a interpretação da bíblia na igreja

93
A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA ÍNDICE INTRODUÇÃO I. MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO II. QUESTÕES DE HERMENÊUTICA III. DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS DA INTERPRETAÇÃO CATÓLICA IV. INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA VIDA DA IGREJA CONCLUSÃO INTRODUÇÃO A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos. Dado à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito. A. Problemática atual O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas vezes se quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta dificuldades. Ao lado de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos oráculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século encontrava-se na mesma situação a propósito de uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intérprete (At8,30- 35). A segunda carta de Pedro declara que « nenhuma

Upload: claudio-gomes

Post on 11-Nov-2015

226 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos. Dado à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.

TRANSCRIPT

A INTERPRETAO DA BBLIA NA IGREJAPONTIFCIA COMISSO BBLICANDICEINTRODUOI. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAOII. QUESTES DE HERMENUTICAIII. DIMENSES CARACTERSTICAS DA INTERPRETAO CATLICAIV. INTERPRETAO DA BBLIA NA VIDA DA IGREJACONCLUSOINTRODUO

A interpretao dos textos bblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discusses. Elas adquiriram dimenses novas nestes ltimos anos. Dado importncia fundamental da Bblia para a f crist, para a vida da Igreja e para as relaes dos cristos com os fiis das outras religies, a Pontifcia Comisso Bblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.

A.Problemtica atualO problema da interpretao da Bblia no uma inveno moderna como algumas vezes se quer fazer crer. A Bblia mesma atesta que sua interpretao apresenta dificuldades. Ao lado de textos lmpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos orculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn9,2). Segundo os Atos dos Apstolos, um etope do primeiro sculo encontrava-se na mesma situao a propsito de uma passagem do livro de Isaas (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intrprete (At8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretao particular (2Pd1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do apstolo Paulo contm alguns pontos difceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua prpria perdio (2Pd3,16).

O problema , portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante, para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bblia, os leitores devem voltar a quase vinte ou trinta sculos atrs, o que no deixa de levantar dificuldades. De outro lado, as questes de interpretao tornaram-se mais complexas nos tempos modernos devido aos progressos feitos pelas cincias humanas. Mtodos cientficos foram aperfeioados no estudo do textos da antiguidade. Em que proporo esses mtodos podem ser considerados apropriados interpretao da Sagrada Escritura? A esta questo a prudncia pastoral da Igreja durante muita tempo respondeu de maneira muito reticente, pois muitas vezes o mtodos, apesar de seus elementos positivos, encontravam-se ligados a opes opostas f crist. Mas uma evoluo positiva se produziu, marcada por uma srie de documentos pontifcios, desde encclica Providentissimus Deusde Leo XIII (18 novembro 1893) at a encclica Divino afflante Spiritude Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela declaraoSancta Mater Ecclesie(21 abril 1964) da Pontifcia Comisso Bblica e sobretudo pele Constituio DogmticaDei Verbumdo Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).Afecundidadedesta atitude construtiva manifestou-se de uma maneira inegvel. Os estudos bblicos tiveram um progresso notvel na Igreja catlica e o valor cientfico deles foi cada vez mais reconhecido no mundo dos estudiosos e entre os fiis. O dilogo ecumnico foi consideravelmente facilitado. A influncia da Bblia sobre a teologia se aprofundou e contribuiu renovao teolgica. O interesse pela Bblia aumentou entre os catlicos e favoreceu o progresso da vida crist. Todos aqueles que adquiriram uma formao sria nesse campo estimam doravante impossvel retornar a um estado de interpretao pr-crtica, pois o julgam, com razo, claramente insuficiente.

Mas, ao mesmo tempo em que o mtodo cientfico mais divulgado o mtodo histrico-crtico - praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese catlica, ele mesmo encontra-se em discusso: de um lado, no prprio mundo cientfico, pela apario de outros mtodos e abordagens, e, de outro lado, pelas crticas de numerosos cristos que o julgam deficiente do ponto de vista da f. Particularmente atento, como seu nome o indica, evoluo histrica dos textos ou das tradies atravs do tempo - oudiacronia- o mtodo histrico-crtico encontra-se atualmente em concorrncia, em alguns ambientes, com mtodos que insistem na compreensosincrnicados textos, tratando-se da lngua, da composio, da trama narrativa ou do esforo de persuaso deles. Alm disso, o cuidado que os mtodos diacrnicos tm em reconstituir o passado, para muitos substitudo pela tendncia de interrogar os textos colocando-os em perspectivas do tempo presente, seja de ordem filosfica, psicanaltica, sociolgica, poltica, etc. Esse pluralismo de mtodos e abordagens apreciado por alguns como um indcio de riqueza, mas a outros ele d a impresso de uma grande confuso.

Real ou aparente, essa confuso traz novos argumentos aos adversrios da exegese cientfica. O conflito das interpretaes manifesta, segundo eles, que no se ganha nada submetendo os textos bblicos s exigncias dos mtodos cientficos, mas, ao contrrio, perde-se bastante. Eles sublinham que a exegese cientfica obtm como resultado o provocar perplexidade e dvida sobre inumerveis pontos que, at ento, eram admitidos pacificamente; que ele fora alguns exegetas a tomar posies contrrias f da Igreja sobre questes de grande importncia, como a concepo virginal de Jesus e seus milagres, e at mesmo sua ressurreio e sua divindade.

Mesmo quando no finaliza em tais negaes, a exegese cientfica se caracteriza, segundo eles, pela sua esterilidade no que concerne o progresso da vida crist. Ao invs de permitir um acesso mais fcil e mais seguro s fontes vivas da Palavra de Deus, ela faz da Bblia um livro fechado, cuja interpretao sempre problemtica exige tcnicas refinadas fazendo dela um domnio reservado a alguns especialistas. A estes, alguns aplicam a frase do Evangelho: Tomastes a chave da cincia! Vs mesmos no entrastes e impedistes os que queriam entrar! (Lc11,52; cfMt23,13).

Em consequncia, ao paciente labor do exegeta cientfico estima-se necessrio substituir abordagens mais simples, como uma ou outra prtica de leitura sincrnica que se considera como suficiente, ou mesmo, renunciando a todo estudo, preconiza-se uma leitura da Bblia dita espiritual , entendendo-se pela expresso uma leitura unicamente guiada pela inspirao pessoal subjetiva e destinada a alimentar esta inspirao. Alguns procuram na Bblia sobretudo o Cristo da viso pessoal deles e a satisfao da religiosidade espontnea que tm. Outros pretendem encontrar nela respostas diretas a toda sorte de questes, pessoais ou coletivas. Numerosas so as seitas que propem como nica verdadeira uma interpretao da qual elas afirmam terem tido a revelao.

B.O objetivo deste documentoH de se considerar seriamente, portanto, os diversos aspectos da situao atual em matria de interpretao bblica, de esta atento s crticas, s queixas e s aspiraes que se exprimem a esse respeito, de apreciar as possibilidades abertas pelos novos mtodos e abordagens e de procurar, enfim, precisar a orientao que melhor corresponde misso do exegeta na Igreja catlica.

Esta a finalidade deste documento. A Pontifcia Comisso Bblica deseja indicar os caminhos que convm tomar para chegar a uma interpretao da Bblia que seja to fiel quanto possvel a seu carter ao mesmo tempo humano e divino. Ela no pretende tomar aqui posio sobre todas as questes que so feitas a respeito da Bblia, como por exemplo, a teologia da inspirao. O que ela quer examinar os mtodos suscetveis de contriburem com eficcia a valorizar todas as riquezas contidas nos textos bblicos, a fim de que a Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais o alimento espiritual dos membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de f, de esperana e de amor, assim como uma luz para toda a humanidade (cfDei Verbum, 21).

Para alcanar este fim, o presente documento:

1. far uma breve descrio dos diversos mtodos e abordagens, (1) indicando suas possibilidades e seus limites;

2. examinar algumas questes de hermenutica;

3. propor uma reflexo sobre as dimenses caractersticas da interpretao catlica da Bblia e sobre suas relaes com as outras disciplinas teolgicas;

4. considerar, enfim, o lugar que ocupa a interpretao da Bblia na vida da Igreja.I. MTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAOA.Mtodo histrico-crticoO mtodo histrico-crtico o mtodo indispensvel para o estudo cientfico do sentido dos textos antigos. Como a Santa Escritura, enquanto Palavra de Deus em linguagem humana , foi composta por autores humanos em todas as suas partes e todas as suas fontes, sua justa compreenso no s admite como legtimo, mas pede a utilizao deste mtodo.

1.Histria do mtodoPara apreciar corretamente este mtodo em seu estado atual, convm dar uma olhada em sua histria. Certos elementos deste mtodo de interpretao so muito antigos. Eles foram utilizados na antiguidade por comentadores gregos da literatura clssica e, mais tarde, durante o perodo patrstico, por autores como Orgenes, Jernimo e Agostinho. O mtodo era, ento, menos elaborado. Suas formas modernas so o resultado de aperfeioamentos, trazidos sobretudo desde os humanistas da Renascena e orecursus ad fontesdeles. Enquanto que a crtica textual do Novo Testamento s pde se desenvolver como disciplina cientfica a partir de 1800, depois que se desligou doTextus receptus, os primrdios da crtica literria remontam ao sculo XVII, com a obra de Richard Simon, que chamou a ateno sobre as repeties, as divergncias no contedo e as diferenas de estilo observveis no Pentatuco, constataes dificilmente conciliveis com a atribuio de todo o texto a um autor nico, Moiss. No sculo XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda em dar como explicao que Moiss tinha se servido de vrias fontes (sobretudo de duas fontes principais) para compor o Livro do Gnesis, mas, em seguida, a crtica contesta cada vez mais resolutamente a atribuio da composio do Pentatuco a Moiss. A crtica literria identificou-se muito tempo com um esforo para discernir diversas fontes nos textos. assim que se desenvolveu, no sculo XIX, a hiptese dos documentos , que procura explicar a redao do Pentatuco. Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de pocas diferentes, teriam sido incorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o deuteronomista (D) e o sacerdotal (P: do alemo Priester ); deste ltimo que o redator final teria se servido para estruturar o conjunto. De maneira anloga, para explicar ao mesmo tempo as convergncias e as divergncias constatadas entre os trs Evangelhos sinticos, recorreram hiptese das duas fontes , segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o de Lucas teriam sido compostos a partir de duas fontes principais: o Evangelho de Marcos de um lado e, de outro lado, uma compilao das palavras de Jesus (chamada Q, do alemo Quelle , fonte ). Essencialmente estas duas hipteses so ainda aceitas atualmente na exegese cientfica, mas elas so objeto de contestaes.

No desejo de estabelecer a cronologia dos textos bblicos, esse gnero de crtica literria se limitava a um trabalho de cortes e de decomposio para distinguir as diversas fontes e no dava uma ateno suficiente estrutura final do texto bblico e mensagem que ele exprime em seu estado atual (mostrava-se pouca estima pela obra dos redatores). Dessa maneira a exegese histrico-crtica podia aparecer como fragmentria e destrutora, ainda mais que certos exegetas sob a influncia da histria comparada das religies, tal como ela se praticava ento, ou partindo de concepes filosficas, emitiam contra a Bblia julgamentos negativos.

Hermann Gunkel fez o mtodo sair do gueto da crtica literria entendida desta maneira. Se bem tenha continuado a considerar os livros do Pentatuco como compilaes, ele aplicou sua ateno textura particular das diferentes partes. Ele procurou definir o gnero de cada uma (por exemplo, legenda ou hino ) e seu ambiente de origem ou Sitz im Lebem ( por exemplo, situao jurdica, liturgia, etc.). A esta pesquisa dos gneros literrios assemelha-se o estudo crtico das formas ( Formgeschichte ) inaugurada na exegese dos sinticos por Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Este ltimo misturou aos estudos de Formgeschichte uma hermenutica bblica inspirada na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Em consequncia, a Formgeschichte suscitou muitas vezes srias reservas. Mas este mtodo, em si mesmo, teve como resultado a declarao de que a tradio no-testamentria obteve sua origem e tomou sua forma na comunidade crist, ou Igreja primitiva, passando da pregao do prprio Jesus predigao que proclama que Jesus o Cristo. Formgeschichte aliou-se a Redaktionsgeschichte , estudo crtico da redao . Esta ltima procura colocar em evidncia a contribuio pessoal de cada evangelista e as orientaes teolgicas que guiaram o trabalho de redao deles. Com a utilizao deste ltimo mtodo, a srie das diferentes etapas do mtodo histrico-crtico tornou-se mais completa: da crtica textual passa-se a uma crtica literria que decompe (pesquisa das fontes), depois a um estudo crtico das formas, enfim a uma anlise da redao, que atenta ao texto em sua composio. Desta maneira tornou-se possvel uma compreenso mais clara da inteno dos autores e redatores da Bblia, assim como da mensagem que eles dirigiram aos primeiros destinatrios. O mtodo histrico-crtico adquiriu ento uma importncia de primeiro plano.

2.PrincpiosOs princpios fundamentais do mtodo histrico-crtico em sua forma clssica so os seguintes:

E um mtodohistrico, no s porque ele se aplica a textos antigos no caso, aqueles da Bblia e estuda seu alcance histrico, mas tambm e sobretudo porque ele procura elucidar os processos histricos de produo dos textos bblicos, processos diacrnicos algumas vezes complicados e de longa durao. Em suas diferentes etapas de produo, os textos da Bblia so dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que se encontravam em situaes de tempo e de espao diferentes.

um mtodocrtico, porque ele opera com a ajuda de critrios cientficos to objetivos quanto possveis em cada uma de suas etapas (da crtica textual ao estudo crtico da redao), de maneira a tornar acessvel ao leitor moderno o sentido dos textos bblicos, muitas vezes difcil de perceber.

Mtodo analtico, ele estuda o texto bblico da mesma maneira que qualquer outro texto da antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana. Entretanto, ele permite ao exegeta, sobretudo no estudo crtico da redao dos textos, perceber melhor o contedo da revelao divina.

3.DescrioNo estgio atual de seu desenvolvimento, o mtodo histrico-crtico percorre as seguintes etapas:

A crtica textual, praticada h muito mais tempo, abre a srie das operaes cientficas. Baseando-se no testemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como dos papiros, das tradues antigas e da patrstica, ela procura, segundo regras determinadas, estabelecer um texto bblico que seja to prximo quanto possvel ao texto original.

O texto em seguida submetido a uma anlise lingustica (morfologia e sintaxe) e semntica, que utiliza os conhecimentos obtidos graas aos estudos de filologia histrica. A crtica literria esfora-se ento em discernir o incio e o fim das unidades textuais, grandes e pequenas, e em verificar a coerncia interna dos textos. A existncia de repeties, de divergncias inconciliveis e de outros indcios, manifesta o carter compsito de certos textos. Estes ento so divididos em pequenas unidades, das quais estuda-se a dependncia possvel a diversas fontes. A crtica dos gneros procura determinar os gneros literrios, ambiente de origem, traos especficos e evoluo desses textos. A crtica das tradies situa os textos em correntes de tradio, das quais ela procura determinar a evoluo no decorrer da histria. Enfim, a crtica da redao estuda as modificaes que os textos sofreram antes de terem um estado final fixado, esforando-se em discernir as orientaes que lhes so prprias. Enquanto as etapas precedentes procuraram explicar o texto pela sua gnese, em uma perspectiva diacrnica, esta ltima etapa termina com um estudo sincrnico: explica-se aqui o texto em si, graas s relaes mtuas de seus diversos elementos e considerando-o sob seu aspecto de mensagem comunicada pelo autor a seus contemporneos. A funo pragmtica do texto pode ento ser levada em considerao.

Quando os textos estudados pertencem a um gnero literrio histrico ou esto em relao com acontecimentos da histria, a crtica histrica completa a crtica literria para determinar seu alcance histrico, no sentido moderno da expresso.

desta maneira que so colocadas em evidncia as diferentes etapas do desenrolar concreto da revelao bblica.

4.AvaliaoQue valor dar ao mtodo histrico-crtico, em particular no estgio atual de sua evoluo?

um mtodo que, utilizado de maneira objetiva, no implica em si nenhuma priori:Se sua utilizao acompanhada de taisa priori, isto no devido ao mtodo em si mas a opinies hermenuticas que orientam a interpretao e podem ser tendenciosas.

Orientado, em seu incio, como crtica das fontes e da histria das religies, o mtodo obteve como resultado a abertura de um novo acesso Bblia, mostrando que ela uma coleo de escritos que, muitas vezes, sobretudo para o Antigo Testamento, no tm um autor nico, mas tiveram uma longa pr-histria inextricavelmente ligada histria de Israel ou quela da Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretao judaica ou crist da Bblia no tinha uma conscincia clara das condies histricas concretas e diversas nas quais a Palavra de Deus se enraizou. Ela tinha disto um conhecimento global e longnquo. O confronto da exegese tradicional com uma abordagem cientfica que em seu incio fazia conscientemente abstrao da f e algumas vezes mesmo se opunha a ela, foi seguramente dolorosa; depois, no entanto, ela se revelou salutar: uma vez que o mtodo foi liberado dos preconceitos extrnsecos, ele conduziu a uma compreenso mais exata da verdade da Santa Escritura (cfDei Verbum, 12). Segundo aDivino afflante Spiritu, a procura do sentido literal da Escritura uma tarefa essencial da exegese e, para cumprir esta tarefa, necessrio determinar o gnero literrio dos textos (cfE.B., 560), o que se realiza com a ajuda do mtodo histrico-crtico.

Com certeza o uso clssico do mtodo histrico-crtico manifesta limites, pois ele se restringe procura do sentido do texto bblico nas circunstncias histricas de sua produo e no se interessa pelas outras potencialidades de sentido que se manifestaram no decorrer das pocas posteriores da revelao bblica e da histria da Igreja. No entanto, esse mtodo contribuiu produo de obras de exegese e de teologia bblica de grande valor.

Renunciou-se h muito tempo a um amlgama do mtodo com um sistema filosfico. Recentemente uma tendncia exegtica orientou o mtodo insistindo predominantemente sobre a forma do texto, com menor ateno ao seu contedo, mas esta tendncia foi corrigida graas contribuio de uma semntica diferenciada (semntica das palavras, das frases, do texto) e ao estudo do aspecto pragmtico dos textos.

A respeito da incluso no mtodo, de uma anlise sincrnica dos textos, deve-se reconhecer que se trata de uma operao legtima, pois o texto em seu estado final, e no uma redao anterior, que expresso da Palavra de Deus. Mas o estudo diacrnico continua indispensvel para o discernimento do dinamismo histrico que anima a Santa Escritura e para manifestar sua rica complexidade: por exemplo, o cdigo da Aliana (Ex21,23) reflete um estado poltico, social e religioso da sociedade israelita diferente daquele que refletem as outras legislaes conservadas no Deuteronmio (Dt12,26) e no Levtico (cdigo de santidade,Lv17-26). tendncia de reduzir tudo ao aspecto histrico, que se pde repreender na antiga exegese histrico-crtica, seria o caso que no sucedesse o excesso inverso: o de um esquecimento da histria, por parte de uma exegese exclusivamente sincrnica.

Em definitivo, o objetivo do mtodo histrico-crtico de colocar em evidncia, de maneira sobretudo diacrnica, o sentido expresso pelos autores e redatores. Com a ajuda de outros mtodos e abordagens, ele abre ao leitor moderno o acesso ao significado do texto da Bblia, tal como o temos.

B.Novos mtodos de anlise literriaNenhum mtodo cientfico para o estudo da Bblia est altura de corresponder riqueza total dos textos bblicos. Qualquer que seja sua validade, o mtodo histrico-crtico no pode pretender ser suficiente a tudo. Ele deixa forosamente obscuros numerosos aspectos dos escritos que estuda. Que no seja surpresa a constatao de que atualmente outros mtodos e abordagens so propostos para aprofundar um ou outro aspecto digno de ateno.

Neste pargrafo B apresentaremos alguns mtodos de anlise literria que se desenvolveram recentemente. Nos pargrafos seguintes (C, D, E) examinaremos brevemente diversas abordagens, das quais algumas esto em relao com o estudo da tradio, outras com as cincias humanas , outras ainda com situaes ' contemporneas particulares. Consideramos enfim (F) a leitura fundamentalista da Bblia, que recusa todo esforo metdico de interpretao.

Aproveitando os progressos realizados em nossa poca pelos estudos lingsticos e literrios, a exegese bblica utiliza cada vez mais mtodos novos de anlise literria, em particular a anlise retrica, a anlise narrativa e a anlise semitica.

1.Anlise retricaNa realidade, a anlise retrica no em si um mtodo novo. O que novo, de um lado, sua utilizao sistemtica para a interpretao da Bblia e, de outro lado, o nascimento e o desenvolvimento de uma nova retrica .

Aretrica a arte de compor discursos persuasivos. Pelo fato de que todos os textos bblicos so em algum grau textos persuasivos, um certo conhecimento da retrica faz parte do instrumental normal dos exegetas. A anlise retrica deve ser conduzida de maneira crtica, pois a exegese cientfica um trabalho que se submete necessariamente s exigncias do esprito crtico.

Muitos estudos bblicos recentes deram uma grande ateno presena da retrica na Escritura. Podemos distinguir trs abordagens diferentes. A primeira se baseia na retrica clssica greco-latina; a segunda atenta aos procedimentos semticos de composio; a terceira inspira-se nas pesquisas modernas que chamamos nova retrica .

Toda situao de discurso comporta a presena de trs elementos: o orador (ou o autor), o discurso (ou o texto) e o auditrio (ou os destinatrios). Aretrica clssicadistingue, consequentemente, trs fatores de persuaso que contribuem qualidade de um discurso: a autoridade do orador, a argumentao do discurso e as emoes que ele suscita no auditrio. A diversidade de situaes e de auditrios influencia imensamente a maneira de falar. A retrica clssica, desde Aristteles, admite a distino de trs gneros de eloqncia: o gnero judicirio (diante dos tribunais), o deliberativo (nas assemblias polticas), o demonstrativo (nas celebraes).

Constatando a enorme influncia da retrica na cultura helenstica, um nmero crescente de exegetas utiliza tratados de retrica clssica para melhor analisar certos aspectos dos escritos bblicos, sobretudo daqueles do Novo Testamento.

Outros exegetas concentram a ateno sobre os traos especficos datradio literria bblica. Enraizada na cultura semtica, ela manifesta uma forte preferncia pelas composies simtricas, graas s quais as relaes so estabelecidas entre os diversos elementos do texto. O estudo das mltiplas formas de paralelismo e de outros procedimentos semticos de composio deve permitir um melhor discernimento da estrutura literria dos textos e assim chegar a maior compreenso de sua mensagem.

Tomando um ponto de vista mais geral, a nova retrica quer ser algo mais que um inventrio de figuras de estilo, de artifcios oratrios e de espcies de discurso. Ela busca o porqu tal uso especfico da linguagem eficaz e chega a comunicar uma convico. Ela se quer realista , recusando de se limitar simples anlise formal. Ela d situao de debate a ateno que lhe devida. Ela estuda o estilo e a composio enquanto meios de exercer uma ao sobre o auditrio. Com esta finalidade ela aproveita as contribuies recentes de disciplinas como a lingstica, a semitica, a antropologia e a sociologia.

Aplicada Bblia, a nova retrica quer penetrar no corao da linguagem da revelao enquanto linguagem religiosa persuasiva e medir seu impacto no contexto social da comunicao. Porque elas trazem um enriquecimento ao estudo crtico dos textos, as anlises retricas merecem muita estima, sobretudo em suas recentes pesquisas. Elas reparam uma negligncia que durou muito tempo e fazem descobrir ou colocam mais em evidncia perspectivas originais. A nova retrica tem razo de chamar a ateno para a capacidade persuasiva e convincente da linguagem. A Bblia no simplesmente enunciao de verdades. E uma mensagem dotada de uma funo de comunicao em um certo contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo de argumentao e uma estratgia retrica.

As anlises retricas tm, contudo, seus limites. Quando elas se contentam em ser descritivas, seus resultados tm muitas vezes um interesse unicamente estilstico. Fundamentalmente sincrnicas, elas no podem pretender constituir um mtodo independente que seja autosuficiente. Sua aplicao aos textos bblicos levanta mais de uma questo: os autores destes textos pertenciam aos ambientes mais cultos? At que ponto eles seguiram as regras de retrica para compor seus escritos? Qual retrica mais pertinente para a anlise de tal escrito determinado: a greco-latina ou a semtica? No se arrisca em atribuir a certos textos bblicos uma estrutura retrica elaborada demais? Estas questes e outras no devem dissuadir o emprego deste tipo de anlise; elas convidam a no recorrer a ele sem discernimento.

2.Anlise narrativaA exegese narrativa prope um mtodo de compreenso e de comunicao da mensagem bblica que corresponde forma de relato e de testemunho, modalidade fundamental da comunicao entre pessoas humanas, caracterstica tambm da Santa Escritura. O Antigo Testamento, efetivamente, apresenta uma histria da salvao cujo relato eficaz torna-se substncia da profisso de f, da liturgia e da catequese (cfSal78,3-4;Ex12,24-27;Dt6,20-25; 26,5-11). De seu lado, a proclamao do querigma cristo compreende a sequncia narrativa da vida, da morte e da ressurreio de Jesus Cristo, acontecimentos dos quais os Evangelhos nos oferecem um relato detalhado. A catequese se apresenta, ela tambm, sob a forma narrativa (cf 1Co11,23-25).

A respeito da abordagem narrativa, convm distinguir mtodos de anlise e reflexo teolgica.

Numerososmtodos de anliseso atualmente propostos. Alguns partem do estudo dos modelos narrativos antigos. Outros se baseiam sobre um ou outro estudo atual da narrativa, que pode ter pontos comuns com a semitica. Particularmente atenta aos elementos do texto que dizem respeito ao enredo, s caractersticas e ao ponto de vista tomado pelo narrador, a anlise narrativa estuda o jeito pelo qual a histria contada de maneira a envolver o leitor no mundo do relato e seu sistema de valores.

Vrios mtodos introduzem uma distino entre autor real e autor implcito , leitor real e leitor implcito . O autor real a pessoa que comps o relato. Por autor implcito designada a imagem do autor que o texto produz progressivamente no decorrer da leitura (com sua cultura, seu temperamento, suas tendncias, sua f, etc.). Chama-se leitor real toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os primeiros destinatrios que leram ou ouviram ler at os leitores ou ouvintes de hoje. Por leitor implcito entende-se aquele que o texto pressupe e produz, aquele que capaz de efetuar as operaes mentais e afetivas exigidas para entrar no mundo do relato e assim responder a ele da maneira visada pelo autor real atravs do autor implcito.

Um texto continua a exercer sua influncia na medida em que os leitores reais (por exemplo, ns mesmos no fim do sculo XX) podem se identificar com o leitor implcito. Uma das maiores tarefas do exegeta facilitar esta identificao.

anlise narrativa liga-se uma nova maneira de apreciar o alcance dos textos. Enquanto o mtodo histrico-crtico considera antes de tudo o texto como uma janela , que permite algumas observaes sobre uma ou outra poca (no apenas sobre os fatos narrados, mas tambm sobre a situao da comunidade para a qual eles foram contados), sublinha-se que o texto funciona igualmente como um espelho , no sentido de que ele estabelece uma certa imagem do mundo o mundo do relato que exerce sua influncia sobre a maneira de ver do leitor e o leva a adotar certos valores invs que outros.

A este gnero de estudo, tipicamente literrio, associou-se a reflexo teolgica, que levando em considerao as consequncias que a natureza de relato e de testemunho da Santa Escritura representa para a adeso de f, deduz disso uma hermenutica de tipo prtico e pastoral. Reage-se desta maneira contra a reduo do texto inspirado a uma srie de teses teolgicas, formuladas muitas vezes segundo categorias e linguagem no escritursticas. Pede-se exegese narrativa de reabilitar, em contextos histricos novos, os modos de comunicao e de significado prprios ao relato bblico, afim de melhor abrir caminho sua eficcia para a salvao. Insiste-se na necessidade de contar a salvao (aspecto informativo do relato) e de contar em vista da salvao (aspecto de desempenho ). O relato bblico, efetivamente, contm explicitamente ou implicitamente, segundo o caso um apelo existencial dirigido ao leitor.

Para a exegese da Bblia, a anlise narrativa apresenta uma utilidade evidente, pois ela corresponde natureza narrativa de um grande nmero de textos bblicos. Ela pode contribuir a tornar fcil a passagem, muitas vezes sofrida, entre o sentido do texto em seu contexto histrico tal como o mtodo histrico-crtico procura defini-lo e o alcance do texto para o leitor de hoje. Em contraposio, a distino entre autor real e autor implicito aumenta a complexidade dos problemas de interpretao.

Aplicando-se aos textos da Bblia, a anlise narrativa no pode se contentar de colar sobre eles modelos pr-estabelecidos. Ela deve ao contrrio esforar-se em corresponder sua especificidade. Sua abordagem sincrnica dos textos pede para ser completada por estudos diacrnicos. Ela deve, de outro lado, evitar uma possvel tendncia a excluir toda elaborao doutrinria dos dados que contm os relatos da Bblia. Ela se encontraria, ento, em desacordo com a prpria tradio bblica que pratica esse gnero de elaborao, e com a tradio eclesial que continuou nesta via. Convm, enfim, notar que no se pode considerar a eficcia existncial subjetiva da Palavra de Deus transmitida narrativamente, como um critrio suficiente da verdade de sua compreenso.

3.Anlise semiticaEntre os mtodos chamados sincrnicos, isto , que se concentram sobre o estudo do texto bblico tal como ele se apresenta ao leitor em seu estado final, coloca-se a anlise semitica que, h uns vinte anos, se desenvolveu bastante em certos meios. Primeiramente chamado pelo termo geral de estruturalismo , este mtodo pode se propor como descendente do lingista suo Ferdinand de Saussure que no incio deste sculo elaborou a teoria segundo a qual toda lngua um sistema de relaes que obedece regras determinadas. Vrios lingistas e literatos tiveram uma influncia marcante na evoluo do mtodo. A maior parte dos biblistas que utilizam a semitica para o estudo da Bblia recorre a Algirdas J. Greimas e Escola de Paris, da qual ele o fundador. Abordagens ou mtodos anlogos, fundados sobre a Lingstica moderna, se desenvolvem em outros lugares. o mtodo de Greimas que iremos apresentar e analisar brevemente.

A semitica repousa sobre trs princpios ou pressupostos principais:Princpio de imanncia: cada texto forma um conjunto de significados: a anlise considera todo o texto, mas somente o texto; ela no apela a dados externos , tais como o autor, os destinatrios, os acontecimentos narrados, a histria da redao.Princpio de estrutura do sentido: s h sentido atravs da relao e no interior dela, especialmente a relao de diferena; a anlise de um texto consiste assim em estabelecer a rede de relaes (de oposio, de homologao...) entre os elementos, a partir da qual o sentido do texto se constri.Princpio da gramtica do texto: cada texto respeita uma gramtica, isto , um certo nmero de regras ou estruturas; em um conjunto de frases, chamado discurso, h diferentes nveis, tendo cada um a sua gramtica.

O contedo global de um texto pode ser analisado em trs nveis diferentes:O nvel narrativo. Estuda-se, no relato, as transformaes que fazem passar do estado inicial ao estado terminal. No interior de um percurso narrativo, a anlise procura retraar as diversas fases, logicamente ligadas entre elas, que marcam a transformao de um estado em um outro. Em cada uma destas fases, apuram-se as relaes entre os papis exercidos por atuantes que determinam os estados e produzem as transformaes.O nvel discursivo. A anlise consiste em trs operaes: a) a identificao e a classificao das figuras, isto , dos elementos de significao de um texto (atores, tempos e lugares); b) o estabelecimento dos percursos de cada figura em um texto para determinar a maneira como esse texto o utiliza; c) a procura dos valores temticos das figuras. Esta ltima operao consiste em distinguir em nome do que (= valor) as figuras seguem, nesse texto determinado, tal percurso.O nvel lgico-semntico. o nvel chamado profundo. Ele tambm o mais abstrato. Ele procede do postulado que formas lgicas e significantes so subjacentes s organizaes narrativas e discursivas de todo discurso. A anlise a esse nvel consiste em precisar a lgica que gera as articulaes fundamentais dos percursos narrativos e figurativos de um texto. Para isto um instrumento muitas vezes empregado, chamado de quadrado semitico , figura utilizando as relaes entre dois termos contrrios e dois termos contraditrios (por exemplo, branco e negro; branco e no-branco; negro e no-negro).

Os tericos do mtodo semitico no cessam de apresentar desenvolvimentos novos. As pesquisas atuais se referem notadamente a enunciao e inter-textualidade. Aplicado primeiramente aos textos narrativos da Escritura, que se prestam mais facilmente a isso, o mtodo cada vez mais utilizado para outros tipos de discursos bblicos.

A descrio dada pela semitica, e sobretudo o enunciado de seus pressupostos, j deixam perceber ascontribuiese oslimitesdeste mtodo. Estando mais atenta ao fato de que cada texto bblico um todo coerente que obedece a mecanismos lingusticos precisos, a semitica contribui nossa compreenso da Bblia, Palavra de Deus expressa em linguagem humana.

A semitica pode ser utilizada para o estudo da Bblia apenas quando este mtodo de anlise separado de certos pressupostos desenvolvidos na filosofia estruturalista, isto , a negao dos sujeitos e da referncia extra-textual. A Bblia a Palavra sobre o real, que Deus pronunciou em uma histria e que ele nos dirige hoje por intermdio de autores humanos. A abordagem semitica deve ser aberta histria: primeiramente quela dos atores dos textos, em seguida quela de seus autores e de seus leitores. O risco grande, entre os utilizadores da anlise semitica, de ficar em um estudo formal do contedo e de no liberar a mensagem dos textos.

Se ela no se perde nos mistrios de uma linguagem complicada mas ensinada em termos simples em seus elementos principais, a anlise semitica pode dar aos cristos o gosto de estudar o texto bblico e de descobrir algumas de suas dimenses de sentido; sem possuir todos os conhecimentos histricos que se relacionam produo do texto e a seu mundo scio-cultural. Ela pode assim mostrar-se til na prpria pastoral, para uma certa apropriao da Escritura em ambientes no especializados.

C.Abordagens baseadas na TradioMesmo que eles se diferenciem do mtodo histrico-crtico por uma ateno maior unidade interna dos textos estudados, os. mtodos literrios que acabamos de apresentar permanecem insuficientes para a interpretao da Bblia, pois eles consideram cada escrito isoladamente. Ora, a Bblia no se apresenta como um conjunto de textos desprovidos de relaes entre eles, mas como um composto de testemunhos de uma mesma e grande Tradio. Para corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a exegese bblica deve levar em considerao este fato. Tal a perspectiva adotada por vrias abordagens que se desenvolvem atualmente.

1.Abordagem cannicaConstatando que o mtodo histrico-crtico encontra algumas vezes dificuldades em alcanar o nvel teolgico em suas concluses, a abordagem cannica , nascida nos Estados Unidos h uns vinte anos, entende por bem conduzir uma tarefa teolgica de interpretao partindo do quadro especifico da f: a Bblia em seu conjunto.

Para faz-lo, ela interpreta cada texto bblico luz do Cnon das Escrituras, isto , da Bblia enquanto recebida como norma de f por uma comunidade de fiis. Ela procura situar cada texto no interior do nico desgnio de Deus, com o objetivo de chegar a uma atualizao da Escritura para o nosso tempo. Ela no pretende substituir o mtodo histrico-crtico, mas deseja complement-lo.

Dois pontos de vista diferentes foram propostos: Brevard S. Childs centraliza seu interesse sobre a forma cannica final do texto (livro ou coleo), forma aceita pela comunidade como tendo autoridade para expressar sua f e dirigir sua vida.

Mais do que sobre a forma final e estabilizada do texto, James A. Sanders coloca sua ateno sobre o processo cannico ou desenvolvimento progressivo das Escrituras s quais a comunidade dos fiis reconheceu uma autoridade normativa. O estudo crtico deste processo examina como as antigas tradies foram reutilizadas em novos contextos antes de constituir um todo ao mesmo tempo estvel e adaptado, coerente e fazendo unio de dados divergentes, do qual a comunidade de f tira sua identidade. Procedimentos hermenuticos foram acionados no decorrer desse processo e o so ainda aps a fixao do Cnon; eles so muitas vezes do gnero do Midrashim, servindo para atualizar o texto bblico Eles favorecem uma constante interao entre a comunidade e sua Escrituras, fazendo apelo a uma interpretao que visa torna contempornea a tradio.

A abordagem cannica reage com razo contra a valorizao exagerada daquilo que supostamente original e primitivo, como se somente isso fosse autntico. A Escritura inspirada a Escritura tal como a Igreja a reconheceu como regra de sua f. Pode-se insistir a esse respeito, seja sobre a forma final na qual se encontra atualmente cada um dos livros, seja sobre o conjunto que eles constituem como Cnon. Um livro torna-se bblico somente luz do Cnon inteiro.

A comunidade dos fiis efetivamente o contexto adequado para a interpretao dos textos cannicos. A f e o Esprito Santo enriquecem a exegese; a autoridade eclesial, que se exerce a servio da comunidade, deve velar para que a interpretao permanea fiel grande Tradio que produziu os textos (cfDei Verbum, 10).

A abordagem cannica encontra-se s voltas com mais de um problema, sobretudo quando ela procura definir o processo cannico . A partir de quando pode-se dizer que um texto cannico? Parece admissvel dizer: desde que a comunidade atribui a um texto uma autoridade normativa, mesmo antes da fixao definitiva desse texto. Pode-se falar de uma hermenutica cannica desde que a repetio das tradies, que se efetua levando-se em conta os aspectos novos da situao (religiosa, cultural, teolgica), mantm a identidade da mensagem. Mas apresenta-se uma questo: o processo de interpretao que conduziu formao do Cnon deve ele ser reconhecido como regra de interpretao da Escritura at nossos dias?

De outro lado, as relaes complexas entre o Cnon judaico das Escrituras e o Cnon cristo suscitam numerosos problemas para a interpretao. A Igreja crist recebeu como Antigo Testamento os escritos que tinham autoridade na comunidade judaica helenstica, mas alguns deles esto ausentes da Bblia hebraica ou se apresentam sob uma forma diferente. Ocorpus, ento, diferente. Por isso a interpretao cannica no pode ser idntica, pois c, da texto deve ser lido em relao com o conjunto docorpus. Ma sobretudo, a Igreja l o Antigo Testamento luz do acontecimento pascal morte e ressurreio de Cristo Jesus que traz um radical novidade e d, com uma autoridade soberana, um sentido decisivo e definitivo s Escrituras (cfDei Verbum, 4). Esta nova determinao de sentido faz parte integrante da f crist. Ela no deve, portanto, tirar toda consistncia interpretao cannica anterior, aquela que precedeu a Pscoa crist, pois preciso respeitar cada etapa da histria da salvao. Esvaziar da sus substncia o Antigo Testamento seria privar o Novo Testamento de sua raiz na histria.

2.Abordagem com recurso s tradies judaicas de interpretaoO Antigo Testamento tomou sua forma final no judasmo dos quatro ou cinco ltimos sculos que precederam a era crist. Esse judasmo foi tambm o ambiente de origem do Novo Testamento e da Igreja nascente. Numerosos estudos de histria judaica antiga e principalmente as pesquisas suscitadas pelas descobertas de Qumrn colocaram em relevo a complexidade do mundo judeu, em terra de Israel e na dispora, ao longo deste perodo.

neste mundo que comeou a interpretao da Escritura. Um dos mais antigos testemunhos de interpretao judaica da Bblia a traduo grega dos Setenta. Os Targumim aramaicos constituem um outro testemunho do mesmo esforo, que continuou at nossos dias, acumulando uma soma prodigiosa de procedimentos sbios Para a conservao do texto do Antigo Testamento e para a explicao do sentido dos textos bblicos. Em todos os tempos, os melhores exegetas cristos, desde Orgenes e so Jernimo, procuraram tirar proveito da erudio judaica para uma melhor inteligncia da Escritura. Numerosos exegetas modernos seguem esse exemplo.

As tradies judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a Bblia judaica dos Setenta, que em seguida tornou-se a primeira parte da Bblia crist durante pelo menos os quatro primeiros sculos da Igreja, e no Oriente at nossos dias. A literatura judaica extra-cannica, chamada apcrifa ou inter-testamentria, abundante e diversificada, uma fonte importante para a interpretao do Novo Testamento. Os procedimentos variados de exegese praticados pelo judasmo das diferentes tendncias reencontram-se no prprio Antigo Testamento, por exemplo nas Crnicas em relao aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo, em certos raciocnios escritursticos de so Paulo. A diversidade das formas (parbolas, alegorias, antologia e florilgios, releituras,pesher, comparaes entre textos distantes, salmos e hinos, vises, revelaes e sonhos, composies sapienciais) comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como literatura de todos os ambientes judaicos antes e aps o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim representam a homiltica e a interpretao bblica de grandes setores do judasmo dos primeiros sculos.

Alm disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos comentadores, gramticos e lexicgrafos judeus medievais e mais recentes, luzes para a inteligncia de passagens obscuras ou de palavras raras e nicas. Mais freqentes que antigamente, aparecem hoje referncias a essas obras judaicas na discusso exegtica.

A riqueza da erudio judaica colocada a servio da Bblia, desde suas origens na antiguidade at nossos dias, uma ajuda muito valiosa para o exegeta dos dois Testamentos, condio, no entanto, de empreg-la com conhecimento de causa. O judasmo antigo era de uma grande diversidade. A forma farisaica, que prevaleceu em seguida no rabinismo, no era a nica. Os textos judeus antigos se escalonam por vrios sculos; importante situ-los cronologicamente antes de fazer comparaes. Sobretudo, o quadro geral das comunidades judaicas e crists fundamentalmente diferente: do lado judeu, segundo formas muito variadas, trata-se de uma religio que define um povo e uma prtica de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradio oral, enquanto que do lado cristo a f ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado e doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que rene uma comunidade. Esses dois pontos de partida criam, para a interpretao das Escrituras, dois contextos que, apesar de muitos contatos e semelhanas, so radicalmente diferentes.

3.Abordagem atravs da histria dos efeitos do textoEsta abordagem apia-se sobre dois princpios:a)um texto torna-se uma obra literria somente se ele encontra leitores que lhe do vida apropriando-se dele;b)essa apropriao do texto, que pode se efetuar de maneira individual ou comunitria e toma forma em diferentes domnios (literrio, artstico, teolgico, asctico e mstico), contribui a fazer compreender melhor o texto em si.

Sem ser totalmente desconhecida da antiguidade, esta abordagem se desenvolveu entre 1960 e 1970 nos estudos literrios, logo que a crtica interessou-se pelas relaes entre o texto e seus leitores. A exegese bblica s podia obter benefcios com esta pesquisa, ainda mais que a hermenutica filosfica afirmava por seu lado a necessria distncia entre a obra e seu autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta perspectiva, comeou-se a fazer entrar no trabalho de interpretao a histria do efeito provocado por um livro ou uma passagem da Escritura ( Wirkungsgeschichte ). Esfora-se em medir a evoluo da interpretao no decorrer do tempo em funo das preocupaes dos leitores e em avaliar a importncia do papel da tradio para iluminar o sentido dos textos bblicos.

Colocar-se em presena do texto e de seus leitores suscita uma dinmica, pois o texto exerce uma irradiao e provoca reaes. Ele faz ressoar um apelo, que ouvido pelos leitores individualmente ou em grupos. O leitor, alis, no nunca um sujeito isolado. Ele pertence a um espao social e se situa em uma tradio. Ele vem ao texto com suas questes, opera uma seleo, prope uma interpretao e, finalmente, ele pode criar uma outra obra ou tomar iniciativas que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura.

Os exemplos de uma tal abordagem j so numerosos. A histria da leitura do Cntico dos Cnticos oferece um excelente testemunho disso; ela mostra como esse livro foi recebido na poca dos Padres da Igreja, no ambiente monstico latino da Idade Mdia ou ainda por um mstico como so Joo da Cruz; assim ele permite melhor descobrir todas as dimenses do sentido deste escrito. Da mesma maneira no Novo Testamento possvel e til esclarecer o sentido de uma pericope (por exemplo, aquela do jovem rico emMt19,16-26) mostrando sua fecundidade no curso da histria da Igreja.

Mas a histria atesta tambm a existncia de correntes de interpretao tendenciosas e falsas, com efeitos nefastos, levando, por exemplo, ao antisemitismo ou a outras discriminaes raciais ou ainda a iluses milenaristas. V-se por isso que esta abordagem no pode ser uma disciplina autnoma. Um discernimento necessrio. Deve-se evitar o privilgio de um ou outro momento da histria dos efeitos de um texto para fazer dele a nica regra de sua interpretao.

D.Abordagens atravs das cincias humanasPara se comunicar, a Palavra de Deus se enraizou na vida de grupos humanos (cfEcle24,12) e ela traou a si mesma um caminho atravs dos condicionamentos psicolgicos das diversas pessoas que compuseram os escritos bblicos. Resulta disso que as cincias humanas em particular a sociologia, a antropologia e a psicologia podem contribuir a uma compreenso melhor de certos aspectos dos textos. Convm, no entanto, notar que existem vrias escolas, com divergncias notveis sobre a prpria natureza dessas cincias. Dito isto, um bom nmero de exegetas tirou recentemente proveito desse gnero de pesquisas.

1.Abordagem sociolgicaOs textos religiosos esto unidos por uma conexo de relao recproca com as sociedades nas quais eles nascem. Esta constatao vale evidentemente para os textos bblicos. Consequentemente, o estudo crtico da Bblia necessita um conhecimento to exato quanto possvel dos comportamentos sociais que caracterizam os diversos ambientes nos quais as tradies bblicas se formaram. Esse gnero de informao scio-histrica deve ser completado por uma explicao sociolgica correta, que interprete cientificamente, em cada caso, o alcance das condies sociais de existncia.

Na histria da exegese, o ponto de vista sociolgico encontrou seu lugar h muito tempo. A ateno que a Formgeschichte deu ao ambiente de origem dos textos ( Sitz im Leben ) um testemunho disso: reconhece-se que as tradies bblicas levam a marca dos ambientes scio-culturais que as transmitiram. No primeiro tero do sculo XX a Escola de Chicago estudou a situao scio-histrica da cristandade primitiva, dando assim crtica histrica um impulso aprecivel nesta direo. No decorrer dos vinte ltimos anos (1970-1990), a abordagem sociolgica dos textos bblicos tornou-se parte integrante da exegese.

Numerosas so as questes feitas a esse respeito exegese do Antigo Testamento. Deve-se perguntar, por exemplo, quais so as diversas formas de organizao social e religiosa que Israel conheceu no decorrer de sua histria. Para o perodo anterior formao de um Estado, o modelo etnolgico de uma sociedade acfala segmentria forneceu uma base de partida suficiente? Como se passou de uma liga de tribos, sem grande coeso, a um Estado organizado em monarquia e, de l, a uma comunidade baseada simplesmente sobre as ligaes religiosas e genealgicas? Quais transformaes econmicas, militares e outras foram provocadas na estrutura da sociedade pelo movimento de centralizao poltica e religiosa que conduziu monarquia? O estudo das normas de comportamento no Antigo Oriente e em Israel no contribui com mais eficcia inteligncia do Declogo do que as tentativas puramente literrias de reconstruo de um texto primitivo?

Para a exegese do Novo Testamento, as questes so evidentemente diferentes. Citemos algumas delas: para explicar o gnero de vida adotado antes da Pscoa por Jesus e seus discpulos, qual valor pode-se dar teoria de um movimento de carismticos itinerantes, vivendo sem domicilio, nem famlia, nem bens? Foi mantida uma relao de continuidade, baseada sobre o chamado de Jesus a segui-lo, entre a atitude de desprendimento radical adotado por Jesus e aquela do movimento cristo aps a Pscoa, nos mais diversos ambientes da cristandade primitiva? O que sabemos da estrutura social das comunidades paulinas, levando-se em conta, em cada caso, a cultura urbana correspondente?

Geralmente a abordagem sociolgica d uma abertura maior ao trabalho exegtico e comporta muitos aspectos positivos. O conhecimento dos dados sociolgicos que contribuem a fazer compreender o funcionamento econmico, cultural e religioso do mundo bblico indispensvel crtica histrica. A tarefa da exegese, de bem compreender o testemunho de f da Igreja apostlica, no pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem uma pesquisa cientfica que estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo Testamento com a vivncia social da Igreja primitiva. A utilizao dos modelos fornecidos pela cincia sociolgica assegura s pesquisas dos historiadores das pocas bblicas uma notvel capacidade de renovao, mas preciso, naturalmente, que os modelos sejam modificados em funo da realidade estudada.

o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociolgica faz correr a exegese. Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, previsvel encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus mtodos a ambientes histricos que pertenam a um passado longnquo. Os textos bblicos e extra-bblicos no fornecem forosamente uma documentao suficiente para dar uma viso de conjunto da sociedade da poca. Alis, o mtodo sociolgico tende a dar mais ateno aos aspectos econmicos e institucionais da existncia humana do que s suas dimenses pessoais e religiosas.

2.Abordagem atravs da antropologia culturalA abordagem dos textos bblicos que utiliza as pesquisas de antropologia cultural est em ligao estreita com a abordagem sociolgica. A distino dessas duas abordagens situa-se ao mesmo tempo a nvel da sensibilidade, do mtodo e dos aspectos da realidade que retm a ateno. Enquanto que a abordagem sociolgica acabamos de diz-lo estuda sobretudo os aspectos econmicos e institucionais, a abordagem antropolgica interessa-se por um vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na linguagem, arte, religio, mas tambm nos vesturios, ornamentos, festas, danas, mitos, lendas e tudo o que concerne a etnografia.

Geralmente a antropologia cultural procura definir as caractersticas dos diferentes tipos de homens no ambiente social deles como por exemplo, o homem mediterrnico com tudo o que isso implica de estudo do ambiente rural ou urbano e de ateno voltada aos valores reconhecidos pela sociedade (honra e desonra, segredo, fidelidade, tradio, gnero de educao e de escolas), maneira pela qual se exerce o controle social, s idias que se tem da famlia, da casa, do parentesco, situao da mulher, dos binmios institucionais (patro-cliente, proprietrio-locatrio, benfeitor-beneficirio, homem livre-escravo), sem esquecer a concepo do sagrado e do profano, os tabus, o ritual de passagem de uma situao a uma outra, a magia, a origem dos recursos, do poder, da informao, etc.

Tendo-se por base esses diversos elementos, constitui-se tipologias e modelos comuns a vrias culturas.

Esse gnero de estudos pode evidentemente ser til para a interpretao dos textos bblicos e ele efetivamente utilizado para o estudo das concepes de parentesco no Antigo Testamento, a posio da mulher na sociedade israelita, a influncia dos ritos agrrios, etc. Nos textos que relatam o ensinamento de Jesus, por exemplo as parbolas, muitos detalhes podem ser esclarecidos graas a essa abordagem. Ocorre o mesmo para as concepes fundamentais, como aquela do reino de Deus, ou para a maneira de conceber o tempo na histria da salvao, assim como para os processos de aglutinao das comunidades primitivas. Esta abordagem permite distinguir melhor os elementos permanentes da mensagem bblica cujo fundamento est na natureza humana, e as determinaes contingentes segundo culturas particulares. Todavia, no mais que outras abordagens particulares, esta no est em si altura de levar em conta as contribuies especficas da revelao. Convm estar ciente disso no momento de apreciar o alcance de seus resultados.

3.Abordagens psicolgicas e psicanalticasPsicologia e teologia no cessaram jamais de estar em dilogo uma com a outra. A extenso moderna das pesquisas psicolgicas ao estudo das estruturas dinmicas do inconsciente suscitou novas tentativas de interpretao dos textos antigos, e assim tambm da Bblia. Obras inteiras foram consagradas interpretao psicanaltica de textos bblicos. Vivas discusses seguiram-nas: em qual medida e em quais condies as pesquisas psicolgicas e psicanalticas podem contribuir para uma compreenso mais profunda da Santa Escritura?

Os estudos de psicologia e de psicanlise trazem exegese bblica um enriquecimento, pois, graas a eles os textos da Bblia podem ser melhor entendidos enquanto experincias de vida e regras de comportamento. A religio, sabe-se, sempre em uma situao de debate com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, correta orientao das pulses humanas. As etapas que a crtica histrica percorre metodicamente precisam ser complementadas por um estudo dos diversos nveis da realidade expressa nos textos. A psicologia e a psicanlise esforam-se em avanar nesta direo. Elas abrem a via para uma compreenso pluridimensional da Escritura, e elas ajudam a decifrar a linguagem humana da revelao.

A psicologia e, de outra maneira, a psicanlise deram particularmente uma nova compreenso do smbolo. A linguagem simblica permite exprimir zonas da experincia religiosa que no so acessveis ao raciocnio puramente conceitual, mas tm valor para a questo da verdade. por isso que um estudo interdisciplinar conduzido em comum por exegetas e psiclogos ou psicanalistas apresenta vantagens certas, fundadas objetivamente e confirmadas na pastoral.

Numerosos exemplos podem ser citados, que mostram a necessidade de um esforo comum dos exegetas e dos psiclogos: para esclarecer o sentido dos ritos do culto, dos sacrifcios, dos interditos, para explicar a linguagem cheia de imagens da Bblia, o alcance metafrico dos relatos de milagres, a fora dramtica das vises e audies apocalpticas. No se trata simplesmente de descrever a linguagem simblica da Bblia, mas apreender sua funo de revelao e de interpelao: a realidade luminosa de Deus entra aqui em contato com o homem.

O dilogo entre exegese e psicologia ou psicanlise em vista de uma compreenso melhor da Bblia deve evidentemente ser crtico e respeitar as fronteiras de cada disciplina. Em todo caso, uma psicologia ou uma psicanlise que fosse atia se tornaria incapaz de considerar os dados da f. teis para definir a extenso da responsabilidade humana, psicologia e psicanlise no devem eliminar a realidade do pecado e da salvao. Deve-se, alis, evitar de confundir religiosidade espontnea e revelao bblica ou de prejudicar o carter histrico da mensagem da Bblia, que lhe assegura um valor de acontecimento nico.

Notemos ainda que no se pode falar da exegese psicanaltica como se houvesse apenas uma. Existe, em realidade, provenientes de diversos domnios da psicologia e das diversas escolas, uma grande variedade de conhecimentos suscetveis de contribuir interpretao humana e teolgica da Bblia. Considerar absoluta uma ou outra posio de uma das escolas no favorece a fecundidade do esforo comum, ao contrrio lhe e nocivo.

As cincias humanas no se reduzem sociologia, antropologia cultural e psicologia. Outras disciplinas podem tambm ser teis para a interpretao da Bblia. Em todos esses domnios preciso respeitar as competncias e reconhecer que pouco freqente que uma mesma pessoa seja ao mesmo tempo qualificada em exegese e em uma ou outra das cincias humanas.

E.Abordagens contextuaisA interpretao de um texto sempre dependente da mentalidade e das preocupaes de seus leitores. Estes ltimos do uma ateno privilegiada a certos aspectos e, sem mesmo pensar, negligenciam outros. ento inevitvel que exegetas adotem, em seus trabalhos, novos pontos de vista que correspondam a correntes de pensamento contemporneas que no obtiveram, at aqui, uma importncia suficiente. Convm que eles o faa m com discernimento crtico. Atualmente os movimentos de libertao e o feminismo retm particularmente a ateno.

1.Abordagem da libertaoA teologia da libertao um fenmeno complexo que preciso no simplificar indevidamente. Como movimento teolgico ele se consolida no incio dos anos 70. Seu ponto de partida, alm das circunstncias econmicas, sociais e politicas dos pases da Amrica Latina, encontra-se em dois grandes acontecimentos eclesiais: o Concilio Vaticano II, com sua vontade declarada deaggiornamentoe de orientao do trabalho pastoral da Igreja em direo s necessidades do mundo atual, e a 2 Assemblia plenria do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellin em 1968, que aplicou os ensinamentos do Concilio s necessidades da Amrica Latina. O movimento se propagou tambm em outras partes do mundo (frica, sia, populao negra dos Estados Unidos).

difcil discernir se existe uma teologia da libertao e definir seu mtodo. to difcil quanto determinar adequadamente sua maneira de ler a Bblia para indicar em seguida as contribuies e os limites. Pode-se dizer que ela no adota um mtodo especial. Mas, partindo de pontos de vista scio-culturais e polticos prprios, ela pratica uma leitura bblica orientada em funo das necessidades do povo, que procura na Bblia o alimento da sua f e da sua vida.

Ao invs de se contentar com uma interpretao objetivante, que se concentra sobre aquilo que diz o texto em seu contexto de origem, procura-se uma leitura que nasa da situao vivida pelo povo. Se este ltimo vive em circunstncias de opresso, preciso recorrer Bblia para nela procurar o alimento capaz de sustent-lo em suas lutas e suas esperanas. A realidade presente no deve ser ignorada, mas, ao contrrio, afrontada em vista de ilumin-la luz da Palavra. Desta luz resultar a prxis crist autntica, tendendo transformao da sociedade por meio da justia e do amor. Na f, a Escritura se transforma em fator de dinamismo de libertao integral.

Osprincpiosso os seguintes:

Deus est presente na histria de seu povo para salv-lo. Ele o Deus dos pobres, que no pode tolerar a opresso nem a injustia.

por isso que a exegese no pode ser neutra, mas deve tomar partido pelos pobres no seguimento de Deus, e engajar-se no combate pela libertao dos oprimidos.

A participao a esse combate permite, precisamente, de fazer aparecer sentidos que se descobrem somente quando os textos bblicos so lidos em um contexto de solidariedade efetiva com os oprimidos.

Como a libertao dos oprimidos um processo coletivo, a comunidade dos pobres a melhor destinatria para receber a Bblia como palavra de libertao. Alm disso, os textos bblicos tendo sido escritos para comunidades, a comunidades que em primeiro lugar a leitura da Bblia confiada. A Palavra de Deus plenamente atual, graas sobretudo capacidade que possuem os acontecimentos fundadores (a sada do Egito, a paixo e a ressurreio de Jesus) de suscitar novas realizaes no curso da histria.

A teologia da libertao compreende elementos cujo valor indubitvel: o sentido profundo da presena de Deus que salva; a insistncia sobre a dimenso comunitria da f; a urgncia de uma prxis libertadora enraizada na justia e no amor; uma releitura da Bblia que procura fazer da Palavra de Deus a luz e o alimento do povo de Deus em meio a suas lutas e suas esperanas. Assim sublinhada a plena atualidade do texto inspirado.

Mas a leitura to engajada da Bblia comporta riscos. Como ela ligada a um movimento em plena evoluo, as observaes que seguem no podem que ser provisrias.

Essa leitura se concentra sobre textos narrativos e profticos que iluminam situaes de opresso e que inspiram uma prxis tendendo a uma mudana social: aqui ou l ela pde ser parcial, no dando tanta ateno a outros textos da Bblia. certo que a exegese no pode ser neutra, mas ela deve tambm evitar de ser unilateral. Alis, o engajamento social e politico no a tarefa direta do exegeta.

Querendo inserir a mensagem bblica no contexto scio-poltico, telogos e exegetas foram levados ao recurso de instrumentos de anlise da realidade social. Nesta perspectiva, algumas correntes da teologia da libertao fizeram uma anlise inspirada em doutrinas materialistas e nesse quadro tambm que elas leram a Bblia, o que no deixou de provocar questes, notadamente no que concerne o princpio marxista da luta de classes.

Sob a presso de enormes problemas sociais, o acento foi colocado principalmente sobre uma escatologia terrestre, muitas vezes em detrimento da dimenso escatolgica transcendente da Escritura.

As mudanas sociais e polticas conduzem esta abordagem a se propr novas questes e a procurar novas orientaes. Para seu desenvolvimento ulterior e sua fecundidade na Igreja, um fator decisivo ser o esclarecimento de seus pressupostos hermenuticos, de seus mtodos e de sua coerncia com a f e a Tradio do conjunto da Igreja.

2.Abordagem feministaA hermenutica bblica feminista nasceu por volta do fim do sculo XIX nos Estados Unidos, no contexto scio-cultural da luta pelos direitos da mulher, com o comit de reviso da Bblia. Este ltimo produziu o The Woman's Bible em dois volumes (New York 1885, 1898). Esta corrente se manifestou com grande vigor e teve um enorme desenvolvimento a partir dos anos '70, em ligao com o movimento de libertao da mulher, sobretudo na Amrica do Norte. Melhor dizendo, deve-se distinguir vrias hermenuticas bblicas feministas, pois as abordagens utilizadas so muito diversas. A unidade delas provm do tema comum, isto a mulher, e do fim perseguido: a libertao da mulher e a conquista de direitos iguais aos do homem.

Deve-se mencionar aqui trs formas principais da hermenutica bblica feminista: a forma radical, a forma neo-ortodoxa e a forma crtica.

A formaradicalrecusa completamente a autoridade da Bblia, dizendo que ela foi produzida por homens em vista de assegurar a dominao do homem sobre a mulher (androcentrismo).

A formaneo-ortodoxaaceita a Bblia como profecia e suscetvel de servir, na medida em que ela toma partido pelos fracos e assim tambm pela mulher; esta orientao adotada como cnon no cnon , para colocar em relevo tudo aquilo que em favor da libertao da mulher e de seus direitos.

A formacrticautiliza uma metodologia sutil e procura redescobrir a posio e o papel da mulher crist no movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas. Naquela poca teria-se adotado o igualitarismo. Mas esta situao teria sido mascarada, em grande parte, nos escritos do Novo Testamento e ainda mais na sua sequncia, tendo progressivamente prevalecido o patriarcalismo e o androcentrismo.

A hermenutica feminista no elaborou um mtodo novo. Ela se serve dos mtodos correntes em exegese, especialmente o mtodo histrico-crtico. Mas ela acrescenta dois critrios de investigao.

O primeiro o critrio feminista, tomado do movimento de libertao da mulher, na linha do movimento mais geral da teologia da libertao. Ele utiliza uma hermenutica da suspeita: tendo a histria sido regularmente escrita pelos vencedores, para encontrar a verdade no se deve confiar nos textos, mas procurar neles indcios que revelem outra coisa.

O segundo critrio sociolgico; ele se baseia no estudo das sociedades dos tempos bblicos, de sua estratificao social e da posio que a mulher ocupava.

No que concerne os escritos neo-testamentrios, o objeto do estudo, em definitivo, no a concepo da mulher expressa no Novo Testamento, mas a reconstruo histrica de duas situaes diferentes da mulher no primeiro sculo: aquela que era habitual na sociedade judaica e greco-romana e a outra, inovadora, instituda no movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas, onde teria-se formado uma comunidade de discpulos de Jesus, todos iguais . Um dos apoios invocados para sustentar esta viso das coisas o texto deGal3,28. O objetivo redescobrir para o presente a histria esquecida do papel da mulher na Igreja das origens.

Numerosas so as contribuies positivas que provm da exegese feminista. As mulheres tomaram assim uma parte mais ativa na pesquisa exegtica. Elas conseguiram, muitas vezes melhor do que os homens, perceber a presena, o significado e o papel da mulher na Bblia, na histria das origens crists e na Igreja. O horizonte cultural moderno, graas sua maior ateno dignidade da mulher e ao papel dela na sociedade e na Igreja, faz com que sejam dirigidas ao texto bblico interrogaes novas, ocasies de novas descobertas. A sensibilidade feminina leva a revelar e a corrigir certas interpretaes correntes, que eram tendenciosas e visavam justificar a dominao do homem, sobre a mulher.

No que concerne o Antigo Testamento, vrios estudos esforaram-se de chegar a uma compreenso melhor da imagem de Deus. O Deus da Bblia no projeo de uma mentalidade patriarcal. Ele Pai, mas ele tambm Deus de ternura e de amor maternais.

Na medida em que a exegese feminista se fundamenta sobre uma idia preconcebida, ela se expe a interpretar os textos bblicos de maneira tendenciosa e portanto contestvel. Para provar suas teses ela deve muitas vezes, na falta de melhor, recorrer a argumentosex silentio. sabido que estes so geralmente duvidosos; eles no podem nunca bastar para estabelecer solidamente uma concluso. De outro lado, a tentativa feita para reconstituir, graas a indcios fugitivos discernidos nos textos, uma situao histrica que esses mesmos textos pretendem querer esconder, no corresponde mais a um trabalho de exegese propriamente dito, pois ela conduz rejeio dos textos inspirados preferindo uma construo hipottica diferente.

A exegese feminista prope muitas vezes questes de poder na Igreja que so, sabe-se, objeto de discusses e mesmo de confrontos. Nesse domnio, a exegese feminista s poder ser til Igreja na medida em que ela no cair nas armadilhas mesmas que denuncia e quando ela no perder de vista o ensinamento evanglico sobre o poder como servio, ensinamento endereado por Jesus a todos os seus discpulos, homens e mulheres.(2)

F.Leitura fundamentalistaA leitura fundamentalista parte do princpio de que a Bblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por interpretao literal ela entende uma interpretao primria, literalista, isto , excluindo todo esforo de compreenso da Bblia que leve em conta seu crescimento histrico e seu desenvolvimento. Ela se ope assim utilizao do mtodo histrico-crtico, como de qualquer outro mtodo cientfico, para a interpretao da Escritura.

A leitura fundamentalista teve sua origem na poca da Reforma, com uma preocupao de fidelidade ao sentido literal da Escritura. Aps o sculo das Luzes, ela se apresentou no protestantismo como uma proteo contra a exegese liberal. O termo fundamentalista ligado diretamente ao Congresso Bblico Americano realizado em Niagara, Estado de New York, em 1895. Os exegetas protestantes conservadores definiram nele cinco pontos de fundamentalismo : a inerrncia verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiao vicria e a ressurreio corporal quando da segunda vinda de Cristo. Logo que a leitura fundamentalista da Bblia se propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras espcies de leituras, igualmente literalistas , na Europa, sia, Africa e Amrica do Sul. Esse gnero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da ltima parte do sculo XX, em grupos religiosos e seitas assim como tambm entre os catlicos.

Se bem que o fundamentalismo tenha razo em insistir sobre a inspirao divina da Bblia, a inerrncia da Palavra de Deus e as outras verdades bblicas inclusas nos cinco pontos fundamentais, sua maneira de apresentar essas verdades est enraizada em uma ideologia que no bblica, apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma forte adeso a atitudes doutrinrias rgidas e impe, como fonte nica de ensinamento a respeito da vida crist e da salvao, uma leitura da Bblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crtica.

O problema de base dessa leitura fundamentalista que recusando de levar em considerao o carter histrico da revelao bblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da prpria Encarnao. O fundamentalismo foge da estreita relao do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob a inspirao divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. Por esta razo, ele tende a tratar o texto bblico como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Esprito e no chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionadas por uma ou outra poca. Ele no d nenhuma ateno s formas literrias e s maneiras humanas de pensar presentes nos textos bblicos, muitos dos quais so fruto de uma elaborao que se estendeu por longos perodos de tempo e leva a marca de situaes histricas muito diversas.

O fundamentalismo insiste tambm de uma maneira indevida sobre a inerrncia dos detalhes nos textos bblicos, especialmente em matria de fatos histricos ou de pretensas verdades cientficas. Muitas vezes ele torna histrico aquilo que no tinha a pretenso de historicidade, pois ele considera como histrico tudo aquilo que reportado ou contado com os verbos em um tempo passado, sem a necessria ateno possibilidade de um sentido simblico ou figurativo.

O fundamentalismo tem muitas vezes tendncia a ignorar ou a negar os problemas que o texto bblico comporta na sua formulao hebraica, aramaica ou grega. Ele muitas vezes estreitamente ligado a uma tradio determinada, antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de considerar as releituras de certas passagens no interior da prpria Bblia.

No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo no leva em considerao o crescimento da tradio evanglica, mas confunde ingenuamente o estgio final desta tradio (o que os evangelistas escreveram) com o estgio inicial (as aes e as palavras do Jesus da histria). Ele negligencia assim um dado importante: a maneira com a qual as prprias primeiras comunidades crists compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazar e sua mensagem. Ora, aqui est um testemunho da origem apostlica da f crist e sua expresso direta. O fundamentalismo desnatura assim o apelo lanado pelo prprio Evangelho.

O fundamentalismo tem igualmente tendncia a uma grande estreiteza de viso, pois ele considera conforme realidade uma antiga cosmologia j ultrapassada, s porque encontra-se expressa na Bblia; isso impede o dilogo com uma concepo mais ampla das relaes entre a cultura e a f. Ele se apia sobre uma leitura no-crtica de certos textos da Bblia para confirmar idias polticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos, racistas, por exemplo, simplesmente contrrios ao Evangelho cristo.

Enfim, em sua adeso ao princpio do sola Scriptura , o fundamentalismo separa a interpretao da Bblia da Tradio guiada pelo Esprito, que se desenvolve autenticamente em ligao com a Escritura no seio da comunidade de f. Falta-lhe entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja crist e que ele Escritura Santa desta Igreja, cuja existncia precedeu a composio de seus textos. Assim, o fundamentalismo muitas vezes anti-eclesial; ele considera negligenciveis os credos, os dogmas e as prticas litrgicas que se tornam parte da tradio eclesistica, como tambm a funo de ensinamento da prpria Igreja. Ele se apresenta como uma forma de interpretao privada, que no reconhece que a Igreja fundada sobre a Bblia e tira sua vida e sua inspirao das Escrituras.

A abordagem fundamentalista perigosa, pois ela atraente para as pessoas que procuram respostas bblicas para seus problemas da vida. Ela pode engan-las oferecendo-lhes interpretaes piedosas mas ilusrias, ao invs de lhes dizer que a Bblia no contm necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem diz-lo, a uma forma de suicdio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitaes humanas da mensagem bblica com a substancia divina dessa mensagem.II. QUESTES DE HERMENUTICAA.Hermenuticas filosficasA atividade da exegese chamada a ser repensada levando-se em considerao a hermenutica filosfica contempornea, que colocou em evidncia a implicao da subjetividade no conhecimento, especialmente no conhecimento histrico. A reflexo hermenutica teve nova fora com a publicao dos trabalhos de Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey e, sobretudo, Martin Heidegger. Na trilha destes filsofos, mas tambm distanciando-se deles, diversos autores aprofundaram a teoria hermenutica contempornea e suas aplicaes Escritura. Entre eles mencionaremos especialmente Rudolf Bultmann, Hans Georg Gadamer e Paul Ricceur. No se pode aqui resumir-lhes o pensamento. Ser suficiente indicar algumas idias centrais da filosofia deles, aquelas que tm uma incidncia sobre a interpretao dos textos bblicos.(3)

1.Perspetivas modernasConstatando a distncia cultural entre o mundo do primeiro sculo e aquele do sculo XX, e preocupado em obter que a realidade da qual trata a Escritura fale ao homem contemporneo,Bultmanninsistiu na pr-compreenso necessria a toda compreenso e elaborou a teoria da interpretao existencial dos escritos do Novo Testamento. Apoiando-se no pensamento de Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bblico no possvel sem pressupostos que dirigem a compreenso. A pr-compreenso ( Vorverstndnis ) fundamentada na relao vital ( Lebensverhltnis ) do intrprete com a coisa da qual fala o texto. Para evitar o subjetivismo, preciso no entanto que a pr-compreenso se deixe aprofundar e enriquecer, at mesmo se modificar e se corrigir, por aquilo do qual fala o texto.

Interrogando-se sobre a conceituao justa que definir o questionamento a partir do qual os textos da Escritura podero ser entendidos pelo homem de hoje, Bultmann pretende encontrar a resposta na analtica existencial de Heidegger. Os existenciais heideggerianos teriam um alcance universal e ofereceriam as estruturas e os conceitos mais apropriados para a compreenso da existncia humana revelada na mensagem do Novo Testamento.Gadamersublinha igualmente a distncia histrica entre o texto e seu intrprete. Ele retoma e desenvolve a teoria do crculo hermenutico. As antecipaes e as pr-concepes que marcam nossa compreenso provm da tradio que nos sustenta. Esta consiste em um conjunto de dados histricos e culturais, que constituem nosso contexto vital, nosso horizonte de compreenso. O intrprete deve entrar em dilogo com a realidade qual se refere o texto. A compreenso se opera na fuso dos horizontes diferentes do texto e de seu leitor ( Horizontverschmelzung ). Ela s possvel se h uma dependncia ( Zugehrigkeit ), isto , uma afinidade fundamental entre o intrprete e seu objeto. A hermenutica um processo dialtico: a compreenso de um texto sempre uma compreenso mais ampla de si mesmo.

Do pensamento hermenutico de Ricoeur retm-se primeiramente o relevo dado funo de distanciao como condio necessria a uma justa apropriao do texto. Uma primeira distncia existe entre o texto e seu autor, pois, uma vez produzido, o texto adquire uma certa autonomia em relao a seu autor; ele comea uma carreira de sentidos. Uma outra distancia existe entre o texto e seus leitores sucessivos; estes devem respeitar o mundo do texto em sua alteridade. Os mtodos de anlise literria e histrica so assim necessrios interpretao. No entanto, o sentido de um texto s pode ser dado plenamente se ele atualizado na vida de leitores que se apropriam dele. A partir da prpria situao, os leitores so chamados a realar significados novos, na linha do sentido fundamental indicado pelo texto. O conhecimento bblico no deve se fixar s na linguagem; ele procura atingir a realidade da qual fala o texto. A linguagem religiosa da Bblia uma linguagem simblica que faz pensar , uma linguagem da qual no se cessa de descobrir as riquezas de sentido, uma linguagem que visa uma realidade transcendente e que, ao mesmo tempo, desperta a pessoa humana dimenso profunda de seu ser.

2.Utilidade para a exegeseO que dizer dessas teorias contemporneas de interpretao dos textos? A Bblia Palavra de Deus para todas as pocas que se sucedem. Consequentemente no se poderia dispensar uma teoria hermenutica que permite incorporar os mtodos de crtica literria e histrica em um modelo de interpretao mais amplo. Trata-se de ultrapassar a distncia entre o tempo dos autores e primeiros destinatrios dos textos bblicos e nossa poca contempornea, de modo a atualizar corretamente a mensagem dos textos para alimentar a vida de f dos cristos. Toda exegese dos textos chamada a ser completada por uma hermenutica , no sentido recente do termo.

A necessidade de uma hermenutica, isto , de uma interpretao no hoje do nosso mundo, encontra um fundamento na prpria Bblia e na histria de sua interpretao. O conjunto dos escritos do Antigo e do Novo Testamento apresenta-se como o produto de um longo processo de reinterpretao dos acontecimentos fundadores, ligado com a vida das comunidades de fiis. Na tradio eclesial, os primeiros intrpretes da Escritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos s era completa quando eles evidenciavam o sentido para os cristos do tempo deles e na situao em que viviam. S se fiel intencionalidade dos textos bblicos na medida que se tenta reencontrar no corao de sua formulao a realidade de f que eles exprimem, e se esta se liga experincia dos fiis do nosso mundo.

A hermenutica contempornea uma reao sadia ao positivismo histrico e tentao de aplicar ao estudo da Bblia os critrios de objetividade utilizados nas cincias naturais. De um lado, os acontecimentos narrados na Bblia so acontecimentos interpretados. De outro lado, toda exegese dos relatos desses acontecimentos implica necessariamente a subjetividade do exegeta. O conhecimento justo do texto bblico s acessvel quele que tem uma afinidade viva com aquilo do qual fala o texto. A pergunta que se faz a todo intrprete a seguinte: qual teoria hermenutica torna possvel a justa apreenso da realidade profunda da qual fala a Escritura e sua expresso significativa para o homem de hoje?

preciso reconhecer, efetivamente, que certas teorias hermenuticas so inadequadas para interpretar a Escritura. Por exemplo, a interpretao existencial de Bultmann conduz ao aprisionamento da mensagem crist na argola de uma filosofia particular. Alm disso, em virtude dos pressupostos que comandam esta hermenutica, a mensagem religiosa da Bblia esvaziada em grande parte de sua realidade objetiva (na sequncia de uma excessiva demitizao ) e tende a se subordinar a uma mensagem antropolgica. A filosofia torna-se norma de interpretao invs de ser instrumento de compreenso daquilo que o objeto central de toda interpretao: a pessoa de Jesus Cristo e os acontecimentos da salvao realizados em nossa histria. Uma autntica interpretao da Escritura primeiramente acolhida de um sentido dado nos acontecimentos e, de maneira suprema, na pessoa de Jesus Cristo.

Este sentido expresso nos textos. Para evitar o subjetivismo, uma boa atualizao deve ento ser fundada sobre o estudo do texto e os pressupostos de leitura devem ser constantemente submetidos verificao atravs do texto.

A hermenutica bblica, se ela da competncia da hermenutica geral de todo texto literrio e histrico, ao mesmo tempo um caso nico dentro dela. Suas caractersticas especficas vm-lhe de seu objeto. Os acontecimentos da salvao e sua realizao na pessoa de Jesus Cristo do sentido a toda a histria humana. As novas interpretaes histricas s podero ser descoberta e desdobramento dessas riquezas de sentido. O relato bblico desses acontecimentos no pode ser plenamente entendido s pela razo. Pressupostos particulares comandam sua interpretao, como a f vivida na comunidade eclesial e luz do Esprito. Com o crescimento da vida no Esprito cresce, no leitor, a compreenso das realidades das quais fala o texto bblico.

B.Sentido da Escritura inspiradaA contribuio moderna das hermenuticas filosficas e os desenvolvimentos recentes do estudo cientfico das literaturas, permitem exegese bblica de aprofundar a compreenso de sua tarefa, cuja complexidade tornou-se mais evidente. A exegese antiga, que evidentemente no podia levar em considerao as exigncias cientficas modernas, atribua a todo texto da Escritura sentidos de vrios nveis. A distino mais corrente se fazia entre sentido literal e sentido espiritual. A exegese medieval distinguiu no sentido espiritual trs aspectos diferentes que se relacionam, respectivamente, verdade revelada, conduta a ser mantida e realizao final. Da o clebre dstico de Agostinho da Dinamarca (sculo XIII): Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, quid speres anagogia .

Como reao a esta multiplicidade de sentidos, a exegese histrico-crtica adotou, mais ou menos abertamente, a tese da unicidade de sentidos, segundo a qual um texto no pode ter simultaneamente vrios significados. Todo esforo da exegese histrico-crtica de definir o sentido preciso de um ou outro texto bblico nas circunstncias de sua produo.

Mas esta tese choca-se agora com as concluses das cincias da linguagem e das hermenuticas filosficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos.

O problema no simples e ele no se apresenta da mesma maneira para todos os gneros de textos: relatos histricos, parbolas, orculos, leis, provrbios, oraes, hinos, etc. Pode-se, entretanto, dar alguns princpios gerais, levando-se em conta a diversidade das opinies.

1.Sentido literal no apenas legtimo mas indispensvel procurar definir o sentido preciso dos textos tais como foram produzidos por seus autores, sentido chamado de literal . J so Toms de Aquino afirmava sua importncia fundamental (S. Th., I, q.l, a. 10, ad. 1).

O sentido literal no deve ser confundido com o sentido literalista ao qual aderem os fundamentalistas. No suficiente traduzir um texto palavra por palavra para obter seu sentido literal. preciso compreend-lo segundo as convenes literrias da poca. Quando um texto metafrico, seu sentido literal no aquele que resulta imediatamente do palavra por palavra (por exemplo: Tende os rins cingidos ,Lc12,35), mas aquele que corresponde ao uso metafrico dos termos ( Tende uma atitude de disponibilidade ). Quando se trata de um relato, o sentido literal no comporta necessariamente a afirmao de que os fatos contados tenham efetivamente acontecido, pois um relato pode no pertencer ao gnero histrico, mas ser uma obra de imaginao.

O sentido literal da Escritura aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos inspirados. Sendo o fruto da inspirao, este sentido tambm desejado por Deus, autor principal. Ele discernido graas a uma anlise precisa do texto, situado em seu contexto literrio e histrico. A tarefa principal da exegese de bem conduzir esta anlise, utilizando todas as possibilidades das pesquisas literrias e histricas, em vista de definir o sentido literal dos textos bblicos com a maior exatido possvel (cf.Divino afflante Spiritu: E. B., 550). Para esta finalidade, o estudo dos gneros literrios antigos particularmente necessrio (ibid. 560).

O sentido literal de um texto nico? Geralmente sim; mas no se trata aqui de um princpio absoluto, e isso por duas razes. De um lado, um autor humano pode querer se referir ao mesmo tempo a vrios nveis de realidade. O caso comum em poesia. A inspirao bblica no desdenha esta possibilidade da psicologia e da linguagem humana; o IV Evangelho fornece numerosos exemplos disto. De outro lado, mesmo quando uma expresso humana parece ter um nico significado, a inspirao divina pode guiar a expresso de maneira a produzir urna ambivalncia. Este o caso da palavra de Caifs em Jo 11,50. Ela exprime ao mesmo tempo um clculo poltico imoral e uma revelao divina. Estes dois aspectos pertencem um e outro ao sentido literal, pois eles so, os dois, colocados em evidncia pelo contexto. Se bem que ele seja extremo, este caso significativo; ele deve advertir contra uma concepo muito estrita do sentido literal dos textos inspirados.

Convm particularmente estar atento aoaspecto dinmicode muitos textos. O sentido dos Salmos reais, por exemplo, no deve estar limitado estritamente s circunstncias histricas da produo deles. Falando do rei, o salmista evocava ao mesmo tempo uma instituio verdadeira e uma viso ideal da realeza, conforme ao plano de Deus, de maneira que seu texto ultrapassava a instituio real tal como ela tinha se manifestado na histria. A exegese histrico-crtica teve muitas vezes a tendncia de fixar o sentido dos textos, ligando-o exclusivamente a circunstncias histricas precisas. Ela deve antes de tudo procurar determinar a direo do pensamento expresso pelo texto, direo que, ao invs de convidar o exegeta a fixar o sentido, sugere-lhe, ao contrrio, de perceber seu desenvolvimento mais ou menos previsvel.

Uma corrente da hermenutica moderna sublinhou a diferena de estatuto que afeta a palavra humana logo que ela colocada por escrito. Um texto escrito tem a capacidade de ser colocado em circunstancias novas, que o iluminam de maneiras diferentes, acrescentando ao seu sentido novas determinaes. Esta capacidade do texto escrito especialmente efetiva no caso dos textos bblicos, reconhecidos como Palavra de Deus. Efetivamente, o que levou a comunidade de fiis a conserv-los foi a convico que eles continuariam a ser portadores de luz e de vida para as geraes vindouras. O sentido literal , desde o incio, aberto a desenvolvimentos ulteriores, que se produzem graas a releituras em contextos novos.

No se deve concluir que se possa atribuir a um texto bblico qualquer sentido, interpretando-o de maneira subjetiva. E preciso, ao contrrio, rejeitar como inautntica toda interpretao que seja heterognea ao sentido expresso pelos autores humanos e no texto escrito por eles. Admitir sentidos heterogneos equivaleria a cortar a mensagem bblica de sua raiz, que a Palavra de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta a um subjetivismo incontrolvel.

2.Sentido espiritualNo o caso, no entanto, de tomar heterogneo em um sentido estrito, contrrio a toda possibilidade de realizao superior. O acontecimento pascal, morte e ressurreio de Jesus, deu origem a um contexto histrico radicalmente novo, que ilumina de maneira nova os textos antigos e os faz sofrer uma mutao de sentido. Particularmente certos textos que nas antigas circunstancias deveriam ser considerados como hiprboles (por exemplo, o orculo onde Deus, falando de um filho de Davi, prometia afirmar para sempre seu trono: 2Sam7,12-13; 1Cron17,11-14), doravante esses textos devem ser tomados ao p da letra, porque o Cristo, tendo ressuscitado dentre os mortos, j no morre (Rom6,9). Os exegetas que tm uma noo limitada, histrica , do sentido literal estimaro que aqui h heterogeneidade. Aqueles que so abertos ao aspecto dinmico dos textos reconhecero uma continuidade profunda ao mesmo tempo que uma passagem a um nvel diferente: o Cristo reina para sempre, mas no sobre o trono terrestre de Davi (cf tambmSal2,7-8; 110,1.4).

Nos casos desse gnero, fala-se de sentido espiritual . Em regra geral, pode-se definir o sentido espiritual, entendido segundo a f crist, como o sentido expresso pelos textos bblicos, logo que so lidos sob influncia do Esprito Santo no contexto do mistrio pascal do Cristo e da vida nova que resulta dele. Esse contexto existe efetivamente. O Novo Testamento reconhece nele a realizao das Escrituras. , assim, normal reler as Escrituras luz deste novo contexto, que aquele da vida no Esprito.

Da definio dada pode-se fazer