a justiÇa na seguranÇa pÚblica e a seguranÇa pÚblica na justiÇa: a justiÇa militar na...

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No âmbito da Justiça no Brasil, a produção de verdades carrega as marcas dassensibilidades jurídicas locais, as quais são sentidos e formas de fazer justiçapróprias de determinadas sociedades (C. Geertz). Embora a formação dos agentesdo Judiciário no Brasil seja padronizada segundo perspectivas jurídicas dominantes,há uma distância entre o que leis e normas dizem e a apropriação e (res)significaçãodas mesmas (R. Kant de Lima) por diferentes agentes em diferentes espaços. Nestesentido, este trabalho analisa a Justiça Militar (JM) do Estado do RJ, a partir de seuduplo pertencimento - posto que integra tanto o espectro das instituições jurídicasbrasileiras quanto o sistema de segurança pública. Enquanto a JM é atravessadapelas sensibilidades jurídicas brasileiras, carrega também lógicas própriasassociadas ao militarismo e às práticas policiais, que compõem a produção daverdade jurídica no espaço da JM. Assim, busca-se compreender, a partir denarrativa etnográfica, como tais lógicas distintas se encontram, bem como osdiferentes sentidos de justiça que atravessam a prática jurídica e policial cotidiana esuas repercussões no sistema de segurança pública

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  • IV SEMINRIO INTERNACIONAL VIOLNCIA E CONFLITOS SOCIAIS:

    TERRITORIALIDADES E NEGOCIAES

    02 a 05 de dezembro de 2014

    Laboratrio de Estudos da Violncia

    UFC

    Fortaleza-CE

    GT 11 SEGURANA PBLICA E CIDADANIA

    A JUSTIA NA SEGURANA PBLICA E A SEGURANA PBLICA NA

    JUSTIA: A JUSTIA MILITAR NA CONSTRUO E MANUTENO DE

    SENSIBILIDADES PARA A SEGURANA PBLICA

    Autor: Isaac Palma Brando

    email: [email protected]

    Universidade Federal Fluminense

  • A Justia na Segurana Pblica e a Segurana Pblica na Justia:

    A Justia Militar na construo e manuteno de sensibilidades para a segurana pblica1

    Isaac Palma Brando2

    Introduo

    A juza mantem sob controle a fala do oficial, que parece um pouco nervoso com as

    ultimas investidas do promotor, com seus questionamentos anteriores. Para o policial,

    no que se refere a sua narrativa, parte do seu trabalho no dia de uma manifestao

    de rua na cidade do Rio de Janeiro, era deter os "manifestantes". Logo aps fazer

    esta afirmativa, foi imediatamente indagado pelo promotor sobre como ele poderia

    saber quem era ou no manifestante? J que a manifestao acontecia no meio de

    uma grande avenida, comumente rota de milhares de pessoas diariamente, quais os

    parmetros utilizados pelos policiais para identificar os manifestantes?

    O oficial, Coronel da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro, no responde de

    imediato, est claramente incomodado, seu saber, fruto da sua experincia cotidiana

    de policial, parece no dar-lhe uma sada daquela situao dentro daquele ambiente

    especifico. Para ele, parece bvio deter "manifestantes" talvez at de forma

    indiscriminada, era parte do seu trabalho, pois aquelas pessoas atrapalhavam a

    ordem naqueles dias; no entanto sua resposta no parecia ser suficiente naquele

    espao. Estava a principio diante de um territrio diferente, no qual no tem pleno

    domnio dos saberes locais, suas respostas que so suficientes dentro do batalho,

    ou diante de seus comandados ali dentro da sala de audincia parecem menores, os

    saberes locais so de ordem jurdica, e portanto, no Brasil fruto de uma hierarquia

    latente, de saberes produzidos e reproduzidos de forma restrita.

    Diante da ausncia desse saber, ele parece esperar uma iluminao, talvez at

    mesmo divina, que logo em seguida aparece. No por menos vinda da Juza, que sem

    nenhum constrangimento intervm na fala do oficial e diz: "Os manifestantes que eram

    levados para as delegacias eram manifestante que praticavam atos de violncia, no

    Coronel?", o mesmo confirma aliviado, ento a magistrada dita para o escrivo o

    1 Esse artigo resultado parcial de pesquisa vinculada ao projeto " Como defender policiais? prticas judiciais e produo de identidades profissionais entre advogados no Estado do Rio de Janeiro." .Pesquisa de iniciao cientif ica f inanciada pela Pr-Reitoria de Pesquisa, Ps-graduao e Inovao - UFF. 2 Aluno de graduao em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, pesquisador em formao associado ao grupo: "Crimes de repercusso x crimes comuns : a administrao judicial de conflitos no estado do Rio de Janeiro" ; vinculado ao

    INCT-InEAC.

  • que entrar nos autos como depoimento do Oficial, ditando calmamente: "E disse - se

    referindo ao coronel - que os manifestantes que eram levados para a delegacia eram

    os manifestantes que estavam praticando atos de violncia."

    Como vemos acima, existem formas de fazer justia na Justia Militar, esse modo de

    fazer justia tem um duplo pertencimento militar/jurdico. O presente trabalho

    pretende, a partir de dados etnogrficos, fruto de observao direta, compreender, as

    sensibilidades jurdicas na Justia Militar e sua repercusso na segurana pblica.

    Entendendo aqui, como sensibilidades jurdicas, os sentidos prprios de fazer justia

    em lugares especficos (Geertz; 2006). Esse sentidos de justia esto ligados aos

    saberes locais, as formas que se estabelecem as relaes sociais, portanto a Justia

    e o Direito, no so esferas autnomas da sociedade e de suas relaes, mas

    sobretudo, nessa compreenso, esto imersas nas mesmas.

    Roberto Kant de Lima (2009) utiliza-se do conceito de Cliford Geertz(2006) para

    buscar uma compreenso dessas sensibilidades jurdicas brasileiras, e o faz em

    comparao com a justia norte americana. Partindo do arcabouo terico de ambos

    os autores citados, o presente trabalho, busca uma compreenso da dimenso de

    uma sensibilidade jurdica na Justia Militar, ou seja partindo da construo terica j

    existente, sobre os sentidos de justia no Brasil, busca-se aqui um sentido de justia

    especifico. Que no existe isoladamente, mas que atravessado pelas sensibilidades

    jurdicas brasileiras, mas compreendendo outros valores e lgicas, tal como o

    militarismo e suas derivaes nativas, que contribuem para essa construo

    especifica. Por fim, entendendo como se relacionam, esses sentidos de justia na

    produo/manuteno de sensibilidades em outro "territrio", o da Segurana Pblica.

    A Justia Militar e a construo dos espaos Jurdico-Militares

    A Justia Militar do Estado tem como funo o julgamento de militares Estaduais

    (policiais militares e bombeiros) por crimes previstos no Cdigo Penal Militar (1969).

    A Justia Militar Estadual existe enquanto parte do Sistema Judicirio Brasileiro, mas

    se distingue em alguns aspectos das demais instituies judicirias nacionais. Os

    estados tem autonomia de criar tribunais especficos, porm apenas trs estados

    possuem um Tribunal da Justia Militar so eles: So Paulo, Minas Gerais e Rio

    Grande do Sul, tendo dessa forma instncias especificas, constituindo-se dessa forma

  • como uma justia "especial", os demais estados possuem auditorias, estando sob

    responsabilidade dos respectivos tribunais de justia estaduais.

    O espao da Auditoria da Justia Militar do Estado do Rio de Janeiro(AJMERJ), fica

    no 13 andar do prdio do Frum da Justia, no centro da cidade do Rio de Janeiro,

    as instalaes so recentes, a AJMERJ anteriormente se localizava numa regio de

    difcil acesso dentro da mesma cidade. Mas suas instalaes no Frum no so de

    acesso facilitado, apesar da localizao central do prdio, por se localizar em um

    andar onde os principais elevadores no chegam, j parece demonstrar isso. Alm

    disso em uma das minhas primeiras idas AJMERJ, apesar do carter pblico do

    local e das audincias, fui indagado por um dos seguranas que trabalhavam no andar

    onde funciona a Auditoria Militar, sobre a minha presena ali, ao dizer que estava ali

    para assistir uma audincia, ele indagou se eu era militar, neguei, e ele disse que iria

    consultar outras pessoas para ver se eu poderia assistir a audincia, apesar de saber

    que no haveria nenhuma restrio3 quanto a entrada nas audincias, no o

    questionei, deixei que seguisse seu "roteiro". Essa atitude, consequentemente poderia

    inibir outras pessoas que ocasionalmente fossem ao local.

    Pensando sobre aquele momento, sobre as minhas idas e sobre a localizao da

    auditoria militar, surgem questes, que parecem interessantes para uma

    compreenso das construes espaciais da Justia Militar. A primeira questo que me

    surgiu foi a que mais me atingiu, por que o segurana me abordou? Tendo em vista

    que na minha observao posterior, quando fiquei sentado numa das cadeiras do

    corredor que da acesso a sala de audincia, observei que ningum mais que chegou

    ao local foi abordado pelos seguranas. Observei ainda que o movimento que se d

    ali muito pequeno, diferente de outros andares do frum que por possurem

    diferentes setores e instituies da justia, esto comumente cheios. Apesar de, a

    priori, ser um espao restrito e marcadamente hierarquizado justamente por ser um

    espao da justia brasileira com suas sensibilidades prprias (Lima; 2009), nos

    demais espaos do Frum se misturam advogados, promotores, defensores e

    pessoas "comuns". Os espaos parecem ser de todos, o Frum como um espao

    pblico, parece de forma geral respeitar a diversidade de seus usurios, isso

    3 Tinha conhecimento do carter pblico do local e das audincias, atravs do trabalho da minha orientadora Sabrina Souza da Silva, a qual fez a pesquisa para a sua tese de doutorado na AJMERJ.

  • obviamente falando dos espaos comuns como corredores, j que na maioria dos

    casos so espaos de passagem, ou de espera.

    No que observei das pessoas que entravam pelo corredor do 13 andar do Frum de

    Justia do Rio de Janeiro, era que pareciam pertencer dois grupos: militares e

    advogados. Tanto os advogados quanto os militares tem uma esttica demarcada, os

    advogados com seus ternos, gravatas, cabelos penteados etc. e os militares quando

    no esto fardados (e h um grande numero de militares que comparecem as

    audincias dessa forma), apresentam uma esttica comum entre eles, apesar de no

    ser to demarcado como a do primeiro grupo, geralmente com camisas polos e

    cabelos baixos. Ao que me parece, no fui identificado com nenhum dos dois grupos,

    posto que obviamente deveria estar no lugar errado, apesar da camisa social, a

    esttica de um estudante de cincias humanas denunciava meu no pertencimento,

    eu nem era militar, nem um advogado e/ou agente da justia. A partir dai, podemos

    apontar os dois universos (militar e jurdico) construtores do espao da justia militar.

    Ainda sobre a construo espacial da Justia Militar, outra questo que muito me

    chamou ateno, foi durante a minha ida ao Tribunal da Justia Militar do Estado de

    So Paulo. Antes mesmo de ir entrei no site do Tribunal para conhecer as instalaes

    e ainda observar os discursos e representaes que so construdas a partir do site.

    Nessa minha pesquisa encontrei o Provimento 31/20124 que normatizava a entrada e

    circulao de pessoas no interior do Tribunal. No me surpreendi, ao me deparar com

    um paragrafo, que dizia que s no seriam revistados, ou no seria solicitada uma

    identificao ao transitar no Tribunal para dois grupos: militares devidamente

    uniformizados e agentes do direito/justia (juzes, advogado, promotores e

    defensores) que apresentassem suas devidas identificaes. Para esses dois grupos

    a nica restrio era o porte de arma, e para restringir todos devem passar por um

    detector na entrada. Para as demais pessoas seria solicitada na entrada a identidade,

    e seria feito um cadastro constando alm dos dados, uma foto tirada na hora, o andar

    que a pessoa vai e o que vai fazer no prdio. Na minha ida ao local se confirmou a

    minha expectativa e o cumprimento dessa norma, foi me perguntado em diferentes

    4 O Provimento 31/2012 que normatizava a entrada e circulao de pessoas no prdio do Tribunal da Justia Militar do Estado de So Paulo estava disponvel no site do Tribunal de Justia, porm quando fui procura-lo enquanto escrevia esse texto, o documento no estava mais disponvel, nem alguns outros que consultei a poca. O site do Tribunal da Justia Militar em So

    Paulo foi recentemente reformado, e boa parte dessas informaes retiradas.

  • momentos por diferentes policiais o motivo da minha presena no local, tudo isso

    constando em um cadastro que foi feito na minha entrada no prdio.

    Tal como na auditoria militar do Estado do Rio de Janeiro, apesar do carter pblico

    da entrada nos locais comuns e da possibilidade irrestrita de assistir as audincias,

    cria-se uma atmosfera de restrio para qualquer um que no seja Militar ou agente

    do Direito/Justia, existe uma inibio para os cidados comuns. interessante

    observar que, dada as devidas caractersticas prprias, tanto na AJMERJ, quanto no

    Tribunal da Justia Militar do Estado de So Paulo(TJMESP), existe um padro de

    entrada de pessoas, e todas aquelas que no fazem parte daquele ambiente so

    imediatamente inquiridas sobre sua presena. Essa questo, apesar de ressaltar uma

    hierarquia que prpria da justia brasileira no geral, revela uma sensibilidade prpria

    da Justia Militar em especifico, traz a tona mecanismos de controle de acesso

    implcitos e explcitos e ajuda a compreender alguns elementos das construes

    espaciais da Justia Militar enquanto espao Jurdico-Militar restrito e hierrquico.

    O Militarismo da/na Segurana Publica e os papis da Justia Militar

    Como dito anteriormente, a Justia Militar Estadual julga militares estaduais,

    baseando-se no Cdigo Penal Militar. O Cdigo Penal Militar tem sua ultima

    atualizao durante o perodo de ditadura militar no Brasil, isso caracteriza de certa

    forma, as lgicas produzidas por esse Cdigo e consequentemente pela instituio

    que o utiliza como um dos principais instrumento na construo da "verdade jurdica" 5.

    A Polcia Militar brasileira, ao mesmo tempo uma instituio militar e de segurana

    pblica, mas segundo algumas narrativa dos prprios Policiais Militares, no uma

    contradio.

    Durante minha ida ao TJMESP, fui especificamente ao andar da segunda instncia,

    como no h no Rio de Janeiro julgamentos de segunda instncia feitos pela prpria

    justia militar - j que por no ser um tribunal especifico da justia militar, a AJMERJ

    est sob a responsabilidade do Tribunal de Justia do Estado, sendo portanto as

    demais instncias do julgamento dirigidas pelo mesmo - me interessei por ver uma

    dinmica, a qual, no observava no local no qual estava acostumado. A sala estava

    completamente lotada de policiais militares, estavam todos atentos para a fala do Juiz-

    5 Verdade Jurdica um conceito usado por Michel Foucault (2002), para designar as formas de construo de verdade no

    mbito da justia.

  • Militar6 que presidia a seo. Em uma da suas primeiras falas, o Juiz-Militar fez uma

    defesa veemente da Policia Militar, e durante seu discurso fez questo de diferenciar

    o Militarismo do exrcito, com o Militarismo da Policia. Para ele, existe uma distino

    primordial entre o Militar estadual e os Militares federais, os primeiros esto

    preocupados com a segurana pblica, enquanto os federais esto envolvidos com

    questes blicas.

    Para o Juiz-Militar, existe um grande problema quando se confundem essas funes,

    terminam por criar vises equivocadas sobre os Militares Estaduais, no caso,

    sobretudo Policiais Militares, principalmente nas questes de violncia praticada pelos

    mesmos. Ele nos ajuda a entender, nessa sua narrativa, uma possvel sensibilidade

    prpria da Policia Militar, que apesar de ser denominada militar, e fazer parte do

    militarismo com suas hierarquias e lgicas, no compartilha dos mesmos modos de

    ao do Militarismo Federal, a prtica policial portanto, constri elementos diferentes

    porque apesar de serem militares, fazem parte da Segurana Pblica; possvel

    concluir a partir dai, que o "ser militar" no algo fechado, uma identidade pr-

    determinada, construda desde fora das prticas, mas sobretudo construda nas

    prticas concretas dos atores, j q para ele o que distingue os militares so suas

    funes. Podemos ainda considerar, a fala do Juiz no sentido propositivo, de construi r

    essa identidade, j que alm de julgar e advogar ele estava "dando uma aula" para os

    demais policiais. Apesar de os conceitos e formas de ao se misturarem no cotidiano

    do policial, e a forma blica ser rejeitada na sua fala, alguns conceitos muito usados

    como Guerra as Drogas, ou a criao dos inimigos pblicos (como traficantes) internos

    nos ajudam a problematizar a prpria conceituao/construo/distino do Juiz. Na

    sua fala ele transparece uma aparente preocupao, em legitimar o papel da Polcia

    Militar na promoo daquilo que ele entende por segurana pblica, ou seja "na

    garantia da lei e da ordem para a proteo dos cidados".

    A narrativa do Juiz-Militar, que tambm Coronel Full7 da Policia Militar, demonstra

    que para ele necessria uma distino. Essa narrativa me chamou a ateno pois

    jamais havia ouvido algo semelhante. interessante observar ainda algumas

    6 Uma das principais diferenas que observei entre a AJMERJ e o TJMESP, foi a presena de Juzes Militares, tais juzes so oficiais da Policia Militar, mas tambm so Juzes do Tribunal de Justia Militar, os dois que estavam na seo um consta no site do TJMESP como Juiz do tribunal e o outro como Juiz corregedor geral. Alm disso, apesar de sua posio como juiz, eles utilizam uma roupa especif ica da policia militar onde consta m suas patentes. 7 Coronel Full o grau mximo na Hierarquia Militar.

  • questes, primeiro que no local haviam muitos policiais acompanhando a seo e de

    forma geral, tanto o Juiz-Militar que presidia a seo, quanto o outro Juiz-Militar que o

    auxiliava, se reportavam ao pblico, composto sobretudo de policiais militares, de

    maneira didtica, como se ensinassem boas prticas, a partir dos maus exemplos,

    colocavam sua experincia "na mesa" (ambos tinham mais de 30 anos de corporao)

    como forma de legitimarem a sua fala. Alm do mais, o Juiz-Militar presidente da

    seo havia acabado de anunciar minha presena no local. Diante do controle que

    eles tinham do acesso e circulao de pessoas dentro do prdio, fui indagado pela

    oficial que estava responsvel pelo corredor sobre minha presena ali, antes de entrar

    na sala, a mesma repassou a informao da minha presena, ressaltando inclusive o

    fato de que eu como pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), estava

    interessado nas dinmicas da Justia Militar.

    Achei curioso, diante disso, como ele aps me anunciar para um auditrio lotado de

    policiais militares, fazer uma defesa longa e contundente da Policia Militar, e sua

    legitimidade enquanto parte de um sistema de Segurana Pblica, entendi dessa

    forma que ele, enquanto Juiz-Militar, deveria assumir vrios papis na mesma seo,

    em certos momentos seria uma espcie de professor, e em outros "advogado" da

    instituio, alm daquele que era bvio diante da sua funo(de juiz), no estava ali

    portanto somente para julgar, mas tambm para defender os valores da instituio a

    qual tambm representava. Partindo disso, o Juiz-Militar parece exemplificar o papel

    da Justia Militar, que no seria s de julgar os crimes cometidos por militares

    estaduais, mas tambm de manuteno, legitimao e (quem sabe) de construo de

    sensibilidades na Polcia Militar .

    Esse fato, protagonizado pelo Juiz-Militar, me remeteu as prticas da Justia Militar,

    que j havia observado na AJMERJ , alguns casos so julgados no s pela Juza

    Auditora, mas tambm por um Conselho de Justia composto por oficiais da Policia

    Militar; esses casos so considerados "propriamente militares"8, e esto previstos no

    cdigo penal militar. Esses casos, demonstram como existe uma "sensibilidade"

    prpria bem demarcada, como os juzes auditores no precisam ser militares para

    exercer essa funo, e consequentemente no compartilham dos saberes e das

    prticas militares, preciso que outros oficiais que compartilhem das mesmas lgicas

    8 Propriamente Militares, ou seja, so crimes previstos pelo Cdigo penal Militar que s podem ser cometidos por militares.

  • institucionais que o ru, auxiliem no julgamento, tendo nesses casos a validade de

    Juiz, embora no o sejam, desempenham a funo. Os membro desse conselho, nos

    casos que observei agem de forma semelhante ao Juiz-Militar de So Paulo,

    assumindo diversos papis, que esto para alm do julgamento nas formas da lei,

    passando por lies de moral, como forma de educar, at defesas de certas prticas

    que se do no cotidiano do "fazer policial".

    Concluso: Justia Militar como guarita

    Partindo dos dados etnogrficos, que obtive em minha observao direta, percebo

    que existe uma ampla possibilidade dos agentes militares influenciarem as decises

    e as construrem no mbito da justia militar, no sentido de defender e manter as

    lgicas vigentes na instituio (policia militar) na qual fazem parte. Porm esse espao

    no algo moldado somente pelas lgicas militares. Existem as sensibilidades

    prprias da justia brasileira, que tambm constroem esse espao, tal como a

    narrativa da introduo desse texto, os Policiais que esto ali, no esto em seu

    territrio nativo, nem dominam os saberes daquele ritual, mesmo aps serem

    iniciados, precisam respeitar as hierarquias prprias daquele espao, que dialogam

    com as suas, mas no so semelhantes.

    importante, portanto, entender a singularidade do espao da Justia Militar,

    sobretudo como espao de relao entre a segurana pblica e a justia, mas no

    podemos perder de vista seu significado para alm das suas "fronteiras". A Justia

    Militar no uma construo unvoca do militarismo, nem to pouco da Justia

    Brasileira, mas o resultado do permanente encontro entre essas lgicas distintas.

    preciso que seja permeada pelas lgicas da justia brasileira, para se legitimar

    enquanto instituio jurdica, mas tambm no pode deixar de lado o militarismo como

    componente construtor de suas sensibilidades prprias.

    Para alm disso, quando se fala de Segurana Pblica, pode-se construir diversas

    narrativas e percepes, primeiramente, cabe ressaltar que, para esse texto, a

    importncia dos conceitos est na forma como eles interagem com a prtica, ou seja,

    como a construo discursiva9 reflete na prtica dos agentes que a produzem e

    reproduzem. Diante disso, partimos da percepo de segurana pblica, contida na

    9 Como Dizem Peter Berger e Thomas Luckmann (2004) o discurso tambm construtor de realidade.

  • Constituio Federal, no Artigo 144 que diz que a Segurana Pblica " exercida para

    a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio"

    (1988). Tal construo vai de encontro com a fala do Juiz-Militar, e transparece que a

    Segurana Pblica, existe enquanto uma prtica que " exercida", no um conceito

    fechado, mas construdo na prtica concreta dos agentes participantes do sistema.

    Justamente pela sua dinamicidade de difcil captura ou apreenso, no caso, de

    preferncia do autor partir das narrativas construdas, para em seguida problematiza -

    las e discuti-las.

    Como j exposto no texto, o Juiz-Militar do TJMESP, buscou dar legitimidade polcia

    militar enquanto participante do sistema de Segurana Pblica, na sua fala, ele coloca

    como "garantia da lei e da ordem". Partindo desse principio, podemos abordar ainda,

    que a Segurana Pblica conforme Roberto Kant de Lima (2009) coloca, foi separada

    da Justia, tornando-se instituies diferentes. Porm o mesmo autor argumenta que

    apesar da bipartio legal, a prtica policial e judiciria a coloca dentro do sistema

    judicirio, portanto a policia (segurana pblica) no uma instituio a parte da

    justia, mas uma instituio que faz parte dela, segundo ele uma "extenso" da

    mesma (Lima; 1995).Ser parte da justia no torna, a polcia militar refm da mesma,

    mas a coloca, como j dito no texto, num lugar de permanente dialogo. Esse dialogo

    obriga as duas partes a uma constante ressignificao de seus lugares, de acordo

    com as decises ,as situaes, os agentes envolvidos e os arranjos polticos -

    institucionais. Dentre outras coisas, o militarismo tambm influncia as prticas

    policiais, e a violncia policial um reflexo disso.

    Portanto no estamos diante de uma conta simples, nem de estruturas prontas. O

    lugar do policial militar de permanente tenso, entre as suas diversas identidades,

    que constituem sua identidade policial e da sua instituio. Que parte da justia, ao

    mesmo tempo que est em dialogo/disputa com a mesma. A mesma estrutura que

    legitima suas aes institucionalmente, poder no momento seguinte incrimina-lo.

    Como demonstra Sabrina Souza da Silva(2013), quando a vitima do policial por sua

    posio hierrquica na sociedade, consegue inverter as "lgicas" da Justia Militar ,

    que noutros momentos mantem a culpabilidade do ru-militar em suspenso, diferente

    da sensibilidade jurdica brasileira, fruto das dinmicas inquisitoriais onde os rus so

    considerados culpados at que provm o contrrio (Lima; 2009). Porm, nesses casos

  • a justia militar, deixa de responder a suas lgicas tradicionais, resinificando a partir

    das sensibilidades prprias da justia brasileira.

    Por fim, cabe ressaltar que a justia militar espao de significaes, e essas

    significaes tambm ajudam a construi-la no s no sentido de espao, mas nas

    suas prticas. Partindo disso outro caso que me chamou ateno no TJMESP, foi de

    um advogado ex-policial militar, que antes de fazer a defesa de seu cliente, iniciou

    sua fala ressaltando que saiu da policia militar para continuar trabalhando por ela

    como advogado, e ressaltou o papel da justia militar e disse que a mesma

    importante para que o policial "Diante da injustia encontre guarita na Justia Militar".

    A fala desse advogado, me parece revelar implicitamente as tenses desse espao,

    e a busca por sentidos diante das mesmas. Podemos portanto interpretar a relao

    com a espacialidade, a partir dessa busca por "guarita".

    Esse espao de restrio, pode ser interpretado como um espao de defesa do

    policial, mas antes de tudo de defesa da instituio, porm para essa restrio e essa

    certa proteo, o policial precisa entrar num outro territrio, e esse territrio apesar de

    garanti-lhe proteo, pode condena-lo, e isso no necessariamente depende do que

    ele fez, mas sobretudo a quem fez e em quais circunstancias. Concluo esse trabalho

    chamando ateno, para essa constante suspenso das estruturas que se adequam,

    se flexibilizam e se resinificam a cada caso. Mas que tambm mantm as estruturas

    de sujeio na maioria dos casos pois est ligada a diferentes nveis de hierarquia. O

    advogado espera, que seus clientes sejam inocentados, sobretudo quando operam

    de acordo com as lgicas tradicionais, espera que as injustias no o alcancem nesse

    lugar de refugio.

    Sua fala, enfim pode ser entendida como um protesto, j que no caso seu cliente fora

    condenado, e portanto as lgicas esperadas no o agraciaram, mas um protesto que

    encontra eco, no mesmo juiz que condena seu cliente, esse tambm defende a policia

    militar e suas prticas, mas est sujeito a uma rede de relaes de poder que

    extrapolam suas vontades, e por isso faa com que num mesmo caso floresam

    diferentes sentidos de justia, e ai que reside a grande questo da justia militar, o

    lugar das hierarquias e restries, que sempre privilegiar algum de acordo com

    sentidos de justia diversos.

  • Referncias Bibliogrficas

    Berger,Peter; Luckmann, Thomas; A construo Social da Realidade; 24 ed.: Petrpolis:

    Editora Vozes; 2004.

    Foucault, Michel; A verdade e as formas jurdicas. 3. ed. Rio de Janeiro: Nau Editora. 2005.

    GEERTZ, Clifford; O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 8. ed. Petrpolis: Vozes; 2006.

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