a intervenção no desmatamento e a estabilidade no acesso à ... · o ilc é uma aliança global...

40
Pressoes Commerciais sobre a terra A intervenção no desmatamento e a estabilidade no acesso à terra: Estudo comparativo entre duas modalidades de regularização fundiária na Transamazônica, Brasil

Upload: truongminh

Post on 02-Dec-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Pressoes Commerciais sobre a terra

A intervenção no desmatamento e a estabilidade no acesso à terra: Estudo comparativo entre duas modalidades de regularização fundiária na Transamazônica, Brasil

Ilustração de capa: © Aldo di Domenico 2011

As opiniões deste informe pertenecen os autores e nao refletem necessariamente a posicão oficial da Coalizão, nem de seus membros e doadores.

ISBN 978-92-95093-49-2

© 2011 Coalizão Internacional para o Acesso à Terra

A nossa visãoO accesso seguro e equitativo à terra e seu controle reduz a pobreza e contribui à identidade, dignidade e inclusão.

A nossa missãoO ILC é uma aliança global de organizações da sociedade civil e organizações internacionais que trabalham juntas para fomentar o accesso seguro e equitativo à terra e seu controle por parte de mulheres e homens de baixa renda, a través da defesa de direitos, do dialogo, troca de conhecimentos e o fortalecimento de capacidades.

O Centro Mundial Agroflorestal (ICRAF) foi criado em 1978 e adotou a designação World Agroforestry Centre em 2002, mantendo o seu nome legal: Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal. Com mais de 240 pesquisadores atuando em sua sede em Nairobi, no Quénia, e vários escritórios instalados em regionais da África, Ásia e América Latina (Peru e Brasil), o ICRAF é considerado o líder mundial de pesquisa em sistemas agroflorestais. A missão do ICRAF é gerar conhecimentos científicos sobre as diversas funções desempemnhadas por árvores em paisagens agrícolas, e usar tal conhecimento científico para o avanço de políticas e práticas que beneficiem a população de baixa renda, e o meio ambiente. O ICRAF desenvolve atividades de capacitação estratégicas e aplicadas atraves de parcerias com os sistemas nacionais de pesquisa agrícola, universidades, ONGs e o setor privado.

Universidade Federal do Pará (UFPA). Fundada em 1957, é a maior universidade federal do Amazonas e tem programas de graduação em todos os campos, 38 mestrados e 17 doutorados. O núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural oferece o Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. Este programa de pós-graduação visa à produção de conhecimentos interdisciplinares sobre a gestão dos recursos agrícolas e florestais por parte das famílias camponesas, no seu contexto social, econômico, ambiental e político. http://www.ufpa.br/

O Cirad (Centro de cooperação internacional em pesquisa agronômica para o desenvolvimento), produz e transmite, em conjunto com os países do Sul, novos conhecimentos para acompanhar o seu desenvolvimento agrícola e contribuir para o debate sobre os grandes desafios globais da agronomia. CIRAD, organização de pesquisa concluída, estabelece a sua programação a partir das necessidades de desenvolvimento, do campo ao laboratório, do nível local ao planetário.

A intervenção no desmatamento e a estabilidade no acesso à terra: Estudo comparativo entre duas modalidades de regularização fundiária na Transamazônica, Brasil

Ione Vieira dos Santos, Noemi Miyasaka Porro, Roberto Porro

Janeiro 2011

Ilustração de capa: © Aldo di Domenico 2011

As opiniões deste informe pertenecen os autores e nao refletem necessariamente a posicão oficial da Coalizão, nem de seus membros e doadores.

ISBN 978-92-95093-49-2

© 2011 Coalizão Internacional para o Acesso à Terra

A nossa visãoO accesso seguro e equitativo à terra e seu controle reduz a pobreza e contribui à identidade, dignidade e inclusão.

A nossa missãoO ILC é uma aliança global de organizações da sociedade civil e organizações internacionais que trabalham juntas para fomentar o accesso seguro e equitativo à terra e seu controle por parte de mulheres e homens de baixa renda, a través da defesa de direitos, do dialogo, troca de conhecimentos e o fortalecimento de capacidades.

O Centro Mundial Agroflorestal (ICRAF) foi criado em 1978 e adotou a designação World Agroforestry Centre em 2002, mantendo o seu nome legal: Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal. Com mais de 240 pesquisadores atuando em sua sede em Nairobi, no Quénia, e vários escritórios instalados em regionais da África, Ásia e América Latina (Peru e Brasil), o ICRAF é considerado o líder mundial de pesquisa em sistemas agroflorestais. A missão do ICRAF é gerar conhecimentos científicos sobre as diversas funções desempemnhadas por árvores em paisagens agrícolas, e usar tal conhecimento científico para o avanço de políticas e práticas que beneficiem a população de baixa renda, e o meio ambiente. O ICRAF desenvolve atividades de capacitação estratégicas e aplicadas atraves de parcerias com os sistemas nacionais de pesquisa agrícola, universidades, ONGs e o setor privado.

Universidade Federal do Pará (UFPA). Fundada em 1957, é a maior universidade federal do Amazonas e tem programas de graduação em todos os campos, 38 mestrados e 17 doutorados. O núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural oferece o Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. Este programa de pós-graduação visa à produção de conhecimentos interdisciplinares sobre a gestão dos recursos agrícolas e florestais por parte das famílias camponesas, no seu contexto social, econômico, ambiental e político. http://www.ufpa.br/

O Cirad (Centro de cooperação internacional em pesquisa agronômica para o desenvolvimento), produz e transmite, em conjunto com os países do Sul, novos conhecimentos para acompanhar o seu desenvolvimento agrícola e contribuir para o debate sobre os grandes desafios globais da agronomia. CIRAD, organização de pesquisa concluída, estabelece a sua programação a partir das necessidades de desenvolvimento, do campo ao laboratório, do nível local ao planetário.

AgradecimentosO projeto de pesquisa da Iniciativa das Pressões Comerciais sobre a Terra foi coordenada no

Secretariado da ILC por Michael Taylor, com o suporte de Andrea Fiorenza. Ward Anseeuw

da CIRAD forneceu suporte técnico para todos os estudos e o projeto se baseou no marco

conceitual desenvolvido por Michel Merlet e Clara Jamart da Agter. Um grande número de

membros e sócios da ILC e especialistas independentes contribuíram na pesquisa, análise e

documentação do projeto.

ILC deseja agradecer os doadores que seguem, cujo suporte consentiu a pesquisa da Iniciativa

das Pressões Comerciais sobre a Terra:

As considerações aqui presentes não refletem de fato a opinião oficial destes doadores. A

secretaria da ILC seria grata de receber no endereço [email protected] cópias de cada

publicação que utilizar este estudo come fonte.

ApresentaçãoA Coalizão Internacional para o Acesso à Terra (ILC) foi fundada por sociedades civis e organizações

multilaterais que têm a convicção que o acesso seguro à terra e os recursos naturais é central para

que as capacidades de homens e mulheres possam sair, e manter-se fora da fome e da pobreza.

Em 2008, enquanto a crise do preço dos alimentos empurrava o número da fome além da marca

de 1 bilhão, os membros da ILC lançavam um projeto de pesquisa global para entender melhor

as implicâncias da tendência crescente de investimentos internacionais de grande escala na

terra. Os produtores de pequena escala sempre enfrentaram competição sobre a terra da qual

dependia o seu sustento. É aliás evidente que essas mudanças na demanda de alimentos ,

energia e recursos naturais, junto com a liberalização dos regimes de mercado, estão fazendo a

competição pelos alimentos mais global e desigual.

Começando com um estudo de Agter, membro da ILC, o projeto de pesquisa das Pressões

Comerciais sobre a Terra trouxe mais de 30 sócios, de ONGs em regiões afectadas cujas

perspectivas e vozes se encontram perto dos usuários da terra mais afectados a institutos de

pesquisa internacional cujas contribuições fornecem uma análise global sobre alguns temas

chaves. O processo de estudo permitiu às organizações com uma pequena experiência prévia

no empreendimento de tais projetos de pesquisa mas com muito por contribuir, participar no

estudo global e fazer sentir a sua voz. CIRAD, membro da ILC, fornecerá suporte no planejamento

e redacção de cada um dos estudos.

A ILC acredita que em uma era na qual o uso da terra e da gestão é cada vez mais globalizado,

é mais importante que nunca que as vozes e os interesses de todos os participantes – e em

particular, dos usuários locais da terra – estejam representados na busca de soluções para atingir

um acesso à terra equitativo e seguro.

Este relatório é um dos 28 que serão publicados como parte do estudo global. A lista completa

dos estudos e informações sobre outras iniciativas da ILC relativas às Pressões Comerciais

sobre a Terra, pode ser obtida na webside da Coalizão Internacional para o Acesso à Terra

www.landcoalition.org/cplstudies.

Faço extensivo o meu agradecimento a todas as organizações que formaram parte deste

exclusivo projeto de pesquisa. Continuaremos trabalhando para obter oportunidades para

estes estudos e as diferentes perspectivas que eles representam, para contribuir às tomadas

de decisão informadas. As implicâncias das decisões sobre como a terra e os recursos naturais

deveriam ser utilizados, e por quem, são rigorosas. Em um mundo cada vez mais limitado pelos

recursos e polarizado, decisões tomadas hoje sobre o direito de posse da terra e a propriedade

condicionarão as economias, as sociedades e as oportunidades das gerações futuras, e portanto

devem ser avaliadas com grande atenção.

Madiodio Niasse

Director, Secretariado da ILC

ÍndiceAgradecimentos

Apresentação

Resumo

1 Introdução 1

2 Metodologia 5

3 O contexto da Transamazônica 7

4 Os estudos de caso 10A expansão do PA Itapuama – a chamada “Área Naufal” 11

O PDS Anapu 11

5 Análise comparativa: PA e PDS 13O processo de ocupação: espontâneo ou dirigido? 14

A situação da documentação da terra: um protocolo, uma lista ou nada? 17

Local de Residência de facto: na cidade ou no campo? 19

Condições para a produção da agricultura familiar 21

6 Conclusões 25Referências bibliográficas 29

TabelasTabela1: Assentamentos, unidades de conservação e terras indígenas

na Transamazônica e Baixo Xingu 8

Tabela 2: Local de onde vieram os chefes de família antes de morar

nos Assentamentos em estudo 12

Tabela 3: Forma de ocupação da terra auto-declarada pelas famílias hoje residentes nos

PDS Esperança, PDS Virola Jatobá e Expansão do PA Itapuama 15

Tabela 4: Situação auto-declarada da situação da documentação da terra nos PDS

Esperança, PDS Virola Jatobá e Expansão do PA Itapuama. 18

Tabela 5: Constituição da cobertura vegetal dos lotes nos PDS Esperança, PDS Virola Jatobá

e Expansão do PA Itapuama 22

Lista de tabelas e figuras

FigurasFigura 1: Taxas de desmatamento anual na Amazônia Legal (1988-2008) e estimativa para

2009. 3

Figura 2: A chamada região Transamazônica 10

Figura 3: Percentual de lotes, por número de detentores desde sua primeira ocupação, nos

PDS Esperança, PDS Virola-Jatobá e Expansão do PA Itapuama. 13

Figura 4: Percentual de famílias efetivamente residindo nos lotes que detém, distinguindo-

se aquelas que ocuparam a área de forma espontânea daquelas que ocuparam sob direção

do INCRA. 19

ResumoEste artigo aborda a interação entre a aplicação das leis ambientais e a estabilidade das

famílias beneficiárias nos assentamentos de reforma agrária, num contexto de crescentes

preocupações ambientais pressionadas pelas mudanças climáticas. O estudo compara as duas

modalidades de regularização fundiária na Amazônia: Projeto de Assentamento (PA) e Projeto de

Desenvolvimento Sustentável (PDS). O primeiro é uma modalidade convencional, onde o aparato

governamental não foi capaz de fortalecer as diretrizes nacionais de meio ambiente. O segundo

consiste em modalidade dos chamados “assentamentos especiais”, onde as preocupações

ambientais foram incorporadas na concepção do instrumento de regularização fundiária, e tais

regras deveriam ser mais estritamente aplicadas. Através da integração de dados quantitativos

e qualitativos, examinam-se quatro aspectos envolvidos na interação entre a estabilidade da

terra ea questão ambiental: as formas de acesso à terra, a situação jurídica da propriedade da

terra, o local de residência efetiva, e condições para a agricultura familiar. Os resultados mostram

que a modalidade de regularização fundiária por si só não afeta a mobilidade de famílias em

assentamentos de reforma agrária, que continua alta, sob qualquer modalidade. Evidências de

campo indicam que a busca de uma “terra sem dono” que proporcione condições para “trabalhar

para si próprio” está no cerne da questão de por que as famílias deixam parcelas de terra pelas

quais elas tanto lutaram, para continuar a busca por tal condição.

1

IntroduçãoEste estudo investiga como a execução das novas regras ambientais, através de novos instrumentos

de regularização fundiária – os chamados Assentamentos Especiais – afeta a dinâmica de

constituição e funcionamento do chamado “mercado informal” de terras públicas destinadas à

reforma agrária. Este estudo de caso enfoca a chamada região da Transamazônica, no Estado do Pará,

Brasil, comparando dois instrumentos de regularização fundiária: 1) Projeto de Desenvolvimento

Sustentável (PDS), que em sua concepção combina os aspectos sociais e produtivos de reforma

agrária com preocupações ambientais, reforçando o cumprimento das regras florestais; e 2) Projeto

de Assentamento (PA) que, embora seja sujeito às regras ambientais nacionais e estaduais vigentes,

enfoca mais os aspectos sociais e produtivos da reforma agrária, sendo percebido pelos beneficiários

como mais permissivo no que se refere às restrições para conter o desmatamento.

A Transamazônica é a rodovia BR-230, cujos 4.000 km conectam 7 Estados no norte e nordeste

brasileiros, inclusive o Estado do Pará, onde corta 11 municípios. Nosso estudo enfoca duas áreas

de regularização fundiária submetidas ao contexto social, ambiental e econômico que abrange

esse conjunto constituído pela rodovia, pelos lotes da colonização que a margeia e pelas áreas sob

diferentes modalidades de regularização fundiária criadas ao final das estradas secundárias que,

partindo da rodovia principal, adentram a floresta. Nesse contexto, a interação entre mobilidade

espacial das famílias e intervenção no desmatamento sobressai como questão central para o bem-

estar dos beneficiários da reforma agrária e a sustentabilidade dos ecossistemas que abrigam seus

modos de vida. A situação da Transamazônica, apesar de suas peculiaridades, é importante foco de

estudo sobre a interação entre a questão da propriedade da terra e a questão ambiental, devido à

magnitude e escala dos efeitos ali observados sobre o bioma e a sociedade amazônicos.

Na literatura disponível, indica-se a transferência de terras, associando-a a mobilidade dos

beneficiários desses assentamentos, como uma das causas do avanço do desmatamento

e aumento de pobreza. Vários fatores têm sido apontados na literatura como causas da

mobilidade dos agricultores familiares e seus efeitos sobre o desmatamento. As políticas fiscais

e creditícias da agropecuária empresarial e a compra facilitada de imóveis rurais por investidores

e corporações, ocorridas nas décadas de 70 e 80, tanto em fronteiras como em áreas agrícolas

consolidadas, foram apontadas como causas do desmatamento e da instabilidade de pequenos

produtores na terra. Aliada a isso, a própria forma de alocação e regularização da terra para

os distintos atores, desfavorecendo a agricultura familiar, já era denunciada como causa do

desmatamento em grande escala (Hecht 1985; Binswanger 1991).

Em final da década de 90, as conseqüências dessas políticas já haviam consolidado um cenário de

degradação ambiental, com 552 mil km² desmatados na Amazônia, 80% dos quais sob pastagens

ativas e abandonadas (Fearnside 1996). Neste estágio, a distribuição legal e ordenada de terras

se inviabilizara e, para remediar a situação, restava ao governo “regularizar” as invasões, tanto

por grandes empresários e especuladores quanto por agricultores sem terra, numa conivência

com a chamada “indústria da desapropriação” associada à “indústria da invasão”. Nesse período,

1

2

observaram-se por um lado o fortalecimento de movimentos sociais contra a concentração de

terras e, por outro, iniciativas governamentais de “reforma agrária” mais orientada ao mercado, além

de outros programas privilegiando a privatização, em convívio explícito com a “grilagem”. Nesse

contexto, a migração interna e a transferência de lotes entre clientes da reforma agrária, devido à

falta de apoio público e de liderança local adequada para as iniciativas da agricultura familiar, já

eram consideradas fatores impeditivos para a redução do desmatamento (Fearnside 2001).

Em modelagens para predição de desmatamento futuro extrapolados de dados históricos,

Nepstad et al. (2000) e Carvalho et al. (2001) relacionaram a presença de estradas pavimentadas

e não pavimentadas com a penetração humana crescente no interior da floresta, resultando

em desmatamento intensificado pela severidade de secas. Diferindo nos procedimentos e

no grau dessa extrapolação, outros autores (Laurence et al. 2002) quantificaram a relação de

investimentos públicos em infraestrutura com o desmatamento, alegando também um

favorecimento a empreendimentos de capital intensivo que empurrariam as roças de corte-

e-queima de agricultores familiares floresta adentro. Segundo Andersen et al. (2002), modelos

econômicos indicaram lucratividade inferior da agricultura de corte-e-queima em ecossistemas

desconhecidos (no caso de colonos imigrantes) em comparação à venda da área desmatada e/

ou conversão em pastagem. Além disso, os autores consideram que, em locais acessíveis, seria

mais lucrativo o repasse da terra para produção de commodities em economia de escala.

Paralelos a esses modelos a nível macro regional, também foram feitos estudos a nível local

e domiciliar. Dois estudos foram feitos na porção oeste da Transamazônica, em áreas mais

integradas ao mercado comparativamente aos sítios estudados na presente pesquisa. Os

autores adaptaram o marco conceitual Chayanoviano para investigar a problemática do

desmatamento associado à mobilidade espacial da unidade familiar de produção. Análises

estatísticas multivariadas mostraram que os anos de residência no lote, a composição etária dos

membros e o estágio no ciclo de vida da família afetam significantemente os valores da área

coberta com vegetação secundária, resultante de práticas de pousio ou lotes abandonados,

associados à mobilidade espacial. (Perz e Walker 2002). No segundo estudo, a análise de

regressões dos dados sobre variáveis sócio-demográficas e biofísicas coletados a nível domiciliar,

associados a sensoriamento remoto, indicaram que, na fase subseqüente ao desmatamento

inicial, quando prevalece a subsistência, tanto os produtos agropecuários quanto a própria terra

lavrada subordinam-se aos efeitos do mercado. No entanto, a decisão sobre a venda da terra não

necessariamente visa a maximização do lucro (Caldas et al. 2007).

Estas pesquisas mostram a necessidade de investigar a interação entre mobilidade espacial dos

agricultores familiares e o desmatamento, inserindo-a nos processos históricos das políticas públicas

vigentes. Assim, é importante considerar ações governamentais marcantes ocorridas a partir da

safra florestal de 2004-2005, quando foram suspensas as autorizações para exploração madeireira.

Em seguida, em março de 2006, com a Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284/2006)

proibiram-se assentamentos de reforma agrária convencionais em áreas com cobertura florestal

primária. Apesar da inércia dos processos agropecuários e florestais associados ao desmatamento

em curso, tais ações provocaram profundas alterações no cotidiano de órgãos governamentais, no

3

empresariado envolvido e nas sociedades locais, inclusive agricultores familiares.

Contemporâneo à incorporação dessas novas regras ambientais, ocorreram bombásticas

operações de fiscalização florestal e intensificaram-se debates sobre mercados de carbono

e discursos ambientalistas de variadas estirpes. Porém, sabemos que tais ações representam

apenas uma das faces de um modelo de desenvolvimento, cuja outra face se expressa através dos

contínuos incentivos a cultivos industriais e agropecuários associados à economia globalizada,

ao extrativismo empresarial e a obras de infra-estrutura como barragens hidrelétricas e projetos

de mineração. Esse conjunto contraditório firma-se através de políticas e programas que, tanto

pelo lado desenvolvimentista quanto pelo lado ambientalista, desfavorecem a integridade do

direito à terra, segundo a concepção de camponeses.

Assim, mesmo em estudos realizados após a criação da Lei de Gestão de Florestas Públicas

em 2006, tanto em áreas já regularizadas como Projetos de Assentamento Agroextrativista e

Projetos de Assentamento, quanto em áreas em que se propõe um PDS, na Transamazônica e

no Baixo Xingu, verifica-se que persiste um desencontro entre as regulamentações ambientais

e as necessidades dos grupos locais em relação ao uso de suas terras e da floresta (Pacheco et

al. 2009). Os autores verificaram que a regularização fundiária não tem implicações significativas

sobre a forma de uso dos recursos naturais, nem sobre os ganhos econômicos decorrentes do

uso. Os recursos protegidos são aqueles que as comunidades já vinham protegendo na prática.

A regularização fundiária não tem ajudado tampouco a melhorar a seguridade da posse da terra.

Conclui-se que as famílias devem ter não somente o controle sobre a terra, mas também todas

as condições para fazer com que a terra cumpra com sua função social.

De toda maneira, é também fato que, seja devido às políticas governamentais, seja devido às

variações no mercado internacional de commodities, ou a combinação entre ambos, 2009

apresentou reduzida e celebrada taxa de desmatamento.

Figura 1: Taxas de desmatamento anual na Amazônia Legal (1988-2008) e estimativa para 2009.

Fonte: INPE 2009. http://www.obt.inpe.br/prodes/prodes_1988_2009.htm

4

Apesar de que o abandono e/ou venda de lotes já viessem sendo estudados (Campari 2002),

encontrando-se na Transamazônica assentamentos com mais de 75% dos lotes sem seus

beneficiários originais (Ludewig et al. 2009), a associação entre esse processo de mobilidade

espacial e o desmatamento evidenciou-se a ponto de tornar-se alvo de ações inter-ministeriais.

Com a relativa contenção da extração madeireira ilegal por parte do empresariado, parte da

atenção às causas do desmatamento foi enfocada nas áreas de assentamento para a reforma

agrária. Observações empíricas na Transamazônica indicam que as regras ambientais passaram

a ser objeto de maior fiscalização por parte dos órgãos governamentais responsáveis a partir de

meados de 2000. Assim surgem novas questões sobre a permanência dos agricultores na terra

que ocupam, e sobre os efeitos na mobilidade espacial de suas famílias.

O presente estudo de base empírica busca contribuir a este esforço, porém, não com novas

análises estatísticas ou detecção de tendências a nível regional, mas com uma proposta de

reposicionamento de perspectiva sobre o tema, para o entendimento de múltiplas configurações

das variáveis já identificadas pelos autores citados. As macro-tendências detectadas pelos

métodos demográficos, estatísticos e de sensoriamento remoto apresentam o cenário geral,

homogeneizando a diversidade das situações. De nossa parte, tentamos evidenciar essas

diversidades pelos métodos etnográficos, para enfocar não o cenário em que se inserem os

atores, mas sim apresentar os atores como sujeitos a construir um cenário. Através da interação

com os entrevistados, buscamos compreender a dinâmica da mobilidade espacial através da

lógica própria dos protagonistas do fenômeno, uma vez que estes apresentavam múltiplas

configurações.

Através do estudo comparativo entre os dois modelos de regularização fundiária mencionados:

PA e PDS, este estudo buscou compreender como a execução das novas regras florestais afeta a

dinâmica da constituição e funcionamento do processo de transferência de direitos associados à

terra, atualmente praticado pelos beneficiários da chamada Reforma Agrária na Transamazônica.

5

MetodologiaA metodologia foi desenvolvida por uma parceria entre instituições de pesquisa (World

Agroforestry Research Centre e Universidade Federal do Pará – Núcleo de Ciências Agrárias

e Desenvolvimento Rural/ Laboratório Agroecológico da Transamazônica) e organizações

sociais locais (Associações do PDS Anapu e a Associação Ecológica e Econômica de Frutas

da Amazônia). Essa metodologia baseada em relações de pesquisa colaborativa, de forma

continuada e interativa, teve como objetivo uma interlocução mais direta com os atores locais. A

parceria possibilitou uma integração de métodos quantitativos e qualitativos, cujos dados foram

analisados numa perspectiva interdisciplinar (antropologia, agronomia e estatística).

Os dados quantitativos sobre variáveis sócio-econômicas, fundiárias e ambientais foram

obtidos pelos autores em 2007 e 2008, através de um total de 196 questionários estruturados,

aplicados aleatoriamente a unidades domiciliares, em três áreas de regularização fundiária: os

PDS Esperança e PDS Virola Jatobá, e a Expansão do PA Itapuama. Para algumas comparações,

do total de 196 questionários foi retirada uma amostra aleatória de 48 famílias para cada um dos

três assentamentos. Alertamos que esses dados quantitativos apresentam um bias, pois, apesar

das amostras aleatórias, trata-se de contexto de intensa mobilidade das famílias. Assim, apesar

de que foram entrevistadas famílias egressas, a maioria das famílias entrevistadas já são aquelas

que haviam decidido permanecer. Ainda assim, a combinação com os métodos qualitativas

asseguram o rigor na interpretação dos dados.

Com o apoio propiciado pelo International Land Coalision, em 2009, enfocou-se no estudo da

interação entre a questão da propriedade da terra e a questão ambiental. Realizou-se a análise

da mobilidade das famílias beneficiárias da reforma agrária (como indicadora de segurança na

apropriação da terra) em duas modalidades de regularização fundiária (indicadoras da diferença

no enfoque ambiental). Investiu-se nos métodos qualitativos, que substanciaram a interpretação

dos resultados qualitativos e quantitativos anteriormente obtidos. As questões de partida desta

pesquisa foram:

1. As modalidades de regularização fundiária de cunho ambiental, que exigem maior controle no acesso e uso dos recursos naturais, afetam a segurança da propriedade da terra por parte de agricultores beneficiários da reforma agrária?

2. Quais são os aspectos considerados pelos agricultores beneficiários da reforma agrária na Transamazônica na tomada de decisões quanto à mobilidade espacial?

2

6

Através do método comparativo, foram analisados 3 assentamentos: dois PDS (PDS Esperança e

PDS Virola Jatobá) e um PA (Expansão do PA Itapuãma). Os aspectos a serem comparados foram:

1) forma de ocupação da terra; 2) situação da documentação da terra; 3) local de residência de

facto e 4) condições para a produção familiar.

Para tanto, em cada um dos três assentamentos, foram realizados: 5 Entrevistas individuais com

informantes chaves; 10 Entrevistas individuais abertas para elaboração de histórias de vida; 20

Entrevistas individuais semi-estruturadas com enfoque no tema; 2 Entrevistas semi-estruturadas

em grupos de enfoque; 1 Reunião de apresentação do projeto e 1 Reunião de apresentação dos

resultados (a ser realizada em 2011).

7

O contexto da TransamazônicaA Colonização: No final da década de 60 e início de 70, o governo militar, alegando a defesa

da soberania nacional, busca a ocupação da Amazônia através da construção da rodovia

Transamazônica e da implantação de um ambicioso esquema de colonização. A rodovia

Transamazônica constituiu-se em importante obra do Plano de Integração Nacional (PIN), que

visava conectar a Amazônia ao resto do país e, ao mesmo tempo, aliviar as tensões fundiárias

de outras regiões brasileiras e reduzir os impactos da modernização agrícola, que ocorria na

região sul do país. Ao longo da Transamazônica e das estradas secundárias foram distribuídos

lotes de 100 hectares a famílias de agricultores sem terra de todo o país, visando sua integração

ao mercado.

No entanto, a Transamazônica não foi um projeto isolado; vários outros planos de incentivo à

ocupação da região Amazônica foram implementados, com vistas a estimular o investimento de

capital doméstico e estrangeiro. Investimentos públicos e privados em infra-estrutura, indústrias,

exploração de recursos minerais e hidrelétricos, projetos agro-pastoris e outros projetos de

colonização afetaram a Transamazônica. Porém, o bem estar do agricultor familiar, nativo ou

imigrante, estava longe de ser objeto desses investimentos. A economia e a população regionais

experimentaram crescimento vertiginoso, à medida que milhares de migrantes inundaram a

região em busca da terra própria na Amazônia.

Passados os anos de maiores investimentos governamentais permitidos pelos “milagres” da

década de 70, de solução a Transamazônica passa a ser um novo problema. Abandonados

à própria sorte, imigrantes de diferentes origens, ao lidar com o desconhecido ecossistema,

acabam esgotando tanto os recursos que trouxeram consigo, como defrontando com a

degradação dos recursos naturais existentes. Em meados da década de 80, a crise financeira

e o descaso do governo pelos colonos propiciam a concentração de riquezas e recursos,

potencializando fortes conflitos. Por um lado, madeireiros, pecuaristas e outros empresários vão

se apropriando das instituições e bens públicos. Por outro lado, apoiados pela igreja católica,

emergem organizações de trabalhadores rurais como o Movimento pela Sobrevivência na

Transamazônica e Xingu - MDTX, que reúne Sindicatos de Trabalhadores Rurais e associações

locais. A atuação dos movimentos sociais busca consolidar as áreas vinculadas ao projeto de

colonização e apoiar a inserção de imigrantes sem terras em novos assentamentos.

Os Projetos de Assentamento: Apesar das dificuldades, as áreas ocupadas não cessam de

se expandir durante os anos 90, tanto pelos agricultores familiares nordestinos excluídos do

processo de colonização, como os sem-terra vindos principalmente da região Nordeste do país,

que seguiam as aberturas de estradas feitas por madeireiros ilegais para a exploração de florestas

nos fundos das vicinais e assentamentos em glebas estaduais e da União (Sablayrolles e Rocha

2003). Esse processo de ocupação espontânea, sob complacência do INCRA – Instituto Nacional

3

8

de Colonização e Reforma Agrária, culminou na demanda por novos projetos de assentamentos.

Nos anos subsequentes, com as pressões internacionais associadas às mudanças climáticas,

além dos convencionais PA – projetos de assentamento, novos instrumentos de regularização

fundiária com prepostos ambientais foram criados pelo governo: PAE – projeto de assentamento

extrativista, PDS – projetos de desenvolvimento sustentável, e PAFs – projetos de assentamento

florestal. Além das RESEX – reservas extrativistas, novas Unidades de Conservação foram criadas

incorporando prepostos sociais: RDS – reservas de desenvolvimento sustentável, assim como

FLONAS – florestas nacionais e FES – florestas estaduais. Contemporâneas a estes instrumentos

de regularização fundiária, foram determinadas várias políticas e programas regularizando o

acesso e uso dos recursos florestais existentes nestas áreas. Na tabela abaixo, vemos os resultados

desse processo de regularização (Pacheco et al. 2009):

Tabela1: Assentamentos, unidades de conservação e terras indígenas na Transamazônica e Baixo Xingu

Modalidade Área (ha) %

Projeto de Assentamento (PA) 1.270.702 5,6

Projeto Integrado de Colonização (PIC) Altamira 1.319.500 5,8

Projeto de Assentamento Coletivo (PAC) 176.239 0,8

Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) 1.590.442 7,0

Reserva Extrativista (RESEX) 1.135.278 5,0

Floresta Nacional (FLONA) 689.012 3,0

Estação Ecológica (ESEC) 3.373.110 14,8

Floresta Estadual do Iriri (FES) 440.493 1,9

Parque Nacional (PARNA) 445.392 1,9

Terras Indígenas 12.411.456 54,3

Área total 22.851.624 100,0

Fonte: INCRA, IBAMA e FUNAI (2007), compilado por Pacheco et al 2009.

Neste contexto fundiário, enfocaremos duas modalidades de regularização fundiária associadas

à chamada Reforma Agrária: o PA, no município de Altamira e Senador José Porfírio e o PDS,

no município de Anapu. Ambas modalidades contemplam aos beneficiários direitos a infra-

estrutura, programas de crédito, assistência técnica e social e outros previstos no Programa

Nacional de Reforma Agrária - PNRA.

O PA é uma modalidade de regularização fundiária individual, em vigor no Brasil desde 1970,

a ser aplicada em terras arrecadadas, desapropriadas ou compradas pelo Governo Federal. O

lote entregue ao beneficiário indivídual ou à unidade familiar tem no máximo 100 hectares,

onde a beneficiário deve residir e exercer atividades rurais, para receber o título de propriedade

individual. O chamado assentado é emancipado quando se concretiza satisfatoriamente o Plano

de Desenvolvimento do Assentamento a ser promovido pelo órgão competente, o INCRA. Em

9

tese, este deve estabelecer e assegurar a implementação das regras de uso dos recursos naturais,

principalmente os florestais. Para o reconhecimento de um PA é necessária Licença Ambiental

prévia (Norma de Execução INCRA n° 37, 2004), porém, a nível nacional, menos de 10% dos

assentamentos contam com a licença.

O PDS é uma modalidade de regularização comunal da terra através de concessão de uso.

Criada em 1999, foi inicialmente destinada às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e outras atividades de baixo impacto ambiental em

áreas de preservação ambiental com a supervisão e orientação do INCRA, IBAMA, órgão estadual

ou municipal de meio ambiente ou organização não-governamental previamente habilitada.

Porém, em 2002, abrangeu-se o atendimento de interesses sociais e ecológicos, para as populações

que já exercem ou venham a exercer atividades extrativistas ou de agricultura familiar em áreas de

preservação ambiental. Assim como no PA, no PDS também se requer a Licença Ambiental prévia

e deve ser feito um Projeto de Desenvolvimento do Assentamento.

10

Os estudos de casoFigura 2: A chamada região Transamazônica

A chamada região Transamazônica, com a rodovia BR-230 margeadas pelos lotes do Projeto de

Colonização, e as estradas secundárias com Projetos de Assentamento. Em destaque, os sítios de

pesquisa (PA Itapuama e PDS Esperança e PDS Virola Jatobá).

Fonte: mapa elaborado por Rodney Salomão, Centro de Geotecnologia do IMAZON.

4

11

A expansão do PA Itapuama – a chamada “Área Naufal”O PA Itapuama criado em 1999 localiza-se no município de Altamira. Sua expansão, criada em

2006, ocupa uma área designada como “Naufal”, localizada nos municípios de Altamira e de

Senador José Porfírio. No ano de 1982, o INCRA iniciou a discriminatória da Área Naufal, pois

desde essa época já existiam famílias de agricultores ocupando essa região, principalmente nas

terras mais próximas dos rios Xingu e Ituna. Devido à lentidão das ações do INCRA, em 1998, um

grupo de famílias realizou uma ocupação espontânea no interior da área, construindo estradas

e realizando atividades agrícolas de forma conjunta.

Entre 1999, técnicos do INCRA e lideranças do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira fizeram

uma pré-topografia da área e, em 2000, encaminharam cerca de 310 famílias visando assentá-las no

PA. Na ocasião, foram respeitados os direitos das famílias que já ocupavam lotes de até 300 hectares

e que comprovavam a posse pelo uso dos mesmos. Na ocasião, identificou-se que também existiam

casos de grilagens de grandes áreas por parte de empresários. Somente através da pressão dos

movimentos de agricultores, foi que o INCRA formalizou a expansão do Projeto de Assentamento

Itapuama. Porém, mesmo com a regularização, a situação dos agricultores não mudou muito, pois as

demais ações que consolidariam o assentamento não ocorreram a contento (Barreto 2007).

A área de 52.239 ha encontra-se hoje ocupada por aproximadamente 450 famílias. Os agricultores

que ocupam a expansão do PA Itapuama são migrantes de várias regiões do Brasil, sendo a

maioria proveniente da região Nordeste. As trajetórias dos mesmos são bastante distintas, tendo

em comum a experiência do deslocamento e do assentamento em terras amazônicas, alguns

apresentando passagem por garimpos e cidades.

O PDS AnapuO PDS Anapu, criado em 2002, localiza-se no município de Anapu, sudoeste do Estado do Pará, e

é dividido em: 1) PDS Esperança (Gleba Bacajá) e 2) PDS Virola-Jatobá (Gleba Belo Monte). O PDS

Esperança é constituído por uma área de 20.135 ha e o PDS Virola-Jatobá 32.345 ha, somando-se

uma área de 52.480 ha, onde hoje residem cerca de 400 famílias, oriundas de diferentes Estados

brasileiros e representados juridicamente por duas Associações.

O município de Anapu é marcado por um processo de lutas sociais na tentativa de amenizar

os conflitos provocados pelas ações de grilagem de terras para exploração predatória dos

recursos naturais, principalmente por pecuaristas extensivos e madeireiros. Nos anos 1990, com

a intensificação da ação desses atores no município, a situação social, econômica e ambiental

torna-se insuportável aos agricultores colonos e aos sem-terra. Apoiados por Dorothy Stang –

religiosa da Ordem de Notre Dame de Namur, as organizações locais deram início às lutas por

12

uma nova proposta de reforma agrária, que resultou na criação dos PDS de Anapu. Porém, mesmo

com a criação dos PDS, os madeireiros e pecuaristas, pretendentes às mesmas glebas do PDS

continuaram provocando os conflitos que culminaram no assassinato de irmã Dorothy em 2005.

Passado o ano de maior reação por parte do governo, já em 2006, as áreas localizadas nos fundos

dos PDS foram novamente invadidas para retirada da madeira, através dos pequenos rios que

cortam estas áreas. Dada a ausência do governo na fiscalização das áreas, e pela dificuldade das

famílias e da diretoria da associação em manter a vigilância devido à extensão das mesmas, em

2007, as organizações buscaram e obtiveram apoio do Projeto de Apoio ao Manejo Florestal

Sustentável na Amazônia – PROMANEJO – programa apoiado pelo Programa Piloto de Proteção

às Florestas Tropicais (PPG7).

Em 2008, teve início o processo de exploração madeireira no PDS Virola-Jatobá. Muitos foram

os problemas e conflitos entre os promotores do Plano de Manejo e os agricultores, devido

a percepção de ingerência das regras ambientais sobre seus cultivos familiares. Políticas

desconectadas ou acionadas de forma fragmentada (a exemplo das exigências de autorizações

de desmatamento, sem que sequer o licenciamento ambiental estivesse emitido) são constante

reclamação dos residentes, e os resultados desse caos são também motivos alegados de saída.

De onde vêm essas famílias: A maioria dos detentores dos lotes tanto das áreas dos PDS,

quanto do PA, vieram de comunidades e municípios vizinhos (Tabela 2), o que caracteriza uma

mobilidade intra-regional, diferente do processo a nível nacional ocorrido durante a década de

70, o período de maiores incentivos das políticas de colonização do governo federal.

Tabela 2: Local de onde vieram os chefes de família antes de morar nos Assentamentos em estudo

Local

PDS Esperança

N= 48 famílias

PDS Virola Jatobá

N= 48 famílias

Expansão do PA Itapuama

N= 48 famílias

Nº Fam. (%) Nº Fam. (%) Nº Fam. (%)

Comunidade Vizinha 13 33% 8 20% 9 22%

Município Vizinho 18 45% 18 45% 27 68%

Outro Estado 4 10% 12 30% 2 5%

Município distante no Estado

5 12% 2 5% 2 5%

13

Análise comparativa: PA e PDSO interesse por este estudo teve origem na constatação do intenso fluxo de famílias, ocupando

e deixando os lotes nos PDSs de Anapu. Uma alegação recorrente era de que não se sentiam

donos de seu lote, porque as interferências na contenção ao desmatamento eram demasiadas

e afetavam seu sistema de produção. Uma vez que estávamos pesquisando nos dois PDS

Anapu (PDS Esperança e PDS Virola Jatobá) e também em um PA (a Expansão do PA Itapuama),

optou-se pelo método comparativo para entendermos se a mobilidade das famílias se devia ao

modelo de regularização fundiária e as causas alegadas para tanto. Para detectar e esclarecer

as diferenças entre as três situações, perguntou-se “Quantas famílias já ocuparam esse lote que

você hoje ocupa?” Verificamos que a variação entre as duas modalidades (PA e PDS) não foi

significativa, ao contrário da variação interna a uma mesma modalidade (PDS).

Figura 3: Percentual de lotes, por número de detentores desde sua primeira ocupação, nos PDS Esperança, PDS Virola-Jatobá e Expansão do PA Itapuama.

A partir de nossa amostra, das primeiras famílias que ocuparam lotes no PDS Esperança, 73%

continuam ocupando a mesma terra, não transferindo-a a terceiros. Verifica-se ainda que 98%

dos lotes do PDS Esperança tiveram apenas de 1 ou 2 detentores, indicando baixa mobilidade

espacial das famílias beneficiadas. No PDS Virola-Jatobá e na Expansão do PA Itapuama, apenas

54% e 39% respectivamente permanece nos mesmos lotes desde a ocupação.

Os métodos qualitativos apresentaram resultados coincidentes, mostrando que não é o modelo

5

14

de regularização fundiária que determina maior mobilidade das famílias, uma vez que a variação

entre o PDS Esperança e o PDS Virola Jatobá era mais significativa do que entre os PDS e o PA.

Assim, passamos a comparar outros aspectos que emergiram durante o trabalho de campo,

como possibilidades de explicação da mobilidade das famílias:

O processo de ocupação: espontâneo ou dirigido?As áreas sob regularização fundiária podem ter sua ocupação de forma espontânea, organizada

pelas próprias famílias sem terra, ou dirigida, neste caso pelo INCRA. O início do processo de

chegada das famílias entrevistadas da área Naufal é anterior à década de 1980, porém, um marco

é o ano de 1998, quando um grupo de famílias organizou-se para ocupar, de forma espontânea,

a área hoje denominada vicinal Transunião. Essas famílias sem terra partiram principalmente

da cidade de Altamira e de municípios vizinhos, onde desempenhavam atividades urbanas e

rurais, principalmente como diaristas para fazendeiros e colonos ao longo da Transamazônica.

Em 2000, ocorreu uma segunda entrada, desta vez dirigida pelo INCRA, a partir de uma lista

de beneficiários da Reforma Agrária, com aproximadamente 300 famílias. Dentre essas famílias,

muitas abandonaram os lotes e outras mantêm o lote para o plantio e safra de cultivos anuais,

mas residem permanentemente na cidade de Altamira.

Em comparação, a ocupação das terras hoje designadas como PDS Virola-Jatobá e PDS Esperança

foi espontânea, embora com forte apoio da Igreja Católica local, através de irmã Dorothy Stang,

da Comissão Pastoral da Terra. Devido aos vários conflitos com pecuaristas e madeireiros, que

pretendiam as mesmas glebas, a ocupação iniciada em 1995 sofreu muitos revezes, sendo

legalizado o PDS somente em 2002. Conclui-se que não há variação na mobilidade, entre PA

e PDS, entre aqueles que ocuparam a terra espontaneamente. Porém, dentre as famílias do PA,

existiu maior saída das famílias que foram dirigidas ao assentamento pelo INCRA, comparando-

se com aquelas que se organizaram espontaneamente.

A Tabela 3 apresenta respostas à pergunta: “Como você adquiriu a terra que ocupa?” A primeira

situação trata de casos em que a família obteve acesso individual ou em grupos, a uma terra

desocupada e nela se estabeleceu. A segunda situação ocorre em ocupações espontâneas, nas

quais o lote estava ocupado e é transferido ao novo pretendente mediante um pagamento.

Incidência maior dessa situação indica maior rotatividade das famílias. No caso, o PDS Esperança

apresentou menor indício de mobilidade das famílias. A terceira situação não envolve

pagamento, pois o acesso se faz através do INCRA, a partir de uma lista de candidatos com perfil

de beneficiário da reforma agrária. Essa lista pode ser constituída a partir de solicitação individual

no escritório do INCRA ou como resultado de mobilizações promovidas por organizações sociais,

como foi o caso do acesso à Expansão do PA Itapuama. De toda maneira, mesmo com toda a

precariedade, a ocupação espontânea foi mais eficaz em termos de garantir maior estabilidade

15

na terra, do que a dirigida pelo INCRA, nas condições vigentes no PA Itapuama.

Tabela 3: Forma de ocupação da terra auto-declarada pelas famílias hoje residentes nos PDS Esperança, PDS Virola Jatobá e Expansão do PA Itapuama

AcessoPDS Esperança

N= 48 famílias

PDS Virola Jatobá

N= 48 famílias

Expansão do PA Itapuama

N= 48 famílias

(%) (%) (%)

Ocupação espontânea sem pagamento 94 71 27

Ocupação espontânea com pagamento para um ocupante anterior

6 29 42

Através do Governo 0 0 27

Herança 0 0 4

Apesar da entrada de cerca de 300 famílias da relação de beneficiários do INCRA, montante muito

superior ao dos que a ocuparam espontaneamente, em 1998, na amostra aleatória das famílias

residentes, apenas 27% declararam essa forma de acesso. Em trabalho de campo, verificou-se

que onde o INCRA efetuara o assentamento, ocorreu uma maior incidência de abandono e

venda de lotes do que na área de ocupação espontânea.

Entrevistados alegaram que as famílias que ocuparam lotes de forma espontânea tinham na

terra sua principal estratégia de reprodução, o que leva à sua permanência, mesmo com as

grandes dificuldades enfrentadas no início do processo de ocupação. A entrega de lotes, por

parte do governo, para famílias que não têm a mesma concepção sobre a posse e uso da terra,

é percebida pelos residentes como um grande problema, devido ao enfraquecimento da

formação de um grupo social, conforme relata dona Maria:

[...] a maioria desse povo que o INCRA arrumou pra colocar nessas áreas, queria

terra era pra negociar ou para segurar, pra uma hora se precisar entrar pra dentro

dela. Tem gente aqui, dono de lote que tem casa na rua, tem emprego assalariado,

agora olhe! Você acha que vai querer vir morar aqui dentro dos matos?... Eu não

vou mentir, eu tenho uma irmã que tem um lote aqui e que a coisa mais difícil do

mundo ela pisar os pés aqui dentro, ela tem a casa e o emprego na cidade e mato

não é o negócio dela. Olhe! A terra é pra quem gosta e quem precisa tirar dela o

seu sustento. Aqui tem um monte de lote que o “dono” não mora, aparece só pra

abrir uma rocinha com medo dos outros tomar. Muitos vêm pro lote só quando

fica sabendo que vai ter vistoria do INCRA, esses as vezes voltam pra cidade encima

do próprio carro do INCRA. Isso é ruim pra gente, porque com muitos lotes sem

ninguém, a gente fica sem vizinho, isolado, fica mais difícil conseguir uma escola

por falta de aluno, com isso a gente fica prejudicado (MARIA, residente da vicinal

acesso II, Expansão do PA Itapuama 2008) [...].

A insatisfação de dona Maria se referia aos procedimentos do INCRA no processo de seleção

16

de famílias beneficiárias ao programa de reforma agrária, problema de conhecimento do

Ministério Público Federal que chegou a efetuar uma ação civil pública por ato de improbidade

administrativa contra o INCRA, conforme mencionado em um trecho do documento:

[...] Os documentos acostados a esta inicial demonstram que o gigantismo dos

números não foi compatível com estrita observância dos parâmetros legais.

Ao revés, os documentos apontam uma conjugação de criação tumultuária de

assentamentos rurais, eivados de irregularidades nos processos de criação e na

relação de beneficiários, com a ausência de procedimento licitatório no dispêndio

dos recursos destinados aos assentados rurais. Por óbvio tal combinação é campo

fértil para desvios de recursos públicos. A velocidade de criação de assentamentos

impossibilitou a adequada seleção das famílias beneficiárias. A inserção

atabalhoada dos dados acarretou o cadastro de beneficiários incompatíveis com

perfil da agricultura familiar. Adicione-se a tais fatos a ausência de uma estrutura

de fiscalização compatível com o gigantismo dos números de famílias assentadas

e teremos a receita do desastre na gestão de recursos públicos [...] (Ministério

Público Federal 2007).

Conclui-se que, no contexto sócio-econômico e político partidário da Transamazônica,

especialmente naqueles anos, a ação de órgãos governamentais fundiários mais promoveu o

deslocamento caótico de agricultores familiares sem terra, do que se comparados a situações

de ocupação espontânea.

17

A situação da documentação da terra: um protocolo, uma lista ou nada?Quanto à situação jurídica dos lotes das famílias entrevistadas, como é de se esperar nessas áreas

de regularização recente, nenhuma das famílias possui título definitivo. Algumas possuem um

protocolo fornecido pelo INCRA, outros apenas seu nome na Relação de Beneficiários do INCRA

e outros ainda, nenhuma formalidade.

A não distribuição de títulos aparece como uma medida visando a coibição da venda de lotes

em áreas de assentamentos, sendo esta uma estratégia que os técnicos do INCRA chamam de

“moralização da reforma agrária”, conforme tratado por Felix (2008). Porém, a racionalidade dos

agricultores vai além dessas regras estabelecidas de forma exógena.

[...] Eu cheguei aqui no PDS no dia 20 de setembro de 2008. Eu quero falar ... Lá

onde eu morava, não tinha onde plantar um pé de macacheira, criar um pinto

pras criança comer, um cará, uma abóbora... É trabalhar todo dia pra os outros, e

não tem nada. Sou mãe de 21 filhos, tem 13 vivos. Tive 5 barrigada de gêmeos,

1 de trigêmeo. Eu já fucejei muito, lutei muito. Não quero trabalhar pra dono, no

mandado. Aqui eu faço o meu, o que fizer é da gente. Posso fazer empreita, dar

diária, lapidar estaca, pocar estaca, roçar juquira. Mas a terra é minha! ... É minha,

não é? Só se não for minha, se eu estiver trabalhando enganada... (MARIA DA

GRAÇA, 2009)

Para dona Maria da Graça, o acesso à terra de trabalho, de onde tira o sustento para os netos, é

uma busca de toda uma vida de penúrias. Porém, ainda que não tenha condições de manter-se

apenas da terra, tendo que temporariamente submeter-se à venda de força de trabalho fora de

seu lote, a posse da terra própria lhe garante este ideal. Porém, todo o trabalho será um engano

se a terra tiver outro dono que não ela. Não lhe parece importar muito qual o tipo de papel a lhe

garantir a propriedade, desde que a terra esteja efetivamente “livre de dono”, e ela possa trabalhar

“livre do mandado”.

Verifica-se na Tabela 4 que o percentual de famílias que não possuem nenhum tipo de

documento varia entre as duas modalidades de regularização. Já entre os dois PDS não ocorre

variação, ao contrário dos dados sobre mobilidade. Esses dados indicam que a situação legal

do lote não é determinante na decisão da família em permanecer ou não na terra. As famílias

do PDS Esperança têm apresentado menor mobilidade, mesmo com um mesmo percentual de

lotes sem documento que o PDS Virola-Jatobá, e um maior percentual que os lotes da Expansão

do PA Itapuama.

18

Tabela 4: Situação auto-declarada da situação da documentação da terra nos PDS Esperança, PDS Virola Jatobá e Expansão do PA Itapuama.

Tipo Documento

PDS Esperança

N= 48

PDS Virola Jatobá

N=48

Expansão do PA Itapuama

N=48

Nº Família % Nº Família % Nº Família %

Titulo definitivo 0 0 0 0 0 0

Com protocolo do INCRA 26 54 26 54 39 81

Nenhum tipo de documento 22 46 22 46 9 19

Devido a um entendimento próprio do direito de propriedade, os agricultores da Expansão

PA Itapuama consideram-se proprietários efetivos da terra física. Consequentemente, no ato

da comercialização é negociada a terra e mais as suas benfeitorias. Já nos PDS Virola-Jatobá

e Esperança, o preço se constitui apenas pelas benfeitorias e o valor do acesso realizado. Em

ambos, PDS Virola-Jatobá e PDS Esperança, existem glebas que ainda não estão regularizadas,

estando sub judice, embora os agricultores tenham ocupado essas áreas há anos e ali vivam

como posseiros. Não foram verificadas diferenças nos valores praticados em áreas regularizadas

e sub judice não regularizadas, fortalecendo a assunção de que o que está sendo negociado são

apenas as benfeitorias e o acesso realizado, e não uma propriedade no sentido de direito a um

bem, a terra física.

A implementação pelo INCRA das medidas visando a proibição de venda da terra física e do

direito de ocupação, limitando-se esse acesso à terra pública através de Programa da Reforma

Agrária a apenas uma única vez, visa coibir a reconcentração de terras através de vendas de lotes

em projetos de assentamentos. Na Transamazônica, uma recente retomada com maior rigor

nessa execução é associada a uma “moralização da reforma agrária” nos discursos dos agentes

governamentais responsáveis. Porém, até o momento, os efeitos não foram detectados como

determinantes no processo de decisão das famílias sobre a venda do lote. Uma vez que um

número significante de famílias acessou a terra espontaneamente, mesmo após a criação legal

dos PDS e do PA, de maneira informal, ainda hoje, muitas famílias adquirem e depois vendem ou

abandonam os lotes sem o efetivo conhecimento do INCRA.

Para se realizar a formalização da desistência do lote, tanto para o PA quanto o PDS, no caso

dos residentes com direito de ocupação concedido pelo INCRA, ou seja, aqueles que têm seus

nomes na Relação de Beneficiários, é necessário realizar procedimentos formais junto ao INCRA

local. Também, exige-se o cadastro formal do novo pretendente ao lote. Porém, em nenhuma

das duas modalidades esses procedimentos foram significativos até 2008. Durante 2009, os

escritórios regionais do INCRA buscaram maior rigor na execução dessas regras. Porém até a

data dessa pesquisa, essas variáveis não tinham apresentado efeitos relevantes na mobilidade

espacial das famílias.

19

Local de Residência de facto: na cidade ou no campo?Segundo os entrevistados, um importante fator para a consolidação de uma comunidade,

fator considerado essencial para se permanecer na terra, é o local de residência cotidiana dos

detentores de lotes. Na Expansão do PA Itapuama, há casos de detentores de lotes que moram

na cidade e só retornam ao lote para exercer alguma atividade, ou somente durante o período

de plantio. Através dos dados da Figura 4, sobre o número de famílias detentoras de lotes que

se encontram morando em lotes no interior do Expansão do PA Itapuama, identificou-se que:

do total de famílias que atualmente detém lotes nas áreas que constituem a vicinal Transunião,

onde a ocupação ocorreu de forma espontânea, 86% encontram-se morando nos lotes. Em

comparação, do total de famílias que detém lotes nas áreas das vicinais Bom Jesus e Virgílio

Pereira, que foram ocupadas através de forma “dirigida” pelo INCRA, apenas 43% encontram-se

morando nos seus respectivos lotes.

Figura 4: Percentual de famílias efetivamente residindo nos lotes que detém, distinguindo-se aquelas que ocuparam a área de forma espontânea daquelas que ocuparam sob direção do INCRA.

Já entre as famílias entrevistadas dos PDS Virola-Jatobá e Esperança, não houve diferença

significativa do percentual de proprietários que residem efetivamente nos lotes: 83% e 98%

respectivamente.

Qualitativamente, as entrevistas indicam que famílias que residem cotidianamente nos lotes

percebem-se com maior estabilidade na terra, ao passo que, aqueles que residem na cidade

têm maior acesso a possibilidades de venda e menores entraves para a mobilidade. Não se pode

concluir nenhuma distinção por comparação entre PA e PDS, pois têm diferentes distâncias aos

20

centros urbanos e diferentes acessos a transporte. Porém, tanto no PA quanto no PDS, pode-se

concluir que existem distintas percepções sobre o significado da terra para a família:

[...] no início, aqui era tudo muito difícil, não era essa maravilha de hoje com carro

de linha passando na porta. Quando cheguei aqui, não tinha estrada não, eu fui um

dos primeiros a entrar nessa área, foi eu mais 12 agricultores que fomos os primeiros

a tirar lote aqui, a gente vinha de Altamira num barco e da beira pra cá era no

picadão de facão no meio da mata... numa distância de uns 23 km e, no tempo da

chuva as situação ficava ainda mais difícil. Sofremos muito com sacos de rancho de

até 40 kg nas costas, não era brincadeira não, era para quem realmente precisava

de um pedaço de terra pra trabalhar. Alguns não agüentava e só vinha uma vez e

não volta mais, aí, os que tiraram lote, logo venderam por preço de “banana”, outros

abandonaram mesmo, mas a maioria como eu, que queriam realmente uma terra

estão até hoje, e graças a Deus... na terra da gente, o que fazemos é nosso e, de fome,

aqui a família não morre, só se não tiver coragem pra trabalhar. (DANIEL, pioneiro

residente no Transunião, PA) [...].

Outro morador que fez parte do início do processo de ocupação espontânea no Transunião,

na Área Naufal confirma essa percepção sobre a terra para trabalho, como base de um modo

de vida em que não há expropriação da força de trabalho, o “trabalho livre”. Neste sentido, há

possibilidades de se fazer o percurso inverso, morar no PA e buscar recursos na cidade:

[...] quando chegamos aqui nessa área, era tudo mata, não tinha estrada, a gente

pegava um barco para atravessar o Rio Xingu, e quando chegava na beira do rio,

ai, tinha que enfrentar a mata num picadão feito de facão, a pé com um sacos

de compras nas costas, as vezes debaixo de chuva, era dois dias de viagem... era

muito sofrimento. Parte do pessoal que veio no início não permaneceu, desistiu

logo, outros agüentaram o tranco. Além dessas dificuldades, tinha a falta de

dinheiro para investir no lote... muitas vezes tive que ir para Altamira e arrumar

uns “bico” como carpinteiro para conseguir manter a família e abrir as primeiras

roças (ZÉ MARIA, 50 anos, pioneiro residente no Transunião) [...].

Verifica-se novamente que, quanto ao local de residência, a modalidade de regularização

fundiária não tem em si uma interferência, que afete diretamente a mobilidade espacial das

famílias. Porém, o que se pode apreender é que, dentro de qualquer das duas modalidades

de assentamento, famílias mobilizam diferentes recursos (inclusive trabalhos temporários

na cidade) para concretizar o significado da terra ao seu modo de vida. Assim, enquanto uns

vivem na cidade e buscam recursos temporariamente num lote de terra percebido como mera

poupança, outros a percebem como base de seu modo de vida e buscam recursos externos

temporários para viabilizá-la.

21

Condições para a produção da agricultura familiarNa região da Transamazônica, as principais atividades econômicas são o cacau, o gado e a

madeira. Tanto nas áreas de colonização, como nos novos assentamentos, as principais atividades

geradoras de renda na agricultura familiar giram em torno da criação de gado e da lavoura

cacaueira. Além de não ser uma atividade tradicional, a extração economicamente viável da

madeira exige capital não disponível aos agricultores familiares.

Nos PDS Virola-Jatobá e PDS Esperança, as regras estabelecidas pelo Plano de Uso, requerido

por este instrumento de regularização fundiária, restringem a criação comercial do gado bovino.

Cada família pode implantar apenas 4 hectares de pastagens em cada lote, para a produção de

leite como complemento à alimentação das famílias, com venda de animais que excedem a

capacidade de suporte da pastagem. A restrição à criação de gado tem gerado insatisfação e

questionamentos, principalmente pelos agricultores dos PDS Virola-Jatobá, por encontrarem-

se em área que também apresenta limitações para a atividade cacaueira, em função da baixa

fertilidade do solo.

Assim, no PDS Virola-Jatobá, as restrições à criação de gado aliadas aos limites de fertilidade

do solo para o cultivo do cacau, têm restringido a autonomia dos agricultores. As famílias são

obrigadas a procurar atividades externas, vendendo força de trabalho em fazendas vizinhas ou

na cidade de Anapu, pois não encontraram ainda outra atividade ou cultivo que lhes permita

o sustento, livrando-os da dependência de um trabalho para patrão. Os agricultores do PDS

Esperança, nos lotes em áreas de solo de boa fertilidade, têm obtido êxito na implementação

do cultivo de cacau. Assim, mesmo com a restrição da criação de gado para fins econômicos, as

famílias do PDS Esperança encontram-se em uma situação mais favorável que as famílias do PDS

Virola, por garantirem relativa autonomia através do cultivo do cacau, uma atividade agrícola

sob seu próprio controle, capaz de garantir a reprodução familiar, sem a necessidade de vender

sua força de trabalho em fazendas vizinhas.

Quanto aos agricultores da Expansão do PA Itatuama, devido à menor restrição para o

desempenho da criação de gado, facilita-se o processo de tomada de decisão quanto à escolha

ou combinação de atividades de interesse econômico a serem desenvolvidas.

Nos dados da Tabela 7, sobre as condições de cobertura vegetal dos lotes examinados através

de uma amostra de n=48 lotes de cada assentamento, observa-se que existem diferenças no

percentual de área tanto entre as modalidades de regularização fundiária, como dentre a mesma

modalidade. De acordo com dados qualitativos, essa diferença é determinada por um conjunto

de variáveis, principalmente o tempo de ocupação do lote e as condições de fertilidade do solo.

22

Tabela 5: Constituição da cobertura vegetal dos lotes nos PDS Esperança, PDS Virola Jatobá e Expansão do PA Itapuama

Categoria

PDS Esperança

n=48

PDS Virola-Jatobá

n=48

Expansão do PA Itapuama

n=48

Área (ha) % Área (ha) % Área (ha) %

Terras para culturas anuais 49,82 16.7 55,62 15.5 73,42 7.8

Terra preparada para agricultura 105,4 35.4 80,03 22.3 45,53 4.8

Cacau em sistemas agroflorestais 69,54 23.4 47,99 13.4 121,53 12.8

Pastos plantados 14,91 5.0 41,19 11.5 159,97 16.9

Pousio recente (capoeira nova) 35,12 11.8 47,97 13.4 61,11 6.5

Pousio (capoeira velha) 14,8 5.0 77,96 21.8 461,56 48.8

Floresta Plantada 2,32 0.8 0 0.0 23,15 2.5

Outras categorias 5,56 1.9 7,63 2.1 0 0.0

Área aberta para uso alternativo (agricultura, plantio florestal)

297,46 100.0 358,39 100.0 946,27 100.0

Área legalmente permitida para uso alternativo

960   950*   595,2**

Área destinada a uso alternativo com cobertura de floresta natural

662,53 69.0 591,63 62.3 274,85 -12.8

Área aberta em excesso (passivo em relação à área legalmente permitida para uso alternativo)

0 0 351.07  

Fonte: Pesquisa de campo, RAVA, 2007.

*A soma das áreas de uso alternativo não corresponde a 960 hectares (48 famílias x 20 ha) devido a um dos agricultores da amostra ter comprado o direito de apenas metade de um lote, correspondente a 10 ha.

** A área de uso alternativo em lotes de PA corresponde a 20% da área do lote, a qual na Expansão do PA Itapuama tem o valor médio de 62 ha.

Verifica-se que as áreas de cacau em sistemas que conjugam cultivos anuais e perenes, (sistemas

agroflorestais) presentes na Expansão do PA Itapuama, comparativamente maior do que nos PDS de

Anapu, está diretamente relacionada com o maior tempo de exploração da terra, que se iniciou no ano

de 1998. De acordo com os dados obtidos em 2007, sobre o ano de implantação das parcelas de cacau,

identificou-se que na Expansão do PA Itapuama, a idade média do cacau é de 7 anos. Enquanto que no

PDS Virola Jatobá, a idade média é de 2 anos e no PDS Esperança, a idade média é de 3 anos.

23

Entre os dois PDS, podemos afirmar que há um maior investimento no plantio do cacau no interior

do PDS Esperança, devido às melhores condições de solo adequado ao cultivo do cacau (verificadas

em 15 das 23 análises de solo disponibilizadas pelo serviço de assistência técnica do INCRA e pelas

entrevistas dos agricultores). Enquanto que na Expansão do PA Itapuama as famílias têm buscado

combinar a atividade cacaueira com a pecuária, as famílias dos PDS têm apostado somente na

implantação do cacau. Porém, registra-se grande insatisfação de agricultores tanto da Expansão do

PA Itapuama e quanto do PDS Virola-Jatobá com o desempenho insatisfatório dos plantios.

O desempenho satisfatório das parcelas de cacau no PDS Esperança aliado à estabilidade

do preço das amêndoas de cacau têm incentivado agricultores familiares de projetos de

assentamentos do próprio município e de municípios vizinhos a procurarem terras para compra

no PDS Esperança. Porém, quase não há oferta, indicando-se que uma vez que haja viabilidade

para a produção familiar, a terra não é vendida.

Quanto às áreas de pastagens presentes no PDS Virola-Jatobá (Tabela 5), 70% do total não foi

implantado por agricultores, e sim, por fazendeiros, anterior ao processo de ocupação da área.

No momento da pesquisa, as pastagens encontravam-se abandonadas, sem a presença de

gado. Conclui-se que a intervenção governamental no desmatamento através da limitação de

desmate para pastagem tem apresentado resultados similares para ambos os PDS no que se

refere à derrubada de floresta primária para pastagens.

O avanço do desmatamento nos assentamentos estudados apresentou variação entre as

modalidades PA e PDS. No caso dos PDSs, os dados da tabela 5 apresentam a área de uso

alternativo, destinada às atividades agrícolas, correspondendo a 20 ha/família, conforme

estabelecido no Plano de Uso. Verifica-se que as áreas de uso alternativo agrícola dos PDS

Esperança e Virola-Jatobá ainda incluem 69% e 62% de mata primária, respectivamente. Tais

áreas ainda são passíveis de serem desmatadas a uma taxa de 3 ha/ ano, até o máximo de 20

ha. Já no caso da Expansão do PA Itapuama, a área total de uso alternativo (20% da área total

de 48 lotes com tamanho médio de 62 ha) corresponde a 595 ha. Embora estes lotes ainda

apresentem 274 ha de floresta, já existe um déficit de mata primária no conjunto dos mesmos,

uma vez que em alguns lotes a área aberta superou o permitido, num total agregado de 351 ha.

Como resultado, a Expansão do PA Itapuama apresenta um passivo ambiental de 76 ha, o que

representa uma área desmatada superior em 12.8% ao total permitido. A menor área desmatada

nos PDS Virola-Jatobá e Esperança deve-se ao menor número de anos de ocupação, asim como

às novas regras ambientais no PDS, através da exigência de um Plano de Uso que não permite

aberturas superiores a 4 ha de pastagem por lote.

Apesar de existirem regras para a intervenção do desmatamento também para as roças, não

se registram diferenças: a proibição ao desmatamento de áreas de preservação permanente

(declividades acentuadas e beiras de cursos d’água), não têm sido respeitadas, tanto no PA

como nos PDS. No PDS Virola-Jatobá as áreas destinadas ao uso alternativo do solo são bastante

acidentadas, não restando alternativas ao agricultor.

24

Observa-se que, tanto as políticas florestais (por exemplo: proteção à reserva legal, às áreas de

preservação permanente, proibição de caça e venda ilegal de madeira) quanto agrícolas (por

exemplo: necessidade de CAR – cadastro de atividade rural, e LAR – licença de atividade rural 1, limite de uso alternativo do solo em 3 ha/ano até um total de 20ha) não provocaram efeitos

significativamente diferenciados nos PDS em comparação com o PA. Em termos concretos,

ocorre apenas uma redução na abertura de áreas para implantação de pastagens. Porém, a

existência de alternativas viáveis para a agricultura familiar (como o plantio de cacau no PDS

Esperança), desestimula transferências de terra de forma mais expressiva do que no PA.

1 Documentos exigidos são emitidos pela SEMA – Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Num contexto de forte pressão devido aos argumentos de mudanças climáticas, entre os anos de 2004 e 2009, várias mudanças nos procedimen-tos exigidos pelo governo ocorreram, especialmente no processo de descentralização das atribuições das agências ambientais. No caso, o IBAMA repassou várias de suas atribuições às Secretarias de Meio Ambiente do Estado, que não estavam preparadas para tanto.

25

6 ConclusõesA questão da terra em interação com a questão ambiental tem sido tratada, via de regra, nos

diversos esquemas conceituais, em termos de propriedade da terra enquanto direito. Enfocando

os diversos regimes de direitos de propriedade, Schlanger e Ostrom (1992) especificaram

distintas modalidades de direitos, tanto aqueles praticados de jure quanto de facto, por diversas

categorias de usuários: posseiros, proprietários, donos efetivos ou meros usuários autorizados.

Tais esquemas conceituais vêm sendo aprimorados ao longo dos anos, através de definições

mais claras de conceitos, de escalas adotadas, atenção às instituições dos diferentes atores nessas

diferentes escalas e, especialmente, a distinção entre o recurso (o bem, a terra) e a propriedade

(o direito sobre o bem) (Ostrom et al. 2001).

Teoricamente, pode-se afirmar que a propriedade enquanto direito de facto, emanada por

regras e práticas locais, é menos segura enquanto não for reconhecida pelas autoridades

como direito de jure, emanada por leis e políticas públicas (Schlanger e Ostrom 1992: 254). No

entanto, na Amazônia, observam-se casos em que posseiros mantinham suas posses com maior

segurança do que quando o INCRA as regularizou, instalando lotes sob projeto de assentamento,

quebrando a ordem social vigente.

Além disso, em estudos sobre a interação entre propriedade da terra e questões ambientais, na

Transamazônica, por exemplo, registra-se que a titularidade da terra em determinados locais

resultou em maiores investimentos no lote, acarretando em maior depleção dos recursos

naturais existentes sobre a terra (Wood et al. 2003) e revertendo em maior insegurança quanto

ao benefício inerente à propriedade integral: a terra com a floresta em cima.

De fato, observações empíricas de nosso trabalho de campo inicial sugeriram que o fato de que

cerca de metade dos entrevistados estarem na Relação de Beneficiários do INCRA – etapa para a

propriedade como direito de jure – não os diferenciou em sua relação com as leis ambientais ou

com a intervenção no desmatamento, não se notando associações entre uma documentação

legal com menores taxas de mobilidade espacial.

Além disso, o conjunto de autores que trata da propriedade como direito de facto, baseado em

regras locais, associa suas observações empíricas a grupos sociais relativamente consolidados,

como povos e comunidades tradicionais. É necessário um olhar espacial para as áreas de reforma

agrária na Transamazônica. Nos anos iniciais de assentamento em áreas destinadas à reforma

agrária, as famílias provenientes de diferentes Estados e situações sociais diversas constituem

grupos sociais em comunidades em formação. Ainda que muitas das regras e práticas inerentes

ao campesinato estejam presentes, várias outras estão em construção ou confirmação. Assim, as

regras de propriedade como direito de facto também carecem de consolidação.

Colocando a questão no contexto jurídico nacional, vemos que, devido aos direitos e deveres

individuais e coletivos assegurados no Artigo 5º. Inciso XXIII da Constituição Federal de 1988, a

propriedade definida como o direito de usar, gozar e dispor de um bem é condicionada pela sua

26

função social. Portanto, nas situações que observamos em campo, não podemos afirmar que

os chamados beneficiários da reforma agrária tinham efetivamente a propriedade da terra, no

sentido de que esse direito não realizava plenamente sua função social. O fato de ter seu nome

numa lista do INCRA e ter um protocolo não garante que a família consiga usar, gozar e dispor

da terra de maneira que esta cumpra sua função social de garantir vida digna de um beneficiário

da reforma agrária. Esse direito é dependente de uma série de condições que ainda não se

cumpriram: o fomento, habitação, crédito, informação e, acima de tudo, o direito de viver na

terra, tendo o controle sobre as transformações em seu próprio modo de vida.

Assim, em situações sociais como novos assentamentos de reforma agrária, onde nem o direito

emanado das leis formais, nem o direito emanado de regras e práticas tradicionais se viabilizam,

a propriedade da terra deve ser abordada como direito a ser concretizado, e abordagens

teóricas que privilegiam o conceito de acesso podem oferecer suporte mais adequado que

o de propriedade. Rigot e Peluso (2003) fazem uma distinção entre acesso e propriedade,

sendo propriedade uma das muitas formas de acesso. Os autores definem acesso como um

“conjunto de poderes”, enquanto propriedade tem sido definida como um “conjunto de direitos”.

“Acesso indica todos os possíveis meios através do qual uma pessoa é capaz de se beneficiar de

coisas. Propriedade geralmente evoca um tipo de demanda socialmente reconhecida e apoiada

em um direito, seja esse reconhecimento por lei, costume ou convenção” (Ribot e Peluso 2003:156).

Os autores conceituam acesso num arcabouço teórico da economia política, tendo-o como

resultado de relações sociais, munindo-o de flexibilidades e dinâmicas possibilitadoras de

mudanças sociais. Em nosso trabalho de campo preliminar, observamos múltiplos mecanismos

de acesso, e critérios de prioridades que variavam situacionalmente.

“Devido à interdependência entre mecanismos de acesso, não lhes é possível impor

uma hierarquia absoluta ou abstrata. As maneiras como os vários mecanismos de

acesso se encaixam em momentos político-econômicos devem ser determinados

empiricamente. A análise de acessos é, por isso, o processo de identificar e mapear os

mecanismos pelos quais o acesso é obtido, mantido e controlado. Além disso, como os

padrões de acesso mudam com o tempo, eles devem ser entendidos como processos”

(Berry 1993, Lund 1994:14-15 e Peluso 1996, citados em Ribot e Peluso 2003:160)

De fato, ao observarmos empiricamente tanto os processos de mobilidade espacial das famílias

quanto os processos de desmatamento, em um contexto de supressão de direitos, percebemos

que o acesso a terra e o posterior deslocamento de segmentos desses grupos sociais ocorrem

numa diversidade de situações, segundo diferentes mecanismos, quer sejam de ocupação da

terra, quer sejam de ordem da produção. Além disso, o peso sobre cada aspecto a acionar esses

mecanismos variou a cada situação. Registramos então as situações de perdas ou transferências

de acessos a terra e, por vezes, de formação de um mercado informal de poderes associados

à terra sob reforma agrária. Concretamente, constata-se que o que está em negociação nesse

mercado não pode ser um direito de jure (porque a venda do lote ou mesmo do direito a um

lote da reforma agrária não é juridicamente reconhecida) nem um direito de fato (porque a

comunidade em formação, não consolidada, ainda não os garante). Assim, no que tange aos

27

acessos realizados e a sua negociação, os registros apontaram situações em configurações

diversas e de difícil ordenamento. Porém, o estudo nos permite algumas conclusões:

Primeiramente, constatamos que o deslocamento das famílias a partir dos lotes das áreas

estudadas não é determinado exclusiva ou necessariamente pelas ações de intervenção

no desmatamento, nem que o instrumento de regularização fundiária tenha efeito direto e

significativo em sua mobilidade espacial. Em seguida, buscamos entender os aspectos que,

interagindo com tais ações e instrumentos, afetam as decisões sobre a mobilidade espacial.

Nessa interação, enfocamos em quatro aspectos que permitiram uma aproximação do

significado implícito nessas múltiplas configurações, a variar nos processos em curso, segundo

a lógica dos entrevistados. Verificamos que, nas situações estudadas, o local de residência e a

documentação da terra não têm efeito de causa da mobilidade das famílias. Destacaram-se,

então, a forma de ocupação espontânea e o potencial de produção sob trabalho familiar. O

exame desses dois aspectos é que nos conduziu a uma melhor aproximação ao significado da

mobilidade das famílias, nas diversas configurações detectadas.

A análise desses dois aspectos nos leva a associar os processos de mobilidade, tanto no

acesso quanto no abandono da terra disponibilizada, com uma racionalidade que tem como

fundamento a reprodução social da unidade familiar segundo os preceitos do campesinato

amazônico. As entrevistas e observação participante nos mostraram que esses preceitos se

viabilizam na resistência aos constrangimentos à autonomia no controle de sua força de trabalho

e ao direito à terra. Identificamos ainda, que na tomada de decisão sobre a mobilidade espacial

das famílias esses constrangimentos de diversas ordens são avaliados à luz das alternativas

vislumbradas, sempre com o intuito de manter a subsistência da unidade familiar livre da

subordinação patronal.

Assim, a decisão sobre o processo de transferência da terra é percebido, sobretudo, como

parte de uma estratégia de reprodução social da unidade familiar, a fim de garantir a condição

camponesa do agricultor através do “trabalho livre na terra sem dono”. Ao analisarmos os diferentes

aspectos que interferem na mobilidade das famílias, rejeitamos qualquer caráter determinístico,

considerando que afetam a tomada de decisões individuais e coletivas sobre a mobilidade das

famílias, porém não o fazem isolada ou unilateralmente. Há um jogo de interações entre os

diferentes aspectos e fatores podendo criar novos contextos importantes, dentro dos quais

as famílias podem se organizar individual ou coletivamente para reconfigurar esses fatores e,

assim, influenciar sua permanência na área. Porém, essa permanência estava recorrentemente

vinculada a essa noção do “trabalho livre na terra sem dono”.

Os dados quantitativos e qualitativos têm nos mostrado que os recursos biofísicos, tais como as

condições favoráveis de fertilidade do solo, somados ao comportamento do mercado agrícola da

região, têm influenciado o processo de menor mobilidade espacial de famílias no interior do PDS

Esperança. Essa configuração de variáveis tem favorecido a autonomia das famílias no referido

assentamento quanto à decisão de optar por uma das atividades, e quanto a capacidade da

família garantir sua reprodução sem depender de trabalhos externos. No caso do PDS Esperança,

os constrangimentos das regras do PDS, quanto à restrição à atividade pecuária, é minimizada.

28

Em contrapartida, as famílias do PDS Virola Jatobá têm a sua autonomia comprometida, tanto

pelo limite da fertilidade do solo, quanto pelas regras do PDS, necessitando vender sua força de

trabalho para garantir o sustento da família. Assim, uma vez limitadas as atividades importantes

para a reprodução da família através do ”trabalho livre”, vislumbra-se a possibilidade de venda

ou abandono do lote, para se retomar a busca pela “terra sem dono” para realizar o “trabalho sem

patrão”.

Qualitativamente, registrou-se uma percepção de maior controle por parte do Estado no uso e

manejo dos recursos naturais florestais nos PDS. Assim, a restrição à criação de gado no interior

dos PDS tem contribuído para a abertura de menores áreas para pastagens em comparação

com o PA, o que significa um maior controle sobre o desmatamento nos PDS. Porém, a agência

dos atores e a instituição do “trabalho livre” mobilizaram a interação de fatores locais, como o

tipo de solo interagindo com o sistema de produção agroflorestal com cacau como principal

componente; e isso teve influência mais relevante em reter os residentes nos lotes do PDS

Esperança. Nos outros dois sítios de pesquisa, os recursos e condições não permitiram essa

autonomia. Assim, independente do maior ou menor rigor na intervenção do desmatamento,

não houve efeitos na mobilidade espacial. Conclui-se que o abandono do lote e venda dos

benefícios oriundos do acesso à terra é antes determinado pela maneira como o beneficiário

conjuga os fatores que afetam a reprodução social de sua família através do “trabalho livre”. Essa

concepção de mundo, por parte de um campesinato cuja gênese ocorre em meio a processos

de escravidão, destribalização, desterritorialização e migrações forçadas, demonstra a atualidade

da instituição da liberdade no controle da força de trabalho. Nas entrevistas abertas, com

homens ou mulheres, moradores mais antigos ou recentes, de diferentes origens, é recorrente a

alusão ao trabalho liberto, trabalho sem patrão, trabalho para mim mesmo, como sustentação de

um modo de vida própria ao campesinato amazônico.

Assim, o ideal do “trabalho sem patrão, na terra livre de dono” tem motivado as famílias a buscar o

acesso a terra, independente de que esta seja um PA ou PDS:

[...] Resolvi sair do lote desse senhor de Brasil Novo porque a terra não era minha, além

do mais, trabalhar para patrão não dá futuro pra ninguém. Considerando ainda que

não somos “donos do nosso nariz”, é ser comandado o tempo todo e, para patrão

nenhum trabalhador presta. Além do mais, lote é melhor do que “rua”, porque quem

mora na cidade e trabalha apenas de “bico”, fica com a situação financeira muito

vulnerável, já na roça, tudo que planta dá... mesmo que tenha que passar um mês sem

trabalhar, não passa fome. Já de empregado, no dia que falta o patrão já quer colocar

outro no lugar... Aqui a gente faz o próprio tempo, não fica cativo de ninguém (ZÉ

MARIA, Transunião) [...].

Da mesma forma, em uma terra, quer seja num PA ou num PDS, em que a produção econômica

e a reprodução social estiverem subordinadas a novos “cativeiros”, teremos também os motivos

para as famílias abandonarem seus lotes e saírem em busca do “trabalho sem patrão, na terra livre

de dono”.

29

Referências bibliográficasAndersen, L. E., Granger, C. W. J., Reis, E. J., Weinhold, D., Wunder, S. (2002). The Dynamics of

Deforestation and Ecomomic Growth in the Brasilian Amazon. In. The Sources and

agents of deforestation. pp. 66-90. Cambridge University Press. 2002.

Barreto, A. M. (2007). Apropriação Ilícita de Terras Públicas na Amazônia: o caso Gleba Ituna, no

Estado do Pará. Amazônia: Ci. & Desenv. Belém, v. 3, n. 5, jul./dez. 2007.

Binswanger, H.P. (1991). Brasilian Policies that Encourage Deforestation in the Amazon. World

Development, Vol. 19, No. 7, pp. 821-829.

Caldas, M., Walker, R., Arima, E., Perz, S., Aldrich, S., and Simmons, C. (2007). Theorizing Land Cover

and Land Use Change: The Peasant Economy of Amazonian Deforestation. Annals of

the Association of American Geographers, 97(1), 2007, pp. 86–110.

Campari, J. S. (2002). Challenging the turnover hypothesis of Amazon deforestation: Evidence

from colonization projects in Brazil. Ph.D. dissertation, The University of Texas at Austin.

Carvalho, G., Barros, A.C., Moutinho, P. e Nepstad, D.C. (2001). Nature 409, 131 2001.

Fernside, P.M. (1996) Amazonian Deforestation and Global Warming: Carbon Stocks in vegetation

replacing Brazil´s Amazon Forest. Forest Ecology and Management 80 (1-3) 21-34.

Fearnnside, P.M. (2001), Land-Tenure Issues as Factoresmin Environmental Destruction in

Brasilian Amazonia: Tho Case of Southern Pará. World Development Vol. 29, No. 8, pp.

1361-1372.

Felix, G.A. (2008). O caminho do mundo: mobilidade espacial e condição camponesa numa

Região da Amazônia Oriental. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense,

2008.

Hecht, S. (1985). Environment, Development and Politics: Capital Accumulation and theLivestock

Sector in Eastern Amazonia. World Development 13(6): 663–84.

INPE. (2009). Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Projeto PRODES: http://www.inpe.br/

noticias/arquivos/pdf/grafico1_prodes2009.pdf. (acesso em 15/2/2010)

Laurence, W. F., Mark A. Cochrane, Scott, B., Fearnside, P. M., Delamônica, P., Barber, C., D’Angelo,

S., and Fernandes, T. (2001). Environment: The Future of the Brazilian Amazon. Science

2001; 291: 438-439

Laurence, W. F., Albernaz, A. K. M., Schroth, G., Fearnside, P. M., Bergen, Scott, Venticinque,

30

Eduardo M. and Costa, C. (2002). Predictors of deforestation in the Brazilian Amazon.

Journal of Biogeography 29, 2002. 737-748.

Ludewigs, T., D’Antona, A. O., Brondízio, E. S. e Hetrick, S. (2009). Agrarian Structure and Land-

cover Change Along the Lifespan of Three Colonization Areas in the Brazilian Amazon.

World Development Vol. 37, No. 8, pp. 1348–1359, 2009

Ministério Público Federal. (2007) Ação civil pública por ato de improbidade administrativa

em desfavor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. http://

www.prpa.mpf.gov.br/noticias/2008/ACP_Improbidade_INCRA_STM.pdf (acessado

em 17/02;2010).

Nepstad, D.C. et al.(2000) Avança Brasil: The Environmental Costs for Amazonia Instituto de

Pesquisa Ambiental da Amazônia, Belém, Brazil, 2000; available at http://www.ipam.

org.br

Ostrom, E., Dietz, T., Dolsak, N., Stern, P.C., Stonich, S., and Welber, E.W. (2001) The Drama of the

Commons / Committee on the human dimensions of global change. Washington:

National Academy Press, 2001.

Pacheco, P., Nunes, W., Rocha, C, G., Santos, I. V., Herrera, J.A., Santos, K. S., Silva, T. F., Cayres, G.

(2009) Acesso à Terra e Meios de Vida: examinando suas interações em três locais no

Estado do Pará: Belém–Pará,CIFOR/LAET/ARCA.

Perz, S. G., Walker, R. T. (2002). Household Life Cycles and Secondary Forest Cover Among Smal

Farm Colonists in the Amazon. World development Vol. 30, No. 6 pp. 1009-1027.

Ribot, J. C., Peluso, N. L. (2003). A Theory of Access. Rural Sociology 68(2), 2003. PP. 153-181.

Sablayrolles, P., and C. Rocha. (2003). Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar na

Transamazônica, 300. Altamira, Para: AFATRA.

Schlanger, E.; Ostrom, E. (1992) Property-rights regime and natural resources: A conceptual

analysis. Land Economics, v.86, n.3, 1992.

Wood, C., Walker, R. e Toni, F. (2003). Os Efeitos da posse da terra sobre o uso do solo e

investimentos entre pequenos agricultores na Amazônia Brasileira. In Viabilidade de

Sistemas Agropecuários na Agricultura Familiar da Amazônia. Tourrand, J. e Veiga, J.B.

eds. Belém, Pará, Brasil: Embrapa Amazônia Oriental.

Coalizão Internacional para o Acesso à Terra Secretaria

fax: +39 06 5459 [email protected]

Via Paolo di Dono, 4400142 – Roma, Italiatel: +39 06 5459 2445

Este informe coloca-se no marco da iniciativa sobre as pressões commerciais sobre a terra (CPL). Se você deseja receber mais informações sobre a initiativa o sobre os sócios, por favor contacte a secretaria da Coalizão.

Pressoes Commerciais sobre a terra

A intervenção no desmatamento e a estabilidade no acesso à terra: estudo comparativo entre duas modalidades de regularização fundiária na Transamazônica, Brasil