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Joyce Carol Oates

A fi lha do coveiro

TraduçãoVera Ribeiro

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© 2007 by The Ontario Review, Inc. Publicado mediante acordo com HarperCollins Publishers. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda. Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — RJ — Cep: 22241-090 Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br

Título originalThe Gravedigger’s Daughter

CapaDupla Design

Imagem de capaDupla Design, com fotografi as de Andrew C., Claudia Martínez e Courtney Francis / Stock.XCHNG

RevisãoAna KronembergerEduardo CarneiroTathyana Viana

Editoração eletrônicaAbreu’s System Ltda.

O11fOates, Joyce Carol

A fi lha do coveiro / Joyce Carol Oates ; tradução Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro : Objetiva, 2008.

599p. ISBN 978-85-60281-57-2 Tradução de: The gravedigger’s daughter

1. Romance americano. I. Ribeiro, Vera. II. Título.

08-3063 CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

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para minha avó, Blanche Morgenstern,a “fi lha do coveiro”

IN MEMORIAM

e para David Ebershoff,por um circuito tortuoso

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Notas

Alguns trechos da Parte I foram originalmente publicados, em forma ligeiramente diferente, na revista Witness, verão/outono de 2003.

Os capítulos 6 e 7 foram originalmente publicados na revista Conjunc-tions, outono/inverno de 2003.

Os capítulos 16 e 17 foram originalmente publicados, em formas dife-rentes, em Childhood, organizado por Marian Wright Edelman, edito-ra Houghton Miffl in, 2003.

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I

No Vale do Chautauqua

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Prólogo

“No reino animal, os fracos são prontamente descartados.”Fazia dez anos que ele estava morto. Dez anos enterrado em

seus pedaços mutilados. Dez anos não pranteado. Seria de se esperar que ela, sua fi lha adulta, agora mulher de um homem e mãe de seu próprio fi lho, já estivesse livre do pai. Diabos, como tinha tentado! Ela o odiava. Aqueles olhos de querosene, a cara de tomate cozido. Mordia os lábios até deixá-los em carne viva, de tanto odiá-lo. Ali onde era mais vulnerável, no trabalho. Na linha de montagem da Tubos de Fibra Niágara, onde o barulho a embalava a ponto de levá-la a um estado de transe, ela o ouvia. Onde seus dentes batiam, por causa da vibração da esteira rolante, ela o ouvia. Onde a boca fi cava com gosto de bosta seca de vaca, ela o ouvia. Odiava-o! Encolhia-se de repente, achando que podia ser uma piada, uma brincadeira grosseira, um dos babacas dos colegas de trabalho dando gritos em seu ouvido. Como os dedos de um cara cutucando seus seios por cima do macacão ou passando a mão em seu fundilho, e ela fi cava paralisada, incapaz de desviar a atenção das tiras de tubos na esteira rolante, que se movia chacoalhando e sempre mais depressa do que a gente queria. O raio dos óculos embaçados machucando o rosto. Ela fechava os olhos e aspirava o ar poeirento e fétido pela boca, o que sabia que não devia fazer. Era um instante deprimente de vergonha, de viver ou morrer, que diabo, que às vezes se abatia sobre ela, em momentos de exaustão ou tristeza, e ela tateava na esteira, procurando o objeto que naquela hora não tinha nome, identi-dade nem objetivo, correndo o risco de ter a mão fi sgada pela máquina de selar e fi car com metade dos dedos estraçalhado, antes de conseguir sacudir a cabeça e se livrar dele, que falava calmamente, sabendo que seria ouvido acima da barulheira das máquinas. “Por isso, você tem que esconder sua fraqueza, Rebecca.” O rosto dele junto do seu, como se fossem dois conspiradores. Não eram, não tinham nada em comum. Não se pareciam nem um pouco. Ela odiava o cheiro azedo daquela boca. Aquele rosto que era um tomate fervido, arrebentado. Ela vira

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aquele rosto explodir em sangue, cartilagem, miolos. Tinha limpado aquele rosto de seus braços nus. Limpara aquele rosto da própria porca-ria do seu rosto! Havia catado aquele rosto de seu cabelo. Dez anos an-tes. Dez anos e quase quatro meses exatos. Porque ela nunca esqueceria aquele dia. Ela não pertencia ao pai. Nunca fora dele. E também não pertencia à mãe. Não se podia discernir nenhuma semelhança entre eles. Agora ela era uma adulta de vinte e três anos, o que a espantava, por ter vivido tanto. Sobrevivera a eles. Agora não era uma menina aterrorizada. Era mulher de um homem que era homem de verdade, e não um covarde choramingas e assassino, e esse homem lhe dera um bebê, um fi lho, que ele, seu pai morto, nunca veria. Que prazer isso lhe dava, ele jamais veria o neto! Jamais encheria os ouvidos do menino com suas palavras venenosas. No entanto, o pai continuava a abordá-la. Conhecia suas fraquezas. Quando ela estava exausta, quando sua alma se encolhia até fi car do tamanho de uma uva murcha. Nesse lugar clamoroso, onde as palavras dele tinham adquirido um ritmo e uma autoridade potentes de máquina, que batia, batia, batia, até deixá-la numa submissão aturdida.

“No reino animal, os fracos são prontamente descartados. Por isso, você tem que esconder sua fraqueza, Rebecca. Nós temos.”

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Cataratas do Chautauqua, Nova York

1

Numa tarde de setembro de 1959, uma jovem operária de fábrica seguia a pé para casa pelo caminho de sirga do Canal de Balsas Erie, a leste da cidadezinha de Cataratas do Chautauqua, quando começou a notar que estava sendo seguida, a uma distância de uns dez metros, por um homem de chapéu-panamá.

Chapéu-panamá! E uma roupa clara esquisita, de um tipo que não se via comumente em Cataratas do Chautauqua.

O nome da moça era Rebecca Tignor. Era casada, e Tignor, o sobrenome do marido, era um nome de que ela se envaidecia tremendamente.

“Tignor.”Muito apaixonada e muito infantil em sua vaidade, embora já

não fosse garota, uma mulher casada e mãe. Mas ainda dizia “Tignor” uma dúzia de vezes por dia.

E nesse momento pensou, começando a andar mais depressa: É melhor ele não estar me seguindo, Tignor não vai gostar.

Para desanimar o homem de chapéu-panamá em seu desejo de alcançá-la e falar com ela, como às vezes, nem sempre, mas às ve-zes, os homens faziam, Rebecca foi enterrando os saltos dos sapatos de trabalho pelo caminho ao longo do canal, deselegante. Estava nervosa mesmo, irritadiça como um cavalo atormentado pelas moscas.

Quase estraçalhara a mão numa prensa nesse dia. Diacho, como andava distraída!

E agora, isto. Esse sujeito! Lançou-lhe um olhar duro por cima do ombro, para ele não se entusiasmar.

Ninguém que ela conhecesse?Não parecia ser dali.Em Cataratas do Chautauqua, às vezes os homens a seguiam.

Pelo menos com os olhos. Quase sempre, Rebecca tentava não notar.

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Tinha morado com irmãos, conhecia “os homens”. Não era do tipo garotinha tímida e medrosa. Era forte, carnuda. Gostava de achar que sabia cuidar de si.

Mas essa tarde estava diferente, por algum motivo. Era um da-queles dias mornos e pálidos, de colorações sépia. Um dia em que dava vontade de chorar, só Deus sabia por quê.

Não que Rebecca Tignor chorasse. Nunca.E mais: o caminho de sirga estava deserto. Se ela gritasse

socorro...Conhecia esse pedaço do trajeto como a palma da mão. Uma

caminhada de quarenta minutos para casa, pouco mais de três quilô-metros. Cinco dias por semana, Rebecca percorria aquele caminho até Cataratas do Chautauqua, e cinco dias por semana voltava a pé para casa. O mais depressa que conseguia, com aquela droga de sapatos de-sajeitados de trabalho.

De vez em quando, uma balsa passava por ela no canal. Ani-mava um pouco as coisas. Ela trocava cumprimentos, gracejos com os caras das balsas. Passara a conhecer alguns deles.

Mas agora o canal estava deserto, nas duas direções.Diacho, estava nervosa! Suando na nuca. E, por dentro da rou-

pa, as axilas molhadas. E o coração batendo daquele jeito que doía, como se houvesse uma coisa pontiaguda presa entre as costelas.

“Tignor. Onde é que você está?”Não o culpava, na verdade. Ah, diabos, culpava, sim!Tignor a levara para morar ali. No fi m do verão de 1956. A pri-

meira coisa que Rebecca havia lido no jornal de Cataratas do Chautau-qua fora tão terrível que ela não tinha conseguido acreditar: sobre um homem do local que havia assassinado a mulher, que a havia espancado e jogado no canal, em algum ponto desse mesmíssimo trecho deserto, e lhe atirara pedras até ela se afogar. Pedras! Tinha levado uns dez mi-nutos, talvez, o homem dissera à polícia. Não se gabara, mas também não fi cara com vergonha.

Aquela vaca estava tentando me largar, dissera ele.Querendo levar meu fi lho.Uma história tão terrível que Rebecca desejava nunca a ter lido.

O pior era que todo sujeito que a lia, inclusive Niles Tignor, abanava a cabeça e fazia um barulhinho desdenhoso com a boca.

Rebecca havia perguntado a Tignor que diabo era aquilo: uma risada?

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“Cada um colhe o que semeia.”Era o que Tignor tinha dito.Rebecca adotava a teoria de que toda mulher do Vale do Chau-

tauqua conhecia aquela história, ou outra parecida. O que fazer se um homem jogar a gente no canal? (Também podia ser o rio. Grande dife-rença.) Por isso, quando começara a trabalhar na cidade, andando pela trilha de sirga, ela havia imaginado um jeito de se salvar, se e quando chegasse a hora.

Suas idéias eram tão claras e vívidas, que ela não tardara a ima-ginar que aquilo já lhe havia acontecido, ou quase. Alguém (sem rosto, sem nome, um sujeito maior do que ela) a atirava na água de aparência lamacenta, e ela precisava lutar para salvar a vida. Arranque logo o sapato do pé esquerdo com a ponta do direito, depois o outro, depressa! E aí... Só disporia de alguns segundos, ou os sapatos pesados do trabalho a afunda-riam feito bigornas. Tirados os sapatos, ao menos ela teria uma chance, puxando o casaco, livrando-se dele antes que fi casse todo encharcado. A porcaria das calças de trabalho seria difícil de tirar, com a prega por cima do zíper, os botões e as pernas meio apertadas nas coxas, Ah, que merda, ela também teria que nadar na direção oposta à do assassino...

Nossa! Rebecca começou a se apavorar. Esse sujeito atrás dela, o cara de chapéu-panamá, provavelmente era só uma coincidência. Não a estava seguindo, estava apenas atrás dela.

Não era de propósito, era só um acaso.Mas o cretino tinha que saber que ela estava ciente dele, que a

estava assustando. Um homem seguindo uma mulher num lugar soli-tário como esse.

Diacho, ela detestava ser seguida! Detestava qualquer homem que a seguisse, até com os olhos.

A mãe lhe infundira um medo aterrador, anos antes. Você não vai querer que lhe aconteça alguma coisa, Rebecca! Uma moça sozinha, os homens vão atrás. Nem nos garotos conhecidos você pode confi ar.

Nem em seu irmão mais velho, Herschel; a mãe tinha medo de que ele fi zesse alguma coisa com ela. Coitada da mamãe!

Não havia acontecido nada com Rebecca, apesar de todas as preocupações maternas.

Pelo menos, nada de que ela pudesse lembrar-se.Mamãe se enganara com tantas coisas...Rebecca sorriu, ao pensar na antiga vida dos tempos de garota,

em Milburn. Quando ainda não era uma mulher casada. “Vir-gem.”

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Nunca pensava nisso agora, era tudo coisa do passado. Niles Tignor a salvara. Niles Tignor era seu herói. Ele a tirara de Milburn de carro, os dois haviam fugido para as Cataratas do Niágara. As amigas tinham fi cado com inveja. Todas as moças de Milburn adoravam Niles Tignor a distância. Depois, ele levara sua noiva, Rebecca, para morar no inte-rior, a leste e um pouquinho ao norte de Cataratas do Chautauqua. Em Quatro Esquinas, era assim que se chamava o lugar.

Era lá que tinha nascido seu fi lho, Niles Tignor Jr. Niley faria três anos no fi m de novembro.

Ela se orgulhava de ser a Sra. Niles Tignor, assim como se orgu-lhava de ser mãe. Teve vontade de gritar para o homem de chapéu-pana-má: Você não tem o direito de me seguir! Eu sei me defender.

E sabia. Rebecca levava um pedaço pontiagudo de sucata no bolso do casaco. Em segredo, apalpava-o com os dedos, nervosa.

Nem que seja a última coisa que eu faça, moço, EU RETALHO VOCÊ.

Na escola, em Milburn, Rebecca tivera que brigar algumas vezes. Era a fi lha do coveiro da cidade, e as outras crianças implica-vam com ela. Tentava ignorá-las o máximo possível. Era o que a mãe a aconselhava a fazer. Mas você não deve descer ao nível delas, Rebecca. Só que ela havia descido. Em brigas frenéticas, agitando os braços e dando pontapés, tivera que se defender. O desgraçado do diretor a havia ex-pulsado, um dia.

É claro que nunca mais havia agredido ninguém. Nunca tinha machucado nenhum dos colegas, não de verdade, nem mesmo os que mereciam ser machucados. Mas não duvidava que, se fi casse realmente desesperada, lutando pela vida, poderia machucar outra pessoa, e muito.

Ah! A ponta de aço era afi ada como um fura-gelo. Ela teria de cravá-la fundo no peito do homem, ou na garganta...

— Está pensando que eu não sou capaz de fazer isso, seu ba-baca? Eu sou.

Rebecca se perguntou se o homem de chapéu-panamá, um es-tranho para ela, seria um conhecido de Tignor. Alguém que conhecesse Tignor.

Seu marido trabalhava na indústria cervejeira. Vivia viajando, durante dias, até semanas. Em geral, parecia estar prosperando, mas às vezes reclamava de andar com a grana curta. Falava da produção, comercialização e entrega de cerveja e ale ao comércio varejista de todo o estado de Nova York como uma concorrência mortífera. Do jeito que

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Tignor falava, com tamanho ardor, a gente fi cava pensando em gargan-tas esfaqueadas, sangrando. Era levada a achar que concorrência mortí-fera era uma coisa boa.

Havia rivalidades no ramo cervejeiro. Havia sindicatos, greves, demissões, disputas trabalhistas e piquetes. A indústria empregava ho-mens como Niles Tignor, capazes de se arranjar em situações difíceis. Tignor contara a Rebecca ter inimigos que nunca se atreveriam a se aproximar dele... “Mas uma esposa, isso seria diferente.”

Tignor dissera a Rebecca que mataria com as próprias mãos qualquer um que chegasse perto dela.

O homem de chapéu-panamá, Rebecca preferiu pensar, não tinha muito jeito de ser da indústria cervejeira. O chapéu de palha es-portivo, os óculos escuros e as calças de cor creme eram mais apropria-dos para as margens do lago, no verão, do que para a zona industrial de Cataratas do Chautauqua no outono. Camisa branca de mangas compridas, provavelmente algodão de alta qualidade, ou até linho. E gravata-borboleta. Gravata-borboleta! Ninguém usava gravatas-borbo-leta em Cataratas do Chautauqua, certamente ninguém que Tignor conhecesse.

Era como ver Bing Crosby na rua, ou então aquele dançarino incrível: Fred Astaire. O homem de chapéu-panamá era desse tipo. Um homem que parecia incapaz de transpirar, um homem que sorriria se visse uma coisa bonita, um homem não inteiramente real.

Não era homem de perseguir uma mulher num lugar ermo e abordá-la.

(Era?)Rebecca desejou que a tarde já não estivesse tão no fi m. Em

plena luz do dia, não se sentiria tão incomodada.Agora, em setembro, a cada dia o crepúsculo vinha mais cedo.

A gente notava os dias se encurtando, depois que passava o Dia do Trabalho. O tempo parecia se acelerar. As sombras se erguiam de ma-neira mais visível da vegetação rasteira à margem do canal, e a água escura, cintilante feito uma cobra, era como certos pensamentos que a gente tenta afastar, só que, em apenas uma semana, não consegue. O céu tinha massas de nuvens que lembravam uma substância fi brosa espremida e depois largada. Havia nela uma vida estranha, trêmula, maléfi ca. Através da massa de nuvens, o sol surgia como um olho feroz e ensandecido, que olhava fi xo e tornava nítido cada talo de grama jun-to ao caminho de sirga. Enxergava-se com demasiada vividez, os olhos

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fi cavam ofuscados. E aí o sol desaparecia. O que fora nítido se tornava embotado, manchado.

Nuvens carregadas que o vento soprava lá do norte, do lago Ontário. A umidade era tanta que as moscas chegavam a picar.

Zumbiam perto da cabeça de Rebecca, que dava gritinhos de nojo e susto e procurava enxotá-las.

Na Tubos Niágara, o ar andava quente e abafado, como em ple-no verão. Sufocante, 43ºC. As janelas, opacas de sujeira, eram empurra-das para fora, inclinadas, e metade dos ventiladores estava quebrada, ou girava tão devagar que era inútil.

Era só um emprego temporário, esse da Tubos Niágara. Rebec-ca conseguiria agüentá-lo por mais alguns meses...

Marcando o ponto na entrada às 8h58. Marcando para sair as 17h02. Oito horas. Cinco dias por semana. Era obrigada a usar óculos de segurança, luvas. Às vezes, um avental de segurança: pesadíssimo! Quente! E sapatos de trabalho, com reforço na ponta. O capataz fazia a inspeção, às vezes. Das mulheres.

Antes da fábrica, Rebecca havia trabalhado num hotel: cama-reira, era assim que a chamavam. Tivera que usar uniforme e havia detestado.

Por oito horas, Rebecca recebia dezesseis dólares e oitenta cen-tavos. Fora os impostos.

“É para o Niley. Estou fazendo isso pelo Niley.”Ela não estava de relógio, nunca usava relógio na Tubos Niá-

gara. A poeira fi na entrava no mecanismo do relógio e o estragava. Mas ela sabia que eram quase seis da tarde. Buscaria Niley na casa da vizinha logo depois das seis. Nenhum fi lho-da-mãe, seguindo-a pelo caminho de sirga, a impediria disso.

Preparou-se para correr. Se, de repente. Se ele, logo atrás. Co-nhecia um esconderijo um pouco mais adiante, do outro lado do talude do canal, não visível do caminho de sirga, uma tubulação fétida: feita de metal corrugado, um túnel de uns doze metros de comprimento por um e meio de diâmetro; ela poderia se abaixar, atravessá-lo correndo e sair numa campina, a não ser que fosse um charco, e o homem de cha-péu-panamá não veria de imediato para onde ela fora, e, se visse, talvez não quisesse segui-la...

No instante em que pensou nessa rota de fuga, Rebecca a des-cartou: a tubulação dava para um brejo fétido, um campo de drenagem descoberto, e, se ela corresse para lá, poderia tropeçar, cair...

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O caminho de sirga era um lugar ideal para perseguir uma vítima, pareceu-lhe. Não se enxergava para lá dos taludes. O horizonte artifi cialmente próximo. Se a pessoa quisesse ver o céu no caminho de sirga, tinha que olhar para cima. Tinha que levantar a cabeça, entortar o pescoço. Sozinhos, os olhos não descobriam naturalmente o céu.

Rebecca ressentiu-se da injustiça de ele a seguir ali! Onde ela sempre se sentia aliviada, grata por estar longe da fábrica. Sempre ad-mirava a paisagem, apesar de ser malcuidada, um ermo. Sempre pensa-va no fi lho, à sua espera, ansioso.

Ela sabia: não podia fraquejar. Não devia demonstrar medo.Viraria e confrontaria o homem, o do chapéu-panamá. Ela se

viraria com as mãos nas cadeiras, no estilo Tignor, e o olharia de cima a baixo.

Movimentou os lábios, proferindo em silêncio as palavras que diria: “Você aí! Está me seguindo?”

Ou então: “Ei, moço, o senhor não está me seguindo, está?”Ou ainda, com o coração acelerado de ódio: “Seu desgraçado,

quem é você para me seguir?”Não era uma moça tímida, e não era fraca. Não no corpo nem

nos instintos. Não era uma mulher muito feminina. Não tinha nada de mole, dócil nem derretida; ao contrário, acreditava ser dura, resistente. Tinha um rosto marcante, olhos grandes, encovados e muito escuros, sobrancelhas grossas e escuras como as de um homem e, às vezes, uma postura masculina, quando confrontava os outros. Em síntese, despre-zava o feminino. Só que havia seu apego a Tignor. Ela não queria ser o Tignor, apenas ser amada por ele. Mas Tignor não era um homem comum, segundo o juízo de Rebecca. No mais, ela desprezava do fun-do da alma a fraqueza das mulheres. Ficava envergonhada, enfurecida. Porque essa era a antiga fraqueza das mulheres, a fraqueza de sua mãe, Anna Schwart. A fraqueza de uma raça derrotada.

Na fábrica, os homens a deixavam em paz, em geral. Por sa-berem que ela era casada. Que não dava sinal de ser receptiva a seu interesse. Ela nunca os fi tava olho no olho. O que os homens pensavam dela, Rebecca não levava em conta.

No entanto, na semana anterior, tivera de enfrentar um babaca de risinho zombeteiro, que vivia lhe roçando o corpo ao passar por trás dela na linha de montagem, um homem que a examinava de cima a baixo, para deixá-la sem jeito; tinha-lhe dito para deixá-la em paz, dia-bos, ia reclamar com o capataz, mas, no meio da torrente de palavras,

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Page 20: A fi lha do coveiro - img.travessa.com.brimg.travessa.com.br/capitulo/ALFAGUARA/FILHA_DO_COVEIRO_A...A fi lha do coveiro / Joyce Carol Oates ; tradução Vera Ribeiro. – Rio de

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de repente ela havia engolido e a voz fi cara sufocada, e o babaca zombe-teiro apenas lhe dera um sorriso. Hum, boneca! Eu gosto de você.

Mas não podia sair da fábrica. Uma ova se ia pedir demissão!Trabalhava desde março na Tubos Niágara. Linha de monta-

gem, mão-de-obra não qualifi cada. Mesmo assim, as fábricas pagavam melhor do que a maioria dos outros empregos para mulheres — garço-nete, faxineira, balconista. Não era preciso sorrir para os fregueses, ser “gentil”. Era só um emprego temporário, ela dissera a sua amiga Rita, que também trabalhava na linha de montagem da Tubos Niágara, e Rita dera uma risada, dizendo, é claro, a Tubos Niágara também era só um lugar temporário para ela. “Faz quase sete anos.”

Esse horizonte abreviado deixava a pessoa ansiosa, porque não dava para planejar uma rota de fuga. Para a vegetação rasteira? Havia urzes, roseiras-bravas, um emaranhado de sumagres-veneno-sos. Para as árvores? E fi car fora da vista, onde qualquer coisa podia acontecer?

A ponte da Estrada da Fazenda dos Pobres fi cava a pelo menos um quilômetro e meio dali. Quantos minutos mais, se é que dava para calcular: vinte? E ela não poderia correr. Pensou no que aconteceria durante esses vinte minutos.

A superfície do canal ondulava como a pele de um grande bi-cho adormecido, cuja cabeça não se conseguia ver. Só o comprimento, estendendo-se até o horizonte.

Só que não havia horizonte lá adiante, na verdade. O canal desaparecia numa névoa ensombrecida ao longe. Como trilhos de trem, quando os olhos nos enganam e nos fazem pensar que eles se estreitam, se encolhem e desaparecem, como se fugissem do presente para um futuro que não se pode ver.

Esconda sua fraqueza. Você não pode continuar criança para sempre.

Difi cilmente ela seria uma criança. Era uma mulher casada, mãe de um fi lho. Tinha um emprego na Tubos de Fibra Niágara, em Cataratas do Chautauqua, estado de Nova York.

Não era uma menor que dependesse da caridade dos adultos. Não era uma menina sob a tutela do condado, residente em Milburn. A deplorável fi lha do coveiro.

Este era um tempo de expansão da indústria norte-americana no pós-guerra. Assim diziam. E assim parecia. Fábricas operando com plena capacidade em Cataratas do Chautauqua e noutras cidadezinhas

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