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ABZ da Leitura | Orientações Teóricas | 1 | Originalmente publicado em: Actas do 6º Encontro Nacional (4º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração, Braga: Universidade do Minho, Outubro 2006 A janela indiscreta. Apontamentos sobre A Que Sabe a Lua?, de Michael Grejniec Maria Goreti Torres* | 1 | RESUMO Uma parte significativa do mercado dos livros destinados à infância é formada pelos álbuns narrativos dedicados aos primeiros leitores. Apesar da sua presença notória, esta produção editorial constitui um fenómeno relativamente recente no território português, cuja principal fonte é a importação / tradução de obras previamente editadas. Um exemplo a destacar neste universo, pela sua apreciável mestria nos procedimentos de associação entre as linguagens verbal e visual, é a colecção Livros para Sonhar, da editora Kalandraka. Esta editora espanhola tem vindo a apresentar objectos estéticos diversificados, através do recurso a técnicas e a abordagens diferenciadas, fazendo com que muitas das suas edições possam ser encaradas como verdadeiros “livros de artista” (Perrot, 2003: 33), capazes de perseguir o desenvolvimento do sentido artístico e literário dos seus destinatários. Parece, pois, oportuno reclamar para esta intervenção um título desta colecção – A Que Sabe a Lua? , escrito e ilustrado por Michael Grejniec, no qual se vislumbra um inusitado diálogo intersemiótico entre os códigos pictórico e verbal, diálogo esse que será particularmente valorizado neste ensaio. “Porque cada livro é uma porta entreaberta aos domínios do imaginário onde quase tudo é possível apenas com o descobrir do mistério que te espera através das suas páginas Kalandraka Editora * Docente na Equipa de Intervenção Precoce do concelho de Viana do Castelo

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ABZ da Leitura | Orientações Teóricas

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Originalmente publicado em: Actas do 6º Encontro Nacional (4º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração, Braga: Universidade do Minho, Outubro 2006

A janela indiscreta. Apontamentos sobre A Que Sabe a Lua?,de Michael Grejniec

Maria Goreti Torres*

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RESUMO

Uma parte significativa do mercado dos livros destinados à infância é formada pelos álbuns narrativos

dedicados aos primeiros leitores. Apesar da sua presença notória, esta produção editorial constitui um

fenómeno relativamente recente no território português, cuja principal fonte é a importação / tradução

de obras previamente editadas. Um exemplo a destacar neste universo, pela sua apreciável mestria nos

procedimentos de associação entre as linguagens verbal e visual, é a colecção Livros para Sonhar, da

editora Kalandraka. Esta editora espanhola tem vindo a apresentar objectos estéticos diversificados,

através do recurso a técnicas e a abordagens diferenciadas, fazendo com que muitas das suas edições

possam ser encaradas como verdadeiros “livros de artista” (Perrot, 2003: 33), capazes de perseguir o

desenvolvimento do sentido artístico e literário dos seus destinatários. Parece, pois, oportuno reclamar

para esta intervenção um título desta colecção – A Que Sabe a Lua? –, escrito e ilustrado por Michael

Grejniec, no qual se vislumbra um inusitado diálogo intersemiótico entre os códigos pictórico e verbal,

diálogo esse que será particularmente valorizado neste ensaio.

“Porque cada livro é uma porta entreaberta aos domínios do imaginárioonde quase tudo é possívelapenas com o descobrir do mistérioque te espera através das suas páginas

Kalandraka Editora

* Docente na Equipa de Intervenção Precoce do concelho de Viana do Castelo

Coincidindo com a celebração do Dia Internacional do Livro Infantil e Juvenil, surge, em dois de Abril de 1998, na cidade espanhola de Pontevedra, a editora Kalandraka, que se tem vindo a destacar pela qualidade gráfica e artística das suas publicações destinadas aos mais novos1, prestando um contributo estimável na dinamização do sector dos álbuns narrativos dedicados às primeiras idades (2-8 anos), não apenas no país vizinho, mas também em Portugal, que soma já um vasto corpus de títulos traduzidos. O favorável acolhimento que este projecto editorial tem merecido por parte do público e da crítica especializada advém, certamente, da publicação de determinadas obras de destinatário explícito infantil, concebidas a partir de uma profícua interacção entre texto e imagem. Não é anódino a este propósito que a divisa do talentoso autor / ilustrador de álbuns Maurice Sendak – “Um livro ilustrado é um poema onde não se devem perceber as costuras” – seja eleita como mote da editora, que anuncia como principal intento da colecção Livros para Sonhar “conseguir que texto e imaxes se fundan nunha comunicación perfecta e que un cativo poida entender a historia mesmo antes de que aprenda a ler” (cf. www.kalandraka.com).

Vários autores se têm debruçado acerca das inter-relações entre as palavras e as imagens no âmbito dos álbuns narrativos destinados aos primeiros leitores. Para formular os possíveis tipos de interacção verbal-visual, Schwarcz (1982) recorre a termos como congruência, especificação, elaboração, ampliação, extensão, complemento, alternância, desvio e contraponto, alguns dos quais vêm a ser retomados por Doonan, em 1993. Outros autores utilizam apenas um termo para se referir à forma como o texto e as ilustrações se relacionam entre si. Enquanto Sipe (1998) opta pelo vocábulo “sinergia” para descrever esta relação, Mitchell (1994) vale-se da palavra compósita (mas sintetizadora) “imagemtexto” (“imagetext”, no original), para evitar o uso de uma teoria binária a propósito da relação das imagens e do discurso neste tipo de livros.

O que, em termos genéricos, sobressai como característica peculiar dos álbuns narrativos dedicados às primeiras idades (em inglês, picture story books), a par dos seus elementos de ordem paratextual ou externa (como a capa dura e, em certos casos, o formato mais extenso ou o papel de gramagem superior), é a existência de um discurso de tipo narrativo, assente e potencializado na conjugação artística das linguagens verbal e visual. Desta particular relação de interaccionismo sígnico resulta frequentemente um complexo artefacto semiótico capaz de potenciar a leitura e a iniciação estética da criança aos códigos da poeticidade e da literariedade, um objecto susceptível de assegurar uma relação de diálogo natural e fruitivo entre a criança e o “texto”, encarado como um todo. Pela aproximação que realizam das imagens e das palavras, estes livros assumem-se, muitas vezes, como um espaço plural de materialização de diversas abordagens sígnicas, desafiando o leitor a um processo alternativo de leitura, consonante com o modo entrecruzado de sentidos que a relação entre as duas linguagens permite cultivar.

Parece ser, justamente, este princípio que anima o álbum narrativo da autoria de Michael Grejniec, A Que Sabe a Lua?, traduzido a partir do original alemão Wie schmeckt der Mond? (Bohem Press, 1993) e publicado em Portugal em 2002, pela Kalandraka (a tradução é da responsabilidade de Henrique Conrado).

1 Recorde-se que várias edições da Kalandraka receberam sucessivas distinções (1999, 2000, 2001, 2002 e 2003) ao nível da ilustração de livros infantis e juvenis por parte dos Ministérios da Educação e da Cultura espanhóis.

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Neste livro de capa dura, de formato rectangular vertical (20 cm por 30 cm), observa-se como, nas trinta e seis páginas impressas a cor, se abre um espaço de encontro entre os códigos pictórico e linguístico, um espaço pleno de relevância semântica, denunciador de como ambos os códigos são identicamente relevantes na construção do sentido global da obra.

Logo no centro da capa descobre-se o rosto de uma lua cheia, esboçando um tímido sorriso, cuja proeminência antecipa ao leitor o relevo deste elemento na narrativa ciosamente guardada no interior das páginas do livro. Uma importância reiterada ainda pelo título, pela coloração dos seus caracteres a cinza-prata e pelo próprio sinal de interrogação, impresso em forma de lua em quarto minguante (figura 1).

O elemento astral monopoliza ainda o espaço físico da contracapa, onde surge já representado no estado de quarto minguante, transparecendo, agora, uma expressão menos exultante. Capa e contracapa servem assim de molde a ilustrar não apenas a transição operada no estado emocional desta lua consumada em personagem no interior da história, mas também a passagem do tempo que marcará a progressão da intriga: “Both the words and pictures of picture books have temporality – both can imply the passage of time, the words by their very nature and the pictures by their sequence. Consequently, both are capable of having rhythms, and the two together create a third rhythm: the rhythm of picture-book narrative” (Nodelman, 1988: 244).

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A página de rosto do livro (figura 2), através de um processo de justaposição de cores, reúne as duas fases da lua representadas na capa e na contracapa, expandindo as implicações intervisuais ao símbolo oriental reunificador dos princípios yang e ying, o princípio obscuro e o princípio luminoso das coisas, que aponta para o dualismo e para a complementaridade universais (Chevalier & Gheerbrant, 1994). Este simbolismo do yang e ying, invocador das duas metades do Mundo aglutinadas pelo perímetro total da figura esférica, sugere que Céu e Terra se encontram ligados, abraçando-se mutuamente. Como a progressão diegética revelará, esta imagem preludia e sintetiza o essencial da história ficcionalizada em A Que Sabe a Lua?

Repare-se como da associação dos elementos paratextuais do título, da capa, da contra-capa e, inclusivamente, da página de rosto, resulta um sobre-investimento no elemento lunar, um elemento pleno de valência simbólica, insinuador das ideias de mãe-carinho, de mãe-universo afectivo, de beleza e de luz (idem). A lua não deixará, por isso, de marcar presença e de iluminar a totalidade das acções protagonizadas no interior do álbum.

Esta narrativa breve parece seguir as rédeas da categoria proposta por Barthes como texto de prazer, ou seja, “aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que (…) está ligado a uma prática confortável2 da leitura” (1997: 49). De facto, A Que Sabe a Lua? pretende conduzir o leitor, mesmo aquele que ainda não é capaz de decifrar a linguagem escrita, a praticar uma leitura de prazer e de satisfação, uma leitura onde nem só as palavras são capazes de guiar as suas interpretações.

Um elemento que, desde logo, concorre para acerar a curiosidade e a atenção do leitor é o efeito decorrente do título interrogativo efectuado através da inversão do sujeito, que serve de mote para a narração. O facto de a narrativa ser iniciada com uma pergunta, com nítidas reminiscências do discurso oral, leva a uma implicação directa do leitor da obra, assumindo-se o narrador como um contador de histórias. Este título, que se presta à

2 Sublinhados do autor.| 4 |

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fantasia, para além de servir de agente impulsionador do avanço da narrativa, instaura, de forma eficaz, no seio da relação com o leitor (apoderando-se dele) a dialéctica do desejo (afinal, quem não deseja descobrir o sabor da lua?!), tão importante, por exemplo, no projecto freudiano (1932), no qual é encarada como a força motriz, o catalisador possível das transformações individuais. É, justamente, o alfinetar desta vontade de descoberta que pretende manipular a avidez de conhecimento característica do leitor, incitando-o a percorrer a narrativa no rasto da chave do enigma instituído.

As sequências narrativas, articuladas por encadeamento, vão compor uma trama simples, com uma acção que principia e encerra num mesmo cenário, espécie de finisterra dada a conhecer na primeira ilustração da história, na qual surge separada a linha de base, representada através de tons quentes, da vastidão escura do céu, morada principal, mas não exclusiva, da lua (uma vez que na última ilustração deste álbum um outro domicílio é equacionado para o elemento astral, designadamente a água azul de um lago).

Nesta ilustração (figura 3), monopolizadora do território físico rectangular formado pela dupla página, a par da presença arrebatadora da lua, o leitor confronta-se ainda com um conjunto de pares de olhos minúsculos, que, em uníssono, vigiam o astro lunar. Quase irmãmente distribuídos no espaço inferior da dupla página, estes olhos reclamam a atenção do leitor, mercê da coloração luminosa que os caracteriza, contrastante com a paisagem nocturna visualmente ensaiada. Estes olhares, clandestinos e anónimos, configuram uma espécie de “prolepse visual”, antecipando ou indiciando graficamente a presença de outros elementos cuja natureza (animal, humana, etc.) só a progressão narrativa virá a desvendar. A ilustração, ocultando intencionalmente a identidade dos olhares, ao mesmo tempo que faz uso de uma estratégia potenciadora da captação da atenção do leitor, reforça o eixo ideotemático de enigma que percorre a narrativa.

O número formado por estes pares esféricos parece, também, à primeira vista insignificante, escapando, assim, a sua contagem a uma leitura inicial ou, pelo menos, a uma leitura mais confiada. Porém, como mais tarde o leitor diligente virá a compreender, estes olhos também contam, revelando significados escondidos, e instituindo, em

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virtude disso, um mecanismo de surpresa na narrativa, capaz de derrogar ou de repor expectativas, conforme a leitura mais “gastronómica” (Eco, 1989, 1992) ou questionadora caracterizadora do comportamento interpretativo do leitor. De facto, uma vez que, tal como acontece no caso vertente, algumas informações fundamentais para entender o sentido do que é contado não têm expressão no texto verbal, somente uma leitura vigilante às cumplicidades, muitas vezes discretamente formuladas, entre palavra e imagem permite fazer descobrir esse “outro texto” por detrás “do texto”.

Apenas o voltar da página permite ao leitor desvendar, pela mão do texto verbal, a identidade daquele curioso colectivo, levando-o a validar ou a anular a expectativa anteriormente activada pelo texto visual, numa transformação em jogo do processo de leitura. Surge aqui ressaltado o efeito encantatório exercido pelo astro dos céus sobre o universo animal, levando a que a acção se desenvolva em torno do núcleo problemático singular “a que sabe a lua?”.

A Que Sabe a Lua? nasce, assim, de uma dúvida que assalta os animais, comunicada mediante um paralelismo de construção antitético, conseguido através de dois termos antónimos: “Há já muito tempo que os animais desejavam averiguar a que sabia a lua. Era doce ou salgada?”. A partir deste móbil, a narrativa (visual e verbal) irá colocar em cena, de forma progressiva, uma série de animais que se locomove em terra, figuras geralmente suscitadoras de simpatia por parte dos leitores mais jovens, quer porque vêem nelas parceiros ideais de jogo, quer porque sobre elas projectam desejos e pulsões essenciais.

O carácter intangível da lua é enfatizado pelo discurso textual, de tal modo que “nem o maior dos animais era capaz de tocá-la.” O próprio formato rectangular vertical, pouco frequente nas propostas de álbum da Kalandraka, promove a ideia de inacessibilidade do elemento astral.

Mas a tartaruga, o primeiro animal a irromper neste álbum, não se resignando perante este quadro consumado dos factos, decide “escalar a montanha mais elevada para poder chegar à lua.” O superlativo utilizado na caracterização da montanha é

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corroborado pela ilustração (figura 4), que reflecte o carácter megalómano do projecto, estabelecendo um contraste entre a grandeza montanhosa, parcialmente representada, e a pequenez da criatura de carapaça.

Malogradas as tentativas e face à incomensurabilidade do desafio, a tartaruga vê-se na eminência de apelar auxílio. A partir daqui, através de uma estratégia acumulativa e de uma estruturação discursiva baseada na repetição (marcas bastante frequentes nos contos tradicionais, que reforçam a musicalidade e imprimem ritmo ao texto), são descritas as várias tentativas efectuadas pelos bichos no sentido de atingirem o astro das noites, que passa a assumir aquelas tentativas como um jogo. Os sucessivos movimentos de distanciação que o corpo celeste voluntariamente efectua, e que as ilustrações dão conta, espelham o regozijo despertado na lua através daquela “brincadeira”, aparentada ao tradicional “Jogo da Apanhada”.

A contenção verbal, acautelada na reduzida dimensão das frases, assegura ao leitor menos experiente a lisibilidade do texto, consubstanciando um verdadeiro convite a uma leitura autónoma. A amplitude das imagens e o modo como, em cada uma delas, se processa a entrada em palco de um novo animal (de forma totalmente autonomizada, garantindo, assim, o efeito de suspense tendente a manter constante a atenção do leitor), torna este álbum adequado aos interesses e capacidades do destinatário preferencial, porque baseado na ludicidade resultante da conspiração galvanizada entre as palavras e as imagens.

Como numa espécie de lengalenga3, a narrativa vai convocando, para a concretização da tarefa, a colaboração de vários animais, figuras actuantes que, sobrepondo-se sobre a carapaça da tartaruga convertida em pilar4, vão protagonizar um verdadeiro jogo de equilíbrio: primeiro o elefante, seguido da girafa, da zebra, do leão, do raposo, do macaco e, finalmente, do rato. Observa-se, aqui, uma expansão tanto do texto verbal, como dos elementos representados graficamente. O ritmo das ilustrações corresponde ao ritmo lógico do discurso. A ilustração, que por si só é portadora de uma mensagem decifrável pela criança, representa uma unidade de acção e de leitura, e a sua sequência conduz o leitor, como reputa Coelho (1984), a estabelecer uma dinâmica relação entre os códigos pictórico e linguístico.

A viragem na história vai ser assinalada pela entrada do rato que, à semelhança do que acontece em diversos contos tradicionais, apesar do seu reduzido tamanho, desempenhará um papel determinante na resolução do conflito. O relevo deste pequeno herói vai ser, desde logo, subtilmente antecipado pelo texto verbal enformador do pensamento da lua, onde os caracteres gráficos surgem, pela primeira vez, impressos a itálico, indício claro de que algo extraordinário está prestes a acontecer (figura 5). A lua conjecturou: “Um animal tão pequeno, certamente não poderá alcançar-me”.

3 Não se assiste neste caso, como vulgarmente acontece nas lengalengas, a uma negação prosseguida de uma aceitação à tarefa a realizar por parte das personagens, mas a uma adesão imediata das personagens ao desígnio a cumprir, remetendo a narrativa para uma estrutura paralelística, onde todos são convocados para a mesma tarefa e à qual respondem em moldes semelhantes.

4 O cómico parece aqui ressumar da configuração da pirâmide edificada, que adquire contornos humorísticos devido ao facto de ser a tartaruga a assumir a função estabilizadora do grupo e não o elefante, como seria mais expectável, dado o seu generoso porte físico. Esta estratégia introduz na narrativa um elemento de subversão, potenciador do riso do leitor.

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Através do recurso à enumeração, o narrador, dotado de omnisciência, destaca a acção dinâmica e ziguezagueada do roedor, uma acção cuja celeridade o arranjo gráfico das linhas icónicas5 (Maia, 2003) reforça. Se, nos casos anteriores, as linhas do texto se apresentavam ordenadas, de modo a configurar um trapézio de base estável, no caso das palavras que descrevem as acções do rato, as linhas que as sustêm tornam-se “(…) alvo de rupturas tipográficas relevantes, imaginativas e desencadeadoras de estratégias de legibilidade na fronteira do texto e da imagem” (idem: 149).

O momento actancial marcado pela dentada do rato na lua, instituidor da mudança operada na diegese, é visualmente ressaltado, abraçando a totalidade da dupla página onde o texto verbal surge inscrito. Este momento de catarse, reforçado pela extensão da ilustração (figura 6), segue-se à lenta sucessão dos acontecimentos antecedentes, repetitivos como lengalengas, comungando, assim, dos preceitos aristotélicos em que a catarse deve ser precedida de longas peripécias.

5 “As linhas icónicas são concebidas para despertar movimentos, ritmos e a construção de uma visibilidade plástica dos trajectos e dos tempos” (Maia, 2003: 151).

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A lua, realidade outrora inalcançável, torna-se tangível, ou melhor, comestível (no literal sentido da palavra), mercê do seu próprio descuido e, sobretudo, devido a ter subestimado quer os seres aparentemente mais frágeis, de pequena dimensão, como o rato, quer o poder transformador de um colectivo, representado por aquele conjunto de fabricantes de utopias.

A união de todos (repare-se que os diálogos dos animais são sempre articulados no plural: “Se subires para as minhas costas é provável que nos aproximemos dela”; “Se subires para as minhas costas talvez possamos alcançá-la”; “Verás como conseguimos”; “De certo desta vez conseguiremos”, etc.) faz com que o desejo comum se materialize. A pirâmide erguida solidariamente, uma pirâmide feita de aceitação e de sonho, onde os animais vão aceitando o possível, mas sonhando o impossível, torna, enfim, o irrealizável realizável.

A narrativa, animada por um forte espírito comunitário, brota de uma verdadeira torre de sonhos. Contrariamente à Torre de Babel, da passagem bíblica, a partir da qual os homens pretendiam alcançar Deus – um projecto inviabilizado, porém, pela desarmonia criada, originando-se, assim, o “(…) marco geodésico da incomunicabilidade” (Gomes, 2004: 17) –, esta pirâmide, baseada no entendimento e na vontade mútuas, vai ser concretizada, possibilitando aos animais alcançar aquela lua tão sonhada. Mas, tal como na Torre de Babel, também esta é uma coluna sustentada pelo sonho e pela fé: se “a fé faz mover montanhas”, o sonho permite que um rato dê uma dentada numa lua e a distribua pelos restantes animais.

A Que Sabe a Lua? não deixa, portanto, de ser uma “história com recadinho”, para retomar um título de Luísa Dacosta, já que no seu desfecho prevalece uma mensagem de pendor moralizante, sugerindo que os animais, tal como os homens, não se “medem aos palmos” e que “a união faz a força”. Veiculando valores intemporais como a capacidade de sonhar e o elogio à entreajuda, a narrativa faz com que os laços de solidariedade saiam reforçados, tal como sugere a penúltima ilustração do álbum (figura 7), que regista, em dupla página, o desenlace eufórico da narrativa, ou seja, o descanso daqueles cúmplices caçadores que, nessa noite e sob o olhar de uma lua em estado de quarto minguante (representativa da passagem do tempo), “dormiram muito juntos”.

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O voltar da página (figura 8) surpreende, todavia, o leitor com um epílogo, muito ao jeito das atafindas características da poesia medieval, portadoras de uma voz que, após o desfecho diegético, patenteia um comentário exterior ao texto, indiciando uma distinta conclusão.

“De onde surge este peixe?”, poderá questionar-se o leitor. Regressando à obra, procedendo a um novo passeio do olhar, agora menos confiado, o leitor vê-se compelido a retroceder ao início do livro, buscando um indício revelador daquele elemento disfórico. Contando o número de pares de olhos presentes na ilustração inaugural, o leitor perceberá, então, que são não oito (como a totalidade dos animais que integrara a intriga), mas nove, sendo esta “janela indiscreta” esclarecedora de que o peixe, sem que nunca tivesse feito parte do desenrolar da diegese, sempre lá estivera, atento a todo o seu progresso.

O inesperado acaba por assumir um valor estético, reforçando-se, neste âmbito, como os elementos aparentemente mais insignificantes se podem tornar portadores de dimensões semânticas múltiplas e diversificadas. No caso vertente, a representação visual assume-se como factor enriquecedor do texto, encarado na sua globalidade, comprovando que a obra, para ser considerada na sua plena extensão, não pode ser subsumida unicamente à materialidade do que é exposto através do texto verbal. A ilustração converte-se num elemento preponderante, constituindo uma fonte portadora de relevante informação. Reconhece-se, assim, na esteira de Manzano (1985), a relação de solidariedade que proficuamente se estabelece entre os códigos linguístico e pictórico. O diálogo inter-semiótico estabelecido em A Que Sabe a Lua? é distinto daquele que ocorre nos livros com ilustrações, nos quais as imagens asseguram um acompanhamento parafrástico da história ou apenas um parcial efeito de iluminação, de informação, de síntese ou mesmo de suspensão para prosseguimento da leitura. Aqui, a ilustração não serve apenas à compreensão do desenrolar da acção; para além de descrever a atmosfera

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e o contexto, informa e completa o “texto”, sendo portadora, de forma discreta e criativa, de uma mensagem a ser descoberta pelo leitor, incitando-o a se aventurar mais longe na relação cooperativa que estabelece com a obra. O álbum afirma-se, assim, como um palco privilegiado para a inovação entre os laços plurais que podem ligar a palavra à ilustração.

“O peixe, que tinha visto tudo sem entender nada, disse:- Esta é boa!Tanto esforço para chegar à lua,lá em cima no céu, tão longe…Acaso não vêem que aqui na águahá outra tão perto?”

Perante aquela cadeia de cúmplices vontades, o peixe observa a lua reflectida na água e questiona-se acerca do fundamento desencadeador daquela demanda. O que pode significar que para muitos – como o peixe – o sonho está diluído na sua própria realidade. Contrariamente aos outros animais, este não necessita de sonhar, porque o sonho ou a imagem dele (como denota a lua liquefeita) faz parte da sua realidade. As palavras proferidas pelo peixe têm, na obra, um impacto desinstalador e a sua voz, aparentada à “voz da razão” (pela convicção que patenteiam os seus juízos), revela-se, afinal, absurda, raiando a nescidade.

A Alegoria da Caverna (livro VII da República), narrada por Platão, ilustra adequadamente a situação expressa nesta atafinda. Para o filósofo, todos estamos condenados a viver sombras e a tomá-las como verdadeiras:

“Imagina tu uns homens numa morada subterrânea em forma de caverna, cuja entrada, aberta à luz, se estende em toda a longitude da caverna; eles encontram-se aí desde a infância, as pernas e os pescoços algemados, de tal modo que não conseguem mover-se nem ver mais do que o que está na sua frente, porque as cadeias os impedem de virar a cabeça; a luz de uma fogueira ateada ao longe, numa elevação, brilha atrás deles; entre o fogo e os cativos há um caminho elevado. (…)É portanto indubitável, afirmei, que aos olhos destas pessoas a realidade não seria mais do que as sombras dos objectos confeccionados.”

Platão, in República, VII, 514a-b;515c

Esta poderosa crítica à condição dos homens, escrita há quase 2500 anos, inspiradora inclusivamente da obra A Caverna, do português Nobel da Literatura, José Saramago, sugere que as imagens fantasmagóricas vistas pelos habitantes da Caverna que imaginou eram por eles tidas como verdadeiras. As suas existências, inteiramente dominadas pela ignorância (agnóia), levava-os a tomar o espectro pela realidade. Tal como o peixe desta narrativa que, situado num nível de pré-conhecimento – aceitando a sua caverna como verdade absoluta e não admitindo ser apenas um animal acorrentado / alimentado por sombras hipnotizadoras –, julga verdadeira aquela lua reflectida nas águas, contentando-se com a sua sombra. O peixe, refém do seu próprio prosaísmo, que o impede de sonhar e de romper com a inércia da ignorância, encontra-se em total antítese com os restantes animais, cuja “centelha divina” (Loução, 2002: 134) lhes tornou possível edificar uma coluna de crenças e atingir a comunhão com o Sagrado (simbolizado aqui através da

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lua, cuja forma esférica e textura engelhada autoriza a associação à hóstia sagrada), demonstrando, ao leitor, que existe uma saída possível da caverna:

“(…) é necessário comparar o mundo visível à caverna, e a luz do fogo que a ilumina ao efeito do sol; quanto à ascensão ao mundo superior e à contemplação das suas maravilhas, intelige aí a ascensão da alma ao mundo inteligível (…). (…) penso que nos últimos limites do mundo inteligível está a ideia de Bem, que percebemos muito a custo, mas da qual não nos apercebemos sem concluir que ela é a causa universal de tudo quanto há de bom e belo.”

Platão, in República, VII, 517b-c

Em A Que Sabe a Lua? insinuam-se, portanto, dois mundos: o subterrâneo, reino das sombras, morada da ignorância do peixe; e o outro, alto, superior, apanágio de poucos (os restantes animais) que ousam romper com os ferros que os agrilhoam às profundezas. Assim, no momento em que o exemplar roedor dá a dentada na lua e distribui os pedacinhos pelos restantes elementos, todos alcançam o sonho, que cada um matiza de acordo com as suas próprias expectativas: “E a lua soube-lhes exactamente àquilo que cada um mais gostava.”

O problema proposto pela história guardada neste álbum permanecerá, assim, por desvendar, deixando abertas as portas das ilusões / expectativas criadas no leitor. A Que Sabe a Lua?, afinal? Simplesmente ao que cada um desejar…

Referências bibliográficas

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