoken and written literatures, referring to written fictions that mix different

performing genres (Kabor, 2007, p. 27).

O professor e investigador Manuel Viegas Guerreiro, fundador do Centro de

Tradies Populares Portuguesas12, defende o termo literatura popular, afirmando ser o

de mais extenso significado e o que prefiro. Cabe nele toda a matria literria que o povo

entende e de que gosta, de sua autoria ou no (1993, p. 7). Nesta expresso caber

portanto no s a produo literria que o povo assina e transmite, mas tambm a de

que gosta, como exemplo o romance Amor de Perdio de Camilo Castelo Branco.

No entanto, vrios estudiosos criticam a escolha de literatura popular, argumentando que

o vocbulo popular se presta a conotaes negativas, por oposio a erudito ou culto,

podendo tambm a expresso ser relacionada com literatura de massas.

Por outro lado, literatura tradicional, no sentido dos textos literrios consolidados

de gerao para gerao, exclui no s a marca do oral, como tambm ignora os textos

mais recentes, como por exemplo, contos urbanos.

Joo David Pinto-Correia, discpulo de Viegas Guerreiro e hoje investigador do

mencionado Centro de Tradies Populares Portuguesas, d uma importante

contribuio, diferenciando quatro grupos: a literatura popular no tradicional (de

sucesso efmero), a literatura popularizante (na qual se incluem obras de autores da

literatura escrita inspiradas na literatura tradicional), a literatura popular tradicionalista

(incluindo matria de autoria de algum do povo) e, finalmente, o corpus e sistema que

interessa para este trabalho, a literatura popular tradicional, reunindo as obras aceites e

transmitidas ao longo dos tempos, patrimnio cultural, colectivo e annimo (Correia,

1993, p. 63). No seu artigo A Literatura Popular e as suas marcas na produo literria

portuguesa do sc. XX uma primeira sntese (1988), Pinto-Correia distingue as duas

12 Centro de Tradies Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro (CTPP) da Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa: http://ww3.fl.ul.pt/unidades/centros/ctp/index.htm.

27

vertentes da literatura popular tradicional: a literatura escrita tradicional e a literatura

oral tradicional.

exatamente esta expresso literatura oral tradicional que escolhi para figurar

no ttulo da tese, por acreditar que, apesar de uma certa contradio entre as palavras

literatura e oral, importante expressar nela a questo fundamental da oralidade. No

caso em questo, entendo oral como com marca da oralidade, distinguindo literatura

oral (oral literature) de literatura falada (spoken literature) literatura oral ser a que

apresenta as caractersticas do discurso literrio de natureza oral (independentemente de

a forma de transmisso ser oral ou escrita), e literatura falada o discurso literrio (de

natureza oral ou escrita) transmitido oralmente.

A necessidade de especificar, no ttulo deste trabalho, que se trata de literatura oral

tradicional, segundo a classificao definida por Joo David Pinto-Correia, justifica-se

pelo corpus base de referncia das atividades descritas nesta trabalho, que coincide com

o corpus definido por este estudioso como sendo o da literatura oral tradicional.

Fica no entanto a ressalva de que a escolha da expresso literatura oral tradicional

no pacfica nem ser a nica possvel, mesmo tendo em conta o material utilizado nas

aulas referidas nesta tese, uma vez que, como afirma o prprio Pinto-Correia, talvez

tenhamos de reconhecer que, se formos fiis aos significados estritos dos respectivos

qualificativos, nenhuma das alternativas coincida com o que ela se prope abranger

(1993, p. 63).

Classificaes da Literatura Oral Tradicional

Se parece no ser possvel chegar a um consenso sobre como nomear a literatura

oral, encontramos uma dificuldade semelhante em relao classificao e delimitao

dos vrios gneros deste tipo de literatura. Como chama a ateno Ana Mafalda Leite,

devemos assinalar que nos textos tradicionais de oralidade, a noo de

gnero, tal como empregue pela teoria literria, no tem equivalncia

no caso dos gneros orais, devido ao alto grau de mudana e

transferncia de materiais entre os vrios gneros detectados. (2003, p. 47)

28

Vladimir Propp, na sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso, logo no incio

do captulo Para um Histrico do Problema defende a necessidade de uma

classificao exata, explicando que da exatido da classificao depende a exatido do

estudo posterior (1928/2000, p. 9). Criticando diversas classificaes existentes (W.

Wundt, R. M. Volkov, Vesselvski, J. Bdier, Aarne), por falta de profundidade

cientfica, Propp faz no entanto uma ressalva para a utilidade prtica do ndice de Aarne;

apesar de considerar este mais um guia prtico do que estudo cientfico, Propp acaba

por qualificar esta classificao de cmoda (op. cit., p. 12). Esta proposta

classificatria, criada pelo finlands Antti Amatus Aarne, foi posteriormente ampliada

pelo norte-americano Stith Thompson, dando assim origem ao Sistema de Classificao

de Aarne-Thompsom que, embora apresentando algumas imperfeies, continua at

hoje a ser o mais utilizado.13

Em Portugal, as ltimas dcadas do sc. XIX e as primeiras do sc. XX viram surgir

vrias recolhas de contos da tradio oral literria portuguesa, assinadas por Adolfo

Coelho, Tefilo Braga e Consiglieri Pedroso, entre outros. Os critrios classificativos do

material recolhido varia consoante o autor (embora normalmente se baseiem no ndice de

Aarne), e todas elas se evidenciam mais como colees de contos, por vezes mesmo

desorganizadas e confusas, do que estudos consolidados sobre o tema.

Consiglieri Pedroso, por exemplo, em Contos Populares Portugueses, referindo

que as classificaes existentes so mais ou menos viciosas e mais baseadas na forma

do que na essncia do conto (1910/2011, p. 39), assume que a sua preocupao foi no

tanto a classificao, mas antes o critrio cientfico de recolha e documentao, tendo os

contos sido recolhidos da boca virgem do povo (op. cit., p. 35).14

De referir no entanto que, tendo em conta o nmero de variantes existentes e as

relaes de semelhana e diferena entre estas, a dificuldade de classificao

compreensvel a ttulo de exemplo, a segunda edio (1914-1915) de Contos

Tradicionaes do Povo Portuguez de Tefilo Braga inclui 407 textos.

13 Em 2004, o Sistema Aarne-Thompsom (AT) foi objeto de nova reviso e ampliao, desta vez por

Hans-JrgUther, passando a ser chamado de Sistema Aarne-Thompson-Uther (ATU).

14 Maria Leonor Machado de Sousa, no prefcio desta edio, afirma justamente que o critrio cientfico de

recolha e documentao no se estendeu organizao do material (ibid., p. 14).

29

Apesar do problema referido acima, para podermos falar, debater e analisar as

diversas obras da literatura oral necessrio optar por uma classificao, mesmo que

imperfeita ou incompleta. Para este trabalho, escolho novamente os estudos publicados

por Joo David Pinto-Correia, mais precisamente a classificao proposta no artigo Os

gneros da Literatura Oral Tradicional: contributo para a sua classificao, publicado na

Revista Internacional de Lngua Portuguesa (n. 9, julho de 1993). Pinto-Correia prope

um paralelismo entre as divises modais da literatura escrita e da literatura oral:

composies lricas, composies narrativas e composies dramticas.

Relativamente s composies lricas, o autor afirma que

dizem respeito autntica experincia da vida do Povo, na qual o

sentimento ou a crena se revela como o suplemento principal da

vivncia quotidiana. So quase sempre em verso, podendo, no entanto,

em certos casos, como nas benzeduras, se manifestarem em prosa.

(op. cit., p. 65)

Neste conjunto, Pinto-Correia identifica trs subconjuntos:

(i) Prticas de carcter prtico-utilitrio:

(a) prticas de inteno mgica e religiosa tais como rezas, oraes,

ensalmos, benzeduras, exorcismos, cantigas de embalar.

(b) prticas de sabedoria provrbios, sentenas, mximas, ditos e expresses

estereotipadas.

(c) prticas de inteno meramente utilitria preges.

(ii) composies de carcter ldico, onde se distinguem:

(d) rimas infantis frmulas encantatrias, lengalengas, anfiguris, trava-

-lnguas.

(e) cantigas cantigas de raz medieval, cantigas inteiras, cantigas de

quadras soltas, quadras e outras.

(f) adivinhas.

30

(iii) Varia textos lricos que no se enquadram em nenhum dos outros

subconjuntos.

No que diz respeito s composies narrativo-dramticas, que Pinto-Correia

descreve como aces completas ou pequenos episdios narrativos, sempre

completados pelo dilogo (ibid., p. 67), so identificados quatro subgrupos:

(i) composies explicativo-exemplares, relatos verosmeis, explicativos de factos

para os quais a razo no suficiente; nelas se incluem mitos, lendas, fbulas

e aplogos.

(ii) composies registadoras-elementares, onde o foco a experincia humana

real ou mgica; nestas composies verifica-se uma simplicidade estrutural,

mas complexidade semntica; delas fazem parte os romances e os contos.

(iii) composies crticas (humorsticas) as anedotas que Pinto-Correia

considera como o gnero por excelncia vivo da tradio oral moderna (ibid.,

p. 68).

(iv) varia, agrupando outras histrias narrativo-dramticas que no se inserem em

nenhum dos trs subconjuntos anteriores.

Pinto-Correia chama a ateno para o facto de, embora na sua maioria as

composies narrativo-dramticas serem em prosa, por vezes elas so apresentadas

em verso.

Finalmente, nas composies dramticas, encontramos peas e dilogos

divididos em:

(i) composies exemplares, assim designadas devido exemplaridade significativa

das suas personagens ou acontecimentos nelas relatados; neste subgrupo

encontramos tragdias e dramas, comdias e autos.

(ii) composies crticas, nas quais so objeto de crtica determinadas pessoas ou

temas entremezes, cegadas.

(iii) composies registadoras do quotidiano representaes e dilogos.

31

necessrio enfatizar que a opo por esta diviso classificatria obedeceu a um

princpio utilitrio de adequao ao corpus de referncia desta tese , e no deve ser

entendida como uma crtica a outras propostas.

Caractersticas da literatura oral tradicional

A principal caracterstica diferenciadora da literatura oral tradicional e aquela que

est na origem de todas as suas particularidades a oralidade. Como mencionei no

incio deste captulo, no estudo da oralidade pertinente e til a distino entre as

designaes oral (oral) e falada (spoken).

A oralidade liga-se profundamente performance, o que significa que as

caractersticas textuais do discurso literrio oral so dependentes de situaes de

presencialidade. Consequentemente, s possvel compreender as caractersticas da

literatura oral tradicional partindo deste princpio, ou, nas palavras de Ruth Finnegan,

treating their orally performed qualities as crucial to their literary realization (2005, p. 166).

Numa perspetiva pragmtica comunicacional, a criao do texto oral submete-se a

mecanismos de comunicao especficos e diferentes dos que ocorrem na literatura

escrita, uma vez que a opo por uma ou outra estrutura ou personagem sempre decidida

em funo da sua atualizao em pblico.

Estabelece-se assim um certo paralelismo com a dialtica texto dramtico/atuao

teatral, uma vez que, tal como no caso do teatro, o texto oral tradicional sempre

completado com a atuao do contador, que atualiza o texto tendo em conta a situao

lugar, tempo, pblico.

A adaptao do texto pela interao com o recetor num contexto especfico leva-

-nos segunda caracterstica principal da literatura oral tradicional a sua variabilidade.

A produo literria oral a materializao do provrbio quem conta um conto

acrescenta um ponto.

Isto no significa, porm, que o narrador tenha toda a liberdade de transformao;

pelo contrrio, essa liberdade pode ser bastante limitada. O contrato entre narrador e

ouvinte fundamenta-se numa conveno normalmente mais rgida do que no caso da

32

literatura escrita e, se o narrador se afastar muito das regras dessa conveno, pode

causar estranhamento15. O ouvinte espera uma determinada escolha de motivos temticos

se o conto incluir trs irmos, esperar que seja o irmo mais novo a vencer a prova; se

incluir um animal, esperar que a raposa represente a esperteza.16 O narrador no poder,

tambm, como acontece na literatura escrita, jogar com a sequncia temporal narrativa,

no recorrer a analepses ou prolepses, pois da resultaria que o ouvinte no conseguiria

acompanhar a sequncia dos acontecimentos.

A limitada originalidade do texto literrio oral que contrasta com a ilimitada

existncia de variantes configura assim a terceira grande caracterstica da literatura oral

tradicional.

Por outro lado, a liberdade do narrador que no limitada seleo rigorosa de

determinadas funes, como prope Propp de extrema importncia, pois, para alm

de ser responsvel pelo entusiasmo e ateno do pblico, ao manipular criativamente os

elementos da histria e a linguagem, ele tambm aquele que atualiza a narrativa, fazendo

a ponte entre o passado mtico e a realidade atual. Como explica Rosrio em relao s

narrativas tradicionais:

A sua aco decorre num espao e num tempo que podem ser

identificados. Quer isto dizer que procuram criar a iluso de actualidade

reportada atravs da aproximao da realidade social. De toda a forma,

porm, no rejeitam a carga mtica. Ocupam assim uma posio de

charneira entre o imaginrio mtico e a realidade social do dia a dia.

(1989, p. 261)

A existncia de inmeras variantes, resultado de atualizaes contextuais, vai

tambm contrastar com uma outra caracterstica importante: a universalidade. Esta

explicada por diversos autores pela existncia de um fundo mtico comum, que apesar de

no poder ser explicitamente definido, no deixa de ser compreendido ou sentido. Adolfo

Coelho escreve:

15 Esta limitao da criatividade varivel dentro da prpria literatura oral tradicional; Loureno Rosrio,

a propsito da diferena entre mitos e lendas, por um lado, e contos, por outro, explica: o narrador de

contos goza de muito maior liberdade na organizao dos motivos temticos do que o narrador de lendas

ou mitos. As interdies e regulamentaes so muito irredutveis quando se trata de mitos. (1989, p. 51). 16 Se pensarmos no espao de alguns pases, como Portugal; noutras regies, outros animais representam a

astcia.

33

Segundo os irmos Grimm, nos contos populares so comuns os restos

de uma crena que remonta a remotas eras e se exprime na

representao formal de coisas supra-sensveis. Esse elemento mtico

como os pequenos fragmentos de uma pedra preciosa esmigalhada que

esto espalhados num solo coberto de fortes ervas com as suas flores, e

que a vista perspicaz descobre. A sua significao, por mais

obscurecida que esteja, ainda sentida, e d ao conto o seu contedo,

satisfazendo ao mesmo tempo o amor natural pelo maravilhoso. Nunca

ele um puro jogo de cores e uma v palavra. (1879/2005, p. 18)

Mais frente, o autor descreve os contos populares como

um estdio avanado da transformao desse pensamento originrio, e

constituem vestgios mais ou menos fragmentrios, claros ou

deformados, de mitos e conceitos religiosos muito arcaicos, que

perduraram na imobilidade do mundo mental do povo, arredado da

aco renovadora do progresso racional. (op. cit., p. 19)

O elemento mtico e mgico da literatura oral tradicional transparece em certos

motivos simblicos, como a preferncia pelo nmero 3, ou pela importncia de certos

elementos como a lua ou a noite, por exemplo.

Um outro elemento distintivo da oralidade literria a autoria coletiva dos textos

tradicionais; este anonimato significa que, ao contrrio do que acontece na literatura

escrita, que centrada na marca do autor, a literatura oral tradicional existe da

comunidade para a comunidade.

Outras caractersticas podero tambm ser referidas, como por exemplo a frequente

interao com outras formas de expresso msica e linguagem gestual ou ainda a

possibilidade de coexistir com outras atividades, nomeadamente laborais.

Relativamente s marcas discursivas, podemos apontar a dimenso mtica do

tempo, a economia de texto e o recurso frequente a repeties, comparaes, metforas

ou a hiperbolizao, de modo a facilitar a sua compreenso e/ou memorizao.

34

Uma vez definido o conceito e corpus da literatura oral tradicional, e descritas as

suas principais caractersticas as que tem em comum com a Literatura em geral e as que

lhe so especficas , podemos ento debruar-nos na anlise das potencialidades da

mesma, mais especificamente, da literatura oral tradicional lusfona, no

ensino/aprendizagem do PLE.17

17 Embora fosse til definir tambm neste captulo o adjetivo lusfona, por motivos de coerncia temtica

optei por incluir a anlise da problemtica em torno deste adjetivo no Captulo III, uma vez que, no mbito

deste trabalho, considero ser uma questo essencialmente cultural.

II

A Literatura no ensino/aprendizagem de LE: o caso da

literatura oral tradicional lusfona

A funo cognitiva da Literatura

Ensino de lngua/ensino de Literatura

A Literatura no ensino/aprendizagem de LE

O caso da literatura oral tradicional lusfona

A lngua da literatura lngua em funcionamento, discurso, que

desenvolve e atualiza todas as possibilidades da linguagem, mostrando as

maneiras como ela pode significar e at antecipando o ainda no-dito.

Elisabetta Santoro, 2007, p. 24

37

H cerca de 5 anos, o diretor do Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade

de Letras de Budapeste pediu-me que desse uma aula turma de MA, sobre As viagens

na minha terra de Almeida Garrett e Arquitetura.18 A aula que preparei consistiu assim

num cruzamento entre o Romantismo literrio e o Romantismo na Arquitetura. Para alm

desta abordagem interartstica, analismos a descrio de espaos/lugares, interpretando

e debatendo tambm a posio do autor, na obra, no que diz respeito reabilitao do

patrimnio arquitetnico; durante toda a aula, tive sempre o cuidado de trabalharmos

paralelamente o lxico portugus nesta rea.

O que ficou marcado na minha memria dessa aula foi a sensao de quo

superficialmente os alunos estariam habituados a mergulhar em textos literrios:

conheciam bem o dicionrio de literatura, mas no a Literatura. Posteriormente, em

conversa com os mesmos, estes desabafaram sobre as dificuldades e desiluses que

sentiam nas aulas de literatura do curso; hoje acredito que essas dificuldades tinham duas

origens: a primeira, as obras literrias eram introduzidas no curso numa ordem

cronolgica (por exemplo, primeiro romantismo, depois realismo, etc.), e no atendendo

ao nvel de dificuldade lingustica; a segunda razo seria a quase total separao entre

lngua e Literatura que, na altura, caracterizava o curso os alunos, em casa decifravam

o vocabulrio, e na aula o professor apresentava a anlise do contexto literrio.

Este captulo exatamente dedicado importncia de uma aprendizagem integrada

de lngua e Literatura: comearei por descrever a funo cognitiva da Literatura,

descrio essencial compreenso da relao entre ensino de lngua/ensino de

Literatura e importncia da Literatura no ensino/aprendizagem de LE; finalmente,

analisarei com mais ateno o caso da literatura oral tradicional lusfona, nesta

perspetiva.

18 Nessa altura dava aulas nesta instituio de Prtica de Lngua portuguesa aos alunos de BA, e de

Traduo e Histria da Arquitetura portuguesa turma de MA.

38

A funo cognitiva da Literatura

No seu texto As funes da Literatura (1999), Maria Vitalina Leal de Matos

descreve as diferentes dimenses literrias, mencionando, para alm dos valores

aristotlicos de mimese e catarse, a Literatura como expresso da interioridade do

escritor, a Literatura como evaso, a Literatura como instrumento de interveno social,

e ainda a Literatura como objeto comercial. A autora faz igualmente referncia funo

cognitiva da Literatura, tanto como contedo de instruo, quanto como representao de

uma cosmoviso. A estas dimenses, devem ser acrescentadas as funes esttica, ldica,

e claro, didtica.

Mas todos os valores da Literatura do esttico ao tico podem ser abordados de

um nico ponto de vista: a Literatura como veculo de conhecimento; de facto, o saber

que adquirimos atravs de uma obra literria integra diferentes valores, que se apresentam

sistematizados numa determinada cosmoviso.

Na anlise das diferentes dimenses cognitivas da Literatura, existem

evidentemente diferenas a apontar entre a literatura escrita e a literatura oral tradicional;

por exemplo, esta ltima nunca um instrumento de evaso nem de expresso da

interioridade do escritor, uma vez que, tal como foi afirmado no captulo anterior,

indiscutivelmente orientada para o recetor a comunidade e no para o escritor figura

que no caso da produo literria oral inexistente , no se enquadrando nunca, por isso,

no esprito da arte pela arte. Uma outra diferena a anotar, a de que no caso da

literatura escrita existe uma relao entre contexto histrico e equilbrio entre funes,

ou, se quisermos, proeminncia de certa funo em detrimento de outra, o que no

verificvel no caso da expresso literria oral, que, como afirmei no captulo anterior,

fundamentalmente a-histrica.19

19 Isto no quer dizer que no haja variaes na importncia que damos a cada um desses valores em

diferentes coordenadas histricas: por exemplo, em certas pocas dado mais valor sua funo didtica,

noutras sua funo ldica. Mas as caractersticas textuais e de contedo das obras literrias tradicionais

no variam de acordo o momento histrico, como acontece com a literatura escrita.

39

No entanto, na anlise da funo cognitiva literria que se segue, os argumentos

que aponto so igualmente vlidos nas duas formas de literatura, pelo que me referirei a

ambas usando o termo geral de Literatura, realando algumas particularidades da

literatura oral tradicional quando pertinentes.

Vejamos, ento, a dimenso cognitiva da Literatura.

Wolfgang Huemer, no seu artigo Why read literature? - The cognitive function of

form (2007), introduz a questo com um pequeno extrato da pea de Aristfanes, Rs:

EURPIDES (designando o pblico)

E mais, estes tipos aqui ensinei-os a palrar

SQUILO At a estou de acordo. Mas antes de lhes

teres impingido a lio, melhor fora que

fosses desta para melhor!

EURPIDES .... a aplicar regras subtis, a medir versos de

esquadro em punho, a pensar, a observar, a

compreender, a gostar de argumentar, a

maquinar, a ver ms intenes em todo o lado,

a reflectir sobre tudo e mais alguma coisa.

SQUILO At a estou de acordo. 20

Tal como afirma Huemer, nestes versos Eurpedes apresenta as diferentes funes

da Literatura esta ensina a palrar bem, a pensar, a observar, a gostar de

argumentar, valores morais (ver ms intenes) e, mais importante, a refletir sobre

tudo e mais alguma coisa. Com esta ltima afirmao, Eurpedes defende que a

Literatura no ensina apenas sobre si prpria, nem apenas a falar bem, mas tambm sobre

o que lhe exterior, sobre o mundo e os homens.

20 Versos 954 a 959. Esta traduo de Maria de Ftima Silva e integra a srie Autores Gregos e Latinos

Traduo, introduo e comentrio (Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume, 2014). A fala

de Eurpedes presente no texto de Huemer a seguinte: Then I taught these people () to talk and

how to apply subtle rules and square off their words, to think, to see, to understand, to be quick on their

feet, to scheme, to see the bad in others, to think of all aspects of everything. (2007, p. 233).

40

A dimenso reflexiva da Literatura, declarada neste discurso de Eurpedes,

apontada tambm por Roland Barthes, no seu texto Aula, originalmente publicado em

1978:

Porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utiliz-la, a

literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita:

atravs da escritura, o saber reflete incessantemente sobre o saber,

segundo um discurso que no mais epistemolgico mas dramtico.

(1978/s.d., p. 9)

A Literatura ensina-nos a refletir sobre o qu? Ainda em Aula, Barthes escreve

que a Literatura no afirma saber alguma coisa, mas sobre alguma coisa21; a viso que a

literatura nos oferece no de natureza proposicional verdadeira ou falsa; se assim

fosse, se as pessoas lessem para conhecer factos verdadeiros, ento optariam por textos

cientficos. Nas palavras de Catherine Elgin, a arte does not, and does not purport to,

deliver literal, descriptive truths. It seeks, rather, to challenge, to disorient, to disrupt, to

explore, and thereby to reveal what more regimented approaches lack the resources to

attempt (citada em Huemer, 2007, p. 235). Apesar de nem sempre se observar esta

inteno de desafio, o que inegvel que qualquer expresso artstica se define

exatamente por uma relao subjetiva com a realidade o seu objeto de desejo; no

universo da Literatura, a cosmoviso veiculada nas suas obras resultado de um processo

dinmico em que confluem valores universais e tambm interpretaes individuais do

autor e do leitor. Isto significa que, ao lermos, aprendemos atravs das nossas prprias

experincias, individuais e coletivas, que configuram filtros na criao de novos

sentidos.22 Na leitura literria, o processo cognitivo por isso um processo dialtico de

reconfigurao ou ressignificao.23

Em Aspectos cognitivos da literatura, Axel Gellhaus descreve o conhecimento

veiculado na Literatura como modelado:

A literatura e as artes constroem modelos para a percepo de realidade

e para a reconstruo de experincia. (). A literatura , alm disso, o

21 () o saber que ela mobiliza nunca inteiro nem derradeiro; a literatura no diz que sabe alguma coisa,

mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe algo das coisas que sabe muito sobre os homens.

(Barthes, 1978/s.d., p.9)

22 Essas experincias so tambm as literrias.

23 O processo cognitivo sempre de reconfigurao, no apenas no caso da criao/leitura literria.

41

espao no qual modelos complexos de ao, modelos de convivncia

social ou de organizao social e modelos da reflexo individual do ser-

-no-mundo podem ser representados no apenas de forma

rememorativa mas tambm de forma antecipatria. (2012, pp. 7-8)

Continuando, o mesmo autor afirma que estes modelos

funcionam como modelos, como metonmias ou metforas de situaes

de vida e de experincias de mundo. Metforas segundo a minha

teoria exercem no mbito da lngua a mesma funo que as frmulas

possuem no mbito da matemtica: elas reduzem complexidade e so

usadas como macros que nos permitem identificar e articular mais

rapidamente as situaes que percebemos. (op. cit., p. 6)

Para Gellhaus, o conjunto desses modelos configura um arquivo inesgotvel de

experincia humana de mundo, um gigantesco banco de dados de atos de pensamento

objetivados (ibid., p. 7), sem o qual o desenvolvimento seria impossvel, uma vez que a

inexistncia desse arquivo significaria a ausncia de um ponto de partida a partir do

qual, por recusa ou aceitao das regras sociais gravadas na memria coletiva, a sociedade

pode evoluir.

Estas consideraes levam-nos a um ponto fulcral do processo cognitivo na

Literatura, o seu aspeto social, duplamente presente, uma vez que a obra literria no s

vincula modelos e atitudes sociais, mas tambm o faz na mais complexa (e completa) das

nossas prticas sociais, a linguagem verbal. A dimenso cognitiva-social da Literatura

particularmente importante quando falamos sobre literatura oral tradicional, uma vez que

ela , por assim dizer, o seu objetivo. Na sua origem, quando a escrita ainda no tinha

tomado o lugar que hoje tem24, a literatura oral era um agente de socializao, responsvel

pela transmisso dos valores-modelo de uma sociedade ou comunidade, muitas vezes

expressados diretamente, como acontece no caso das fbulas. No nos esqueamos,

tambm, de que o facto de esta transmisso decorrer muitas vezes em contexto coletivo

contribua para o fortalecimento dos laos entre os membros da comunidade.

Os valores sociais veiculados na literatura oral tradicional so muitas vezes

coincidentes com os presentes na literatura escrita; a razo para este facto a precedncia

24 Lugar de primazia hoje posto em causa pelo paradigma audiovisual.

42

da oralidade literria em relao escrita literria, sendo que esta ltima vai buscar os

seus motivos e temas ao universo simblico original, criado na oralidade.

Apesar de ambas as formas literrias veicularem sempre um contedo social,

devemos estabelecer uma diferena central: que no caso da literatura oral tradicional, o

modelo social no posto em questo, nem pelo emissor nem pelo leitor, o que no se

verifica no caso da literatura escrita, em que se observa normalmente um dilogo com o

modelo social, por aceitao ou refutao do mesmo, pelo escritor e/ou pelo leitor.

Independentemente desta diferena, o dilogo entre o modelo social presente na

obra literria e o do imaginrio do leitor leva este a refletir sobre esses modelos,

contribuindo assim para a sua postura na sociedade; nas palavras de Wolfgang Huemer,

a literatura can enrich our actual abilities to engage in social practices or make us reflect

upon the practices we already take part in (2007, p. 237). 25

E o que sem dvida uma das vantagens da experincia literria, que o encontro

com novas realidades, mesmo quando difceis, indolor; como escreve Margarida Vieira

Mendes, a Literatura permite ao leitor o alargamento da experincia individual, de

modo a este

progredir no conhecimento do mundo, em particular no domnio social,

da sensibilidade tica, sem ter de se defrontar com todas as experincias

dolorosas, difceis ou frustrantes que esse conhecimento e essa maior

experincia envolveriam. (1999, p. 45)

Analisemos agora, em particular, o valor cognitivo da literatura oral tradicional.

Um erro comum associar as formas narrativas transmisso de modelos sociais,

e as formas lricas, funo ldica. Como j se disse anteriormente, a literatura oral

tradicional tem uma dimenso marcadamente social; no entanto, quando pensamos em,

por exemplo, trava-lnguas, associando-os a um jogo com a lngua, no devemos

esquecer-nos de que esta ltima , como tambm j se disse, o ato social por excelncia

do comportamento humano. Podemos dizer que a literatura oral tradicional tem como

25 Huemer faz no entanto a ressalva de que nem sempre o leitor faz uma leitura crtica, por vezes imitando

apenas as atitudes presentes na obra literria.

43

principal fim a transmisso esttica, simblica, ldica de valores sociais, entre eles, a

linguagem verbal.

Vejamos num exemplo uma narrativa tradicional portuguesa como esses valores

sociais so veiculados.

Anlise do conto O cordo de ouro 26

Como habitual nos contos tradicionais, das trs filhas a mais nova a herona,

sobre quem recaem as qualidades necessrias exemplificao dos valores

veiculados pelo conto: esta personagem mostra-se paciente, confiante, disposta a

enfrentar novas dificuldades, na esperana de que a situao h de melhorar, se

trabalhar. Ela representa ainda a fidelidade filial, deixando a casa da fada/vizinha e

voltando para casa da me quando esta o quis, apesar de parecer gostar de estar na

casa da fada e, embora no esteja explcito no texto, oferece a riqueza me e s

irms, sabendo que, como lhe disse a fada, elas haveriam de gast-la. As suas irms,

pelo contrrio, impacientes e sem confiana no poder do trabalho, desanimaram

perante a primeira dificuldade e nada fizeram para mudar a situao de pobreza em

que a famlia vivia. A fada, escondida no papel de vizinha, demonstra um grande

conhecimento da personalidade humana, recorrendo a uma prova bastante simples

para verificar as qualidades das trs jovens faz-las passar fome e decidir qual de

entre elas digna da sua ajuda. S depois de experimentar as trs que mostra

poderes mgicos com a oferta do cordo de ouro. Os ourives so honestos e curiosos

e, finalmente, o rei , sobretudo, curioso e faz o necessrio para tentar descobrir o

significado do peso do cordo. Depreendemos que faz parte do lado das

personagens boas e exemplares, pois o seu peso acaba por ser igual ao do cordo

mgico e superior ao de todas as suas joias e diamantes, e mesmo ao do seu poder

(simbolizado pelo cetro e pela coroa); o facto de ter compreendido a mensagem dos

pesos iguais um indicador da sua inteligncia.

26 Texto recolhido por Consiglieri Pedroso (1910/2011, p.285-288): ver Anexo 1.

44

Existem inmeros contos nos quais trs irms ou irmos so postos prova,

mas onde apenas um deles (o mais fraco) ultrapassa as dificuldades e

recompensado. A moralidade que este conto encerra a de que a pacincia e a

disponibilidade para o trabalho sem esperar recompensa imediata so premiadas; O

cordo de ouro veicula assim os valores do trabalho paciente, da honestidade e da

lealdade filial.

De um modo resumido, o que este e com ele muitos outros contos transmite

a ideia de que

a luta contra graves dificuldades na vida inevitvel, faz parte

intrnseca da existncia humana mas que se o homem no se furtar a

ela, e com coragem e determinao enfrentar dificuldades, muitas vezes

inesperadas e injustas, acabar por dominar todos os obstculos e sair

vitorioso. (Bettelheim, 1975/2011, p. 16)

Embora primeira vista assim o parea, nesta narrativa os valores sociais/morais

no so transmitidos de modo objetivo, existe um processo de associao simblica as

personagens so tipificadas e sem nome, possibilitando deste modo que nos relacionemos

com qualquer uma delas. Existe um elemento mgico que, para alm de ajudar na

marcao da ficcionalidade, essencial dimenso ldica, e existem tambm elementos

ancorados realidade, como por exemplo uma situao de pobreza/fome e a existncia

de diferentes classes sociais (realeza, povo).

Se a ficcionalidade um elemento distintivo das narrativas, as formas lricas da

literatura oral tradicional so sublinhadas pelo seu discurso potico, pelo (ab)uso dos

recursos expressivos da lngua, pela motivao da palavra. A propsito do lirismo na

literatura oral tradicional, Anabela Almeida Gonalves escreve:

H uma forma lrica bastante acentuada nos ditos populares, que fazem

analogias espantosas e poticas nos provrbios, por exemplo. As

prprias quadras populares que transitam de boca em boca so outro

exemplo do lirismo popular, pois muitas vezes revelam um agudo senso

amoroso e uma intensa e criativa relao com a natureza, inserindo de

forma potica elementos da natureza nas rimas. (2005)

45

Relembremos, no entanto, que na classificao dos gneros da literatura oral

tradicional, Joo David Pinto-Correia insere nas composies lricas formas

expressamente utilitrias, como preges; evidentemente que nem em todos os preges se

poder encontrar um profundo lirismo, mas em muitos surpreende-nos a chamada

sabedoria popular. Ao ouvirmos Olha a lngua daquela malandra! somos

inevitavelmente levados a sorrir, reconhecendo instantaneamente a caracterizao da

relao sogra/nora-genro.27

Tambm encontramos o referido saber ancestral em provrbios e ditos populares,

condensado em figuras de linguagem; receptculo de certa sabedoria, da verdade e da

inverdade e das, como queria Nietzsche (1844-1900), verses da verdade, o provrbio

constitui um dos simulacros da prpria linguagem, sempre em busca de si mesma

(Mucci, s/d). J no que diz respeito a rezas, oraes, ensalmos, benzeduras, exorcismos e

mesmo em cantigas de embalar, nestes emerge todo um universo religioso e/ou mgico,

condensado em textos de reduzida dimenso.

Todas estas formas da literatura oral tradicional veiculam saber intemporal e fazem-

no em relao estreita com o uso criativo da lngua; isto significa que, quando as

estudamos, ou quando as propomos como objeto de trabalho, devemos ter em conta esta

dialtica conhecimento/lngua.

Ensino de lngua/ensino de Literatura

Embora hoje seja aceite com naturalidade que a Lingustica se debrua (tambm)

no que incontestablement langage, savoir, le texte littraire (Barthes, 1968, p. 3)28,

esta relao nem sempre foi assim, pois tempos houve em que a Lingustica se recusou a

27 Note-se que as particularidades desta relao foram muito provavelmente reconhecidas pelo povo,

muito antes de qualquer formulao cientfica da mesma. 28 Nest-il pas naturel que la science du langage (et des langages) sintresse ce qui est incontestablement

langage, savoir, le texte littraire? (Barthes, 1968, p. 3)

46

estudar a linguagem literria, considerando que la littrature se situait en grande partie

en dehors du langage (dans le social, historique, l'esthtique) (op. cit., p. 3).29

semelhana da relao Lingustica/Literatura, a evoluo do ensino de LE tem

sido marcada por momentos de separao e outros de aproximao entre lngua e

Literatura.

Elisabetta Santoro, na sua tese Da indissociabilidade entre o ensino de lngua e de

literatura: uma proposta para o ensino do italiano como lngua estrangeira em cursos de

Letras (2007) analisa esta questo: inicialmente, o ensino das lnguas clssicas, o grego

e o latim, apoiava-se em texto literrios originais nestas lnguas, e era realizado segundo

o mtodo gramtica-traduo, sendo que a obra literria constitua o nico meio de acesso

lngua. Com a ascenso de uma burguesia cada vez mais presente na poltica e na

economia, surge a massificao do ensino de LE, sobretudo o francs, o alemo e o ingls;

no entanto, apesar do domnio escrito e oral que se pretendia na aprendizagem das lnguas

naturais ser incongruente com o mtodo tradicional, este permaneceu durante muito

tempo como modelo de aprendizagem.

A chegada do ensino de lnguas estrangeiras naturais aos cursos de Letras marca o

incio da separao e hierarquizao entre o ensino da lngua e o ensino da Literatura;

sendo a Literatura na lngua estrangeira o objetivo final destes estudos, a aprendizagem

da lngua era considerada apenas como um meio necessrio para atingir esse objetivo.

Nas palavras de Elisabetta Santoro, a metodologia tradicional previa, em suma,

um nico ponto de interseco entre o ensino da lngua e o ensino da literatura: o cdigo

lingustico utilizado (op. cit., p. 17).

Esta separao sequencial entre lngua e literatura passou a ser aceite como modelo,

sendo o texto literrio venerado como o exemplo do melhor desempenho lingustico, a

linguagem correta e culta; falvamos dele, mas raramente com ele e muito menos dentro

dele (Neide Gonzlez citada em Santoro, 2007, p. 18).

29 D'un autre ct, en effet, la linguistique elle-mme adhrait parfaitement limage sparatiste que la

littrature voulait donner elle-meme; soumise un sur-moi scientifique trs fort, elle ne se reconnaissait

pas le droit de traiter de la littrature, parce que pour elle la littrature se situait en grande partie en dehors

du langage (dans le social, historique, l'esthtique). (op. cit., p. 3)

47

Com a mudana de paradigma e a introduo das abordagens ditas comunicativas,

o texto literrio foi substitudo por textos funcionais adaptveis ao critrio comunicativo,

com nfase na linguagem do quotidiano real. A literatura foi ento sendo banida das aulas,

uma vez que a sua linguagem no era a fala utilitria, e, quando era utilizada, era apenas

nos nveis mais avanados.

Esta noo de que apenas alunos com domnio mais consolidado da lngua

estrangeira podero compreender obras literrias encontra-se ainda muito divulgada nos

dias de hoje, sendo mesmo defendida no Quadro europeu comum de referncia para as

lnguas: aprendizagem, ensino e avaliao (QECR).

A primeira observao a fazer, na anlise deste documento, sobre o reduzido lugar

que dado Literatura; o prprio documento assume o tratamento sumrio que lhe

dado. No subcaptulo de Tarefas comunicativas e finalidades, relativamente aos Usos

estticos da lngua, encontramos a seguinte declarao:

Este tratamento sumrio do que tem sido um aspecto fundamental,

frequentemente dominante, dos estudos de lnguas modernas no Ensino

Secundrio e Superior pode parecer um pouco desprendido. No essa

a inteno. As literaturas nacionais e regionais do um contributo da

maior importncia para a herana cultural europeia, e o Conselho da

Europa entende-as como um recurso comum precioso a ser protegido

e desenvolvido. Os estudos literrios tm vrias finalidades

educativas, intelectuais, morais e afectivas, lingusticas e culturais e no

apenas estticas. Espera-se que os professores de literatura de todos os

nveis possam encontrar vrias seces do QECR que considerem

importantes para os seus interesses e teis para a definio dos seus

objectivos e para a transparncia dos seus mtodos. (2001, p. 89)

Por um lado, de criticar que a referncia importncia da Literatura seja apenas

associada ao aspeto esttico e no ao comunicativo; por outro lado, estabelece-se uma

relao entre ensino de lngua/ensino de Literatura ao nvel dos profissionais

convidando os docentes de Literatura a usarem este documento quando pouca ou

nenhuma importncia dada Literatura ao longo do mesmo, que peca exatamente por

um olhar excessivamente comunicativo-utilitrio.30

30 Para alm do mais, note-se que neste pargrafo dada importncia multidimensional (educativas,

intelectuais, morais e afectivas, lingusticas e culturais e no apenas estticas) aos estudos literrios e no

Literatura em si.

48

Por outro lado, como j se disse, as competncias ligadas fruio literria

encontram-se praticamente apenas nos nveis mais avanados, como podemos ver nas

seguintes citaes:

Relativamente escala global dos Nveis Comuns de Referncia:

[sobre o nvel B2] capaz de compreender as ideias principais em textos complexos sobre

assuntos concretos e abstractos.

[sobre o nvel C1] capaz de compreender um vasto nmero de textos longos e exigentes,

reconhecendo os seus significados implcitos.

[sobre o nvel C2] capaz de compreender, sem esforo, praticamente tudo o que ouve

ou l.31 (op. cit., p. 49)

No que diz respeito autoavaliao da competncia de Compreenso da Leitura:

[sobre o nvel B2] Sou capaz de compreender textos literrios contemporneos em prosa.

[sobre o nvel C1] Sou capaz de compreender textos longos e complexos, literrios e no

literrios, e distinguir estilos.

[sobre o nvel C2] Sou capaz de ler com facilidade praticamente todas as formas de texto

escrito, incluindo textos mais abstractos, lingustica ou estruturalmente complexos,

tais como manuais, artigos especializados e obras literrias. (ibid., p. 53)32

Criticando este relegar da Literatura para os nveis avanados, Santoro escreve que

prevalece a lgica que impe, numa escala, cujos critrios no so

sempre facilmente compreensveis, que o fcil (a lngua) anteceda o

difcil (a literatura) e que o cotidiano e a realidade (a lngua com

funo utilitria) venham antes do incomum e da fico (a lngua com

funo esttica). (2007, p. 19)

Na sua anlise, a autora critica tambm os editores de manuais de LE pela ausncia

de textos literrios nos mesmos, explicando que, mesmo quando so includos, o

31 Nestes itens no feita uma referncia explcita Literatura, mas julgo que esta pode ser interpretada nas

descries, no caso do nvel B2, com alguma boa vontade. 32 Baseando-se no QECR, o Quadro de Referncia para o Ensino Portugus no Estrangeiro (QuaREPE) no

se afasta muito das suas indicaes; no entanto, mesmo sendo apenas um pormenor, de mencionar que

no quadro indicador das competncias leitura/compreenso, no nvel B1, este texto indica capaz de

compreender textos ldicos e literrios, de acordo com a sua faixa etria. (2011, p. 26)

49

trabalho com o texto limita-se, de fato, ao denotativo e exemplaridade da lngua

utilizada (op. cit., p. 21), ou seja,

a chamada reflexo sobre a lngua, que muitos manuais didticos

incluem, limita-se geralmente a uma reconstruo, a partir dos

elementos observados no texto, de como pode ser sistematizada uma

regra gramatical e de quais so as normas que regem seu uso, sendo

que, em geral, no h espao para efetivos questionamentos sobre os

efeitos de sentido gerados e sobre como eles influenciam a leitura e a

interpretao do texto. (ibid., p. 22)

Tendo em conta que esta tese se centra na literatura oral tradicional, no seria

pertinente apresentar aqui uma anlise mais detalhada sobre a incluso/excluso da