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A Lei de Responsabilidade Fiscal e Relações Financeiras Intergovernamentais no Contexto Federativo Brasileiro Retirado pela ESAF 1 1 Retirado pela ESAF

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A Lei de Responsabilidade Fiscal e Relações Financeiras

Intergovernamentais no Contexto Federativo Brasileiro

Retirado pela ESAF1

1 Retirado pela ESAF

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Introdução

O contexto federativo brasileiro é caracterizado por movimentos de centralização e

descentralização. A permanente negociação da autonomia dos entes federados,

herança da formação do Estado federativo brasileiro, reforça a importância da

institucionalização do espaço onde transcorrem as relações intergovernamentais.

A Constituição de 1988 revelava a intenção de institucionalizar o processo de

descentralização fiscal em curso, ao conceder autonomia de gestão e ao estabelecer a

participação dos governos subnacionais na receita disponível. Contudo, novas

circunstâncias impõem mudanças nas relações entre as diferentes esferas de poder e

estas distorcem o espírito constitucional. O processo de descentralização é revertido

pelas conseqüências do agravamento do desequilíbrio financeiro dos estados e pelo

contigenciamento dos gastos referentes ao Orçamento da Seguridade. A

descentralização e a autonomia, constituída por meio constitucional, foram

gradualmente contestadas por relações que se baseiam em poder real.

No contexto de estabilização e crise, com agravamento do desequilíbrio fiscal e

financeiro com o qual os governos estaduais se defrontaram a partir da implementação

do plano Real, foi proposto um abrangente acordo de refinanciamento da dívida

estadual. Como contrapartida ao refinanciamento concedido pelo governo central, os

governos estaduais foram induzidos a realizar um ajuste fiscal e patrimonial, no qual se

reformula a inserção do Estado e se atende às necessidades de ajustamento

macroeconômico.

A reforma do Estado, em curso desde a década de 80 no âmbito do Governo

Central, está associada à necessidade de revisão do papel do Estado como indutor do

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desenvolvimento. Ela materializa-se, no âmbito estadual, na venda de empresas

estatais e na privatização/liquidação dos bancos estaduais. O ajuste patrimonial reforça

a magnitude do ajuste fiscal na medida que eliminam alternativas para o financiamento

do desequilíbrio fiscal. A Reforma do Estado e o ajuste fiscal no âmbito dos governos

estaduais reverberaram-se sobre o processo de descentralização e sobre a autonomia

dos governos subnacionais.

Como desdobramentos do acordo de refinanciamento da dívida estadual, observa-

se, nos limites do possível, o equacionamento do problema do endividamento estadual

e o sancionamento da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Segundo a lei de Responsabilidade Fiscal, as fontes de financiamento dos

governos estaduais tendem a se restringir às receitas tributárias já que a lei excluiu a

possibilidade de a União ser credora de operações de crédito junto aos governos

subnacionais. Como historicamente a principal fonte alternativa de financiamento dos

estados era a União, pode-se vaticinar que, caso a lei seja de fato cumprida, o

financiamento dos governos estaduais restringer-se-á às receitas tributárias. Essa

perspectiva revela uma mudança nas relações intergovernamentais e tentativa de rever

um dos alicerces do Estado federativo.

Nesse trabalho, busca-se a partir da formação do federalismo no Brasil e do papel

exercido pelas relações intergovernamentais em torno do endividamento no modelo

federativo brasileiro discutir a lei de Responsabilidade Fiscal e vislumbrar limites e

possibilidades. Para a construção e desenvolvimento do argumento, subdividiu-se a

monografia em quatro capítulos.

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No capítulo 1, apresenta-se a discussão sobre a dívida estadual e adota-se como

referencial às relações federativas no Brasil. Relações entre diferentes esferas de poder

são, por definição, repletas de conflitos. Os interesses dificilmente serão convergentes,

embora exista um denominador comum - razão pela qual se justifica a organização das

diferentes unidades sob a forma de uma Federação. No âmbito das relações financeiras

intergovernamentais manifesta-se o dilema entre a autonomia dos governos estaduais e

a soberania da União.

No capítulo 2, analisa-se a evolução da dívida, e sua composição e estoque com a

finalidade de compreender o processo de endividamento e as causas que engendraram

o desequilíbrio financeiro dos estados.

No capítulo 3, discorre-se sobre a crise financeira dos estados e o acordo de

financiamento da dívida estadual. A discussão sobre o acordo tem como referencial a

construção de um arcabouço federativo mais permanente

No capítulo 4, apresenta-se a dívida após o acordo de endividamento e a Lei de

Responsabilidade Fiscal.

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1. Federalismo no Brasil

1.1. Federalismo: algumas considerações

A coexistência de diferentes pólos de poder, intrínseca à Federação, torna

inevitável a revisão de suas relações, até que o sistema fiscal e financeiro amadureça e

se estabilize. A presença de mecanismos institucionais evita que as crises conjunturais

na Federação impeçam a formação de um arcabouço federativo mais permanente.

Conforme coloca Bobbio quando trata de crise:

“A institucionalização dos procedimentos para a solução das crisesgovernamentais serve para circunscrever seu âmbito e para impedir que asmesmas possam pôr em perigo a existência do próprio regime político” (p.305)

Daí a importância das instituições, que delimitam o espaço das crises e as

circunscrevem aos conflitos intrínsecos à Federação. A existência de instituições

confere ao sistema a estabilidade suficiente para que a instabilidade inerente ao

processo político não imploda a Federação.

Assim, as relações intergovernamentais gradualmente se desenvolvem no novo

espaço institucional ampliado, com ganhos de transparência. A existência de

instituições de caráter mais permanente fortalece a Federação e contribui para que a

autonomia dos seus entes esteja assegurada, porque permite que seja explícito o jogo

de forças presente no Estado. Observa-se aqui um paradoxo, pois existem limites claros

para a transparência, defendida como um dos sustentáculos de um regime democrático

e federativo. As relações vão se tecendo e novos fatos surgem. A busca de

transparência é um desafio permanente. Vale dizer que transparência não significa

assepsia. Como escreve Rezende (1985:520) sobre o processo orçamentário

centralizado:

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“O fracasso de propostas que defendiam a centralização de decisõesorçamentárias como forma de aumentar a racionalidade do dispêndio público,decorre da invalidade de sua principal premissa: a de que é possível promover umacompleta assepsia no processo decisório, de forma a eliminar os riscos decontaminação provocados pela ação de agentes externos, isto é, as decisõesdeveriam ser tomadas em um ambiente que tornasse as autoridades imunes aquaisquer pressões, e onde um contínuo cálculo racional de vantagens edesvantagens de cada alternativa fornecesse a base científica para um resultadomais eficiente.” (Rezende, 1982:520)

O mesmo pode ser dito quanto às relações intergovernamentais. Estas não podem

ser assépticas pelas sua própria natureza, mas podem seguir regras claras que sirvam

de parâmetro para o jogo político. Os condicionantes do jogo político não são

controláveis por normas institucionais, mas estas podem indicar as regras nas quais o

jogo se desenvolverá.

A busca de novas soluções institucionalizadas manifesta o propósito de reafirmar

a autonomia das unidades da Federação, que, desse modo, ficariam menos expostas a

decisões arbitrárias do poder central.

A independência fiscal e a recomposição da capacidade decisória dos governos

subnacionais determinariam a autonomia federativa. Apesar de o federalismo não

ocorrer necessariamente na presença de estruturas de poder descentralizadas,

federalismo e descentralização apresentam sinergias. A descentralização fiscal

participa de um processo mais amplo de reafirmação dos princípios federativos, o que

seria particularmente relevante pelas próprias idiossincrasias do processo de formação

do Estado federativo brasileiro

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1.2. A Organização Federativa do Estado no Brasil

A constituição do Estado federativo brasileiro se deu a partir da descentralização

de poder em um Estado até então centralizado e unitário. A cessão de poder em

direção às unidades da federação caracterizou a formação do Estado federativo

brasileiro. Processo inverso observou-se nos Estados Unidos, onde as unidades que

compuseram a federação cederam poder a um governo central.

Segundo Abruccio:

“(...) A federação americana esteve vinculada à necessidade de se unir para trazersegurança a todos (motivação hobbesiana) e ligada à defesa de maiorautogoverno possível (preocupação madsoniana). O federalismo brasileiro,entretanto, foi apenas motivado pelo sentimentos de autonomia dos estados.(...)”(pág. 32)

A formação do Estado federativo brasileiro motivado pelo sentimento de

autonomia dos estados pauta as relações entre as diferentes esferas de poder. Os

movimentos de centralização e descentralização, que caracterizam a evolução das

relações federativas, refletem o conflito entre o sentimento de autonomia dos entes da

federação e a natureza centralizadora do governo federal. Na medida que o governo

central se fortalece, observa-se um movimento de centralização e, quando esse se

enfraquece, de descentralização.

Esses movimentos de centralização e descentralização devem ser

contextualizados. O sistema político brasileiro caracteriza-se pelo pacto que se renova

em acordo com o poder de barganha da União e dos governos subnacionais.

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A constituição do Estado Federativo brasileiro aumenta a importância da

institucionalização das relações intergovernamentais. Nesse contexto, onde a

autonomia é permanentemente negociada, o processo de consolidação de referenciais

institucionais, que balizem as relações intergovernamentais torna-se particularmente

relevante porque permite estabilizar essas relações. A institucionalização das relações,

embora contribua para a estabilização das relações intergovernamentais, não

necessariamente implica centralização ou descentralização.

A criação de instituições responsáveis pela regulamentação das relações

intergovernamentais, ou pela promulgação de leis que as ancorem, reduzem o caráter

casuístico destas relações, amparando-as em regras claras. Busca-se, assim, diminuir

a incerteza e a instabilidade inerentes às relações federativas no Brasil.

1.3. Relações Intergovernamentais no Brasil

Nessa seção discutir-se-á o formato das relações intergovernamentais no Brasil.

As relações financeiras intergovernamentais guardam particularidades, pois estão

condicionadas às idiossincrasias de cada país. Conforme registra Ter-Minassian

(1995b:1):

“A arquitetura das relações fiscais intergovernamentais em qualquer país refleteuma série de fatores de ordem política, social, cultural e econômica. A história deum país, a evolução de seu equilíbrio político, a distribuição de forças políticasdentro do território e as tradições culturais são alguns dos fatores que exerceminfluências importantes sobre a estrutura legislativa e constitucional e sobre asinstituições que governam as relações entre os diferentes níveis de governo nopaís.”

Dessa forma, torna-se relevante um referencial teórico-conceitual para tratar das

relações intergovernamentais condizente com peculiaridades brasileiras. Afonso

(1992a), a partir da literatura sobre federalismo e transferências, define conceitualmente

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relações intergovernamentais. O esforço do autor deve-se a uma tentativa de tornar o

conceito suficientemente abrangente, capaz de captar as peculiaridades das relações

financeiras intergovernamentais no Brasil. Segundo o autor:

“No campo de estudos das finanças públicas no Brasil, as relações financeirasentre níveis de governo, em geral, são enfocadas apenas no tocante àarrecadação e à distribuição regular de receitas de impostos determinada pelaConstituição Federal. No entanto, as relações ocorrem também através datransferência de recursos financeiros não decorrentes de preceitosconstitucionais, da assunção de responsabilidades e encargos e da contrataçãode empréstimos e financiamentos” Afonso (1992a:6).

A partir dessa constatação, o autor estabelece uma forma alternativa de

classificação das relações intergovernamentais, listadas a seguir

i. transferências tributárias2_expressamente vinculadas a um tributo;

ii. transferências não-tributárias _ referentes ao ressarcimento de

despesas vinculadas a grandes programas governamentais e decorrentes de

decisões ad hoc;

iii. empréstimos e financiamentos.

Relações intergovernamentais estão explicitadas na legislação que rege as

operações de crédito dos governos subnacionais, e nos financiamentos concedidos (por

órgãos e entidades controlados diretamente ou indiretamente pela União) a estados e

municípios3. Afonso chega a afirmar que estas últimas chegaram a apresentam um

caráter de transferência negociada, posto que obedecem decisões ad hoc.

As operações de crédito interno, junto a órgãos e entidades controladas

diretamente ou indiretamente pela União, representam uma parcela significativa do

2 As transferências tributárias podem seguir a lógica da partilha (distribuição proporcional à arrecadação em territórionacional) e da repartição (quando envolve critérios que não a arrecadação).

3 Afonso (1989).

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endividamento dos estados e municípios. Frente à escassez de alternativas de

financiamento com perfil de longo prazo, ressalta-se a importância das instituições

federais enquanto credoras dos governos subnacionais. Estas, em conjunto com a

dívida mobiliária, são as principais fontes de financiamento dos governos subnacionais.

Têm-se, então, mais um dos canais pelo qual as relações intergovernamentais se

desenvolvem.

Além disso, a própria tradição brasileira, na qual é comum a transferência de

desequilíbrios para esferas superiores de poder (como se observa na troca de títulos

estaduais por federais e nos sucessivos refinanciamentos concedidos aos governos

estaduais pela União4). Por outro lado, a expectativa de que a União intervirá quando a

dívida adota uma trajetória explosiva reforça a idéia de que o endividamento é

concebido como uma relação intergovernamental. Em parte esse comportamento se

justifica pelas próprias características da União, as quais a qualificam como

intermediadora entre o mercado e os governos subnacionais. A intervenção da União

frente a uma situação de crise se deve ao fato de esta ser uma instância com maior

capacidade de absorver desequilíbrios, sem desestruturar o sistema.

Conclui-se que o endividamento, enquanto relação intergovernamental,

manifesta-se por meio de dois canais. Em primeiro lugar, viriam os financiamentos

concedidos pela União, ou por órgãos e entidades a esta vinculados. Por fim, deve-se

citar a prática de transferência dos desequilíbrios financeiros dos níveis inferiores de

4 Ë interessante observar que nas renegociações da dívida pelas Leis no 7976/89 e no 8727/93 predominaram,respectivamente, o refinanciamento de dívida externa com aval da União e a repactuação de financiamentoscontraídos junto a instituições federais. Mais do que um movimento de federalização da dívida, este foi umprocesso de consolidação do emaranhado de dívidas contraídas, direta ou indiretamente, por intermédio da União.A relação intergovernamental já estava implícita. Em ambos os casos, a contratação da operação de créditodependia de decisões do governo federal.

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poder para o governo federal. Certamente, tais aspectos alteram o sentido da

autonomia tributária proposta na Constituição de 1988.

1.4. Constituição de 1988: o modelo federativo proposto

A Constituição de 1988 foi uma tentativa de se desenvolver um arcabouço

institucional coerente com o estado democrático5. Na esfera político-fiscal, o processo

de redemocratização teve como contrapartida um maior grau de descentralização fiscal,

consolidado pela Constituição de 1988. Tal descentralização se materializou no

aumento da participação dos governos subnacionais na receita disponível do setor

governo. As competências tributárias de cada nível de governo foram meticulosamente

discriminadas no texto constitucional.

É interessante observar que a definição minuciosa das receitas referentes a cada

nível de governo não é acompanhada pela definição rígida das responsabilidades de

cada esfera de poder pela utilização do conceito de competências concorrentes - mais

adequado ao caso brasileiro pelas disparidades regionais que o caracterizam.

As disparidades de renda no Brasil reflete-se na distribuição do Produto Interno

Bruto entre as unidades da federação (o qual apresenta elevada dispersão com relação

à média) 6. Diante disso, o modelo federativo brasileiro, reforçado pela Constituição de

1988, sempre visou, por intermédio de mecanismos compensatórios (sistema de

transferências), atenuar as implicações sobre a arrecadação estadual decorrentes das

disparidades regionais presentes no Brasil. As receitas estaduais sustentam-se

5 Baseado na institucionalização da descentralização fiscal (com o reforço dos princípios federativos) e na ênfase àcidadania

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basicamente sobre duas fontes, a saber, a arrecadação proveniente de tributos a serem

explorados pelos governos subnacionais7 e aquela decorrente das transferências

constitucionais (Fundo de Participação dos Estados)

A Constituição de 1988, além de manter o ICMS como competência tributária

estadual, incrementou a base de arrecadação, ao incluir nesta os Impostos Únicos

sobre Combustíveis (IUC), sobre Energia Elétrica (IUEE), sobre Minerais (IUM) e os

Impostos sobre Serviço de Comunicações (ISSC) e de Transporte Rodoviário (IST). A

exploração de um imposto sobre valor adicionado por um governo subnacional, tal

como se verifica no Brasil, por suas peculiaridades, foge a toda experiência

internacional.

O ICMS, tributo de competência estadual, é responsável por cerca de 25% da

carga tributária doméstica. Ele respondeu, em 1998, por 60% da receita corrente líquida

dos governos estaduais. A capacidade de arrecadação do ICMS, o que define a receita

própria dos governos estaduais, é fortemente correlacionada com o desempenho do

PIB. As receitas próprias estaduais (e particularmente no caso do ICMS) tendem a

reproduzir as disparidades regionais e exigem adoção de mecanismos compensatórios

com a finalidade de atenuar essas diferenças (o sistema de transferências).

Os recursos destinados ao Fundo de Participação dos Estados e Municípios são

oriundos da partilha dos dois principais impostos federais. Aos governos subnacionais

6 O PIB per capita (sem considerar o Distrito Federal para não distorcer a amostra) varia entre R$1.500 em Tocantinse R$10.700 em São Paulo, com uma média Brasil de R$6.200.

7 Segundo a Constituição, cabe aos estados a exploração do principal tributo nacional _ o Imposto sobre Circulaçãode Mercadorias e Serviços (ICMS) _, dos impostos sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) eTransmissão Causa Mortis e Doação (ITMD), e do Adicional do Imposto de Renda. Já os municípios gerem osimpostos sobre Propriedade Predial e Territorial Urbano (IPTU), Serviços (ISS), Vendas a Varejo de Combustível(IVVC) e Transmissão Intervivos de Bens Imóveis (ITBI).

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são destinados 44% da receita do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos

Industrializados, distribuídos entre estados (21,5%) e municípios (22,5%), sob a forma

de Fundo de Participação dos Estados e Municípios.8

Como contrapartida ao ICMS, então, o FPE é alocado, obedecendo, entre outros

critérios, o inverso do PIB per capita (ou seja, quanto menor o PIB per capita estadual,

maior a participação dos governos estaduais na distribuição do Fundo de Participação

Estadual). O FPE, em certa medida, compensa os diferenciais de arrecadação que

refletem as disparidades regionais.

A despeito de eventuais limitações que o mecanismo compensatório baseado no

sistema de transferência porventura possa apresentar9, esse cumpre um papel

fundamental na atenuação das disparidades na receita per capita reflexo de uma base

de tributação limitada. Não obstante, a receita tributária per capita apresenta bastante

dispersão.

O sistema federativo proposto teve algumas implicações sobre as receitas dos

estados e municípios. Inicialmente, deve-se dizer que a Carta Magna promoveu um

aumento da participação dos governos subnacionais na distribuição de recursos fiscais,

prevista constitucionalmente. Na prática, no entanto, ao contrário dos municípios, que

assistiram um incremento significativo da sua receita disponível10, os estados

mantiveram a sua participação na carga tributária (em torno de 27%).

8 Além disso, estabelece que 3% da arrecadação desses impostos será destinada aos fundos constitucionais.9 Tais como contigenciamento de recursos e redução da base tributária sobre a qual a partilha10A participação dos municípios na receita disponível eleva-se de 10% para 17%. O aumento da participação dos

municípios sustenta-se fundamentalmente nas transferências da União (FPM) e dos estados (cota-parte do ICMS).

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As mudanças introduzidas pela Constituição de 1988 institucionalizaram o

aumento da participação dos estados na receita disponível do setor governo, o que

vinha ocorrendo desde o início dos anos 80, por intermédio das transferências

negociadas. O governo federal detinha, então, o poder de alocar os recursos segundo

as suas prioridades. Com a definição constitucional de critérios para a distribuição de

recursos, as receitas de transferências adquiriram a conotação de receitas próprias.

Assim, apesar de não ter ocorrido necessariamente um aumento de participação na

carga tributária, o agregado dos estados assistiu a uma elevação de uma receita de

melhor qualidade.

A distribuição de recursos entre os diferentes níveis de governo e o aumento da

participação dos governos subnacionais na carga tributária doméstica foram

acompanhados pela autonomia concedida aos níveis subnacionais de poder. Segundo

Afonso (1992a:37-38):

“O princípio básico do sistema tributário financeiro brasileiro é o da autonomiaampla de cada um dos níveis de governo em relação aos tributos de suacompetência. Quer dizer, compete à cada unidade federada instituir, legislar earrecadar tributos de sua competência. (...)

Não é demais destacar que a autonomia que exercem estados e até mesmomunicípios para criar, legislar, fixar alíquotas, cobrar e fiscalizar seus impostos esuas taxas é o fator institucional mais avançado em termos de descentralizaçãofiscal encontrado no sistema brasileiro e destacado em estudos comparados àexperiência brasileira.”

A gestão autônoma das competências tributárias dos governos subnacionais - o

princípio básico do sistema tributário - apresenta-se como um fator institucional

importante na análise da descentralização fiscal. Por intermédio dos mecanismos

institucionais de descentralização fiscal-adminstrativa aos Estados e Municípios, os

alicerces do estado federativo são reforçados.

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1.5. Outras dimensões do federalismo no Brasil: a questão do endividamento

A Constituição de 1988 revelava a intenção de rever as relações

intergovernamentais, com implicações sobre a autonomia dos governos subnacionais.

As transferências da União para os governos subnacionais, uma das formas de

relações intergovernamentais, perdem, em grande medida, o caráter arbitrário e são

institucionalizadas.

De fato, no entanto, o que é objeto de decisão na descentralização fiscal proposto

na Constituição de 198811 é um conceito limitado de aumento da participação da receita

tributária própria dos estados e municípios e de receita disponível (fundos de

participação e partilha do ICMS), que deveriam gerar maior autonomia administrativa

dos governos locais. Não só novos “tributos” federais crescem escapando da base da

partilha, como o volume e a forma de renegociação do endividamento solapam o

processo enunciado na Carta Constitucional, frustrando e distorcendo suas intenções

descentralizadoras.

A reversão desse processo de descentralização se dará tanto pela reconcentração

fiscal propiciada pelo crescimento da participação das contribuições sociais na receita

federal, e decorrente frustração das políticas sociais descentralizadoras (Saúde e

11 É interessante observar que a definição minuciosa das receitas referentes a cada nível de governo não éacompanhada pela definição rígida das responsabilidades de cada esfera de poder. No que respeita aosencargos, a distribuição entre as diferentes esferas de poder não apresenta regras claramente definidas devido àutilização de competências concorrentes.. A atribuição rígida de competências entre os diferentes níveis degoverno esbarra na heterogeneidade dos entes federados. Especialistas em economia do setor públicoargumentam que as competências concorrentes seriam mais adequadas a países continentais organizadosfederativamente como é o caso do Brasil.

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Educação)12, como pelas soluções encaminhadas para a superação da crise financeira

dos governos subnacionais .

A situação financeira dos governos estaduais pode ser compreendida à luz do

processo histórico de formação da dívida. A questão do endividamento dos estados

circunscreve-se ao conflito intrínseco à organização federativa do estado brasileiro. Sob

o ponto de vista do governo federal, o controle do déficit dos estados integra uma série

de medidas de controle macroeconômico.

Observa-se aqui que a questão do controle do endividamento apresenta-se como

uma questão não trivial em regimes federativos. O processo de endividamento explicita

o limite entre a autonomia dos governos subnacionais e a soberania da Federação, e

suas contradições. Os mecanismos de controle de endividamento restringem a

abrangência das crises financeiras e evitam que estas se tornem recorrentes.

A decisão dos estados de realizar operações de crédito, pelo seu caráter de

relação intergovernamental, repercutia sobre todo o sistema. Diante disto, o controle do

endividamento tem por finalidade evitar o sobreendividamento e seus impactos sobre a

Federação e não significa, necessariamente, proibir a contratação de novas dívidas.

Deve-se identificar a origem das dificuldades de controlar o endividamento.

Inicialmente existe a necessidade de examinar a legislação pertinente. Em segundo

lugar, se esta legislação está sendo de fato aplicada.

12Ver Dain (1995)

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• Propostas de Controle de Endividamento

Em textos elaborados por organismos internacionais como o BIRD e o FMI uma

série de sugestões é dada no sentido de controlar o endividamento dos governos

subnacionais.

Segundo Dillinger, técnico do Banco Mundial, a melhor forma de controlar o

endividamento dos estados seria por meio das forças de mercado. O governo federal

deveria sinalizar que não mais interviria no caso de novas crises, já que:

“...It´s clear that this not Brazil´s first debt crisis. It´s, in fact, likely that the state´sexcessive borrowing is prediated on the expectation of federal relief. Another roundof federal relief only reinforces this expectation, and plants the seeds of the nextround of borrowing and crisis. Where federal reliefs is necessary to enable a stateto continue functioning, the federal governmente should exact a quid pro quo, bothto ensure that significant, irreversible reforms are put in place in the defaultingstate, and to reduce the temptation of other states to follow the same route in thefuture” (Dillinger, 1995:12)

Dillinger propõe, então, que se deixe falir um estado de menor importância. A

opção deveria considerar o impacto instabilizador caso a “escolha” sobrecaísse sobre

um estado com maior peso político. Pode-se dizer, no mínimo, que a sugestão fere as

prerrogativas federativas. Além disso, a opção por um estado mais pobre quando os

estados mais endividados são exatamente os de maior poder aquisitivo indicaria que o

governo central jamais deixaria de amparar um estado rico, até pelas implicações

sistêmicas. Assim, o mercado, seguindo este raciocínio, não mais emprestaria aos

estados menores. Como estes últimos já não têm praticamente nenhum acesso ao

crédito privado (à exceção das operações de Antecipação de Receita Orçamentária), a

medida seria inócua, não solucionando o problema.

Já Ter-Minassiam (1996) descreve quatro modelos de controle de endividamento,

adotados por países descentralizados. A escolha de um destes modelos de controle

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deve considerar aspectos sócio-econômicos e de ordem político-institucional do país

em questão. Observa, porém, que existem muitas variações e vários países optam por

controles que não se restringem a um destes modelos.

i. Confiança na disciplina de mercado - o sucesso desse mecanismo de controle

ao endividamento é condicionado a certos requisitos para que tenha alguma chance de

ser bem sucedido. Nos candidatos a esta forma de controle, os mercados devem ser

livres e abertos, sem que tenha de alguma maneira compulsória financiar o setor

governo; os credores devem dispor de informações sobre o estoque de dívida, assim

como sobre a situação fiscal-financeira dos governos subnacionais; não deve existir a

possibilidade de qualquer operação de salvamento em caso de inadimplemento; os

governos subnacionais devem ter instrumentos para captar os sinais do mercado.

ii. Enfoque cooperativo para os controles da dívida - o endividamento dos

governos subnacionais é objeto de negociação permanente entre as diferentes

esferas de poder. Este seria o caso mais próximo da confiança na disciplina de

mercado. O enfoque cooperativo significa que os governos subnacionais trabalham

em conjunto com o governo central no sentido de estabelecer metas fiscais que

atendam os interesses macroeconômicos em questão.

III. Enfoques para o controle do endividamento subnacional com base em

regras - determinadas constitucionalmente ou por meio de leis, muitos países

adotam esse formato de controle até porque a vasta gama de regras permite

selecionar a que for mais adequada ao país em questão.

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19

iv. Controles diretos do governo central sobre o endividamento subnacional -

mais comum em países unitários, esse formato confere ao governo central a

prerrogativa de controlar o endividamento das unidades subnacionais.

Frente às alternativas propostas por Ter-Minassian, a opção mais adeqüada seria

aquela por meio de regras. 13

• O papel do controle do endividamento

O controle do endividamento dos governos subnacionais é visto por Ter-

Minassian como parte necessária de um programa de ajuste fiscal, vislumbrado diante

da tendência internacional de crescimento da dívida pública e da elevação da taxa de

juros. Nota-se aqui que o controle ao endividamento intertemporalmente repercute

positivamente sobre os estados, independentemente das implicações

macroeconômicas intrínsecas a ele.

Em primeiro lugar, a existência de endividamento, caso sejam contratadas a uma

taxa de juros cujo o referencial seja o overnight, aumenta a vulnerabilidade dos estados

frente a decisões de política econômica. Em segundo lugar, reforça a dependência para

com o poder central, já que o estado seria praticamente obrigado a aceitar toda e

qualquer condição imposta pela União. Em terceiro, deve-se ressaltar o fato de que a

dívida contraída hoje comprometerá posteriormente o bem estar da população, já que o

financiamento, por exigir contrapartida futura, determinará a disponibilidade de recursos

nos anos seguintes

13 Segundo a descrição de Ter-Minassian, a proposta de Dillinger não é compatível com o Brasil, já que não obedecea sequer uma das condições exigidas para que o controle de endividamento tenha êxito.

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Por fim, o crescimento descontrolado do endividamento ameaça a própria

federação. O descontrole completo pode interferir na condução da política

macroeconômica, já que se configura como um fator negativo na formação de

expectativas. Tal situação é limite. Mas não se pode descartá-la diante do crescimento

da dívida dos governos subnacionais entre 1994-96 e uma crise da federação,

obviamente, repercute, em última instância, nas unidades da federação

• Os limites do controle do endividamento

Ter Minassian coloca que

“(...) os controles sobre os empréstimos não podem substituir uma estruturasustentável de relações financeiras intergovernamentais, isto é, uma estrutura quenão dê origem a desequilíbrios verticais (ou horizontais) excessivos. (...)” Ter-Minassian (1995a:11)

Assim, a efetividade do controle do endividamento está condicionada à própria

sustentabilidade fiscal intertemporal dos estados. O desequilíbrio fiscal induz os

estados a buscarem alternativas de financiamento e praticamente inviabiliza todo e

qualquer controle, posto que as pressões para contratar novas operações de créditos se

revelam incontroláveis.

Desta maneira, o êxito do controle de endividamento está associado ao

saneamento fiscal. A última tentativa de controle ao endividamento, a Lei de

Responsabilidade Fiscal propõe uma política fiscal sustentável intertemporalmente, ou

seja, enseja estabelecer os alicerces com a intenção de evitar a criação de déficits –

efetivos e potenciais nos três níveis de governo e impedir a eclosão de novos

desequilíbrios fiscal-financeiros nas esferas subnacionais.

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• O Controle ao Endividamento dos Governos Subnacionais no Brasil

O controle do endividamento no Brasil, desde 1964, quando os governos

estaduais iniciaram a contratação de crédito de modo mais intenso, sempre foi

realizado por meio de regras.

Na época em que a dívida dos governos estaduais exigiu uma saída negociada, o

controle do endividamento era exercido por Resoluções tomadas pelo Senado Federal.

Em 1998, o controle ao endividamento passa a respeitar a Resolução 78/98, vigente até

promulgação da Lei Complementar no 101 (conhecida como Lei de Responsabilidade

Fiscal).

A dificuldade de evitar o endividamento dos estados estava atrelada ao próprio

arcabouço institucional brasileiro, mas não necessariamente a problemas na legislação

pertinente. O Senado era o responsável pela autorização de operações de crédito extra-

limite. Como coloca Roarelli:

“ Segundo a Constituição de 1988, é da competência privativa do Senado Federalestabelecer limites ao endividamento dos estados e municípios, e esse preceitotem sido tradicionalmente utilizado desde de a Constituição anterior. O PoderExecutivo pode, entretanto, enviar proposta quanto aos limites globais e, atravésde suas lideranças, tentar influenciar na fixação dos tetos de endividamento.

Acompanham as resoluções do Senado Federal as medidas tomadas pelo BancoCentral que servem como instrumento na definição de limites de operações decrédito. A partir de 1988, as Resoluções passaram a ser mais rigorosas que as doSenado Federal”

14

O Senado, instância na qual tramitam os pedidos para liberação de operações decrédito, não é, por definição, o orgão mais adequado para tratar da questão, postoque é o responsável pela reprodução do equilíbrio federativo. Embora a questão doendividamento esteja intimamente associada à estrutura federativa, o Senadoenquanto fórum de decisões se mostra ineficiente15, ignorando inclusive parecerestécnicos desfavoráveis à aprovação de novos endividamentos

14 Roarelli, M.L.M (1996:635-6)

15 . Em entrevista ao Jornal do Brasil, Serra coloca:

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As dificuldades de controlar o endividamento dos governos subnacionais devia-

se mais a problemas políticos do que propriamente a falhas na legislação.16 A Lei de

Responsabilidade Fiscal enseja aprimorar o controle ao endividamento estadual. A

rigidez que a permeia, no entanto, periga paradoxalmente aumentar o casuísmo em

torno das operações financeiras subnacionais, ou seja, um retorno a uma situação

anterior à Constituição de 1988.

• Controle do Endividamento e Autonomia dos Governos Subnacionais: umaaplicação ao caso brasileiro

É interessante observar que as unidades da federação têm poder muito

diferenciado para alavancar recursos por meio de operações de crédito em decorrência

a desigualdades regionais. O endividamento atual reflete em certa medida a

capacidade de alguns governos estaduais realizarem uma gestão, dentro de certos

limites, autônoma relativamente ao governo central. Para São Paulo, Minas Gerais, Rio

de Janeiro e Rio Grande do Sul, a capacidade de obter financiamento junto ao mercado

sinalizava exatamente um certo grau de independência das decisões tomadas pelo

poder central.

O governo federal consentia na utilização deste método de financiamento,

mesmo quando este já mostrava indícios de exaustão. Mais uma vez, as relações

intergovernamentais em torno do endividamento revelavam a sua natureza obscura e a

importância do poder central na forma como as operações são contratadas. A falta de

“Pelo modelo atual o Senado aprova tudo. O processo político é de que os senadores deum estado aprovam o aumento do endividamento de outros para depois receber o mesmotratamento” (Serra, J:1997)

16 Afonso (1996)

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uma política efetiva de controle de endividamento constitui uma política do governo, que

ao se imiscuir de tomar uma decisão implicitamente está optando por determinadas

diretrizes.

A questão que se coloca não é a legitimidade da decisão de se endividar ou de

autorizar novas operações de crédito, mas a natureza pouco transparente das relações

em torno do endividamento. O endividamento, na sua dimensão de relação

intergovernamental altera de forma diferenciada o grau de autonomia dos estados,

impondo como no caso de São Paulo, um ônus que provavelmente será arcado por

toda a federação. A discussão da autonomia versus a federação mais uma vez se faz

presente.

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2. A Evolução da Dívida: os antecedentes ao acordo de refinanciamento

Nesse capítulo tratar-se-á da evolução do endividamento dos governos estaduais

com a intenção de compreender as origens e a dimensão da crise financeira vivenciada

pelos governos estaduais em meados da década de 90.

As origens do endividamento estadual remontam o início da década de 70,

quando este transparece como alternativa à natureza centralizadora na gestão tributária

imposta pelo Governo Militar. Posteriormente, na década de 80, frente à crise do padrão

de financiamento do setor público, observa-se um quadro de forte restrição

orçamentária em certa medida contornada pelas unidades da federação por intermédio

de financiamentos de terceiros, quando disponíveis, para complementar as

necessidades de caixa. Na década de 90, o crescimento da dívida esteve associado,

em grande medida, à capitalização dos serviços da dívida ao principal.

A composição da dívida, compreendida por intermédio do processo histórico que

a engendrou, explica a dinâmica do seu comportamento ao longo do tempo.

2.1. O processo de endividamento dos governos estaduais

• Governo Militar e a Gestão Tributária Centralizadora

Até 1965, a dívida dos governos subnacionais era praticamente inexpressiva. A

partir de então, a ampliação das oportunidades de crédito permitiu a expansão da dívida

do setor público. As mudanças observadas na oferta de crédito estavam associadas ao

nascente mercado de títulos governamentais17, aos fundos federais de investimento e

17 Até 1965, quando se introduz a correção monetária, o mercado de títulos praticamente inexistia, estando limitadoaos títulos colocados compulsoriamente. A inflação até então corroía o valor dos títulos, cujo valor de face eranominal;.

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ao endividamento junto ao exterior. A concessão de crédito funcionou como um

instrumento de dominação política do governo federal. Conforme coloca Rezende:

“(...)A centralização financeira foi um dos instrumentos importantes para aconcentração do poder político e o esvaziamento dos governos locais.” (Rezende,1982:500)

A Reforma Tributária de 1966, a Reforma Administrativa de 1967 e o controle do

endividamento dos governos subnacionais foram peças fundamentais na centralização

tributário-administrativa implementada pelo regime militar. Ocorreu, então, um

esvaziamento político-econômico dos governos subnacionais pela reforma tributária e

pela fragmentação dos pólos de decisão.

Ao longo da década de 70, à escassez de recursos dos governos estaduais

seguia-se a liberação de recursos do governo federal mediante contrapartidas dos

governos estaduais. Esta política, somada à pouca disponibilidade de recursos próprios

por parte das esferas inferiores de governo, induziu ao endividamento das unidades da

federação. As relações intergovernamentais revelavam o caráter centralizador impresso

pelo governo federal.

A escassez de recursos fiscais nas esferas subnacionais de governo aumentava

a importância de seu financiamento por meio do endividamento. O setor público

estadual dependia das decisões tomadas a nível federal, que acabavam por influenciar

a decisão de investir. Segundo Guardia

“ [o endividamento] expressou a única alternativa dos administradores estaduais emunicipais para se contrapor à perda de autonomia financeira decorrente daexcessiva centralização tributária então existente. O endividamento constituiu aampliação da prerrogativa/autonomia do gasto destas esferas” (Guardia, 1992:61)

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A perda da autonomia, paradoxalmente, promove o aumento do endividamento e,

de modo cumulativo, agrava a perda de autonomia 18 já que os recursos destinados à

rolagem da dívida pressionavam o orçamento fiscal e reduziam o grau de manobra dos

governos subnacionais. Nesse contexto inicia-se o processo de endividamento

estadual.

Duas fases distintas marcam a legislação do controle do endividamento. Até

1975, o controle do endividamento, sob a égide da Resolução 58, de 1968,

praticamente impediu que os estados se financiassem por meio de operações de

crédito. O financiamento dos governos subnacionais limitava-se basicamente aos

recursos de natureza fiscal e às transferências negociadas. Em 1975, a Resolução 58

foi substituída pela Resolução 93. Esta última introduziu novos critérios para o controle

do endividamento dos estados19.

Iniciou-se, então, efetivamente o endividamento dos estados. Ao longo da

década de 70, o processo de endividamento foi fortemente influenciado pelas

peculiaridades da legislação. A Resolução 93 tratava das operações de crédito internas.

Além de estabelecer os limites ao endividamento, esta Resolução previa operações

extra-limites. No caso das operações de crédito externas, a contratação não estava

sujeita ao limite de endividamento imposto pela Resolução 93. Cabia, então, ao governo

subnacional solicitar autorização do Senado Federal e consultar o Executivo, que

chancelava o pedido.

18 Rezende e Afonso (1988)19 Em Roarelli (1992) desenvolve-se uma discussão rigorosa sobre a abrangência das Resoluções 58, 63 e a 72, que

são responsáveis pelo controle do endividamento dos estados.

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27

Como a maioria dos estados não poderia realizar novas operações de crédito

segundo a legislação de controle de endividamento, o endividamento ocorreu

predominantemente por meio de operações de crédito externas e internas enquadradas

como extra-limites. A autorização de operações extra-limite guardava um elevado grau

de arbitrariedade, garantindo um alto poder discricionário aos executores de política

econômica.

É interessante observar que a Resolução 93 excluía do cálculo de limite o

endividamento junto ao Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Urbano (FNDU), do Fundo

de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) e do Banco Nacional de Habitação (BNH),

consideradas, a partir de então, operações extra-limites. Por outro lado, o Banco Central

poderia desconsiderar, a seu critério, para o cálculo de limites do endividamento

operações que fossem consideradas prioritárias pelo governo federal.

Assim, como Rezende (1982) chegou a afirmar, “o efeito da regulamentação

sobre os estados é o oposto ao formalmente estabelecido”. O endividamento dos

estados cresceu significativamente após 1975. O controle ao endividamento foi um

instrumento a mais na estratégia centralizadora do governo federal. A legislação

assegurava ao poder central um elevado poder discricionário na concessão de crédito

aos governos locais, o que não coibiu o financiamento junto a terceiros, mas, sim,

permitiu a alocação arbitrária destes recursos.

É interessante notar que a fragmentação dos pólos de decisão também foi um

importante instrumento de centralização político administrativa. As empresas estatais

estaduais, embora formalmente vinculadas às administrações estaduais, seguiam as

orientações da “matriz” federal. Estas empresas estavam inseridas no projeto de

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desenvolvimento nacional, participando, portanto, da estratégia de crescimento do

governo central.

A facilidade para a obtenção de recursos no exterior fez com que estas empresas

seguissem a orientação da “matriz” no sentido de captar recursos no exterior para

financiar o seu crescimento, sem considerar a capacidade de pagamento dos estados.

Nota-se que esta afirmação só corrobora o caráter independente das decisões de

investir da administração indireta do governo estadual.

A forma como ocorreu o controle do endividamento foi um dos determinantes da

composição do endividamento dos governos subnacionais a partir dos anos 60. Assim,

segundo Afonso (1988), em 1980, a dívida externa representava 32,4% e a dívida

interna extra-limite 22,2% da dívida consolidada dos estados.20

• A Década de 80: Endividamento em Contexto de Ajuste Fiscal e Redemocratização

O desequilíbrio financeiro observado na década de 70 foi agravado pela crise do

padrão de financiamento. Assim, conforme coloca Lopreato (1992):

“Diante do esgotamento das fontes de financiamento externo e da necessidade degerar divisas, o governo é obrigado a mudar o rumo de sua política econômica eredefinir o padrão de crescimento. A ruptura no padrão de financiamentocompromete a capacidade da União de conduzir e dinamizar o processo deinvestimento”

A adoção pelo governo federal do programa de ajuste fiscal preconizado pelo FMI

em 1982 dificultou o financiamento do setor público por meio de endividamento interno,

já que uma das metas estava associada ao déficit público. Mesmo assim, o

endividamento dos governos subnacionais foi alvo de críticas do fundo, já que o déficit

dos governos subnacionais tornava impeditivo o cumprimento das metas do programa.

Em 1983, a Resolução 831 impôs limites nominais ao crescimento dos financiamento

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do setor público junto ao sistema financeiro nacional, o que atingiu aos governos

subnacionais.

Os impactos da ruptura do padrão de financiamento do setor público repercutiram

direta e indiretamente sobre o setor público estadual. Os estados assistiram então a (i)

cortes no fluxo de recursos externos; (ii) queda na receita fiscal dos governos

subnacionais devido aos impactos recessivos na economia decorrente do ajuste

realizado pelo setor público.

Ademais, a restrição orçamentária federal dificultou a reprodução das relações

financeiras intergovernamentais. Conforme coloca Lopreato:

“O esquema das relações intergovernamentais perdeu funcionalidade quando setornou inviável manter o conjunto dos gastos com os convênios, com os fundos ecom as linhas e os programas de financiamento responsáveis pela alimentaçãodas aplicações a nível estadual. O corte nestas rubricas de crédito e no créditodas agências oficiais restringiu a reprodução das formas de articulação com osgovernos estaduais” Lopreato (1992:49)

Diante deste quadro, os estados passaram a utilizar formas de financiamento ad-

hoc, que incluíam a negociação de recursos junto ao governo federal, a postergação do

pagamento de despesas com fornecedores, assim como o atraso no pagamento de

empréstimos junto a instituições públicas, federais ou não. (Lopreato, 1992:46)

Ao longo da década de 80 o colapso do padrão de financiamento levou os

gestores das finanças estaduais a concentrarem seus esforços na gestão do

desequilíbrio financeiro. A política macroeconômica definia, então, o espaço de atuação

das administrações estaduais e, a partir deste referencial, as decisões tomadas no

poder central referentes à rolagem da dívida pública, à rolagem da dívida externa

(vencida e á vencer), à política de crédito interno das agências federais e à autorização

20 Citado em Guardia (1992)

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30

para a emissão de captação de recursos por meio de títulos balizavam a condução da

política no âmbito estadual e condicionavam a gestão financeira dos estados.

O governo federal, nos anos 80, passou a desempenhar um importante papel na

rolagem da dívida dos estados e municípios. Entre 1983 e 1988, a principal fonte de

financiamento do déficit operacional da administração direta e indireta dos estados e

municípios foram as operações de relendings e dos Avisos MF3021, MF09 e GB 588.

Neste período, o refinanciamento por meio dos Avisos MF30 responde respectivamente

R$ 3,2 bilhões, ou seja, por mais 75%, e por US$ 6,2 bilhões da dívida externa das

administrações direta e indireta do setor público estadual. (Guardia, 1992:62-65)

Somente em 1989 a dívida mobiliária passou a contribuir mais do que os Avisos

MF30 para o financiamento do déficit operacional. Neste ano a Lei 7976/89, de

27/12/89, refinanciou os Avisos MF30, e regulamentou os critérios de rolagem da dívida

externa dos governos subnacionais com prazo de vencimento até 01/01/90.

Por outro lado, as transferências negociadas adquiriam uma importância

crescente no financiamento dos estados. O aumento do peso político das lideranças

políticas locais teve como contrapartida o aumento da participação desta esfera de

poder na receita fiscal verificado seja pela elevação das transferências constitucionais

estabelecida pela emenda Passos Porto (1983) seja pelo crescimento ao longo da

década do montante de recursos destinados pelo governo federal às transferências

negociadas. O aumento dos recursos repassados voluntariamente pela União aos

governos estaduais refletia o aumento de poder dos governadores vis-à-vis o executivo

federal e sinalizava um processo de descentralização fiscal. O processo de

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redemocratização política ocorre concomitantemente ao aumento da participação dos

governos estaduais na disponibilidade de recursos. A descentralização, contudo, em

parte é contestada pela necessidade da União para a gestão financeira da

administração estadual.

Em suma, a ruptura do padrão de financiamento do setor público brasileiro

repercutiu sobre os estados, o que culminou, então, em uma situação de desequilíbrio

financeiro. Assim, ao longo da década, a negociação de recursos junto ao governo

federal marcou a gestão das finanças estaduais seja no que respeita às transferências

negociadas, seja no sentido de obter os recursos necessários para o financiamento do

déficit operacional. A falta de alternativas de financiamento compatíveis com a

capacidade de pagamento dos estados impediu uma reestruturação financeira, assim

como agravou o desequilíbrio . Como coloca Lopreato (1992):

“O fracasso em refazer as condições gerais de financiamento colocou sériasrestrições à reestruturação financeira dos governos estaduais. O financiamentodos governos estaduais está condicionado por determinações mais amplas e,isoladamente, não poderia encontrar uma solução favorável diante de problemasque envolvem todo o setor público” (Lopreato, 1992:56)

Diante deste quadro, a Constituição de 1988 institucionalizou o processo de

descentralização fiscal, já anunciado pelo crescimento das transferências negociadas

ao longo da década de 80. Em 1988, Rezende e Afonso já denunciavam o perigo de

que os aumentos de receita previstos pela Constituição fossem consumidos no

pagamento dos encargos da dívida. A esfera financeira irrompe a década de 90 em

aberto. As implicações da inequação dos problemas da dívida contestavam em parte a

descentralização institucionalizada por meio da Carta Magna. A vulnerabilidade dos

21 Os Avisos MF30 eram empréstimos pontes do Tesouro que financiavam a rolagem da dívida externa vencida dosgovernos subnacionais

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estados em decorrência da presença de desequilíbrios financeiros questiona a

autonomia federativa prevista no texto constitucional. Sob a sombra do desequilíbrio

financeiro, os estados conduzem-se em uma corda bamba.

2.2. A Evolução da Dívida dos Estados na Década de 90 e os Antecedentes do

Refinanciamento

A contratação de operações de crédito, nas décadas de 70 e 80, simbolizava uma

prerrogativa para aumentar os gastos dos governos subnacionais. A centralização

tributário-financeira transformou o endividamento em uma forma de driblar a restrição

financeira. Neste período, alguns estados obtiveram no mercado de títulos a

complementação para o financiamento das suas atividades.

A dívida que representou uma gestão mais autônoma no passado questiona a

autonomia proposta pela Constituição de 1988. Na década de 90, em alguns casos, a

dívida contratada no passado reforça as relações de dependência para com o governo

central. A forma como o endividamento ocorreu (reflexo em última instância das

alternativas de crédito disponível), associada ao processo de crescimento da dívida,

determinarão a trajetória, nos anos 90, do estoque inicial de dívida. Esta trajetória tem

implicações sobre a autonomia dos governos estaduais e sobre o processo de

descentralização.

• Estatísticas de Dívida

Diante da escassez de estatísticas consolidadas para se elaborar um quadro

para descrever a dinâmica da dívida do início dos anos 90 até a crise fiscal e financeira

dos estados em 1995/96 (quando ocorreu o agravamento da crise financeira), optou-se

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pela utilização alternada de dados de dívida elaborados pelo Banco Central e pela

Secretaria do Tesouro Nacional.

O Banco Central dispunha de uma série com dados de Dívida Líquida do Setor

Público (que agrega estados e municípios na mesma rubrica), e Dívida Mobiliária por

Unidade da Federação, os quais reconstituem a evolução da dívida desde,

respectivamente, 1991 e 1990. Por outro lado as negociações para o refinanciamento

da dívida estadual, exigiram a consolidação do saldo devedor por unidade da Federação

(o que foi posto em prática pelo STN). Os dados do STN permitem a elaboração de um

quadro pormenorizado da situação financeira dos estados em 1996.

A dívida dos governos subnacionais cresceu continuamente entre 1991 e 1996 e

ao final do período encontrava-se 85% superior ao valor inicial. O principal foco de

aceleração da dívida líquida do setor público subnacional localizava-se na dívida

mobiliária (que triplica entre janeiro de 1991 e dezembro de 1996). Nesse período, o

incremento da dívida mobiliária explicou 91% do crescimento da dívida líquida dos

estados e municípios. Em seis anos, a dívida mobiliária elevou-se em R$ 46 bilhões

(dos quais R$ 28 bilhões são relativos ao incremento após o Plano Real).

É interessante observar que a dívida bancária também cresceu bastante no

período, particularmente após 1994. Entre os componentes da dívida bancária

destacaram-se as operações de Antecipações de Receita Orçamentária (ARO), uma

parcela da dívida renegociada sob o amparo da Lei no 8727/93, dívidas junto a

instituições federais e entidades públicas não-federais (nesta última, encontram-se os

bancos estaduais).

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O componente financeiro responsável pelo crescimento acelerado da dívida com

instituições bancárias deve situar-se nas dívidas ARO22, com instituições públicas

federais e não-federais (indexadas a juros de mercado), já que as condições de

financiamento da Lei no 8727 diminuíram significativamente a velocidade de

crescimento desta parcela da dívida e atenua o ritmo da rubrica. Descontada a dívida

refinanciada, verifica-se que esta rubrica apresenta um elevado potencial de

crescimento.

• A Federalização da Dívida Estadual

Em 1996 uma parcela representativa da dívida estadual já havia sido refinanciada

por meio das Leis nos 7976/89 e 8727/93. A Lei no 7976/89 regularizou o

refinanciamento da dívida externa contraída com o aval do Tesouro dos estados e

municípios contratada até 31/12/88, que estava sendo efetivado por intermédio dos

Avisos MF30 - importante instrumento de refinanciamento do déficit operacional. Em

dezembro de 1999, o saldo da divida renegociada pela Lei no 7976/89 representa 5% da

dívida renegociada e 4% do endividamento global dos estados. A administração indireta

é responsável por 40% do montante renegociado.

A Lei no 8727/93 renegociou as dívidas dos estados junto a instituições públicas

federais. Ela introduziu o conceito de comprometimento de receita, associado ao

conceito de capacidade de pagamento. A dívida renegociada pela Lei no 8727/93 na

esfera estadual envolveu, na época, recursos da ordem de R$ 43 bilhões. Desse

montante, as dívidas da administração estadual direta participaram com 59%; os

restantes 41% foram distribuídos na administração indireta; basicamente, entre

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entidades de crédito imobiliário (58%), companhias de saneamento (28%),

concessionárias de energia elétrica (14%). No final de 1999, a dívida renegociada dos

estados sob o amparo da Lei no 8727 havia sido reduzida para R$ 37 bilhões. É

interessante observar que a composição da divida da administração direta e indireta

permaneceu praticamente constante.

• A Dívida Mobiliária23

O saldo da dívida mobiliária dos governos subnacionais atingiu, em dezembro de

1996, R$ 68 bilhões, dos quais os estados eram responsáveis por R$ 59 bilhões, ou

seja, 48% da dívida fundada interna dos estados. O expressivo volume de dívida sob

forma de títulos reflete sua importância na estratégia de financiamento das unidades da

Federação nas décadas de 80 e 90.

A colocação de títulos no mercado requeria autorização do Banco Central. Esta

medida, somada às peculiaridades do mercado mobiliário, restringiu o acesso a alguns

estados (particularmente os de maior poder aquisitivo24). Em decorrência disso, poucos

governos subnacionais realizaram transações expressivas no mercado mobiliário. Até

1993, somente quatorze unidades da Federação dispunham de permissão para emitir

títulos. Estes estados estavam localizados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O

comportamento desta modalidade de endividamento teve seus efeitos limitados a este

grupo de estados, não podendo, portanto, ser generalizado. A análise da distribuição

22 Segundo Furuguem, Pessoa e Abe (1996), as operações ARO são contabilizadas no cálculo de dívida líquida narubrica “Dívida Bancária”.

23 Os dados dessa seção foram extraídos da DLSP, do Bacen, e do Boletim de Finanças Estaduais e Municipais(Bacen)

24 A partir do final de 1995, alguns estados e municípios obtiveram autorização do Senado para emitir títulos quetinham por finalidade o pagamento de precatórios judiciais. Os únicos municípios que captavam recursos por meiode títulos eram as prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Após 1995, Osasco e Campinas entraram nomercado mobiliário.

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36

regional da dívida mobiliária dos estados revela a concentração nos estados de São

Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que respondiam, em 1996,

por mais de 90% do total.

Com o crescimento do montante da dívida mobiliária, os governos passaram a

ter dificuldade para colocar títulos no mercado, o que levou o Banco Central a trocar os

títulos estaduais por títulos federais. A realização desta operação indica períodos de

maior fragilidade financeira dos governos subnacionais. Nestes períodos, a pouca

aceitação dos títulos não deixou outra alternativa ao Banco Central: caso o banco não

procedesse dessa maneira, ocorreria uma situação de insolvência dos estados e

municípios que se endividaram por meio de dívida mobiliária.

Esta maneira de “solucionar” o caso, no curto prazo, não significou que a

principal questão em nível macroeconômico tivesse sido solucionada: a expansão do

déficit do setor público. Embora tal operação não tenha um impacto contábil para o

governo federal, esta representou a possibilidade de expansão do déficit que, em parte,

era minada pela impossibilidade de rolar a dívida; ou seja, essa operação sancionou o

endividamento dos governos estaduais e permitiu que a solução fosse postergada. Em

1995 e 1996, as operações de trocas continuaram ocorrendo, envolvendo valores cada

vez maiores (tanto em termos absolutos quanto em termos de participação). Enquanto a

capacidade de colocação de títulos dos governos estaduais oscila em torno de R$ 10

bilhões, são efetuadas vendas a termo para financiar o diferencial entre o montante total

e a capacidade estadual (em 1995, R$ 37 bilhões - e, em 1996, R$ 43 bilhões)25.

25 Esta operação se circunscreveu aos estados e esta limitou-se aos maiores devedores (e fortemente concentradasem São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). O Banco Central não detém, em carteira, títulosmunicipais, apesar de a dívida dos municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo ser superior à de muitos estados.

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37

A dívida dos estados por meio de emissão de títulos cresceu significativamente

entre 1991 e 1996. A dívida mobiliária neste período cresceu a uma taxa média de 21%

ao ano, velocidade superior à contratual26. Em 1991, a dívida mobiliária representava

34,7% da dívida fundada interna contra os 65,3% da contratual. Já em 1996, o saldo

das operações de crédito por títulos respondeu por 51,3%, enquanto a participação da

contratual caiu para 48,7%. Nesse período, a parcela renegociada atenuou a velocidade

de crescimento da dívida contratual..

É interessante observar que a edição da Emenda Constitucional no 3/93 proibiu

a contratação de dívida mobiliária, prevendo somente a emissão de títulos para a

rolagem da dívida e, assim, posteriormente, a dívida cresceu somente em decorrência

da capitalização dos juros ao principal27. Em um período de três anos (1994-1996), a

dívida praticamente duplicou exclusivamente para financiar o déficit operacional dos

estados e municípios.28 Desse modo, os estados se viram com um desequilíbrio

patrimonial, cuja fonte estava fora do seu controle, em decorrência do componente

financeiro da sua dívida mobiliária. Este processo de aceleração do crescimento do

saldo da dívida mobiliária redefine a sua participação na dívida interna do estados e

municípios.

Pelo fato de a dívida mobiliária ter como referencial a taxa de juros federal, os

estados endividados tornam-se vulneráveis à taxa de juros. Diante de políticas

monetárias restritivas, o componente financeiro da dívida impõe um ritmo acelerado de

26 Conforme indica a evolução da dívida líquida do setor público.27 A constatação de que a dívida mobiliária estadual cresce em decorrência da capitalização dos juros está presente

em Almeida (1996).

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38

crescimento vegetativo29. A dívida mobiliária apresenta, intrinsecamente, um

componente que limita a autonomia dos estados.

Conclui-se, então, que os estados nos quais a dívida mobiliária tinha um peso

mais expressivo na estrutura de endividamento estão mais vulneráveis à política

monetária. Observa-se que uma relação de dependência com o poder central, pois o

financiamento do déficit operacional referente à dívida mobiliária foi viabilizado pela

operação de troca de títulos estaduais por federais. Diante disso, constata-se que,

paradoxalmente, quanto maior for a dívida estadual federalizada (ou seja, junto à

União), maior a autonomia do estado frente ao poder central.

• Antecipação de Receita Orçamentária

Como existem indícios de que os estados e municípios estavam incorrendo

sistematicamente em déficits primários, pode-se supor que parte destes déficits

estivesse sendo financiada por meio de operações ARO. Os elevados custos deste tipo

de operação conferem um elevado potencial de crescimento a este tipo de dívida e

aumentam a vulnerabilidade dos governos subnacionais frente às oscilações da taxa de

juros.

Os dados do Banco Central sobre as AROs aparentemente indicam que, em

1994, uma parte substancial destas foi “rolada”, já que, nos três primeiros meses de

1995, as autorizações para contratar dívidas sob essa forma atingem R$ 1,2 bilhões,

enquanto o acumulado de operações, em 1994, correspondeu à R$ 940 milhões30.

28 Os títulos emitidos para o pagamento de precatórios judiciais foram a única fonte de emissão de dívida nova.29 Como crescimento vegetativo entende-se o crescimento da dívida decorrente da capitalização dos juros ao

principal.30 Note-se que as informações do Banco Central sobre as operações ARO dizem respeito às autorizações

concedidas e não às necessariamente realizadas. Os dados do COFEM/STN, relatados no Programa de Apoio à

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39

Como as operações ARO devem ser resgatadas ao final do ano fiscal, pode-se supor

que as dívidas foram quitadas e, posteriormente, novas operações foram realizadas.

Estas novas operações devem ter servido para angariar os fundos necessários para

saldar as dívidas remanescentes do ano anterior. Observa-se um crescimento das

autorizações de Antecipações de Receita Orçamentária (ARO)31 significativo entre 1993

e 1996, que atingem, em 1995, R$ 2,3 bilhões. 32

2.3. As Implicações da Política Monetária sobre a Dívida dos Estados

A política monetária praticada pelo governo federal condiciona indiretamente a

velocidade de crescimento da dívida dos governos subnacionais junto ao público, com a

trajetória da parcela do endividamento dos governos subnacionais, atrelada de alguma

forma a taxa de juros federal, pautada pelas decisões de política econômica.

A despeito do aspecto conjuntural que caracterizou a elevação das taxas de juros

após a implementação do plano de estabilização, observa-se uma tendência estrutural

à elevação das taxas de juros. As inovações introduzidas no mercado financeiro, nas

últimas duas décadas, aumentaram significativamente a mobilidade do capital

(condicionada, entre outros fatores, pelo diferencial de juros). o que ocasionou um

aumento generalizado da taxa de juros. Segundo Ter-Minassian (1996a:1):

Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados, indicam que a dívida ARO girava em torno de R$ 1,25 bilhão. Adificuldade de compará-las se deve ao fato de não apresentarem informação quanto ao último mês considerado.

31 As Antecipações de Receita Orçamentária caracterizam-se exatamente por serem operações de curto prazo edeveriam ser resgatadas ao final do ano fiscal.

32 Nesse ano, o Conselho Monetário Nacional (CMN), por intermédio do voto 162/95, instituiu uma linha de créditoemergencial para o refinanciamento das AROs e fundam R$ 540 milhões (de um total de R$1,6 bilhões). Ajustificava para incluí-las sustentou-se no fato de esta modalidade de endividamento ter superado os limitesrecomendáveis para este tipo de operação e das elevadas taxas de juros incidentes sobre essa modalidade deendividamento. O refinanciamento proposto pela CEF alivia um pouco a situação dos estados, muito embora ascondições sejam bastantes rigorosas.

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“Esta última tendência [geral de elevação da taxa de juros] reflete: os níveis cadavez mais elevados de estoque da dívida e seus requisitos de refinanciamentos, acrescente utilização de meios não monetários de financiamento dos déficits; e acrescente integração dos mercados financeiros em todo o mundo, que facilita asmovimentações de capital em decorrência de variações nas taxas de juros.”

Frente a isso, constata-se que a taxa de juros pode seguir uma trajetória

declinante (em comparação às taxas já praticadas), mas a tendência é se manter em

um patamar elevado.

As operações de crédito realizadas pelos governos subnacionais são oriundas de

diferentes fontes. O custo do crédito está subordinado à modalidade pela qual o recurso

foi obtido. A estrutura de endividamento das unidades subnacionais condiciona o custo

de rolagem da dívida, assim como a capacidade de financiamento.

Assim, as decisões de política monetária repercutirão diferenciadamente sobre as

diferentes unidades da Federação. As modalidades de endividamento que preponderam

nas diferentes unidades federativas estão associadas à capacidade de alavancagem de

recursos em diferentes mercados. Aparentemente, a realização de operações de crédito

pelo setor público estadual não se dá a partir de uma estratégia de endividamento, mas

por meio da canalização de recursos obtidos por meio das fontes de financiamento

disponíveis. Estas determinam, em última instância, a forma pela qual os governos

subnacionais se endividam e prenunciam a vulnerabilidade dos governos às oscilações

da taxa de juros e baliza a trajetória do endividamento.

O grau de federalização da dívida dos governos estaduais dependerá, em grande

medida, do perfil de endividamento presente na década de 70 e serão determinantes da

estrutura de endividamento. Conclui-se que o impacto da política monetária sobre os

estados está relacionado sua vulnerabilidade frente a oscilações da taxa de juros.

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Assim, a composição da dívida condiciona as condições de rolagem e, em certa

medida, o estoque da dívida dos estados.

2.4. A Estrutura da Dívida Estadual em 199633

A dívida estadual34 atingiu, em outubro de 1996, o montante de R$ 178 bilhões,

distribuídos entre captação via fontes internas (R$ 164 bilhões) e a de origem externa

(R$14 bilhões). Pode-se examinar a questão por outro prisma, a saber, o endividamento

por esfera administrativa. Segundo esta ótica, a administração direta responde por

cerca de 74% do endividamento.

• A Dívida da Administração Direta dos Governos Estaduais

A dívida interna da administração direta pode ser subdividida em três categorias,

a saber, dívida contratual interna, dívida mobiliária e dívida flutuante. A dívida mobiliária

e a dívida contratual interna (inclusive renegociadas) compõem a dívida fundada.

Quanto à dívida flutuante, esta é composta pelas dívidas AROs, atrasos no pagamento

de despesas e dívidas junto a fornecedores.35

A dívida contratual interna respondia por cerca de 45% do endividamento dos

estados e tinha como principal credor o próprio setor público, cujos empréstimos aos

33 As tabelas dessa seção estão no Anexo 2 Tabelas, por serem demasiadamente extensas para entrarem no texto.34 Os dados utilizados nesta seção foram gentilmente cedidos pela Secretaria do Tesouro Nacional. O seu exame

fornece um detalhado quadro da atual situação da dívida nos estados. Observa-se que existem problemasmetodológicos que impedem a compatibilização dos dados do Tesouro com os de Dívida Líquida do SetorPúblico do Banco Central. É interessante notar que, ignorando as diferenças entre ambos os dados, a série doBanco Central não é necessariamente incompatível com as informações do Tesouro. A agregação das estatísticasde DLSP em estados e municípios dificulta chegar conclusões definitivas.

35 A dificuldade de contabilizar a dívida flutuante torna a sua mensuração menos confiável e menos desagregada. Embora a STN apresente asmelhores estatísticas, estas não incorporam necessariamente a dívida flutuante em toda a sua abrangência.

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estados representam mais de 99% (dos quais mais da metade são débitos junto à

União).

A dívida junto à União dizia respeito, basicamente, à dívida interna renegociada.

Esta subdividia-se basicamente entre as que foram renegociadas no âmbito da Lei no

7976/89 e da Lei no 8727/93. A primeira apresenta um saldo de R$ 10 bilhões; a

segunda, R$ 43 bilhões.

Ao exame da distribuição regional da dívida renegociada, constata-se que esta

está relativamente concentrada nas regiões de menor poder aquisitivo. Utilizando-se

como parâmetro a receita líquida dos estados, observa-se que a participação das

regiões mais pobres está superdimensionada. O Nordeste e o Centro-Oeste têm uma

participação expressiva, alcançando 46%, contra uma receita líquida de 26,5%.

Outra questão relevante diz respeito à participação destas dívidas na composição

da dívida da região. No Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste, estas dívidas são de

47%, 68% e 54%. Ou seja, as dívidas renegociadas participam de forma significativa em

sua composição.

É interessante observar que o crescimento acentuado da dívida mobiliária afetou

grandemente a composição da dívida nos estados. Conforme foi discutido

anteriormente, as dívidas sob a forma de títulos triplicaram em cinco anos,

reconfigurando a composição da dívida dos estados. Aparentemente, a dinâmica da

dívida mobiliária reforçou a estrutura do endividamento dos governos subnacionais, mas

a distribuição percentual indica que estas dívidas já estavam fortemente concentradas

nas regiões de menor poder aquisitivo.

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Pode-se estabelecer uma hipótese para o que, de fato, ocorreu. Por um lado, a

dívida renegociada pela Lei no 7976/89 regulamentou a renegociação da dívida externa

que vinha ocorrendo por meio dos Avisos MF30. Quanto à dívida dos estados junto ao

governo federal, provavelmente herança das décadas de 70 e de 80, estas foram

refinanciadas pela Lei no 8727/9336. A dívida mobiliária surge como alternativa de

financiamento para os estados de maior poder aquisitivo, particularmente após a

década de 80.

Como já discutido no começo do capítulo, ao longo da década de 70, as

restrições ao endividamento dos governos subnacionais limitavam o acesso dos

estados ao crédito por meio de operações extra-limites. Entre estas operações

destacavam-se aquelas junto ao governo central. Além disso, na década de 70, a

abundância de recursos no mercado internacional estimulou a contratação de

operações de crédito junto ao exterior. Na década de 80, o escasseamento das

alternativas de financiamento por meio de crédito levam os estados de maior poder

aquisitivo a captar recursos por meio de títulos.

A estrutura do endividamento em 1996 refletia as alternativas de crédito dos

governos subnacionais nas décadas anteriores e a dívida renegociada seria um

indicador do padrão de endividamento dos estados. A dinâmica da dívida mobiliária

reconfigurou a estrutura de endividamento dos estados.37

36 A participação da dívidas dos estados junto a Caixa Econômica (referente ao FGTS) corresponde a cerca de 70%da dívida renegociada pela Lei no 8727/93. Conforme assinalado anteriormente, os fundos de investimento foramuma das fontes de crédito para os governos subnacionais na década de 70.

37 A emissão de títulos sob a justificativa de pagamento de precatórios está associada ao desequilíbrio fiscal e seráextraída da análise para tratar do componente financeiro stricto sensu. Será analisado, então, o estoque de dívidamobiliária como resultado de um processo.

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A atual estrutura de endividamento (cerca de 60% do endividamento dos estados

de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro e algo em torno de 30% para São

Paulo) refletia a evolução da dívida mobiliária. Essa atingiu, em 1996, percentuais

superiores a 40% da dívida interna da administração direta. Caso a dívida tivesse

crescido a taxas de 6,5% ao ano, os estados com volumes mais significativos de dívida

sob a forma de títulos apresentariam um estoque de divida mobiliária bem menor

(próximo à metade do que apresentavam em 1996). Isso representaria uma diminuição

da dívida global dos estados de Minas Gerais (30%), Rio Grande do Sul (30%), Rio de

Janeiro (30%) e São Paulo (15%)38.

Caso a dívida acompanhasse a velocidade de crescimento das dívidas

renegociadas, a dívida mobiliária representaria algo próximo de 45% da dívida e

corresponderia a um estoque significativamente menor. Em suma, mesmo que a dívida

mobiliária crescesse a taxas bem menores, a sua participação no endividamento dos

estados ainda seria muito significativa. Esta afirmação permite extrair duas conclusões.

Inicialmente, pode-se afirmar que uma importante alternativa para o financiamento dos

governos subnacionais foi o endividamento por meio de títulos. Em segundo lugar, a

dívida mobiliária representou a aceleração do crescimento da dívida destes estados

(Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo).

Em 1996, a participação da dívida externa representa cerca de 5% da

administração direta. Deste percentual, uma parte significativa foi objeto de acordo (os

acordos a renegociação da dívida externa, assinados pelo governo federal, foram

38 Nos demais estados, a diminuição não chegaria a 5%.

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estendidos aos governos estaduais e outra importante parcela foi renegociada sob o

amparo da Lei no 7976/89).

É interessante notar que as fontes de financiamento externo representavam mais

de 25%39 da dívida dos governos subnacionais em 1982; em 1996 estavam reduzidas a

5%. A questão da dívida externa foi assim equacionada ao longo da década.

Atualmente, seja em termos de estoque, seja em termos de rolagem, o ônus da dívida

externa para os estados não é significativo.

Define-se a dívida flutuante como aquela com prazo de vencimento menor do

que um ano. Nesta, destacam-se a ARO, a dívida junto a fornecedores e atrasos no

pagamento de funcionalismo. A própria natureza desta forma de endividamento dificulta

um registro preciso das operações de crédito realizadas. Desta forma, o dado referente

à dívida flutuante é precário por definição. Toda e qualquer análise deve considerar esta

limitação.

Em outubro de 1996, a dívida flutuante dos estados alcançou R$ 10 bilhões. A

evolução desta forma de endividamento é uma proxy dos desajustes fiscais dos

estados. A ausência de informações em determinado estado, ou a apresentação de

valores muito baixos não indica que existia uma situação de equilíbrio; no entanto,

valores elevados podem sugerir graves desequilíbrios de natureza fiscal.

A dívida dos estados referente à administração indireta estadual, em dezembro

de 1996, atingiu R$ 44 bilhões, ou seja, representava um quarto do total do

endividamento dos estados. A dívida estava fortemente concentrada na dívida contratual

interna, que responde por mais de 85% do total do estoque desta esfera administrativa,

39 Segundo metodologia da Dívida Líquida do Setor Público, in Furuguem, Pessoa e Abe (1996).

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subdividida basicamente entre a dívida junto ao Tesouro Nacional e junto a Instituições

Financeiras Públicas Não Federais. Essa última forma de endividamento, nota-se,

restringe-se às estatais paulistas.

2.5. Considerações Finais

É interessante observar que a composição percentual não se deve ao

crescimento da dívida mobiliária, mas sim a esse padrão de financiamento dos

diferentes estados. Assim, apesar dos impactos sobre a estrutura do endividamento

serem marcados pelo crescimento acelerado de uma modalidade de dívida, o que

determinou a composição do endividamento, em grande medida, foi o processo de

endividamento ao longo das décadas de 70 e 80. Prova disto é a distribuição regional

da dívida renegociada, que é muito concentrada nos estados mais pobres.

Da constatação de que existem diferenciais de juros muito significativos entre as

diferentes modalidades de dívida, conclui-se que sua composição teve implicações

sobre o estoque de dívidas e, portanto, influenciou a distribuição regional da dívida

estadual.

No processo de federalização, por intermédio das Leis nos 7976/89 e 8727/93,

foram transformados em compromissos com a União uma parcela significativa das

dívidas externa e junto a instituições federais. Em decorrência da estrutura da dívida dos

estados de menor poder aquisitivo, estes foram os que mais se beneficiaram. A falta de

outras alternativas de crédito terminou por restringir o endividamento destes estados

nos financiamentos junto a instituições federais e no exterior (nos quais, geralmente,

contavam com o aval da União)

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A reestruturação destas dívidas foi realizada em condições de financiamento

compatíveis com a capacidade de pagamento dos estados. A participação da dívida

renegociada na composição da dívida estadual indica a parcela da dívida dos estados

que não está descontrolada. A atualização da dívida por taxas de juros subsidiadas

protege os estados das oscilações da taxa de juros, ou seja, confere aos estados

imunidade frente à política monetária adotada pelo governo. Assim, o peso destas

modalidades na composição determina, em grande medida, o grau de fragilidade

financeira dos estados40.

Identificam-se, então, implicações sobre a autonomia dos estados. Inicialmente,

pode-se dizer que o atrelamento da dívida mobiliária à taxa de juros federal aumentou a

vulnerabilidade dos estados frente à política monetária adotada pelo governo central.

Em segundo lugar, a troca de títulos estaduais por federais no Banco Central poderia

ser suspensa a qualquer momento, já que a operação tem um caráter informal. Em

terceiro lugar, o estoque da dívida atingiu valores tão elevados que indicavam perda de

autonomia fiscal, porque, em algum momento, o saldo devedor deveria ser liquidado.

Ao contrário dos demais estados, cuja única fonte de financiamento era a oferta de

crédito disponibilizada pelo governo federal, constata-se que a autonomia própria aos

estados de maior poder aquisitivo (decorrente da sua própria capacidade de alavancar

recursos no mercado e contornar, em alguma medida, os controles impostos pelo

governo federal) induziu ao endividamento e este reforçou a dependência para com o

governo central.

40 Como fragilidade financeira entende-se a vulnerabilidade dos estados frente às oscilações da taxa de juros.

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Capítulo III: O Desequilíbrio Financeiro dos Estados e o Acordo deRefinanciamento

Nesse capítulo, dimensiona-se, inicialmente, o desequilíbrio financeiro dos

governos estaduais. O estado crítico das finanças estaduais, que teve como

contrapartida uma proposta pelo governo federal de refinanciamento da dívida,

condicionado à realização de uma reforma de Estado pelos governos estaduais, é

apresentado em seguida. Expõe-se, então, as razões pelas quais a União refinanciou a

dívida estadual, a proposta de acordo e suas conseqüências, o subsídio concedido pela

União aos entes da federação e as conseqüências do acordo para os governos

estaduais

3.1. Dimensionado o desequilíbrio financeiro em 1996

A magnitude do desequilíbrio financeiro, que antecede ao acordo de

refinanciamento estadual proposto em 1997, será discutida a partir da utilização de

indicadores sugeridos na literatura de Finanças Públicas41 (indicador meta fiscal -

utiliza-se a receita como parâmetro para o estoque de dívida - e indicador de margem

de poupança real - avalia o percentual de receita a ser dispendido para pagar o serviço

da dívida). Mais relevante do que a relação entre a dívida e a receita é a divergência

entre a trajetória dos juros e a capacidade de pagamento dos estados (responsável pela

situação financeira crítica dos estados).

Da análise do indicador de Meta Fiscal, conclui-se que existem focos de

desequilíbrio em regiões pobres e ricas, particularmente em estados cuja a dívida

renegociada têm peso menor. Pode-se inferir que a capitalização dos juros altos ao

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estoque reconfigurou toda a distribuição percentual do endividamento sobrecarregando

os estados com uma parcela maior de dívida não renegociada. Em termos gerais,

observa-se que os estados apresentavam relações entre a dívida e receita corrente

líquida muito superiores às sugeridas por organismos multilaterais como o Banco

Mundial (que considera a relação 1 a 1 ideal)

Como não existiam estatísticas que reproduzam a evolução das diferentes

modalidades de dívida, à exceção da série de dívida mobiliária, cuja trajetória pôde ser

reconstituída desde 1990, construiu-se o Indicador de Margem de Poupança Real

(superávit primário necessário para cobrir o déficit operacional) com dados de dívida

mobiliária por unidade da federação.42.

A margem de poupança real dos estados que não emitiram precatórios

expressava, de 1993 a 1996, o superávit primário necessário para cobrir o déficit

operacional referente à dívida mobiliária. A partir de 1994, a trajetória da margem de

poupança real para financiar o déficit operacional acompanha o movimento da taxa de

juros e cresce explosivamente 43 - em alguns casos extremos os superávits primários

chegavam a atingir cerca 80% (Minas Gerais e Rio Grande do Sul)

Os indicadores mostram que existia de fato uma situação de grave desequilíbrio

financeiro. Os superávits primários exigidos para o financiamento do déficit operacional

41 Ver Nogueira. P.B(1988), Afonso, J.R., Rezende (1982), Rezende e Afonso (1989), Mendonça de Barros, J. (1996)42 Como o Indicador de Margem de Poupança Real inclui somente a dívida mobiliária (33% da dívida dos estados na

época), esse indicador está subestimado e o superávit primário para “zerar” o déficit operacional deveria ser muitomaior, mas não proporcional à participação da dívida mobiliária (pois parte representativa já foi renegociada). Aparcela referente à dívida estadual que foi renegociada por intermédio das leis 7.976/89 e 8.727/93 a juros abaixodo mercado supõe o pagamento de juros e amortização, os quais chegam a comprometer, em alguns estados,mais de 11% da receita líquida real.

43 A dívida assume uma trajetória explosiva quando o devedor não consegue sequer pagar os juros, que devem,assim, ser incorporados ao principal.

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50

mostram que a dívida fugiu ao controle dos governos estaduais.44 Deve-se ressaltar que

a crise das finanças estaduais era generalizada, não estando restrita a um certo grupo

de estados, muito embora se manifestasse com intensidade e extensão diferenciadas.

O desequilíbrio financeiro dos estados, independentemente das razões pelas

quais os estados se endividaram, deveria ser equacionado. As implicações sistêmicas

da situação falimentar dos governos estaduais exigiram uma saída negociada. Adiar a

solução somente agravaria os problemas, já que a pressão do fluxo sobre o estoque,

dada a política de elevadas taxas de juros, conferia um caráter explosivo a situação. O

crescimento do endividamento deveria ser compatível com a capacidade de pagamento

para reverter essa trajetória.

3.2. A União

Uma saída da qual a União participasse como articuladora de um acordo de

refinanciamento tornou-se cada vez mais flagrante. Constatada a existência de uma

crise financeira grave dos governos estaduais, observava-se a necessidade de buscar

alternativas para a sua superação. Os estados dispunham somente instrumentos de

ordem fiscal. No entanto, como afirma Baer (1994), ao analisar a política de ajuste do

setor público na década de 80, quando os desajustes financeiros adquirem tal

gravidade, políticas fiscais não conseguem revertê-los. Esta situação do setor público

encontra paralelos na situação estadual em 1996

44 Para dimensionar a gravidade da situação, realizou-se uma simulação do que ocorreria caso os estados tivessemsua dívida integralmente refinanciada por um prazo de 30 anos, com taxa de juros de 6% a.a. Aplicada a tabelaPrice, constata-se que a prestação prevista é, na maioria dos estados, inferior a um comprometimento de receitade 15%. Isto significa que, caso estes estados obtivessem superávits primários da ordem de 17%, conseguiriampagar as prestações de financiamento em 360 meses. Alguns poucos estados (os mais endividados) nãoconseguem arcar com o seu estoque de dívida mesmo que este fosse refinanciado em 30 anos.

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51

Como afirmou Baer (1994:71) em relação à crise financeira do Estado na década

de 80:

“(...) A violência do choque externo _ não só pela elevação dos custos financeirosinternacionais e pela deterioração das condições de troca, mas especialmentepelo corte do financiamento externo _ e a política de ajuste implementada paraenfrentá-lo implicaram desajustes financeiros no setor público de tal magnitude, quedificilmente podem ser resolvidos com políticas fiscais isoladas e convencionais(aumento nas despesas e corte nas despesas). A análise sugere que o problemavai além da questão fiscal e diz respeito à recomposição das condições internas einternacionais de financiamento do setor público.”

Como um ajuste fiscal não conseguiria reverter o quadro de desequilíbrio

financeiro, torna-se relevante discutir outras formas de recomposição da capacidade de

pagamento dos estados. Esta recomposição está condicionada às condições de

rolagem que, na medida que permitem a compatibilização entre o montante de dívida à

capacidade fiscal dos estados, eliminam da dívida o componente explosivo.

A transformação do financiamento de curto prazo em outro compatível com a

capacidade de pagamento dos estados suaviza o ajuste fiscal necessário na presença

de desequilíbrios financeiros. O ajuste fiscal, isoladamente, não permite a superação do

problema na esfera financeira; muito embora a esfera fiscal condicione a capacidade de

superação da crise financeira, pois esta, em certa medida, define a capacidade de

pagamento, pelos governos subnacionais, dos encargos da dívida.

O agravamento da crise indicava a necessidade de uma solução inclusive para

evitar os efeitos sistêmicos decorrentes do caráter instabilizador intrínseco à insolvência

de uma unidade da Federação.45 A falta de alternativas de financiamento de longo prazo

45 Segundo Giambiagi (1995:9):

" Isso [a operação de troca de títulos estaduais por federais realizada pelo Banco Central]traria problemas sistêmicos graves, pois haveria um grande risco de levar à quebra boaparte dos bancos estaduais, com o "efeito dominó" próprio das crises financeiras. É emfunção desse risco que o Banco Central continua validando a mencionada troca de papéis,

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na economia terminaram por fazer que a União exercesse a função de estabilizadora e

viabilizasse financeiramente os estados. Neste capítulo, discute-se, então, o acordo

entre União e governos estaduais e suas implicações sobre a estrutura federativa.

3.3. O acordo de refinanciamento

A Lei 9496/97 regulamenta o refinanciamento da dívida dos estados pelo

Governo federal. Ela autoriza a União a assumir a dívida mobiliária, assim como outras

operações de crédito interno e externo ou de natureza contratual (essas últimas

referentes a despesas de investimento, contratadas até 31 de dezembro de 1994);

assumir os empréstimos tomados pelos estados e pelo DF junto à Caixa Econômica

Federal, compensar os créditos dos Estados contra a União, refinanciar os créditos da

União junto aos estados.

A lei propõe o estabelecimento de programas de Reestruturação e de Ajuste

Fiscal, do qual o refinanciamento é parte integrante. Esse programa prevê o ajuste

fiscal e reformas administrativa e patrimonial no âmbito estadual. Segundo a lei, o

refinanciamento será quitado em até 360 parcelas mensais, com juros de, no mínimo,

6% ao ano (em acordo aos contratos assinados individualmente) e, preferencialmente,

20% da dívida deveria ser paga à vista (amortização extraordinária).

Os contratos de refinanciamento poderão constar de limite máximo de

comprometimento da RLR (no qual estarão inclusos compromissos referentes a dívidas

já refinanciadas juntos a União46). Quando a parcela estipulada pela Tabela Price for

mas, por outro lado, os estados não têm garantia de que ela seja permanente."(Giambiagi,1995:9)

46 Neste teto estavam inclusos os desembolsos referentes às Leis 7976/89 e 8727/93 e à dívida externa existenteaté 30/09/91

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superior ao comprometimento de receita previsto nos contratos de refinanciamento, o

resíduo será acumulado e sobre ele incidirão os mesmos encargos financeiros do

contrato de refinanciamento. Quando a parcela do financiamento referente ao principal

for inferior ao percentual de comprometimento de receita previsto em contrato, o resíduo

seria reincorporado.

Nos acordos assinados entre governos federal estaduais, o desembolso dos

estados não deveria ultrapassar um certo percentual da receita real líquida (entre 13 e

15%). A definição da taxa de juros estava condicionada ao pagamento de 20% da dívida

à vista (o que deu início ao processo de privatização de empresas estatais estaduais)

A dívida renegociada pelo atual acordo representa atualmente um passivo junto

ao Tesouro da ordem de R$120 bilhões. Com esse refinanciamento a parcela da dívida

estadual fundada que tem como credor a União atinge um percentual próximo a 90% da

dívida total.

São Paulo isoladamente foi contemplado com R$ 54 bilhões, o que corresponde

a 44% do montante refinanciado. Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, por

sua vez, refinanciaram respectivamente R$ 19; R$ 14 e R$12 bilhões. Os quatro

estados absorveram, conjuntamente, mais de 80% do recursos destinados ao

refinanciamento.

Extraídos os R$26 bilhões referentes ao refinanciamento da dívida de São Paulo

junto a instituições públicas não federais, a dívida renegociada destes estados foi

preponderantemente mobiliária.

Conclui-se que o acordo foi primordialmente destinado para solucionar a questão

da dívida mobiliária. Como os estados mais ricos são exatamente os que apresentavam

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maiores débitos, estes foram aqueles mais beneficiados. Naturalmente esses estados

deveriam apresentar as maiores dívidas, proporcionais ao seu peso seja em termos de

formação do produto interno bruto, seja em termos de sua receita líquida, o montante

da dívida dos estados de maior poder aquisitivo (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas

Gerais e Rio Grande do Sul), contudo, é superior a essas participações.

3.4. Implicações da renegociação

O acordo de refinanciamento estruturou-se sob bases reais, incorporando a

dimensão patrimonial à idéia de equilíbrio fiscal. A consolidação das dívidas permitiu

uma avaliação da real situação financeira dos governos estaduais. Como contrapartida

ao refinanciamento das suas dívidas, os governos estaduais comprometeram-se a

realizar um rigoroso ajuste fiscal, a privatizar empresas estatais estaduais e a liquidar

os seus bancos estaduais.

• ajuste fiscal

A interdependência das esferas fiscal e financeira implicou a procura de

alternativas para reverter o grave desequilíbrio das finanças estaduais. As possíveis

soluções vislumbravam, então, um rigoroso ajuste fiscal de modo a assegurar, no

médio/longo prazo, condições de governabilidade nas unidades da federação. Este

acordo de refinanciamento integrou um programa mais abrangente de reestruturação do

Estado, que previa medidas para o ajustamento fiscal das unidades da federação como

um dos alicerces de sua sustentação.

Ao propor como meta fiscal a relação dívida/receita, implicitamente exige-se uma

margem de poupança compatível com o percentual de comprometimento de receita. O

comprometimento da receita para o pagamento das parcelas de amortização

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implicitamente significa superávites operacionais entre 14,9% e 17,7% (dependendo do

comprometimento da receita)47. A capacidade de comprometer um determinado

percentual da receita para o pagamento da amortização da dívida dependia de um

rigoroso ajuste fiscal por parte dos estados.

A queda da inflação após o plano Real impediu que os estados continuassem

utilizando mecanismos espúrios de ajuste da despesa à receita. Assim, não obstante o

aumento significativo da arrecadação logo após a estabilização monetária, a grande

maioria das unidades da federação defrontou-se com sucessivos déficits primários. O

desequilíbrio fiscal antecedia ao agravamento da crise da dívida e ao próprio plano de

estabilização e observava-se a necessidade de ajuste rigoroso com a perspectiva de

cortes expressivos. Este processo sinalizava mais uma via de arrefecimento do

processo de descentralização e de limite à autonomia.

Com o acordo de refinanciamento, a União conseguiu que os estados

participassem o esforço de ajustamento fiscal que já vinha sendo realizado pela esfera

federal em resposta ao programa de estabilização monetária.

• bancos estaduais

A privatização ou liquidação dos bancos estaduais representou um dos maiores

êxitos do Tesouro no seu esforço de sanear as contas estaduais. A dificuldade de tomar

conhecimento quanto à saúde financeira dos estados estava, em parte, subordinada às

relações intrincadas que se estabeleciam entre governo estadual e seus respectivos

bancos. Os bancos estaduais eram uma extensão da administração estadual e

47 Adotou-se o seguinte procedimento para se fazer este cálculo: considerando-se que o comprometimento dareceita oscila entre 13 e 15% (conforme está no quadro referente às condições do acordo) e que o superávitoperacional inclui juros, supôs-se que o comprometimento da receita significa um superávit operacional, já que opagamento refere-se a juros e amortização.

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garantiam às unidades da federação quase que a capacidade de emitir moeda. A

inclusão desta cláusula no acordo entre governo federal e estados foi um importante

passo em direção ao controle do endividamento dos governos subnacionais ou, ao

menos, uma iniciativa para que as contas das administrações estaduais adquirissem

maior transparência.

A importância de alguns destes bancos, tais como o BEMGE e o BANESPA,

levava o Banco Central a realizar operações sucessivas de salvamento a fim de impedir

que a insolvência destes bancos repercutisse em todo o sistema e intensificasse o

caráter instável intrínseco ao mercado financeiro. Assim, o Banco Central sancionava o

endividamento dos estados e, mais, ratificava as relações promíscuas entre

administrações estaduais e seus respectivos bancos. As intervenções nem sempre

estavam condicionadas estritamente a fatores econômicos.

• Privatizações48

O processo de privatização das empresas estatais estaduais, motivado pelo

desequilíbrio fiscal e financeiro das unidades da federação, inicia-se em 1996 (muito

embora se acelere de fato somente em 1997) Os recursos obtidos foram utilizados para

financiar despesas correntes e para o pagamento dos 20% à vista previstos nos

contratos de refinanciamento.

Conduzido pelo BNDES, que já dispunha do know-how assimilado pelas vendas

de estatais federais, até o momento49, nesse processo foram predominantemente

privatizadas empresas dos setores de energia elétrica e de transportes. Já foram

48 Abrucio e Costa (1998) desenvolvem análise sobre o processo de privatizações de estatais estaduais.49 Março de 2000.

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arrecadados R$ 38 bilhões, entre privatizações propriamente ditas, vendas de

participações minoritárias e concessões

Não obstante o processo de privatização, pode-se dizer que ele atingiu os

objetivos propostos na medida que angariou, em parte, os fundos previstos nos

contratos de refinanciamento da dívida para o pagamento de parte da dívida, deu

partida a saída dos governos estaduais da esfera produtiva e inseriu os governos

estaduais no processo de Reforma de Estado já em curso na esfera federal.

3.5. O ônus da União

A federalização da dívida estadual implicou em forte pressão sobre as contas da

União, com um aumento significativo da dívida federal. Inicialmente deve-se dizer que

em um primeiro momento não ocorreria necessariamente um desequilíbrio patrimonial,

já que o passivo referente à dívida assumida teria como contrapartida um ativo (a dívida

dos estados para com a União).

Existem três questões a serem colocadas. A União tem como devedor unidades

da federação que estão próximas da insolvência. Em segundo lugar, existe um

diferencial entre a taxa de juros praticada pela União para captar os recursos e aquela

dos contratos assinados entre os governos federal e estaduais. Em terceiro lugar, a

União provavelmente capta recursos no curto prazo para um financiamento de longo

prazo. O diferencial da taxa de juros implicará um subsídio aos estados que será arcado

pela União. O volume do subsídio é função das taxas de juros, cuja tendência não é

descendente. Assim sendo, mesmo que taxas de juros como aquelas praticadas em

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1995 estejam associadas à conjuntura macroeconômica, essas deverão se manter em

um patamar elevado.50

O subsídio implícito no acordo de renegociação está fortemente concentrado nos

estados São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que canalizam

mais de 90%. Mostra-se, desta maneira, que o endividamento de alguns estados

repercute sobre a federação e que no acordo de refinanciamento está implícito um

subsídio, que beneficiará os estados mais ricos, particularmente São Paulo.

A autonomia dos governos estaduais repercutiu sobre todo o sistema, que partilha

o ônus da dívida de alguns estados. Conclui-se que por mais rigorosas que tenham sido

consideradas as condições impostas pelo Programa de Ajuste Fiscal, a União arcou

com a parte mais onerosa do acordo. Como Giambiagi (1995) argumentava51, a União

dispunha de capacidade para absorver esse impacto, mas ele foi oneroso.

3.6. O refinanciamento e as suas implicações

Quanto a autonomia dos governos subnacionais, constata-se a presença de

movimentos ambivalentes. Vislumbra-se alguns traços do espírito constitucional da

Constituição de 1988 no acordo de refinanciamento da dívida estadual. O tratamento

concedido à questão federativa na Carta Magna visava institucionalizar as relações

intergovernamentais (e, consequentemente, conferir a estas uma maior transparência) e

viabilizar um maior grau de autonomia das unidades subnacionais. O processo

50 É interessante observar que o crescimento da dívida devido ao refinanciamento da dívida estadual deve serconsiderado uma fonte de pressão sobre a taxa de juros.

51 Embora a situação não fosse tão crítica tal como hoje se encontra, mas os seus argumentos são de caráter maisestrutural. O subsídio, segundo a sua proposta, seria bem menos. Primeiro por se tratar somente da dívidamobiliária. Em segundo lugar por prever juros bem mais elevados.

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crescente de federalização da dívida estadual (por intermédio dos acordos de

refinanciamento), representou a institucionalização de relações que vinham que já

vinham se desenvolvendo discricionariamente e isso é um ponto positivo para os

estados.

Nota-se uma menor vulnerabilidade das finanças estaduais frente às oscilações

da política monetária e dos fluxos de receita com a fixação da taxa de juros e de um

determinado percentual de comprometimento de receita. A institucionalização das

relações intergovernamentais participa da construção de referencias federativos mais

sólidos e contribui para a autonomia dos estados.

A perda de controle dos bancos estaduais e a privatização das empresas estatais

estaduais restringiriam o grau de manobra dos estados. Quanto aos bancos estaduais,

a sua utilização para captar recursos transformou-os instrumento de autonomia espúria

e feria as prerrogativas federativas, ao introduzir instabilidade financeira no sistema.

No plano mais concreto do endividamento, a renegociação em curso significa

exatamente a compatibilização de um estoque de dívida elevado com a capacidade de

pagamento dos governos subnacionais. A falta de um padrão de financiamento

adequado contribuiu em grande medida para que a situação do endividamento

adquirisse contornos críticos. O refinanciamento proposto exigiu um ajuste fiscal e

absorveu recursos significativos, que de outra maneira poderiam estar sendo

canalizados para outras despesas.

Assim, o processo de descentralização fiscal proposto na Constituição de 1988

é, em grande medida, solapado, já que a disponibilidade de recursos foi drasticamente

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reduzida. O pagamento do compromissos assumidos na negociação previa superávits

primários entre 15 e 18%.

A análise dos números embora possibilite um exame pormenorizado da situação

apresenta limitações na medida que mostrou um quadro exato quando a situação das

unidades da federação guardavam particularidades muito significativas. Quando se

propõe uma proposta de refinanciamento da dívida mensura-se o montante a ser pago,

a forma de pagamento, buscando-se, dentro do possível, minimizar as diferenças de

tratamento entre estados. Entretanto, as próprias disparidades entre as diferentes

unidades da federação fazem com que um tratamento igual para unidades

completamente desiguais entre si atrele à qualquer negociação efeitos desiguais sobre

os entes federados. Existem uma série de medidas cuja a abrangência e a

profundidade não são mensuráveis. Assim, pode-se calcular o subsídio que a União

está concedendo aos estados, a distribuição desigual entre as diferentes unidades da

federação, mas esbarra-se nos impactos subjetivos da renegociação.

A questão que se coloca é que, por mais transparente que sejam as leis, existem

disparidades decorrentes do tratamento igual para entes desiguais. Através da

legislação pertinente pode-se definir critérios de distribuição de recursos fiscais, de

controle de endividamento ou de refinanciamento de dívidas, no entanto as

desigualdades regionais no Brasil são muito grandes. Desta forma, as leis implicarão

impactos diferenciados por unidade da federação. A transparência nas relações

intergovernamentais é uma condição necessária mas não suficiente para que o

tratamento dispensado considere as peculiaridades de cada estado.

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Pela sua própria natureza, as relações intergovernamentais desenvolvidas em

torno do endividamento serão sempre um espaço onde o jogo político se fez presente.

Diante disto, pode-se tentar construir referencias institucionais que confiram maior

transparência à esta forma de relação intergovernamental.

Os mecanismos institucionais de controle ao endividamento e dos acordos

assinados entre os governos estaduais e o governo federal podem apresentar

distorções, ser alvo de críticas, mas a sua própria formalização favorece a negociação e

a percepção de seus limites e das limitações à sua abrangência. A institucionalização

não significa a superação dos problemas, mas sim sua circunscrição a um espectro de

problemas pré-delimitado, que terá conseqüências sobre as relações

intergovernamentais, a curto e médio prazo.

O acordo de refinanciamento contribuiu para a institucionalização das relações

federativas. Nesse sentido, pode-se dizer que contribuiu para a construção da

autonomia dos governos subnacionais, mas reverteu o processo de descentralização

proposto pela Constituição de 1988. Paradoxalmente, a autonomia foi reforçada em um

processo de centralização.

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Capítulo IV: Alguns Desdobramentos do Acordo de Refinanciamento: adívida estadual e a lei de responsabilidade fiscal

A impossibilidade de propor uma política global sancionou o

sobreendivididamento dos governos de algumas unidades da Federação. Uma vez que

os desequilíbrios financeiros não puderam ser superados com um mero ajuste fiscal e

que acabaram sendo transferidos para a União, o ônus do saneamento financeiro de

alguns governos estaduais é arcado pela Federação e, em última instância, é partilhado

com os demais membros.

Como desdobramentos do acordo de refinanciamento, constata-se a

estabilização da trajetória da dívida (que reverte a tendência de crescimento e inicia

queda) e a promulgação da nova lei de Responsabilidade Fiscal.

Sob o ponto de vista dos governos estaduais, a questão do endividamento,

dentro dos limites do possível, foi equacionada. Não obstante esse fato, pode-se dizer

que nas relações financeiras intergovernamentais ainda transparecem os

desdobramentos derivados dos desequilíbrios financeiro e fiscal dos governos

estaduais, entre os quais se destaca a promulgação da Lei Complementar 101, mais

conhecida como a Lei de Responsabilidade Fiscal, proposta pelo Executivo Federal.

Essa lei foi sancionada com a intenção de assegurar a sustentabilidade

intertemporal das finanças governamentais. A gestão responsável da coisa pública, um

dos pilares do novo regime, baseia-se no levantamento sistemático das contas de

receita e despesa, de modo a que ocorresse um maior controle do uso do erário (com a

finalidade evitar a ocorrência de desequilíbrios fiscais), e em um tratamento rigoroso à

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questão do endividamento (por sua vez, para que as crises financeiras não se tornem

recorrentes)

Nesse capítulo, então, descreveremos, inicialmente, a situação da dívida

estadual. Posteriormente, discutiremos a Lei de Responsabilidade Fiscal, com enfâse

em suas implicações sobre o Estado Federativo e sobre a dívida das unidades da

federação.

4.1. A Dívida Estadual no Ano 200052

Nos últimos anos, praticamente todos os estados assinaram acordos de Ajuste

Fiscal e Reestruturação... Com base nesses acordos, conforme discutido no capítulo

anterior, foi refinanciada uma parte significativa da dívida estadual. Atualmente a dívida

dos governos estaduais está estimada em 20% do PIB.

De janeiro de 1998 a dezembro de 1999, a dívida estadual53 cresceu 13%.

Estimada em R$ 187 bilhões em janeiro de 1998, ela cresceu continuamente até maio

de 1999 - quando atinge R$ 220 bilhões54 - e iniciou, então, trajetória de queda. A última

informação disponível, referente a dezembro de 1999, indicava que havia sido reduzida

a R$ 211 bilhões. A federalização de parte representativa da dívida redimensionou a

dívida ao reconfigurar o seu perfil.

52 As tabelas dessa seção estão no Anexo 2 Tabelas, por serem demasiadamente extensas para entrarem no texto.53 Nessa seção utiliza-se dados do Boletim de Finanças Estaduais e Municipais/Banco Central. Para se discutir a

evolução da dívida, atualizou-se os dados monetariamente pelo IGP-DI centrado, referenciando-os para dezembrode 1999

54 Pode-se afirmar que a taxa de crescimento nesse período está superestimada na medida que o aumento da dívidaem parte pode ser atribuído à revisão de estimativa da dívida. Quando se observa a evolução mensal da dívida doestado do Rio de Janeiro, nota-se um crescimento abrupto da dívida que provavelmente se deve a umlevantamento do montante da dívida estadual.

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Nessa seção analisar-se-á a estrutura da dívida estadual. Para tanto,

reorganizou-se os dados apresentados pelo Banco Central de modo a obter uma

estrutura na qual se utilizasse como critério o fato de o credor ser público ou privado e

uma classificação por categoria (considerando os conceitos mobiliária, contratual e

externa).

Como dívida junto ao setor público considerou-se a dívida mobiliária e contratual

junto ao Tesouro Nacional, aos bancos públicos estaduais e federais e ao Banco

Central. Na esfera privada foram considerados os compromissos das unidades da

federação junto a credores externos, aos bancos privados, aos fundos de liquidez da

dívida, às demais instituições financeiras, aos fundos mútuos, aos outros créditos

assim como junto ao que o Banco Central classifica como outros credores contratuais.

Inicialmente, apresentar-se-á a evolução recente da dívida estadual por categoria

e segundo credor. Posteriormente, discutir-se-á a composição regional da dívida

segundo os mesmos critérios.

• Evolução da dívida estadual

Segundo informações do Banco Central a dívida dos governos estaduais entre

janeiro de 1998 e dezembro de 1999 cresce de R$ 188 bilhões para R$ 211 bilhões.

Nesse período observa-se uma tendência ao crescimento contínuo até julho de 1999

(quando atinge R$218 bilhões), quando ela se reverte e inicia um processo de redução.

Esse crescimento de 13% em dois anos, assim como as oscilações observadas

no tempo, refletem o processo de renegociação da dívida entre os governos estaduais e

a União. Alguns estados apresentaram crescimento acima da média no período ( Bahia,

Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e Ceará, além do Paraná). O crescimento

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subito da dívida desses estados, geralmente sob a forma de "saltos", aparentemente

está associado a acertos realizados no acordo de refinanciamento. O caso do Rio de

Janeiro ilustra essa hipótese.

A dívida do Rio de Janeiro cresce de 19 bilhões para 28 bilhões em menos de

um ano (janeiro de 1998 e dezembro de 1998). Tal fato pode ser atribuído à

incorporação de antigas dívidas ao saldo do estado e explica significativamente o

comportamento da dívida estadual no período. Por outro lado a redução da dívida do

estado em R$ 4 bilhões entre novembro e dezembro de 1999 deve ser associado à

assinatura do acordo da dívida que se traduziu na redução da dívida pelo pagamento de

vinte por cento à vista (por intermédio da transferência de direitos do estado sobre

royalties do Petróleo para a União) e com o subsídio concedido pelo governo federal.

Conclui-se que as oscilações da dívida no período ainda estavam fortemente

influenciadas pelo refinanciamento concedido pela lei 9496/97, mas com uma

tendência à redução gradual.

Evolução da dívida, segundo o critério público e privado

Entre janeiro de 1998 e dezembro de 1999 observa-se a consolidação do

processo de federalização da dívida estadual. Nesse período, nota-se a substituição da

dívida privada pela junto ao setor público. No início, a dívida junto ao setor privado

respondia por cerca de 10%, encerra o período reduzida a 8%. A maior parte do

processo de transferência de dívida do setor privado para o setor público já havia se

dado e, ao final do período, praticamente não mais existe. Quando se desconsidera a

dívida junto a credores estrangeiros, nota-se que no período a dívida junto ao setor

privado cai de 7% do total para 3.5%.

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No caso da dívida junto ao setor público nota-se um crescimento em termos

absolutos (a dívida de R$ 170 bilhões em janeiro de 1998 atinge em dezembro de 1999

R$ 195 bilhões) quando a dívida mais que compensa a queda observada na dívida junto

a credores privados. O crescimento da dívida está localizado naquela junto ao Tesouro

Nacional, que nesses dois anos sobe de R$ 115 bilhões para R$ 181 bilhões. A dívida

junto a instituições financeiras públicas inicialmente da ordem de R$ 54 bilhões, fecha o

período em R$ 9 bilhões. Esse movimentos contrários refletem o processo de

refinanciamento da dívida estadual, quando a dívida estadual junto aos bancos

estaduais e federais é assumida pelo T.N. com a correspondente transferência de

passivos.

Conclui-se que nesse período ocorrem dois movimentos distintos. O primeiro diz

respeito à redução do passivo estadual junto ao setor privado e o segundo de mudança

da estrutura do passivo no interior do próprio setor público. Ambos movimentos se

devem ao processo de refinanciamento da dívida estadual que transforma praticamente

toda a dívida estadual em dívida junto ao T.N. como conseqüência dos sucessivos

processos de refinanciamento.

Evolução da dívida por categoria

No período analisado observa-se uma mudança na composição da dívida com a

transformação da dívida mobiliária, em grande medida, em dívida contratual como

resultado do acordo de refinanaciamento da dívida.

Observa-se, no período analisado, uma redução expressiva da dívida mobiliária

em títulos. É interessante observar que isso não significou uma redução da dívida junto

ao setor privado, mas somente a mudança da composição da dívida junto ao setor

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público já que uma parte significativa da dívida mobiliária estava nas mãos do setor

público (79%)

• Distribuição regional da dívida

A dívida estadual está concentrada nas regiões Sudeste (58%) e Sul (16%), com

um montante superior a R$ 150 bilhões. As demais regiões detém compromissos da

ordem de R$ 60 bilhões. A distribuição regional da dívida reproduz a contribuição das

unidades da federação à formação do Produto Interno Bruto. A aparente disparidade

entre os estados reflete as desigualdades regionais. A maior parte dos estados

apresentam um endividamento da ordem de 20 a 25% do Produto Interno Estadual55.

Algumas exceções a serem ressaltadas referem-se a São Paulo e a estados da

região Centro-Oeste. São Paulo apresenta uma dívida, em termos de percentual do PIB

estadual, da ordem de 19%, inferior inclusive que a média Brasil (21%) Pelo peso do

estado na dívida total, São Paulo produz efeito significativo sobre a média, reduzindo-a.

Caso se extraísse o estado da amostra, a média Brasil subiria para 23%. Já no caso da

região Centro-Oeste, os estados de Goiás e Mato Grosso apresentam elevadas

participações de dívida em termos dos seus respectivos PIBs. (43 e 40%). Tal fato não

transparece quando se usa como parâmetro a receita corrente líquida ou a receita

líquida real em decorrência dos efeitos do sistema de transferência.

Destarte, as disparidades regionais na distribuição da dívida estão associadas à

própria formação do produto interno bruto. Como o dinamismo da economia local é um

dos principais indicadores da capacidade de arrecadação (e, consequentemente , da

capacidade de pagamento) a despeito da dívida paulista ser dezessete vezes a do Mato

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Grosso e nove vezes a de Goiás, o problema é muito maior para os estados do Centro-

Oeste do que para o da região Sudeste.

• Estrutura da dívida público e privado

A dívida estadual junto ao setor público atingiu R$ 195 bilhões, ou seja, 92% do

total. Desse total, R$ 181 bilhões são junto ao Tesouro Nacional (93% da dívida junto a

instituições públicas) e o restante se distribui entre bancos federais e estaduais (5%) e

o Banco Central (2%). A elevada dívida junto ao Tesouro Nacional deve-se,

basicamente, aos refinanciamentos concedidos pela União com amparo nas leis

7976/89, 8727/93 e 9496/97.

A dívida junto ao setor privado, da ordem de R$ 16 bilhões, basicamente consiste

na dívida com credores externos (R$ 9 bilhões) e com credores contratuais (R$ 4

bilhões). A dívida mobiliária atualmente responde por menos de 2% da dívida estadual

(R$ 3 bilhões).

A participação pouco significativa da dívida junto ao setor privado no montante

total pode ser associada a dois fatores. Inicialmente deve-se aos refinanciamentos com

base nas leis 7976/89 e, principalmente, 9496/97, que reduziram significativamente o

estoque de dívida junto ao setor privado na medida que a União assumiu os

compromissos junto aos credores das unidades da federação.

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que tradicionalmente o principal credor dos

governos estaduais sempre foi o próprio setor público. Como foi colocado inicialmente,

as relações intergovernamentais sempre apresentaram uma dimensão financeira, na

55 Utilizou-se como estimativa do PIB estadual calculado pelo IPEA para 1998 e atualizado monetariamente paradezembro de 1999.

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qual o endividamento era uma das formas de manisfestação. Essa situação somente foi

amplificada pelos acordos de refinanciamento

Distribuição Regional

Em todas as regiões do país observa o mesmo padrão de endividamento

(fortemente concentrado junto ao setor público). Nota-se que na região Sudeste este

percentual atinge 96%. É interessante observar que até o processo de refinanciamento

engendrado pela lei 9796/97 essa região apresentava o menor percentual de

federalização da dívida.

Quando se analisa as unidades da federação, constata-se que praticamente

todas apresentam estruturas de dívida similares (com dívidas junto ao setor público

superiores a 85%). As únicas exceções devem-se a participações mais elevadas da

dívida externa (no caso de Tocantins e Ceará) e somente em dois casos estão

associadas à dívida mobiliária (Alagoas e Santa Catarina).

A dívida, predominantemente junto ao setor público e a credores externos, pelos

critérios de correção, atenua a velocidade de crescimento da dívida e a compatibiliza

com o ritmo de crescimento das receitas estaduais (que em última instância define a

capacidade de pagamento). A dívida estadual, sob controle, inicia, no período, trajetória

de queda.

Composição da Dívida Renegociada

A dívida junto ao Tesouro Nacional distribui-se entre as refinanciadas com

amparo nas lei 7976/89, 8727/93 e 9496/97 (mais de 90% do total) e as referentes ao

bônus relativo à renegociação da dívida externa, assim como ao que o Banco Central

classifica como “outras” (com uma participação marginal - 0,9% do total).

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Os compromissos referentes à última renegociação, com base na lei 9496/97,

correspondem atualmente R$ 122 bilhões, ou seja, 67% da dívida junto ao Tesouro. A

dívida relativa à 8727, por sua vez, está estimada em R$ 37 bilhões, enquanto os

estados ainda devem R$ 9 bilhões à União em decorrência da 7976/89.

A estrutura da dívida refinanciada é muito diferenciada. Na região Sudeste e Sul

predomina a dívida referente ao último processo de refinanciamento, com percentuais

superiores, respectivamente, a 80 e 70% da dívida total junto ao Tesouro Nacional. Nas

demais regiões, a 9496/97 representa cerca de um terço da dívida, enquanto a 8727/93

responde por aproximadamente 50% da dívida. Pode-se atribuir tal fato ao processo de

endividamento dos governos estaduais, anteriormente discutido.

As disparidades regionais também refletem-se nas alternativas disponíveis de

financiamento para os governos estaduais. Essas alternativas que representaram uma

forma de contornar a restrição orçamentária das unidades da federação permitiram um

endividamento excessivo lastreado nos juros de mercado. Com a política monetária

restritiva, os serviços da dívida cresceram a taxas muito superiores ao da receita dos

governos estaduais e foram capitalizados ao principal. Como a estrutura da dívida era

muito diferenciada regionalmente o impacto foi igualmente muito díspar. E, como foi

colocado nos capítulos 2 e 3, o padrão de financiamento reflete-se na estrutura da

dívida entre os diferentes processos de refinanciamento.

A distribuição regional das dívidas refinanciadas não é homogênea. No caso da

7976/89, a região Sudeste consumiu 45% dos recursos refinanciados e a região Sul

15%, enquanto o Nordeste absorveu 26% e o Centro-Oeste 13%. Quando se compara a

distribuição regional da dívida com a contribuição desses estados para a formação do

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PIB, constata-se que as regiões Nordeste e Centro-Oeste estão relativamente

superdimensionadas.

Quando se analisa a participação das regiões no financiamento referente

8727/93, isso se torna mais evidente. O Sudeste, que responde por 60% do PIB

brasileiro, recebeu menos de 30% dos recursos destinados ao refinanciamento,

enquanto o Nordeste, o Centro-Oeste e o Norte foram contemplados com 60%. Esta

situação inverte-se quando se trata da lei 9496/97. A região Sudeste recebeu mais de

70% dos recursos, seguida pela região Sul (com 17% do total). As demais regiões

dividiram entre si os 10% restantes.

A distribuição regional dos refinanciamentos patrocinados pelas negociações

entre a União e as unidades da federação reflete, em última instância, as alternativas de

financiamento disponíveis. Em grande medida, as dívidas passíveis de refinanciamento

foram definidas em lei e, portanto, respeitam os empréstimos assumidos pelos

governos estaduais. Como existe quase um consenso sobre a falta de compromisso

com a coisa pública por parte do poder executivo estadual, preocupado em satisfazer as

demandas do eleitorado sem considerar as implicações intertemporais da utilização de

operações de crédito sobre o equilíbrio fiscal e financeiro dos estados, pode-se supor

que os governos estaduais utilizaram todos os recursos disponíveis para se financiar.

Logo, a distribuição regional reflete um padrão de financiamento diferenciado

regionalmente. Isso reforça a tese de que a disponibilização de recursos é muito

diferenciada regionalmente.

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• Estrutura da dívida por categoria

A estrutura da dívida é muito marcada pelo processo de refinanciamento da

dívida estadual. Como mais de 85% da dívida foi renegociada, atualmente os

compromissos estaduais estão predominantemente inscritos sob a forma de contratos

(94%). Desse total, a dívida interna corresponde a 90,1%, contra 3,9% da dívida externa.

A dívida mobiliária responde por 6% do total. É interessante observar que os

títulos estaduais estão predominante em posse do Banco Central e dos bancos

públicos federais. Aparentemente, esses títulos foram negociados no acordo de

refinanciamento da dívida estadual, mas provavelmente não foram ainda contabilizados

como dívida refinanciada. Essa suspeita baseia-se na distribuição regional da dívida,

fortemente concentrada nos estados de Santa Catarina, Rio de Janeiro e Alagoas.

O refinanciamento da dívida com base na 9496/97 homogeneizou a estrutura da

dívida estadual. O amplo espectro de dívidas que compunham o endividamento

estadual foi substituído pelo refinanciamento. Com isso, o endividamento perdeu o

caráter pouco transparente que sempre o caracterizou. O refinanciamento assegurou

regras claras e permitiu uma consolidação das diferentes modalidades de dívidas que

ficaram basicamente restritas à dívida refinanciada. O que antes era diagnosticado

como um faceta pouco transparente de relação intergovernamental foi institucionalizado

como tal e perdeu sua natureza obscura. Nesses dois últimos anos, a trajetória da

dívida estadual foi marcada pela consolidação das dívidas incentivada pelo acordo de

refinanciamento em negociação entre o governo federal e os estados.

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73

4.2. A Lei de Responsabilidade Fiscal

O conhecimento dos mecanismos de controle do endividamento é peça

indispensável na explicitação das atuais relações financeiras intergovernamentais. A

importância do controle do endividamento não significa que necessariamente se deva

proibi-lo, mas sim criar mecanismos institucionais que regulem as relações financeiras

intergovernamentais. O controle efetivo do endividamento é um passo a mais na

construção de um arcabouço institucional que fortaleça a Federação brasileira.

Atualmente o controle ao endividamento não mais é da alçada do Senado

Federal, em acordo com a Lei Complementar 101. A nova lei estabelece limites ao

endividamento do setor público, muito embora seja muito mais abrangente. A Lei de

Responsabilidade Fiscal, aprovada pelo Congresso em março de 2000, foi proposta

pelo Executivo Federal em 1999. Nesse ano, foram assinados os últimos contratos de

refinanciamento da dívida estadual e a lei surgiu como resposta ao desequilíbrio fiscal e

financeiro dos governos estaduais. Frente ao diagnóstico de que esse é resultado da

gestão irresponsável da coisa pública, a nova legislação prevê mecanismos de controle

fiscal e financeiro das contas governamentais.

Muito embora ela estabeleça regras para todas as esferas de poder, o seu

principal objetivo é garantir uma política fiscal sustentável intertemporalmente para

estados e municípios já que o governo federal conta com uma restrição orçamentária

estrutural em decorrência do seu compromisso com a estabilidade macroeconômica

(que resulta em necessidade permanente de equilibrar as contas públicas).

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• A Lei

Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas com a intenção

de incrementar a responsabilidade na gestão fiscal através de uma ação planejada e

transparente. Segundo a lei, a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a prevenção

de riscos e a correção de desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas,

mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a

obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de

despesas (tais como a com pessoal e com a seguridade social), dívidas consolidada e

mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de

garantia e inscrição em restos a pagar.

Para tanto, os governos subnacionais devem realizar um planejamento das suas

contas. O planejamento implica a elaboração, para todos os entes da federação de

plano plurianual56, lei de diretrizes orçamentárias57 e lei orçamentária anual58 .

Caso ultrapasse os limites previstos na lei, o estado deve se reenquadrar em um prazo

estipulado no texto legal

56 Compatível os objetivos e metas plurianuais de política fiscal

57 Ela disporá sobre (a) equilíbrio entre receitas e despesas; (b)critérios e formas de limitação do empenho; (c)parâmetros para os poderes para a fixação da despesa com pessoal e outras despesas correntes (inclusiveserviços de terceiros), com base na receita corrente líquida; (d) destinação dos recursos provenientes dasoperações de crédito; (e) normas relativas ao controle de custos e à avaliação dos resultados dos programasfinanciados com recursos dos orçamentos; (f) demais condições e exigências para transferências de recursos aentidades públicas e privadas; (g) limite referencial para o montante das despesas com juros)

58 Compatível com o PPA e com a LDO, ela deverá (a) ser acompanhada de demonstrativo do efeito sobre asreceitas e despesas decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira,tributária e creditícia e das medidas de compensação a renúncias de receita e ao aumento de despesasobrigatórias de caráter continuado (b) conter reserva de contingência, definida com base na receita correntelíquida, destinada ao pagamento de restos a pagar que excederem as disponibilidades de caixa ao final doexercício; ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos, (c) apresentar oresultado do Banco Central (seu impacto e o custo fiscal) apurado, após a constituição ou reversão de reservas,seja ele positivo ou negativo, (d) constar todas as despesas relativas à dívida pública e as respectivas receitaspara o seu financiamento, assim como o refinanciamento da dívida pública.

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• Objetivos da Lei

A Lei de Responsabilidade Fiscal enseja garantir a sustentabilidade intertemporal

à política fiscal. Para tanto, ela cria regras, limites e controles com a intenção de

modificar o tratamento dado a coisa pública e de responsabilizar os governantes pelo

seus atos.

O desequilíbrio financeiro dos estados refletiu a limitação dos mecanismos de

controle de endividamento dos governos subnacionais em evitarem o

sobreendividamento dos governos subnacionais. Pelo caráter de relação

intergovernamental intrínseco ao endividamento, os mecanismos de controle de

endividamento são importantes, na medida em que impedem que o desequilíbrio

financeiro atinja uma tal magnitude que se torne necessária a intervenção do governo

federal e a conseqüente transferência do desequilíbrio a instâncias superiores.

Como a capacidade de alavancar recursos é muito diferenciada entre as

diferentes unidades da Federação, as limitações dos mecanismos de controle de

endividamento permitem que alguns estados, utilizando as prerrogativas da autonomia,

se sobreendividem. É interessante observar que os governos subnacionais, ao contrário

do governo central (cujos interesses para a realização do ajuste fiscal se devem às suas

implicações sobre o equilíbrio macroeconômico), não têm um compromisso maior com

o ajuste já que os benefícios diretos com a sua manutenção não são evidentes e existe

tradicionalmente uma tendência a transferir os desequilíbrios locais para a União.

Nesse contexto, o controle ao endividamento assume papel fundamental. O

financiamento do governo advém de uma combinação de receitas fiscais e de recursos

provenientes de operações de crédito. Financiar diferenciais entre despesas e receitas

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implica necessariamente obter recursos via operações de crédito. A dívida, contudo,

representa um compromisso postergado e que deverá comprometer receitas futuras.

O objetivo da lei (pensar o equilíbrio intertemporalmente) ao evitar a presença da

ação irresponsável trata implicitamente de evitar situações de déficit potencial e, em

última instância, de controle de endividamento. Ao elaborar uma lei com a intenção de

gerir de modo responsável a coisa pública o Executivo federal propunha estabelecer

controles de endividamento com um caráter estrutural.

É interessante observar que déficit fiscal não implica necessariamente

descontrole das finanças. Pode-se realizar uma gestão responsável e simultaneamente

se recorrer ao financiamento via operações de crédito, até porque a análise do gasto

deve considerar uma perspectiva intertemporal. Em parte essa preocupação está

presente na lei (quando se estabelece a regra de ouro, que condiciona as operações de

crédito ao montante de despesas com investimento)

• A Lei de Responsabilidade Fiscal e o Controle ao Endividamento

O equilíbrio intertemporal das finanças públicas proposto pela Lei de

Responsabilidade Fiscal, tal como foi desenvolvido na última seção, é um mecanismo

de controle ao endividamento sustentável no tempo. A lei propõe especificamente

limites ao endividamento.

A decisão sobre os limites ao endividamento era até então da alçada do Senado

Federal, que julgava a os casos extraordinários e a pertinência das operações extra-

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limites com base em suas Resoluções59. O artigo 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal

prevê o estabelecimento de limites ao endividamento das três esferas de governo

A lei propõe a criação de limites ao endividamento global e mobiliário para as

três esferas de governo (a serem definidos pelo poder executivo). O estabelecimento

desses limites deve levar em consideração estimativa do impacto da aplicação dos

limites a cada nível de governo. Além do que a proposta do executivo federal deveria

conter demonstração de que estes limites estão em acordo com os objetivos de política

fiscal, entre os quais se destaca a sua sustentabilidade intertemporal (os níveis de

endividamento devem ser compatíveis com a capacidade de pagamento das unidades

da federação).

Tendo como parâmetro a receita corrente líquida, os limites de endividamento

para a União, para os Estados e para os Municípios poderão ser diferenciados (muito

embora essa proposição deva ser acompanhada de um arrazoado), mas deverão ser

padronizados para todos os entes da federação de cada esfera de governo.

Os entes da federação que superarem os limites estarão proibidos de realizar

operações de crédito externo e interno (inclusive operações de antecipação de receita

orçamentária), serão impedidos de receber transferências voluntárias e deverão obter o

resultado primário necessário para a recondução da dívida ao limite (ou então, fazer

contigenciamento das despesas por intermédio da limitação do empenho).

59 Até a promulgação da Lei Complementar 101, o controle ao endividamento era consubstanciado pela Resolução78/98.

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Diante da classificação de Ter-Minassian, acima descrita, constata-se que a Lei

de Responsabilidade Fiscal propõe um controle do endividamento por meio de regras.

Provavelmente, este procedimento é o que mais se adequa à realidade brasileira.

A dificuldade de estabelecer limites ao endividamento consiste nas diferentes

relações (e muitas vezes elevados) entre dívida e receita e ademais justificá-los como

sustentáveis intertemporalmente em termos fiscais. A relação entre dívida total por

estado e receita corrente líquida varia de 0.2 até 4.2, com uma média Brasil de 2.7.

(segundo os dados do Banco Central).

Foi feita uma simulação com o montante total da dívida estadual e as condições

propostas pelo Acordo de Refinanciamento, consubstanciado com base na lei 9496/97.

Como foi descrito acima, o acordo para a grande maioria das unidades da federação

previa o pagamento da dívida em 30 anos e, no caso de haver resíduo no final dos 360

meses, esse poderia ser quitado em 10 anos, com juros de 6% ao ano. Concluiu-se que

em 40 anos a grande maioria dos governos estaduais, mesmo que não realize mais

nenhuma operação de crédito nas próximas décadas e em condições ótimas, não

conseguirá pagar a sua dívida integralmente. Diante disso, questiona-se a possibilidade

de se estabelecer limites sustentáveis intertemporalmente em termos fiscais e

compatíveis com a atual situação de endividamento das unidades da federação. A

dificuldade de se estabelecer limites verossímeis em acordo com as premissas da lei

revela um dos eventuais problemas presentes na lei: ela não ser aplicável.

• A Lei de Responsabilidade Fiscal e a Formação do Federalismo no Brasil:centralização versus descentralização

A lei de responsabilidade fiscal apresenta uma natureza centralizadora ao

deslocar a discussão dos limites ao endividamento da esfera do Senado (instituição

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legislativa com que se busca reproduzir a natureza federativa do regime político

brasileiro) para o governo central. Além disso, a prestação de contas contínua, os

limites aos gastos, a liberação de condicionada de recursos reduzem o grau de

manobra dos governos subnacionais e conferem à lei um caráter centralizador, com

implicações sobre a autonomia dos governos subnacionais.

A lei em si na medida que auxilie a construção de um espaço institucional

ampliado poderia (paradoxalmente) representar um passo em direção à

institucionalização das relações, muito embora em prejuízo à descentralização. No

entanto, periga-se mais uma vez confirmar a avaliação de Afonso (1994) no sentido de

que o problema não estava localizado nas regras de controle de endividamento, mas

sim no componente político que permeava o processo de liberação de recursos. A Lei

de Responsabilidade Fiscal busca exatamente eliminar o componente político do

processo decisório em torno do endividamento. As dificuldades de se controlar o

endividamento no Brasil, assim como as demais relações intergovernamentais,

decorrem da força das relações baseadas em poder real, são essas que pautam os

movimentos de centralização e descentralização e cujas raízes se encontram no

processo de formação do federalismo brasileiro. Diante do subsídio concedido pela

União e os benefícios implícitos diferenciados, poderia se esperar uma mudança na

cultura política, baseada na institucionalização das relações intergovernamentais.

A rigidez da lei, em um contexto centralizador, pode levar a ação discricionária

por parte do governo central. Na medida que as regras são muito rígidas o próprio jogo

político, pautado por interesses conflitantes, tende a flexibilizá-las. Como a sua

flexibilização implica sair do espaço institucional, incorre-se no perigo de criar,

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novamente, relações intergovernamentais pouco transparentes. Em um país, no qual o

federalismo se caracteriza pela assimetria nas relações entre União e entes da

federação e entre os próprios governos subnacionais, deriva-se que o pacto federativo

reflete tais assimetrias.

A impossibilidade de propor uma política global, pelas próprias características

constitutivas do Estado Federativo brasileiro, levou ao sobreendividamento. A questão

que surge é se essa lei não será mais uma forma de confirmar as assimetrias que

marcam o federalismo brasileiro já que pode se esperar que as relações de poder

sejam transparentes, mas não assépticas.

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Conclusão

A constituição histórica do federalismo brasileiro, com cessão de poder do governo

central em direção aos governos locais, leva a que a autonomia dos governos

subnacionais seja permanentemente negociada. A permanente negociação dos limites

à autonomia dos governos subnacionais, própria ao Estado Federativo brasileiro,

reverte-se em movimentos de centralização e descentralização. A instabilidade que

caracteriza o contexto federativo brasileiro reforça a importância de referenciais

institucionais que ancorem as relações intergovernamentais.

A falta de uma política global de controle de endividamento sancionou o

sobreendividamento. Muito embora o agravamento da crise decorreu da exposição de

dívidas elevadas a condições adversas (política monetária restritiva), o desequilíbrio

financeiro dos estados decorreu da inocuidade dos mecanismos de controle de

endividamento. Como a federação no Brasil é marcada pela capacidade assimétrica de

contratar operações de crédito (devido às disparidades regionais), o controle ao

endividamento desempenha um papel fundamental para proteger a Federação da

autonomia espúria das unidades que a formam.

O endividamento assumiu recorrentemente a forma de relação intergovernamental no

Brasil, seja porque o Governo Central era o principal credor dos governos subnacionais,

seja porque, em última instância os desequilíbrios financeiros estaduais sempre foram

absorvidos pela União.

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A dívida estadual total atingiu, em dezembro de 1999, 21% do PIB, concentrada, em

grande medida, junto ao governo ao setor público (mais de 90%)60. Somente o

refinanciamento formalizado pela lei 9496/97 reescalonou mais de R$ 125 bilhões (13%

do PIB). A elevada participação de compromissos com a União no passivo estadual

explica-se pela forma como as relações intergovernamentais se pautaram até então.

O acordo de refinanciamento assinado entre a União e os governos estaduais, de uma

certa maneira, permitiu compatibilizar as condições de financiamento à capacidade de

pagamento dos estados, sendo a trajetória explosiva da dívida corrigida pela taxa

subsidiada de juros prevista na renegociação. As condições do refinanciamento

beneficiaram aos estados, particularmente os mais endividados. No entanto, as

parcelas previstas pelo acordo mostram claramente as limitações do processo de

descentralização fiscal, que já estava minado, em grande medida, desde a

promulgação da Carta Magna, em 1988. O acordo de refinanciamento somente

desnudou o estado de fragilidade financeira dos estados.

Apesar de terem sido frustradas expectativas quanto à disponibilidade de recursos após

a descentralização fiscal, a Constituição de 1988 abriu caminho para a redefinição do

espaço onde as relações intergovernamentais são desenvolvidas. A institucionalização

das relações tributárias entre os diferentes níveis de governo representou um grande

avanço, pois reforçou a autonomia fiscal e conferiu maior transparência às relações. As

conquistas obtidas pelos estados na Constituição, no que respeita à institucionalização

das relações, não foram perdidas. Além disso, o acordo de refinanciamento patrocinado

60 Finanças Estaduais e Municipais, publicado pelo Banco Central do Brasil, com informações disponíveis setembro de 1999.

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pela lei 9496/97 recuperou, em parte, o espírito constitucional, ao assegurar um formato

institucionalizado às relações intergovernamentais.

A reversão do aumento da participação dos governos estaduais na receita disponível

decorre de relações baseadas em poder real e revelam o componente político

intrínseco às relações intergovernamentais. A institucionalização das relações não

significa relações assépticas entre os diferentes níveis de governo, mas lhes garante

maior transparência. A transparência não soluciona os problemas, mas permite que

estes sejam discutidos.

A gradual institucionalização das relações intergovernamentais permite que os conflitos

(que eventualmente surgirão) sejam circunscritos a um espaço pré-definido e

delimitado. O processo de consolidação de referenciais institucionais, que balizem as

relações intergovernamentais, reforça a autonomia dos governos subnacionais.

Em um contexto de crescente institucionalização das relações financeiras

intergovernamentais, foi sancionada a lei de Responsabilidade Fiscal. A nova legislação

pode ser compreendida como um desdobramento do desequilíbrio fiscal e financeiro

das unidades da federação.

A Lei de Responsabilidade Fiscal tem por finalidade normatizar as finanças públicas

nos três níveis de governo com a intenção de evitar a eclosão de novos desequilíbrios

fiscal-financeiros nas esferas subnacionais. Busca, assim, criar uma cultura baseada

na gestão responsável das contas. Para tanto, entre outras medidas, proíbe o

refinanciamento pela União de dívidas subnacionais o que significa a impossibilidade

de transferir para a União decisões irresponsáveis de política fiscal.

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Ao evitar que os estados incorram em desequilíbrios de natureza fiscal e/ou financeira,

observa-se uma mudança na concepção da autonomia, que passa a ser preservada a

partir da manutenção do equilíbrio intertemporal das contas públicas.

A lei de Responsabilidade cria, gradualmente, condições para assegurar maior

consistência ao controle ao endividamento. A estratégia de controle ao endividamento

incorpora a idéia de sustentabilidade fiscal intertemporal com a finalidade de evitar que

os déficits de hoje transformem-se em dívida no futuro. Essa mudança na natureza do

controle já é anunciada lei 9496/97.

A lei, ademais, propõe uma revisão do modelo federativo brasileiro ao, implicitamente,

eliminar o endividamento enquanto relação intergovernamental. No entanto o que

poderia indicar a construção de referenciais institucionais e, desta forma, o

fortalecimento da Federação, mesmo que a custa de uma maior centralização,

conforme indicavam os acordos de refinanciamento, não necessariamente se

confirmará. A rigidez da lei de Responsabilidade Fiscal não somente indica um provavel

aumento da centralização, como uma possível reversão do processo de

institucionalização das relações intergovernamentais. As relações federativas podem

ser transparentes mas não assépticas. Relações de poder são, por natureza,

conflitantes.Ou seja, observa-se uma redução do espaço institucional onde as relações

intergovernamentais transcorrem e, paralelamente, pela própria natureza do federalismo

brasileiro, pode-se intuir que mais uma vez o federalismo inicia um percurso em direção

a concentração de poder na União na medida que abre espaço para um uso mais

discricionário do poder.

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Daí a importância das instituições, mesmo quando isso significa em alguma medida

maior centralização, pois permitiriam a criação de um espaço coerente com a ordem

democrática onde as relações intergovernamentais poderiam ocorrer. O problema da

nova lei de Responsabilidade Fiscal não é necessariamente o seu caráter centralizador,

mas sim uma rigidez que indica que as relações intergovernamentais provavelmente

irão transcorrer, em parte, fora do espaço institucional. Incorre-se no risco de manter o

antigo padrão, onde a legislação não é colocada em prática em alguns casos. É

interessante observar que nos dias que se seguiram a aprovação da lei, o governo

federal aprovou medidas que, segundo o texto da lei, eram ilegais.

Como foi dito ao longo do trabalho, o crescimento do dívida esteve associado não a

falta de uma legislação pertinente, mas a natureza pouco transparente das relações

intergovernamentais que transparecia na esfera do endividamento. Ou seja, o

endividamento é um espaço onde o poder real é tradicionalmente exercido no modelo

federativo brasileiro.

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