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Marcos Antonio Rodríguez Piris. “A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 47-73 47 A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos e outras ocorrências lexicais Marcos Antonio Rodríguez Piris – [email protected] E. O. I. Villanueva – Don Benito Resumo A tauromaquia é um mundo de artes e emoções que encerra prácticas controversas e muito próprias. Cada um dos elementos que compõem a festa brava se designa por um termo específico que lhe dá autonomia e sentido. Manoletina, burraco ou cernelha são alguns destes termos que acompanham desde antigo esta actividade ancestral alheios a idiomatismos nacionais e competências linguísticas. Convém, por isso, esclarecer a sua origem e utilização paralela nas várias línguas em que a tauromaquia é falada. Abstract The world of bullfighting is a universe of arts and emotions which involves controversial and very genuine practices. Each and every element composing this brave national fiesta is designed by a specific term which gives it its autonomy and real sense. Manoletina, burraco or cernelha are some of those terms closely related to this ancestral activity since the old times and which are far too away from national idiomatic expressions and linguistic competences. For that matter, it’s advisable to clarify its origin and use in those languages which deal the language related to bullfighting. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.

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Marcos Antonio Rodríguez Piris. “A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 47-73 47

A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos e

outras ocorrências lexicais Marcos Antonio Rodríguez Piris – [email protected]

E. O. I. Villanueva – Don Benito

Resumo

A tauromaquia é um mundo de artes e emoções que encerra prácticas controversas e muito próprias. Cada um dos elementos que compõem a festa brava se designa por um termo específico que lhe dá autonomia e sentido. Manoletina, burraco ou cernelha são alguns destes termos que acompanham desde antigo esta actividade ancestral alheios a idiomatismos nacionais e competências linguísticas. Convém, por isso, esclarecer a sua origem e utilização paralela nas várias línguas em que a tauromaquia é falada.

Abstract

The world of bullfighting is a universe of arts and emotions which involves controversial and very genuine practices. Each and every element composing this brave national fiesta is designed by a specific term which gives it its autonomy and real sense. Manoletina, burraco or cernelha are some of those terms closely related to this ancestral activity since the old times and which are far too away from national idiomatic expressions and linguistic competences. For that matter, it’s advisable to clarify its origin and use in those languages which deal the language related to bullfighting.

Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.

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Introdução

A festa dos toiros é o último espectáculo que oferece sem censuras a atropelada violência da vida. É, por assim dizer, uma tragédia grega, mas onde os actores que a representam morrem de verdade. Ultrapassa-se aqui aquele fino limiar entre a realidade e a ficção através de um espectáculo que submete a um protocolo rigorosíssimo a luta entre a vida e a morte. “Este conceito de espectáculos leva em si duas noções: a representação da vida real e a montagem visual” (Lopes Fernandes 1983: 15). Neste sentido advertiram os diestros Romero e Cúchares a um actor que na corrida “no se muere de mentira como em las tablas”, enunciando assim uma radical distinção entre uma arte refinada que simuladamente finge a crueldade e a primária que assume e defronta as suas naturais e patéticas consequências. E esta verídica encenação exige, aliás, uma linguagem viva, trepidante e afectiva que lhe exprima toda a sua significação, carregando de sentido autônomo cada vocábulo para melhor o enquadrar nesse vasto campo lexical que é a gíria tauromáquica.

Contudo, não se entenda aqui esta gíria enquanto “conjunto de expressões de tipo popular, usuais na linguagem corrente e despretensiosa e, sobretudo, frequentes nas esferas menos cultas da população” (Rodrigues Lapa 1984: 68). Antes disso, e porque, como veremos, a festa dos toiros esteve desde o seu surgimento e se mantém ainda hoje mais no caso português ligado às altas esferas da sociedade, convém lindar melhor este sentido de gíria que no caso mais terá a ver com a linguagem característica de um grupo profissional e sociocultural geralmente incompreensível para quem não pertence ao referido grupo. Esta especificidade da gíria tauromáquica, que serve também como meio de realçar a sua

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especificidade, é em todo o caso necessária, toda vez que a festa brava apresenta um conjunto de genuínas realidades as quais demandam especial nomenclatura. E eis que esta terminologia por rara e extensa solicita a admissão de vocábulos que, se bem não são próprios da língua portuguesa, os falantes desta adoptam para seu uso comum e indistinto da língua os quais, as mais das vezes provêm do espanhol.

Assim, encontramos nos dias de hoje no uso da área taurina um amplo corolário de palavras oriundas do espanhol para significarem diversos aspectos da festa dos toiros. Ainda assim, cada uma delas tem no seu haver uma razão de existir na língua portuguesa.

Apontamento histórico sobre a festa brava

Não se sabendo ao certo a origem da festa dos toiros, terá ela nascido muito provavelmente da imperativa que comandava o quotidiano do homem primitivo: procurar sustento para si próprio e para a tribo. Logo de se valer da sua agilidade e inteligência para burlar os furibundos ataques das feras córneas, terão os nossos ancestres ganho o valor e a perícias necessários para se iniciarem num rudimentar alarde de poderio pessoal que haveria de lhes granjear, comumente, o reconhecimento dos seus iguais e, por isso, um lugar de destaque dentro da sua comunidade. Daqui se explica como depois da sua domesticação, o homem tenha insistido nesse ritual combativo de enfrentar o animal mais fero do seu entorno.

Nas civilizações da Mesopotâmia e do Mediterrâneo, por exemplo, o toiro veio a “representar os princípios criativos e fecundantes da natureza assim o identificando amiúde com o pai dos deuses, o deus criador” (Pedraza 2001: 23). Na Bíblia descrevem-se sacrifícios de animais e nas epopéias gregas abundam as hecatombes das quais vieram a surgir mais tarde os jogos táuricos: a taurocaptasia.

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Na Idade Média o exercício militar demandava o jogo com o toiro selvagem enquanto desporto e preparação bélica. Nesta altura também começam a associarem-se as prácticas taurinas com reminiscências árabes o que propiciou que no Século de Ouro, Francisco de Quevedo arremete-se contra a festa brava alegando o seguinte:

Jineta y cañas son contagio moro; Restitúyanse justas y torneos, Y hagan paces las capas co el toro”.

Todavia, a época que mais importa para a inteira compressão do presente trabalho é a assente nos inícios do século XVIII. Eis neste momento quando se produz a separação das festas taurinas espanhola e portuguesa. E isto porque, em Espanha, desdenhadas já as Partidas que Afonso X compusera entre 1256 e 1265 nas quais legislou contra aqueles que “lidian com bestias bravas por dinero”, assume-se a profissionalização da festa brava. Deixa deste modo de ser um divertimento privativo da aristocracia para se converter num espectáculo de massas populares. Em finais do século XVIII estava já quase configurada a moderna corrida de toiros.

Em Portugal, os espectáculos taurinos começaram como “monopólio de reis e de nobre, no tempo de D. Sancho II, é durante o reinado de D. Sebastião que esses espectáculos ganham tradição na monarquia portuguesa” (Lopes Fernandes 1983: 23). Depois, e apesar das bulas restrições que algumas normativas reais e as bulas pontifícias estabeleceram, a festa brava manteve-se – por nela não se confirmar esse processo de profissionalização constatado em Espanha – ligada à nobreza. Continuou assim “a tradição aristocrática dos cavaleiros e dos seus auxiliares apeados” (Pedraza 2001: 42). Disso dá

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boa conta o escritor Camilo Castelo Branco na sua obra Perfil do Marquês de Pombal donde foi extraído o seguinte trecho:

O visconde de Vila Nova de Cerveira, estribeiro-mor da princesa do Brasil, mulher do príncipe D. José, convocou trinta e dois fidalgos da primeira grandeza em 1738, para festejarem o aniversário natalício da futura rainha D. Maria Ana Vitória com escaramuças militares, ao estilo africano, e corrida de toiros pelos fidalgos mais peritos e celebrados nessa prenda.

Logo, este profissional desencontro, que razões de vária ordem explicam mas cuja explicitação excede os limites deste trabalho, será propiciador de um maior afastamento e da evolução de duas concepções taurinas diferentes. Estas que até aos dias de hoje chegaram, mantendo-se a portuguesa mais fiel – porque menos cruenta – às suas raízes; havendo-se ajeitado a espanhola – às considerações humanitárias eufemizando aquele “espectáculo atroz, míngua de Espanha” que sentenciou o poeta cubano José Maria de Heredia.

Dois idiomas para uma só festa

Sendo a festa dos toiros uma entidade única cujos conteúdos inexpugnáveis e convencionalismos particularizam, é preciso ter na devida conta que unidade não é igualdade. De facto, apesar de existirem umas raízes e alicerces comuns, a festa dos toiros encontra-se esteada sobre diversas manifestações resultantes do deambular histórico dos povos que lhes são afectos. Neste sentido, e sendo a Ibéria o berço da actual festa brava, podemos afirmar-nos na existência de uma tauromaquia portuguesa e uma tauromaquia espanhola que, embora diferentes, complementam-se dentro desse

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contexto alargado que é a referida festa dos toiros. E será, por ventura, este binómio sociocultural que propiciará o intercambio e enriquecimento lexical a ambos lados da fronteira.

A propósito destas questões aferentes às lindes que confinam o espaço onde a tauromaquia é palavra de ordem apontou o escritor e polígrafo espanhol, José Maria de Cossío (1943: 10) que “nada de telúrico nem geográfico determinou a relação milenar do homem com o toiro, nem podia por isso estar predestinado o peninsular às finais consequências deste assíduo relacionamento”. Porém, acrescentando que senão foram razões de ordem geográfica sim relacionadas com a própria geografia as que contribuíram para esta ligação. A primeira delas, será, sem dúvida, a existência de um bovídeo de permanente bravura e a outra passará já por uma estranha tendência do homem para se enfrentar a ele e “dominar a sua fereza quer por necessidade, quer por gosto” (Cossío 1943: 10). De resto, “a lide dos toiros tem vindo a proporcionar uma base muito importante de identidade cultural e de reafirmação do casticismo (Paniagua 2008: 140). Não raro as diversas artes têm sempre alinhado neste sentido como se demonstra neste passo da zarzuela estreada no Teatro Calderón de Madrid a 31 de Março de 1934, cujo texto de Federico Romero e Guillerm Fernández-Shaw e música de Federico Moreno Torroba fizeram as delícias do público madrileno da época.

Dejaría de ser madrileño Ni tampoco sería español, Si esta tarde de sol y de toros No me fuera a un tendido de sol.

A cultura portuguesa também não ficou por mãos alheias a sua aproximação à festa dos toiros. São inúmeras as referências que se encontram até nascidas do aparo de grandes literatos, como vimos

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atrás. Para além da já referida, convém ainda apontar outras com mais longínqua localização temporal. Eis logo no Cancioneiro Geral que se conservam umas Trovas que mandou João Roiz de Castel Branco a Antão d Fonseca, comendador de Rosmaninhal, a Alcácer-Seguer, em resposta de outras.

Vós lá quebrantais as raias E as tranqueiras dos mouros, E nós cá corremos touros E fazemos grandes maias Nam curamos d’azagaias Nem d’armas muito luzidas Mas gastamos nossas vidas Em capas, gibões e saias.

Até o próprio Almeida Garrett retratou com tino e rima implacável a rude galhardia e fanfarronice do campino ribatejano, figura castiça do folclore português, intimamente ligado à tauromaquia. No passo que se segue das Viagens na minha terra mostra-nos essa última relação que o homem detém com o meio que o sustenta e molda a seu parecer:

- Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que digam, quem é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar? - Essa agora!... - Queríamos saber. - É o mar. - Pois nós que brigamos com o mar, oito ou dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais força?

Estrangeirismos na gíria taurina portuguesa

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O surgimento de duas manifestações diferentes dentro dessa arte única que é a tauromaquia resultou, como vimos, de uma série de condicionantes sócio-históricos que propiciaram a individualização dessas duas concepções nos seus correspondentes espaços nacionais. Depois, devido ao natural adianto que a festa brava experimentou em Espanha, veio a impor-se sobre a variante portuguesa até ao ponto de, esta última, necessitar do auxílio da primeira para se valorizar. Eis aqui a razão pela qual, os aficionados portugueses assumiram logo a necessidade de se aproximarem do léxico taurino espanhol a fim de conferirem à língua portuguesa – enquanto sistema desprovido dos recursos necessários para significar essas novas realidades – o maciço léxico necessário para dar conta das exigências que o desenvolvimento da festa dos toiros foi inexoravelmente impondo. Com efeito, a grande parte do léxico adquirido pela língua portuguesa em relação à semântica da tauromaquia tem o seu escopo na variante comummente denominada por toureio apeado. Isto é, a expressão do toureio reinante em Espanha em contraponto ao toureio a cavalo que é a predominante em Portugal.

Deste modo, abunda no corpus textual específico desta área a nomenclatura relativa às diferentes sortes practicadas com o capote e muleta ou ainda das variadas execuções da sorte suprema e até mesmo de diversos apetrechos usados durante a lide. No texto seguinte temos alguns casos bem exemplificadores:

Ao seu primeiro de fulminante estocada ao encontro, e no último de “pinchazo”, estocada e dois “descabellos” (...) Matou o “colorado” que rompeu praça de “pinchazo”, golpe de través, descaído e perpendicular, e “descabello”, e o quarto de estocada “rinconera” (...) Espartano e seguríssimo nos lances e nos passes, como aliás fizera já prova em Olivença pelo meio de Agosto, sabe

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escolher exactos os terrenos para as sortes, o sítio aos picadores para as varas, o castigo apropriado destas, e a medida, o equilíbrio e a fluidez harmoniosa das “faenas” em que a entrega, a angústia e a enorme extensão imposta aos “derechazos”, particularmente os de cite longínquo, são valiosas evidências (Vasconcelos 1989: 11)

No exemplo acima vemos como o autor não hesita na utilização de uma terminologia tirada do espanhol com o intuito de oferecer ao leitor uma crónica o mais detalhada que possível. Para tal, serve-se de inúmeras referências que descrevem vários tipos de estocadas como pinchazo, rinconera, descabello. E da mesma forma como assinalou o afastamento idiomático destes vocábulos – por meio das aspas – veio também a grafar o termo faenas, apesar de este se encontrar desde há tempo incluído no acerbo lexical dos dicionários de língua portuguesa sob a significação de “trabalho do toureiro”. O que não deixa de ser curioso toda vez que o português conhece a forma “faina” cujo significado é, na raiz, exatamente o mesmo. Porém se é verdade que podemos encontrar o termo faena salientado com alguma classe de marca tipográfica. Por exemplo:

Com a quietude do mármore, com a languidez do desmaio, com a inata noção da distância e dos terrenos certos, teceu duas portentosas ‘faenas’ em que a ligação, a suavidade, o arrimo, o ‘temple’ e o cruzamento foram sumamente notáveis. Dois ‘faenões’ de fascínio. Dois ‘faenões’ para a História (Novo Burladero 1989: 11).

Também é certo que, na mesma publicação, há espaço para o aparecimento do vocábulo apontado ora já sem sinal algum que lhe independize a natureza do resto do léxico envolvente, como bem se pode observar nos trechos que se seguem:

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Baleiro foi corrido em quarto lugar, no primeiro dia da Feira, a 13 de Agosto, tendo tocado ao veterano Miguel Marquez, que lhe fez uma grande faena e lhe cortou uma orelha com petição da segunda, dando duas clamorosas voltas à arena da “Malagueta”, facto aliás já referido no passado número de NB (Ibidem 1989: 7).

Os restantes troféus foram atribuídos da seguinte maneira: o mais artístico, para Roberto Dominguez; melhor faena para Julio Robles; melhor director de lide, Luis Francisco Esplá; melhor vara, para Aurélio Martín; melhor brega para “Calartraveño”; melhor par de bandarilhas para subalterno para Curro Cruz; e troféu Casta Jijona, à melhor corrida, para a de Alejandro Garcia” (Ibidem 1989: 8).

Ainda assim, se repararmos no segundo excerto, veremos o surgimento de o termo brega, também ele oriundo da língua castelhana e que, como no exemplo acima, foi já adicionado ao vasto léxico do português padrão para significar o trabalho do toureiro auxiliar ou peão de brega realiza durante a tourada. E é este subalterno e, por extensão, também o toureio quem utiliza na sua vestimenta um chapéu tradicional chamado de montera cuja origem se remonta ao segundo quartel do século XIX. Pois foi em 1835 que o matador de toiros Francisco Montes, alcunhado Paquiro, introduziu a montera como novidade no traje de tourear. Da leitura dos textos abaixo deduz-se que a sua utilização é bastante alargada e que dependerá, em todo o caso, da familiaridade que o autor do escrito tiver com o vocábulo o seu grafismo com marcação ou sem ela. Fique a modo de exemplo os seguintes episódios extraídos do site Tauromania.

Uma nota para a quadrilha de José Luís Gonçalves, que esteve em muito bom plano no tércio das bandarilhas, superiormente

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executado pelos bandarilheiros Pedro Gonçalves, João Pedro ‘Juca’ e Pedro Paulino, bastante aplaudidos, que mereciam ter tirado a montera em praça para receberem a justa salva de palmas (Tauromania 22/09/2006).

No final da sua lide, foi alvo de calorosa ovação por parte do público presente e, entre tábuas, levantando a montera agradeceu os aplausos mas, como estes permaneciam, viu-se obrigado a ter de regressar à arena (Ibidem 13/04/2007).

Uma palavra para David Antunes, João Pedro e Pedro Paulino "China" que resolveram dar um banho às quadrilhas das figuras. Pedro Paulino agradeceu mesmo com montera na mão após bandarilhar o quinto, mas também João Pedro e David Antunes bandarilharam com verdade e lidaram com arte (Ibidem 06/05/2007).

Apenas na segunda passagem o autor decidiu despontar o vocábulo com o recurso gráfico do itálico. Nos outros dois casos, porém, ficou o termo perfeitamente inserido no contexto fraseológico sem que para tal precisasse de sinalização específica.

Outra das áreas da tauromaquia que mais se tem visto afectada pela importação de vocabulário proveniente do espanhol é aquela emprenhada nos traços morfológica do gado bravo. Idade, peso, pelagem, córnea e apresentação geral abrangem por si sós um amplíssimo leque de características que demandam um léxico próprio capaz de lhe exprimir todas e cada umas das suas qualidades. A este respeito, a Associação Portuguesa de Toiros de Lide publicou no seu anuário Ganadarias Portuguesas do ano 2006 um apartado destinado a estas especificidades do toiro de lide, sendo que a autoria do texto coube ao médico veterinário António Vasco

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Lucas. Na introdução faz logo uma declaração de intenções muito interessante a este respeito:

A sua descrição apresenta um vocabulário de imensa diversidade, tal o heteromorfismo patente nestes bovinos, facto que, fruto da experiência acumulada em vários anos de direcção do Livro genealógico da Raça e do resenhamento de algumas dezenas de milhar destes animais, onde conciliando designações recolhidas de nossos tratadistas (Miranda do Vale e Alves Simões) e autores espanhóis (Ramón Barga e Adolfo Montesinos), nos levou a adoptar uma nomenclatura própria, inserindo quase exclusivamente termos portugueses (Associação Portuguesa de Toiros de Lide 2006: 133)

Ora, muito ao contrario do que caberia esperar da leitura deste passo, a realidade é que o aficionado português continua insistindo na utilização da nomenclatura do espanhol seja isto por uma questão de comodidade ou, então, por uma errada percepção de falso requinte linguístico. Seja como for, o certo é que é facílimo encontrar no corpus textual em língua portuguesa específico para a matéria exemplo como os que se detalham a seguir:

No domingo achei os ‘albarráns’ ordinários, fracos e sem casta, enquanto os ‘berrendos’ de Ruchena sem serem ótimos, nem muito menos, se deixaram tourear, particularmente o susbtituto ’regordío’ saído (e desaproveitado) a Manzanares (...) No ‘berrendo en negro y colín’ de Ruchena, de que conseguiu a orelha por benesse da paisanada, ainda lhe contei um trio, talvez, de ‘derechazos’, estéticos e punitivos com cite distante e vasto percurso. Extinguiu este de estocada de esguelha e um nico caída, e o anterior de dois ‘pinchazos’ e estocada de despacho (Novo Burladero 1989: 12).

Albarráns, berrendos ou regordío são algumas das ocorrências lexicais que se advertem no trecho anterior. Assim, enquanto o vocábulo albarráns, ao que o autor deu uma grafia bárbara, serve para indicar a filiação das reses lidadas à ganadaria de Luis Albarrán e

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acrescentar desse modo um ponto de reconhecimento social a tal origem, a utilização da terminologia barrendo para pormenorizar a pelagem é simplesmente desnecessária uma vez que a língua portuguesa detém uma palavra de significação equivalente: malhado. Já o toiro regordío que é “gordo, grosso, avultado” (Torres 1989: 58) podia também ter sido qualificado através dos inúmeros adjectivos que a língua portuguesa oferece para tal designação. Não ficando por aqui o espanholismo discursivo, acrescentou o autor ainda, com intenção manifestamente descritiva, a expressão berrendo en negro y colin onde não só não fugiu à utilização do termo específico castelhano para a designação da pelagem como também lhe somou a conjunção copulativa y e mais o correspondente do português rabicho, ou seja, de rabo excessivamente curto.

Continuando no apartado das pelagens podemos ainda apontar que, embora a actual raça de toiros bravos esteja bastante estereotipada em termos de genética e daí resulte uma simplória uniformização das suas capas, ainda podemos localizar algumas crónicas onde transparecem tipologias de pelagens dignas de menção. Vejamos, por exemplo, uns exemplos tirados do site “Toureio.com” e o blogue “Planeta dos Touros” que se referem à pelagem burraca ou, em português, salpicada.

Da ganadaria Sommer D’Andrade, saiu o último da tarde, um novilho burraco, que foi toureado pelo jovem cavaleiro Marcos Tenório (Toureio 21/03/2010).

Abriu função o cavaleiro Luis Rouxinol, que lidou um bonito e bem apresentado toiro negro burraco, que se revelou nobre de investida e que cumpriu (Ibidem 2/05/2011).

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O terceiro toiro da tarde, era bonito de estampa, pelagem burraco, sério e muito bem apresentado, transmitindo emoção e Ribeiro Telles Bastos aproveitou muito bem essas características, para também ele ter uma actuação muito boa (Ibidem 15/05/2011).

A encerrar a corrida lidou um toiro burraco de Hrs. Infante da Câmara, escasso de forças, ao qual o matador se viria a entregar de corpo e alma sacando tudo o que havia para sacar, arrimando-se com um valor tremendo (Planeta dos Touros 12/09/2010).

Efeito semelhante causa no leitor que se topar com esta crónica intitulada “Emoção e tragédia no Coliseu de Redondo” a propósito da corrida à portuguesa celebrada nesta vila alentejana, o aparecimento do termos jabonero que caracterizava a pelagem borralha de um dos exemplares lidados nessa noite.

No seu segundo, um jabonero de 510 Kg, mais colaborante, o cavaleiro de Valada, teve o ensejo de nos presentear com um toureio mais alegre, onde a lide teve outra dinâmica, pena foi que o adversário terminasse cedo, pois o quinto curto já foi com o toiro parado, mesmo assim, mérito para o cavaleiro, que procurou pôr, aquilo que o toiro não tinha. Escutou musica em ambas as lides e deu volta de agradecimento no final” (Tauromania 06/10/2010).

Se para exprimirem as características da pelagem dos toiros de lide os autores servem-se da terminologia castelhana ainda disponibilizando a língua portuguesa recursos suficientes para tal, mesma conduta se manifesta no momento de assinalar a idade das reses. Com esse objecto, os autores munem os seus textos de termos como utrero – para se referirem ao novilho cuja idade é sita entre os dois e os três anos e meio – e cuatreño ou cinqueño para as reses com quatro e cinco anos de idade repectivamente. Nos textos que se seguem pode advertir-se o uso que se acaba de indicar.

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Citou e mandou num toiro sério e ‘cinqueño’, que arrancou para o forcado decidido e Francisco, teve uma reunião correcta tecnicamente, fechando-se com garra e com boas ajudas do restante grupo na pega da tarde (Tauromania 27/05/2009).

Lidaram-se sete reses lidadas pela seguinte ordem: Um touro cinqueño de Diego Puerta, com volume e ‘mironcete’; um utrero de Luis Algarra, complicado; um utrero de Fuente Ymbro, muito repetidor e que foi premiado com volta ao ruedo; um touro de Celestino Cuadro, com seriedade e casta, premiado com volta ao ruedo; um touro de Manuel Ángel Millares, que saiu inválido; um utrero de La Dehesilla, que foi nobre e também premiado com volta ao ruedo e ainda um utrero de Murube, que saiu complicado (Toureio 04/04/2011).

Como se vê, se no primeiro caso o autor assinalou com aspas a palavra afeiçoada, o autor do segundo texto não só não se interessou pela sua saliência como também coadunou no discurso a colocação de dois termos próprios da nomenclatura espanhola para referir a idade dos toiros lidados na corrida: cinqueño e utrero. Para além disso, um olhar mais atento descobrirá que na segunda passagem e, agora sim, entre aspas localiza-se um termo tendente à descrição do comportamento do animal: mironcente. De resto, o vocábulo mirón, ao qual aqui se acrescentou o sufixo –ete, informa da característica própria do toiro bravo que se distrai o olhar na atenção ao corpo do toureiro afastando a sua investida da muleta ou do capote. Por sua vez, a adição do sufixo notado terá por finalidade a de formar um diminutivo de valor despectivo ou afectivo.

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E é também nessa mesma linha tendente a assinalar as particularidades temperamentais da raça brava que se enquadram as seguintes episódios:

Ao capotear trivial de sempre uniu um ‘muleteo’ paralelo, até aliviado, quer ao ‘mirón’, reservado e débil que enfrentou primeiro, quer no substituto ‘playero’, também frouxo, que lhe soltaram a seguir. Mas neste, verdade seja dita, ainda se lhe viram, lentíssimas e extensas duas séries de ‘derechazos’, com prosápia mas sem transmissão, e uma estocada recta e inteira que lhe valeu uma orelha (...) E enquanto o primeiro, ainda que um tanto brusco, e o terceiro se exibiram nobres e repetidores, já o quinto, algo ‘probón’ e reservado, e o sexto, sonso e incerto, não se revelaram dignos de nota positiva, não obstante, é evidente, os êxitos que de ambos obtiveram Posada e Finito de Córdoba (Novo Burladero 1989: 12).

Mais uma vez, deparamo-nos com o termo mirón a caracterizar o comportamento do toiro lidado e também, neste caso, pela primeira vez, o termo probón para significar o animal “tardonho que vacila ou prova com o gesto a investida demorando-se na sua consumação” (Torres 1984: 158). Por outro lado, observamos a existencia de um outro vocábulo, desta feita para expor o feitio da córnea. Assim, playero é aquele bovídeo mal provido de córnea e com os chifres separados.

Afición, um caso de neologismo

Apesar da abundância de vocábulos, necessita a língua do engenho de novas formas expressivas. “Esses novos meios de expressão, inventados por quem fala e escreve um idioma, são

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chamados neologismos” (Rodrigues Lapa 1984: 52). Como vimos, perante essa necessidade de explicar essas novas realidades decorrentes da sua filiação a arte tauromáquica, a língua portuguesa engrossou o seu léxico com a admissão de uso de vocábulos provenientes do espanhol. E isto porque, na maioria dos casos não existia na língua mãe um termo equivalente capaz de reproduzir toda a significação contida na palavra castelhana. Também se observou como, noutros muitos casos, a adopção do termo espanhol obedecia mais a uma questão de estilo discursivo que procurava, através deste recurso, um efeito de brilhantismo, ou seja, de traduzir para mais belo uma realidade de resto bem menos fina e requintada.

Dentre todo esse vasto leque de palavras que fertilizaram a terminologia portuguesa relativa à festa brava, ergue-se um vocábulo que pela sua carga semântica e pela sua redundante utilização, dir-se-ia, até indiscriminada, merece um espaço de análise autónoma e pormenorizada. Falamos, claro, do termo afición.

Afición é conforme o dicionário da Real Academia Espanhola uma inclinação, um amor a alguém ou algo. Proveniente do latim affectĭo/affectōnis, define também um conjunto de pessoas que assistem assiduamente a determinados espectáculos ou sentem vivo interesse por eles. Deste jeito, poderemos afirmar que a afición é, portanto, o total dos indivíduos que se regozija no desfrute ou na práctica da tauromaquia, enfim, os aficionados. E chama desde logo a atenção a existência do termo aficionados cuja raiz comum vai ao encontro da palavra aqui objecto de análise.

Pois bem, sendo afición um termo de alargada aceitação e utilização dentro da área lexical aferente à tauromaquia pode ela considerar-se não apenas um estrangeirismo ou empréstimo mas, antes disso, um neologismo. E isto porque o termo neologismo “usa-

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se mais para designar as palavras novamente criadas na língua: seria melhor dizermos ‘afeiçoadas’, porque a criação absoluta, total, é raríssima” (Rodrigues Lapa 1984: 52). Efectivamente, o vocábulo afición é tão comumente aceite entre os falantes e escreventes de assuntos táuricos em língua portuguesa que veio a ganhar a mais completa aceitação, não sendo por isto já entendido como um estrangeirismo, mas sim como parte integrante do léxico pátrio.

Apesar de existirem decerto, evidências mais antigas do uso da palavra aficion no contexto da lusofonia, são de 1989 aquelas às que o autor teve acesso, pois como é sabido, a bibliografia especializada em língua portuguesa está ainda aquém dos outros universos linguísticos que conhecem a festa brava. Assim, no artigo “Peste equina e não só”, cuja autoria corresponde ao director da publicação, João Queiroz, deparamo-nos logo com o seguinte trecho:

Em Vila Franca de Xira, terra de matadores de toiros e de aficionados, surgiu o caso mais gritante, não sendo a empresa capaz de ter um gesto, uma atitude enérgica, uma resposta que evidenciasse a sua capacidade, a sua ‘afición’. O silêncio, o fechar de portas, o desprezo pelos aficionados, foi a sua resposta (Queiroz 1989: 5).

No texto acima se observa que o significado aqui atribuído ao termo afición não é já o relativo ao conjunto dos apaixonados pela festa brava, mas o sentimento que estes mesmos dedicam a tal actividade. Ou seja, verifica-se neste caso a primeira acepção à que faz referência o dicionário da Real Academia Espanhola: uma inclinação, um amor a alguém ou algo, no caso, a festa dos toiros. Além disso, nota-se que o autor quis salientar a dignidade ou talvez o gênero alheio da palavra com a colocação das aspas. Porém, não poderá entender-se esta marca gráfica como medida cautelar que

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avisa o leitor da estranheza do termo. Pois nesse mesmo texto, apenas umas líneas mais abaixo encontramos o seguinte passo: “Uma resposta que, convenhamos, define só por si um ‘empresário’” (Queiroz 1989: 5).

Desta feita, a palavra empresário apresenta idêntica marcação gráfica que o caso anterior muito embora o vocábulo agora salientado exista no léxico corrente da língua portuguesa. Daí se entende que o que o autor pretende com o emprego sãs aspas não é despontar a categoria de estrangeirismo como a de realçar o significado verdadeiro e completo dos itens marcados. Não raro, nos mais recentes elementos que compõem o corpus textual ponderado para a realização deste trabalho, localizam-se inúmeras ocorrências que dão conta do aparecimento da palavra afición sem marca gráfica ou distinção alguma. Por exemplo, num artigo publicado a 12 de Junho de 2006 no site “Tauromania” sob o título “Organização da corrida do Montijo está 20 € mais rica!” encontramos o seguinte texto:

A Tauromania está na Festa de Toiros em Portugal para, com afición, fomentar mais afición, servir os aficionados e defender a Festa. Não serão 20 € que nos afastarão deste desígnio! (Tauromania 12/06/2006)

No mesmo meio de comunicação foi noticiado um artigo a 24 de Julho de 2008 que, sob o título “A 1ª Corrida da Tauromania”, recolhe novamente o caso apontado.

Como sabem aqueles que nos visitam desde os nossos primeiros dias o Projecto Tauromania nasceu em meados de 2005 através de quatro amigos (...) que em comum partilhavam uma grande afición e a perspectiva de que na net havia lugar para um Portal taurino o mais actualizado possível e com uma visão independente e aficionada (Tauromania 24/07/2008).

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E mais recentemente, também neste mesmo site apareceu a 29 de Julho de 2011, ou seja, três meses antes da realização deste trabalho, um artigo de Diogo Palha a propósito da reabertura da Praça de Toiros Carlos Relvas de Setúbal onde podemos ler o seguinte: “Espero que toda a gente tenha esta noção e que não culpem a afición se após esta reabertura as assistências não forem já aquelas que se pretendem” (Ibidem 29/07/2011).

Em todos os casos o termo surge livre de apreensões gráficas que lhe caracterizem a natureza entendendo-se, portanto, que estamos perante um vocábulo plenamente assente e aceite dentro do léxico do português padrão. Não se interprete, porém, que esta inclusão dentro do léxico da língua portuguesa é recente, pois como alertou o Prof. Rodrigues Lapa nenhum neologismo “é palavra novinha em folha; prova de que a língua não cria, mas propriamente transforma, com o material de que já dispõe” (Rodrigues Lapa 1984: 52). E os autores de crónicas e demais textos taurinos têm já ao seu dispor alguma bibliografia que, apesar de pouco farta, vai chegando para se compor um texto sem descair nas imprecisões e ambiguidades derivadas da falta de material de consulta. E eis que, se o fenômeno supracitado é mais corrente nos últimos anos, não é menos certo que autores mais experientes já avançaram esta tendência há mais de duas décadas. Assim, António Severino, num artigo publicado em 1989 na revista Novo Burladero descreve o seguinte passo:

Pode-se tirar pois, por conclusão, que forma aqueles dois cavaleiros que fizeram enches (esgotar) as praças espanholas e que foi o seu afastamento que fez descer clamorosamente o interesse, por aquele gênero de toureio, da afición espanhola (...) a falta de afición dos empresários que tentam no mais curto espaço de tempo obter os mais elevados lucros num cego suicídio

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ao oferecerem o mau e o medíocre a preços escandalosos num salve-se quem puder que fatalmente está a esgotar as últimas reservas da paciência de emigrantes e turistas (porque da afición já nada têm a esperar) (...) Só a publicidade maciça consegue encher as praças e o público vais aos toiros, não por afición, mas pelo mesmo motivo que compra o refrigerante ou o detergente com que é massacrado todo o dia e toda a noite (Severino 1989: 21).

Também nele o autor é escusado de usar qualquer sinal ou marcação tipográfica para melhor exemplificar a origem estrangeira do vocábulo, talvez por ele se achar já plenamente assimilado dentro desta terminologia.

Empréstimos desnecessários

Ao longo deste trabalho vem-se notando uma decidida tendência do falante/escrevente de língua materna portuguesa para enveredar-se redundantemente no caminho do estrangeirismo fácil e socorrido. Aliás, vimos como, em mais de uma ocasião, a existência de uma terminologia análoga, directamente traduzível para o português dispensava por si só o emprego do termo castelhano. Esta questão, que a maioria dos falantes/escreventes de português língua materna reconhecem no seu manuseio linguístico quotidiano, é entendida pelos filólogos como “um problema de ordem moral, que deve ser posto desta maneira: a influência duma cultura como a francesa, onde predominam a razão e a claridade, só pode ser benéfica para nós, com uma condição: que, em vez de nos escravizar ao estilo francês, estimule e clarifique as energias do nosso portuguesismo” (Rodrigues Lapa 1984: 45). Deste jeito, assume-se a necessidade da inclusão de termos provenientes de outras línguas e as bondades que este processo traz aparelhadas não só em termos de

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riqueza da língua como também na configuração idiossincrática do povo que a fala. Todavia o mesmo autor (Idem.) adverte que a “facilidade de imitação e aceitação de modas estrangeiras pode conduzir-nos a excessos”. Excessos estes que também na gíria tauromáquica encontram assento. De facto, até a pena dos escritores mais experimentados não foge ao recurso de apanhar emprestado um estrangeirismo recusando, por isso, o léxico pátrio. Leiam-se a modo de exemplo os seguintes passos do No país das touradas de João Cristóvão Moreira:

Barco de Ávila fica na serrania de Gredos. É um pequeno ‘pueblo’ desses onde as pessoas, mesmo se desconhecidas, dão as boas tardes (Moreira 1981: 7).

Depois de se benzer duas vezes antes de entrar na arena, os braços levantou Julita Castro, fazendo romper a música, ela a maestrina da banda que trouxe ao Campo Pequeno a vibração do pasodoble (...) quando a esbelta e sorridente Julita estremecia para as bancadas o ‘sombrero’, negro como os longos cabelos (Ibidem 1981: 9).

E em cima duma mesa de restaurante, num ‘pueblo’ das redondezas de Madrid, da sua Madrid do Bairro de San Blás, fez o Don Tancredo, até que um novilho sério não acreditou na estátua e o colheu (Ibidem 1981: 10).

Pelos ‘tendidos’ fica o eco do murmúrio de espanto (Ibidem 1981: 13).

Deixando de lado o termo pasodoble por ele significar uma realidade especificamente pertencente à cultura espanhola e, por isso, de difícil tradução, observamos aqui ainda o emprego inútil das palavras sombrero e tendidos. Se a primeira poderia ter ficado por chapéu, à segunda correspondia-lhe bancadas, pois é esta a nomenclatura natural que a língua portuguesa disponibiliza a quem escreve. Com a sua inclusão terá o autor querido carregar o discurso

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desse casticismo cañí tão próprio da festa brava. Ainda assim, o facto que mais chama a nossa atenção, até pela frequência com que ele é verificado no corpus textual da imprensa escrita, é o do vocábulo pueblo. O qual, as mais das vezes, não apenas refere uma povoação de menor entidade do que as cidades, como também, acarreta uma boa carga pejorativa. E isto porque, como se desprende dos trechos seguintes, pueblo na gíria explica uma localidade de origem ou o destino menos pujante, insonsa e cheia de simplória rusticidade. Não se entenda, por conseguinte, que a utilização desta nomenclatura é ao acaso ou por uma questão estilística, mas sim com o claro intuito de denegrir a figura do toureio que é afecto pelo tal município ou pueblo. Do que se disse, sirvam a modo de exemplo os trechos que se seguem:

Os toiros vieram da conhecida Ganadaria de Herdeiros de Ernesto L. Fernandes de Castro e, para uma praça e para um evento desta categoria, apresentaram-se sem trapio (...), bem fora do encaste desta ganadaria, sendo que o último da ordem era um toiro para uma desmontável de um qualquer pueblo, mas nunca para uma das mais conceituadas praças no nosso país (Tauromania 13/06/2010).

Está rotinado na dureza dos pueblos e acreditamos que se tivesse encontrado um novilho com mais faculdades físicas, teria confirmado o seu valor (Toureio 13/08/2010).

Para referirmos outro episódio de utilização desnecessária da terminologia espanhola podemos aqui apontar o caso frequente que supõe o aparecimento da palavra sobrero para designar o toiro que se tem a mais para, se assim se dispor, substituir algum dos inicialmente destinados para a lide.

Em Tarazona de Aragon correu-se um ‘sobrero’ de João Moura, no dia 4, e ‘sobreros’ foram também os dois novilhos de Couto de

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Fornilhos lidados em Madrid a 17 e 24 de Setembro, um em cada tarde, e ambos a darem excelente jogo (Novo Burladero 1989: 7).

Para encerrar o festejo veio a anunciada lide a duo entre Bastinhas, pai e filho. Antes porém, lesionou-se o touro por incúria de alguém que fechou a porta dos curros na cara do animal que ao rematar se lesionou, sendo substituído pelo sobrero (Planeta dos Touros 19/09/2010).

Neste sentido, existe também quem prefira adoptar para o tal fim de referenciar o toiro que sai à arena em suplência de outro que se inutilizou para a lide o termo substituto.

No domingo achei os ‘albarráns’ ordinários, fracos e sem casta, enquanto os ‘berrendos’ de Ruchena sem serem ótimos, nem muito menos, se deixaram tourear, particularmente o substituto ’regordío’ saído (e desaproveitado) a Manzanares (Novo Burladero 1989: 12)

Contudo, o actual Regulamento do Espectáculo Tauromáquico publicado no D.R. a 29 de Novembro de 1991 assenta os preceitos correspondentes nesta ordem sem recorrer a nenhum dos termos acima apontados. Ou seja, o texto pelo qual se rege a festa brava não contempla no seu discurso “sobrero” ou “substituto” como acepções válidas. De facto, houve aqui o cuidado de escolher uma nomenclatura que, se não é a mais adequada em termos de linguística para a composição do texto jornalístico, por exemplo, é sim a mais eficaz do ponto de vista do formalismo jurídico. E assim reza o ponto 1 do Artigo 41º do citado regulamento:

Em todos os espectáculos tauromáquicos, com excepção das variedades taurinas, as empresas devem ter nos currais, à disposição dos delegados técnicos tauromáquicos, uma rês de reserva com o peso exigido, para a substituição de alguma que se tenha inutilizado antes de sair à arena ou que antes do início da lide apresente defeitos físicos não revelados na inspeção.

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Conclusões

Calcula-se que uns sessenta milhões de pessoas em todo o mundo são espectadores de festejos taurinos. Esta “afición à tauromaquia deve-se a que esta proporciona um espaço ímpar para o desafogo e a projeção de pulsões instintivas reprimidas” (Paniagua 2008: 144). É lógico pensar que a festa dos toiros encerre um potencial social difícil de contornar. Daí que todos os conteúdos que a ela são aferentes façam, também, parte do quotidiano de todo aquele individuo cujo desenvolvimento decorra num espaço por ela dominado.

Dada, como vimos, a existência de duas concepções da tauromaquia privilegiadas como sendo a corrida à espanhola ou toureio apeado, e ainda a corrida à portuguesa ou toureio a cavalo, observa-se uma penetração recíproca em vários aspectos, também o linguístico. E sendo que a permeabilidade do falante/escrevente de língua portuguesa uma característica que lhe condiciona os seus costumes idiomáticos, deriva-se que seja a nomenclatura português a receber um fluxo lexical mais notório.

Assim, a língua portuguesa abraçou uma ampla terminologia relativa ao léxico derivado da actividade tauromáquica que, muito apesar de ser as mais das vezes necessária, é também noutros casos dispensável e supérflua por conhecer o português vocábulos próprios referidos à mesma realidade.

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