a integração da culpa e do risco na responsabilidade civil dos acidentes de trabalho

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LUCIANA ESTEVAN CRUZ DE OLIVEIRA A INTEGRAÇÃO DA CULPA E DO RISCO NA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ACIDENTES DO TRABALHO DISSERTAÇÃO - MESTRADO ORIENTADOR: PROF. ASSOCIADO ENOQUE RIBEIRO DOS SANTOS FACULDADE DE DIREITO DA USP SÃO PAULO 2013

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  • LUCIANA ESTEVAN CRUZ DE OLIVEIRA

    A INTEGRAO DA CULPA E DO RISCO NA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ACIDENTES DO TRABALHO

    DISSERTAO - MESTRADO

    ORIENTADOR: PROF. ASSOCIADO ENOQUE RIBEIRO DOS SANTOS

    FACULDADE DE DIREITO DA USP SO PAULO

    2013

  • LUCIANA ESTEVAN CRUZ DE OLIVEIRA

    A INTEGRAO DA CULPA E DO RISCO NA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ACIDENTES DO TRABALHO

    Dissertao apresentada como exigncia parcial obteno do ttulo de Mestre em Direito, no mbito do Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, sob orientao do Professor Associado Enoque Ribeiro dos Santos.

    FACULDADE DE DIREITO DA USP SO PAULO

    2013

  • BANCA EXAMINADORA:

    Orientador: ____________________________ Professor Associado Enoque Ribeiro dos Santos

    Professor Arguidor:______________________

    Professor Arguidor:______________________

  • DEDICATRIA

    Ao meu marido Gustavo, pela pacincia e pelo dom de transformar qualquer atividade difcil em algo tranquilo e alegre,

    Aos meus pais, Arnaldo e Lairce, por prover todas as condies necessrias para o incio de minha trajetria nos estudos,

    A minha av Natividade, por sua sabedoria e pela disponibilidade em momentos adversos ao longo da caminhada.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Enoque Ribeiro dos Santos, exemplo de persistncia a ser seguido, agradeo a pacincia e confiana depositada desde o incio, alm das constantes motivaes ao longo da rdua tarefa.

    Ao Professor Ronaldo Lima dos Santos, pelas objees pontuais no Exame de Qualificao que mostraram o caminho da cientificidade.

    Ao Professor Ari Possidonio Beltran, pela disposio e constante dedicao acadmica.

  • RESUMO

    A ordem jurdica estabelece normas de proteo sade e ao meio ambiente do trabalho que impe deveres aos empregadores e, por outro lado, conferem direitos subjetivos aos trabalhadores a um ambiente laboral salubre.

    A falha nessa rede protetiva enseja o acidente do trabalho, que um evento, sbito ou paulatino, que causa danos morais e patrimoniais sade do trabalhador, sendo decorrente do prprio exerccio da atividade profissional.

    A responsabilidade por esses acidentes trilhou uma evoluo desde a perseguio da culpa at sua desconsiderao e direcionamento pelo risco. O desequilbrio provocado pelos acidentes do trabalho fez com que o prprio Estado garantisse o pagamento de um benefcio de carter alimentar aos trabalhadores mutilados, por meio do seguro social. Entretanto, devido insuficincia desse pagamento pelo ente estatal, o empregado socorre-se aos postulados do direito civil para complementar por inteiro sua indenizao pelos prejuzos sofridos.

    A responsabilidade civil , atualmente, sedimentada pelo descumprimento de deveres contratuais de segurana pelo empregador e o risco da atividade econmica, haja vista que o empregador que aufere as vantagens deve suportar os nus.

    Em paralelismo responsabilidade do Estado, a responsabilidade civil do empregador dever ser garantida por seguro de natureza privada, pois a socializao dos riscos imprescindvel para a manuteno da paz social. Esse sistema misto de indenizao dos prejuzos e pagamento de benefcios pelo Estado coaduna-se com o preceito constitucional que determina que a cobertura de acidente de trabalho seja feita, concorrentemente, tanto pela previdncia social quanto pelo setor privado.

    Alm disso, o artigo 7, inciso XXVIII, da Constituio confere um direito aos trabalhadores de ter realizado o seguro, pblico e privado, por seu empregador.

    Esse seguro, todavia, no pode ser vlvula de escape para o empregador desrespeitar as normas ambientais. A fim de garantir a preveno ambiental, a ordem jurdica tem um mecanismo de defesa que o direito regressivo conferido ao INSS e seguradora, sozinha ou em conjunto com a Unio, de reaver os valores pagos em caso de dolo ou culpa do empregador.

    Portanto, a culpa e o risco integram-se na responsabilidade civil dos acidentes do trabalho.

    Palavras-chaves: normas jurdicas sade meio ambiente do trabalho acidente do trabalho responsabilidade culpa risco seguro integrao regresso terceirizao.

  • ABSTRACT

    The juridical order establishes health and work environment protection norms which impose obligations on employers and, at the same time, confer workers subjective rights to a healthy work environment.

    Any failure in this protective net leads to work-related accident, which may be a sudden or gradual event that causes moral and patrimonial damages to the workers health, once it is a result of his/her own professional activity.

    Responsibility for these accidents evolved from criminal liability to non-consideration and direction by risk. The unbalance created by these work-related accidents led the State to guarantee food benefits to mutilated workers through social security. However, due to insufficient payment by the state agency, the worker relies on his civil rights postulates to complement his/her indemnization for the suffered damages.

    Currently, civil liability is based on the non-compliance with safety contract terms by the employer and the economic activity risk, considering that the employer that offers advantages must bear the onus.

    Alongside with the State liability, employers civil liability must be safeguarded by private insurance, since risk socialization is indispensable to maintain social peace. This mixed system of damages indemnization and State benefits agrees with the constitutional precept which determines that work-related accidents coverage is made, concurrently, by the social security as well as by the private sector.

    In addition, article 7, subsection XXVIII, from the Constitution confers workers the right of insurance, public and private, by his/her employer.

    This insurance, however, is not an excuse for employers to break environmental rules. To guarantee environmental protection, the juridical order has a defense mechanism which is the regressive right conferred to the INSS and the insurance company, alone or together with the Union , of getting back the values paid in case of employers misconduct or guilt.

    Thus, guilt and risk are integrated in work-related civil liability.

    Key words: juridical norms health work environment work-related accident liability guilt risk insurance integration regression outsourcing

  • SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................................... 9

    1. TUTELA JURDICA DA VIDA E DA SADE DO TRABALHADOR ............................. 12 1.1. O contedo dos direitos do homem sob a perspectiva histrica .................................................... 12 1.2. Normas jurdicas de direitos fundamentais .................................................................................... 18 1.3. Direito fundamental sade .......................................................................................................... 21

    1.3.1. Conceito de sade ................................................................................................................ 21 1.3.2. Proteo jurdica sade do trabalhador ............................................................................. 23

    1.4. Direito fundamental ao meio ambiente .......................................................................................... 27 1.4.1. Conceito de meio ambiente e suas espcies ........................................................................ 27 1.4.2. Proteo jurdica ao meio ambiente do trabalho ................................................................. 29

    1.4.2.1. Princpio do desenvolvimento sustentvel ................................................................ 32 1.4.2.2. Princpio da preveno ............................................................................................. 34 1.4.2.3. Princpio da precauo .............................................................................................. 35 1.4.2.4. Princpio da informao ............................................................................................ 38 1.4.2.5. Princpio da participao .......................................................................................... 40 1.4.2.6. Princpio da cooperao ............................................................................................ 42 1.4.2.7. Princpios do poluidor-pagador e do nus social ...................................................... 43

    2. ACIDENTE DO TRABALHO E RESPONSABILIDADE ..................................................... 45 2.1. Acidente do trabalho ...................................................................................................................... 45

    2.1.1. Conceito legal de acidente do trabalho ................................................................................ 47 2.1.1.1. Acidentes tpicos e por equiparao ......................................................................... 47 2.1.1.2. Doenas ocupacionais e o nexo tcnico epidemiolgico .......................................... 50

    2.2. Responsabilidade ........................................................................................................................... 53 2.2.1. Evoluo da responsabilidade e a influncia no seguro social ............................................ 53 2.2.2. Seguro social ....................................................................................................................... 58 2.2.3. Seguro social e o acidente do trabalho no Brasil ................................................................. 63

    2.2.3.1. Financiamento do seguro social para o acidente do trabalho ................................... 66 2.2.3.2. Direito de regresso do Instituto Nacional do Seguro Social ..................................... 69

    3. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ACIDENTE DO TRABALHO .................................... 76 3.1. Definio ........................................................................................................................................ 76 3.2. Modalidades de responsabilidade civil no direito brasileiro .......................................................... 77

    3.2.1. Responsabilidade extracontratual ou aquiliana ................................................................... 77 3.2.2. Responsabilidade contratual ................................................................................................ 79

  • 3.2.3. Responsabilidade subjetiva ................................................................................................. 82 3.2.4. Responsabilidade objetiva ................................................................................................... 86

    3.2.4.1. Responsabilidade objetiva alicerada no meio ambiente ......................................... 87 3.2.4.2. Responsabilidade objetiva pelo risco da atividade ................................................... 91 3.2.4.3. Responsabilidade objetiva pelo risco da atividade na Consolidao das Leis do

    Trabalho ................................................................................................................. 96 3.3. Nexo causal e as respectivas excludentes ...................................................................................... 99

    3.3.1. Caso fortuito ou fora maior ............................................................................................. 102 3.3.2. Fato exclusivo da vtima ................................................................................................... 103 3.3.3. Fato de terceiro .................................................................................................................. 104

    3.4. Danos decorrentes do acidente do trabalho .................................................................................. 104 3.4.1. Dano material .................................................................................................................... 107 3.4.2. Dano moral ........................................................................................................................ 108

    4. INTEGRAO DA CULPA E DO RISCO ............................................................................. 113 4.1. Conceito de integrao ................................................................................................................. 113

    4.1.1. Integrao da culpa e do risco ........................................................................................... 113 4.2. Seguro privado e suas modalidades ............................................................................................. 118

    4.2.1. Seguro de dano .................................................................................................................. 121 4.2.2. Seguro de pessoa ............................................................................................................... 123

    4.2.2.1. Seguro de vida ........................................................................................................ 123 4.2.2.2. Seguro de acidente pessoal, uma proteo ao trabalhador ...................................... 124

    4.3. Mecanismos de integrao da culpa e do risco ............................................................................ 128 4.3.1. Mecanismos estticos ........................................................................................................ 128

    4.3.1.1. A natureza jurdica das seguradoras ....................................................................... 128 4.3.1.2. Cosseguro entre o setor privado e o setor pblico para os riscos

    extraordinrios ..................................................................................................... 130 4.3.1.3. Limites da reparao dos danos pela seguradora .................................................... 135

    4.3.2. Mecanismos dinmicos ..................................................................................................... 137 4.3.2.1. Exerccio do direito de ao e a legitimidade ad causam ....................................... 137 4.3.2.2. Direito de regresso .................................................................................................. 139

    4.4. Terceirizao e o seguro privado de acidente do trabalho ........................................................... 142

    CONCLUSES .................................................................................................................................... 145

    REFERNCIAS .................................................................................................................................. 150

  • 9

    INTRODUO

    Desde a Revoluo Industrial, o aumento expressivo do nmero de acidentes do trabalho instigou estudos sobre a responsabilidade pelos danos deles decorrentes, pois uma fora de trabalho mutilada representa queda dos ndices de produtividade e de produo econmica, com o consequente desequilbrio do meio social. No Brasil, durante o ano de 2011, a Previdncia Social apontou 711.164 acidentes do trabalho1.

    Ento, prope-se, nesta dissertao, demonstrar a integrao da culpa e do risco na responsabilidade dos acidentes do trabalho, haja vista que sempre esses dois elementos nortearam a evoluo do instituto.

    O ponto de partida para as pesquisas foi o controvertido artigo 7, inciso XXVIII, da Constituio Federal, que confere ao trabalhador um direito ao seguro a cargo de seu empregador, sem excluir a responsabilidade deste em caso de dolo ou culpa. Assim, o objetivo foi extrair o sentido desse direito social em harmonia com o sistema jurdico.

    Para compreender o impacto do acidente do trabalho pessoa do trabalhador e sociedade, foi necessrio voltar-se para a perspectiva histrica do conceito de pessoa e para os respectivos direitos que se consolidaram para a preservao da vida do obreiro, sobretudo, o direito sade e ao meio ambiente laboral equilibrado, uma vez que a insero do homem no mercado de trabalho no transmuda a natureza humana.

    Sendo notrio que os acidentes do trabalho provocam desordens sociais nesse sistema de proteo, examinou-se quem seria o responsvel para indenizar os prejuzos decorrentes dos infortnios, sob uma evoluo histrica. O estudo da teoria da responsabilidade revelou-se cheio de fragilidades, que se perpetuaram desde a origem no direito romano at no final do sculo XIX, uma vez que a culpa foi o elemento central para imputar as consequncias do acidente. Mas os empregados no conseguiam provar esse estado anmico dos empregadores.

    Devido situao de injustia, apontou-se a responsabilidade sem culpa dos empregadores, isto , fundada no risco profissional. Essas indenizaes, por sua vez,

    1PREVIDNCIA SOCIAL. Anurio Estatstico da Previdncia Social. Disponvel em: . Acesso em: 25 nov. 2012.

  • 10

    precisavam de garantia que se estendesse alm do patrimnio do empregador e, assim, chegou-se ao seguro social.

    Observou-se, em nosso pas, que a seguridade social concede benefcios previdencirios aos trabalhadores, que so acidentados no decorrer de seu labor e em outras situaes correlatas, como os infortnios eclodidos no percurso da casa ao trabalho e vice-versa. Apesar de uma cobertura ampla, verificou-se que os benefcios so limitados ao carter alimentar e no abrangem todos os prejuzos sofridos por eles.

    Por isso, foi preciso continuar o exame da responsabilidade civil do empregador a fim de garantir a completa indenizao, tendo-se como premissa outro artigo constitucional que diz que a cobertura do risco de acidentes do trabalho ser atendido pelo regime geral de previdncia social e pelo setor privado.

    Passou-se, ento, pelas teorias da culpa e do risco, conforme o momento histrico. Mostrou-se o risco integral sobre os danos ao meio ambiente at aquele provocado pelo exerccio normal de uma atividade, conforme previso do artigo 927, pargrafo nico do Cdigo Civil. Todas as teorias, contudo, apresentavam deficincias no tocante ao amparo da vtima e no atendiam ao comando constitucional expresso do artigo 7. Enquanto no se consegue provar a culpa, o risco no garante pagamento ao acidentado.

    Assim, instigou-se a busca de uma soluo que propiciasse aos trabalhadores a preservao da sade no ambiente laboral e assegurasse a indenizao se o infortnio ocorresse. Para tal resposta, recorreu-se aos fundamentos do seguro social e sua trasladao para o seguro privado. Novamente, o simples negcio jurdico do seguro no foi idneo para a defesa da vida do trabalhador.

    Logo, a dissertao exibiu mecanismos estticos e dinmicos que levem garantia pecuniria e segurana ao empregado quanto sua integridade fsica e psquica, por meio da integrao da culpa e do risco.

    Finalmente, essa proposio para ser vlida deve atender, ainda, as novas formas de prestao de servios. Consequentemente, tratou-se de como essas regras de responsabilidade se aplicam terceirizao.

    Todas as premissas postas foram solucionadas pelo mtodo dialtico, ou seja, analisou-se as posies doutrinrias em face de cada desafio encontrado e procurou-se dar uma resposta que buscasse coerncia com todo o ordenamento jurdico, tendo a sade e o

  • 11

    meio ambiente do trabalho como fins a serem atingidos. As decises judiciais proferidas pelos Tribunais s foram usadas para corroborar determinados entendimentos doutrinrios.

    Fixando-se a sade e o meio ambiente do trabalho como os pontos norteadores do estudo, a construo dessa dissertao desenvolver-se- da origem da responsabilidade do acidente do trabalho at o momento atual, com o escopo de comprovar que as etapas no so superadas, e sim integradas.

  • 12

    1. TUTELA JURDICA DA VIDA E DA SADE DO TRABALHADOR

    1.1. O contedo dos direitos do homem sob a perspectiva histrica

    Toda a tutela jurdica conferida ao trabalhador e a sua integridade fsica durante a prestao de servios decorrente de sua prpria natureza humana. A busca dessa essncia do ser humano remonta Antiguidade clssica.

    Inicialmente, o eixo central da histria da humanidade deu-se no perodo axial, entre 600 e 480 antes de Cristo, em que nasceu a filosofia ocidental pela qual o saber focou-se na razo e o ser humano passou a ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razo, apesar das mltiplas diferenas de sexo, de raa, de religio ou de costumes sociais.

    No sculo V antes de Cristo, em Atenas, surgem, concomitantemente, a tragdia e a democracia. Todo o poder poltico superior foi suprimido e direcionado ao prprio povo. O fundamento dessa democracia foi o homem livre e dotado de individualidade2.

    Por conseguinte, o questionamento dos mitos religiosos tradicionais foi abolido como critrio supremo das aes humanas. Contrariamente, esse critrio tornou-se o prprio homem. Por isso, a tragdia grega representou a grande introspeco nos subterrneos da alma humana, povoados de paixes, de sentimentos e de emoes, de carter irracional e incontrolvel. O homem aparece em si mesmo como um problema, no sentido apresentado pelos gemetras gregos, ou seja, um obstculo compreenso, uma dificuldade proposta razo humana3.

    Ao lado dessa compreenso da igualdade dos seres humanos, conjuga-se uma instituio social de grande importncia que a lei escrita, como regra geral e uniforme aplicvel a todos os indivduos que vivem em sociedade organizada, e que passou a ser o fundamento da sociedade poltica na Grcia.

    Paralelamente s leis escritas, as leis no escritas designavam o costume juridicamente relevante ou as leis universais, originalmente de cunho religioso, que no se

    2SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2007. p. 45.

    3COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2001. p. 9.

  • 13

    prestavam a ser promulgadas no territrio de uma s nao e eram usadas com nfase na sociedade antiga4. O fundamento religioso das leis no escritas foi paulatinamente dissipado e substitudo pela natureza, de acordo com os sofistas5 e os estoicos6.

    A igualdade essencial do ser humano tambm foi demonstrada por Scrates, que afirmou que a essncia do ser humano est na alma, no no corpo nem na unio entre corpo e alma. A individualidade de cada ser humano no pode ser confundida com a aparncia, estampada no rosto. Esse contraste entre a mscara teatral e a essncia de cada ser humano foi aprofundada pelos estoicos. A unidade essencial do ser humano, distinta da aparncia corporal, fez com que os estoicos utilizassem dois conceitos: hypostasis e prosopon. O termo hypostasis significa o substrato ou o suporte individual de algo, ao passo que prosopon um papel que se representa. Dessa forma, o papel dramtico que cada um de ns representa na vida no se confunde com a individualidade pessoal7.

    Aps a elaborao do conceito de pessoa na Idade Antiga, Bocio traz influncias para a Idade Mdia ao expor seu conceito de pessoa nos seguintes termos: diz-se propriamente pessoa a substncia individual da natureza racional8.

    Dessa forma, Santo Toms de Aquino retomou a concepo crist de igualdade dos homens perante Deus, bem como a existncia de duas ordens distintas, sendo uma formada pelo direito natural e a outra pelo direito positivo9. Essa igualdade essencial da pessoa, que forma a base do conceito universal de direitos humanos, foi fundamento para que tanto os escolsticos e como os canonistas conclussem que as leis contrrias ao direito natural no teriam vigncia ou fora jurdica.

    4O recurso s leis no escritas e fundadas em cunho religioso foi exteriorizado na pea Antgona, de Sfocles. A proibio de se enterrarem cadveres dos cidados que se revoltaram contra o governo e que foram condenados com a pena de morte foi questionada por Antgona diante do tirano Creonte, pois o irmo dela estava impedido de ser enterrado. Ento, Antgona diz que essa lei impeditiva dos funerais no foi promulgada por Zeus e que Creonte no tinha fora para impor aos mortais at a obrigao de transgredir normas divinas, no escritas, inevitveis; no de hoje, no de ontem, desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ningum possa dizer quando surgiram. SFOCLES. A Triologia Tebana. dipo Rei, dipo em Colono e Antgona. Trad. Mrio da Gama Kury. 10. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 219.

    5A sofstica uma corrente filosfica que influenciou os intelectuais gregos dos sculos V e VI antes de Cristo. Os sofistas concentraram seu foco no homem e em seus problemas. ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 918.

    6O estoicismo uma das grandes correntes filosficas do perodo helenista fundada por volta de 300 antes de Cristo, por Zeno de Ccio. Um dos fundamentos do ensinamento estoico que o homem guiado infalivelmente pela razo, e essa razo lhe fornece normas infalveis de ao que constituem o direito natural. Outrossim, os estoicos aduziram o cosmopolitismo, isto , a doutrina de que o homem no cidado de um pas, mas do mundo. ABBAGNANO, Nicola. op. cit., p. 375.

    7COMPARATO, Fbio Konder. op. cit., p. 16. 8Id. Ibid., p. 19. 9SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 46.

  • 14

    Assim, as normas positivas, eclesisticas ou seculares, contrrias ao direito natural, deveriam ser excludas. Paulatinamente, o direito natural deixa de ter fundamento divino e torna-se laico. O reconhecimento de direitos s pessoas fundamenta-se na liberdade e na dignidade.

    A terceira fase da elaborao terica do conceito de pessoa, como sujeito de direitos universais, adveio com Kant. O primeiro axioma tico de Kant de que o ser racional possui a capacidade de agir conforme a representao de regras ou de princpios, pois s um ser racional tem vontade, que uma espcie de razo, denominada de razo prtica10.

    Para esse filsofo, existem dois tipos de imperativos, a saber: os hipotticos e os categricos. Enquanto os imperativos hipotticos representam a necessidade prtica de ao possvel, considerada como meio de se conseguir algo desejado, os categricos significam uma ao necessria em si mesma, sem relao com finalidade nenhuma exterior a ela.

    Dessa forma, o ser humano existe como um fim em si mesmo e, com efeito, tem

    uma dignidade e no, um preo como as coisas. A pessoa, ao mesmo tempo em que se submete s leis da razo prtica, fonte dessas mesmas leis, de mbito universal. Por isso, para Kant, a regra de conduta dada pela razo prtica e o propsito apenas fazer ou deixar de fazer11.

    Dentro desse universo de ideias sobre o conceito de pessoa, as declaraes de direitos do homem consistiram, inicialmente, apenas em teorias filosficas.

    O jusnaturalismo moderno trouxe o postulado de que o homem, por sua natureza, tem direitos que no podem ser alienados e que nem o Estado pode lhe subtrair. Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem o natural em que todos os homens so livres e iguais e, em contrapartida, o estado civil uma criao artificial que permite a explicitao da liberdade e da igualdade naturais. Todavia, essa fase era desprovida de eficcia, pois consistia apenas de uma proposta para o futuro legislador12.

    10COMPARATO, Fbio Konder. op. cit., p. 20. 11KANT, Immanuel. Crtica da razo pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos; Morujo, Alexandre Fradique.

    4. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997. p. 638. 12BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus,

    1992. p. 29.

  • 15

    Gradativamente, diversos direitos foram reconhecidos pelos ordenamentos jurdicos de cada pas, que os positivou nos textos constitucionais e, em segundo momento, esses direitos foram tambm chancelados internacionalmente13.

    Esse arcabouo terico culminou na concretizao do Estado de Direito, na sua acepo liberal-burguesa, que caracterizou os direitos fundamentais de primeira dimenso. O documento estatal que marcou os direitos fundamentais constitucionais foi a Declarao de Direitos do Povo da Virgnia, de 1776, que teve sua eficcia reconhecida inclusive representao popular, vinculando todos os poderes pblicos14. Outro diploma que se destacou no perodo foi a Declarao Francesa dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789. Dessa forma, esses direitos tm um cunho individualista, que so uma zona de demarcao para a no interveno do Estado. Os clssicos direitos nesse momento so: a vida, a liberdade, a igualdade e a propriedade.

    O pensamento filosfico contemporneo caminhou no sentido de que o ser humano um vir a ser, um contnuo devir, pelas seguintes razes: a personalidade de cada ser humano moldada por todo o peso do passado e que o tempo irreversvel na natureza. Assim, a personalidade de cada indivduo algo incompleto e inacabado, uma realidade em contnua transformao. Como corolrio lgico, os direitos reconhecidos no decorrer da Histria so caracterizados por complementariedade, e no substituio. Por isso, prefere-se a terminologia dimenses de direitos a geraes15.

    O tratamento da humanidade como um fim em si mesmo implica, alm do dever negativo em no prejudicar ningum, no dever de favorecer o fim de outrem. Isso trouxe reflexos na ordem jurdica ao estabelecer que aos direitos de liberdade individuais adicionam-se os direitos que exijam realizao de polticas pblicas de contedo econmico e social por parte do Estado16. Os desprivilegiados reivindicaram um direito de

    13 consagrado no direito nacional por Ingo Wolfgang Sarlet que o critrio diferenciador das diversas nomenclaturas desses direitos a positivao deles por um dado Estado que, consequentemente, reflete na maior eficcia jurdica e social desses direitos. Assim, a expresso direitos humanos empregada no direito internacional, enquanto nas constituies dos pases prefere-se a direitos fundamentais. SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 36-40. Em Portugal, Canotilho distingue entre direitos do homem que so vlidos para todos os povos em todos os tempos e direitos fundamentais que so direitos do homem garantidos e limitados espacio-temporalmente. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituio. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 393.

    14SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 51-52. 15Id. Ibid., p. 54. Impende ressaltar que a expresso dimenses de direitos criticada por Arion S. Romita,

    sob o fundamento de que dimenses refere-se a um significado e uma funo distinta do mesmo direito, e no um grupo de direitos. Por isso, prefere utilizar naipes ou famlias de direitos fundamentais. ROMITA. Arion Sayo. Direitos fundamentais nas relaes de trabalho. So Paulo: LTr, 2005. p. 89-90.

    16COMPARATO, Fbio Konder. op. cit., p. 24.

  • 16

    participar do bem-estar social que, segundo Celso Lafer, o conjunto de bens que os homens acumulam no tempo17.

    Norberto Bobbio obtempera que o nascimento e o crescimento dos direitos sociais diretamente proporcional transformao da sociedade, pois essa modificao social que faz surgir novas exigncias, imprevisveis e, at ento, inexequveis. Ressalta, tambm, que as exigncias que se concretizam a partir de uma interveno pblica ou de prestao de servios pblicos do Estado dependem do nvel de desenvolvimento econmico e tecnolgico18.

    Algumas exigncias econmicas e sociais foram reconhecidas pela Constituio francesa de 1848. Contudo, a plena afirmao deu-se com a Constituio mexicana de 1917 e com a de Weimar de 1919. Dentre os direitos sociais de segunda dimenso, podem-se citar: o direito sade, ao trabalho, educao.

    Em seguida, com a descoberta do mundo dos valores, abre-se a quarta fase histrica na elaborao do conceito de pessoa. O homem o nico ser vivo que dirige a sua vida em funo de preferncias valorativas, isto , o legislador universal em funo dos valores ticos que aprecia e que se submete voluntariamente a tais leis. Aps a consolidao dos direitos na titularidade do homem, pode-se inferir que os valores almejados pela pessoa so a fraternidade e a solidariedade que, por sua vez, consubstanciam-se nos direitos de terceira dimenso, cuja destinao a proteo dos grupos, caracterizados por titularidade coletiva ou difusa. O valor supremo o gnero humano, em sua existencialidade concreta. Nessa seara, assumem relevncia, o direito paz, ao meio ambiente e qualidade de vida19.

    Na efetividade desses direitos, s vezes, no existe coincidncia entre a hierarquia de valores prevalecente no meio social e as normas editadas pelo Estado e, por isso, a soluo ser dada pela ponderao de valores em funo das circunstncias do caso concreto.

    Em razo dessa possibilidade de ponderao entre os direitos, infere-se que eles possuem vrios fundamentos possveis, e no um fundamento absoluto. Alm de ser frgil o alicerce na natureza humana, a classe de direitos do homem heterognea entre as diversas culturas e perodos histricos, haja vista que solues distintas para o mesmo caso

    17LAFER, Celso. A reconstruo histrica dos direitos humanos. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 127. 18BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 76. 19SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 58-59.

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    podem ser todas compatveis com a natureza humana. Norberto Bobbio cita o exemplo do direito sucesso dos bens, que pode ter trs solues razoveis: a) transmisso dos bens para a comunidade; b) transferncia para a famlia e c) livre disposio dos bens20.

    Apesar da consagrao dos direitos nos textos normativos de cada pas, a universalizao de fato dos direitos humanos deu-se por meio da Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948, haja vista que o consenso sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado21. Essa declarao tambm foi o marco para a afirmao dos direitos de modo universal e positivo, uma vez que no apenas terica como no jusnaturalismo, nem limitada aos homens de determinado Estado como as Declaraes americana e francesa.

    Por fim, a ltima etapa na elaborao do conceito de pessoa iniciou-se no sculo XX, com o existencialismo. O foco foi a realidade relacional da vida, implicada no inter-relacionamento entre sujeito-objeto, revelado pela teoria axiolgica. A realidade a pessoa imersa em suas circunstncias, entendidas como aquilo que impregna a vida.

    Pode-se construir um paralelo entre esse estgio do conceito de pessoa com a quarta dimenso de direitos do homem, na viso preconizada, no direito ptrio, por Paulo Bonavides. Segundo esse autor, os direitos de quarta dimenso so: direito democracia direta, direito informao e direito ao pluralismo22. A institucionalizao do Estado Social concretiza-se com a globalizao poltica que atingida pela democracia direta. Essa democracia direta materialmente possvel pelos avanos da tecnologia da comunicao e legitimamente sustentveis pela informao correta e pelas aberturas pluralistas23. Assim, as condies em que a pessoa est inserida sero determinantes aos seus interesses que, por sua vez, sero manifestados pela democracia direta.

    20BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 15-24. 21Id. Ibid., p. 28. 22Cumpre noticiar que Norberto Bobbio refere-se aos direitos de quarta dimenso aqueles ligados

    engenharia gentica, cujos efeitos da pesquisa biolgica podem ser catastrficos para a humanidade. Todavia, ele diz que essa aspirao de no ter manipulado o patrimnio gentico no desfrutado integralmente. BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 6-10. Em contrapartida, Ingo Wolfgang Sarlet nega a existncia de uma quarta dimenso de direitos. SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 60. Nesse sentido tambm: FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 6; MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 17. ed. So Paulo: Atlas, 2005. p. 27.

    23BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 524-526.

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    Portanto, direitos do homem o conjunto mnimo de direitos necessrios para assegurar-lhe uma vida fundada em liberdade e em dignidade24. Todos so direitos que decorrem da dignidade e que estabelecem aquilo que os homens, os grupos sociais e os povos devem poder exigir, sob a forma de omisses, aes, formas de participao e prestaes queles que detm o poder no Estado, nas oligarquias econmicas e na comunidade internacional25.

    A efetividade desses direitos do homem depende do grau de positivao nas ordens internas dos pases e os respectivos mecanismos de exigi-los, bem como sua regulao na esfera internacional.

    1.2. Normas jurdicas de direitos fundamentais

    Os direitos fundamentais so veiculados por normas jurdicas positivadas nas Constituies dos respectivos Estados. Inicialmente, cumpre distinguir normas de enunciados normativos. Ao mesmo tempo em que os enunciados normativos so o conjunto de signos, eles tambm expressam as normas. Dessa forma, as normas jurdicas so o significado dos enunciados normativos que, por sua vez, exprimem algo que deve ser26.

    A estrutura normativa representada por uma situao objetiva, hipottica qual esto ligadas certas consequncias prticas, ou seja, os efeitos por ela prescritos. Dessa forma, a norma jurdica prescreve os resultados enunciados na estatuio ou na injuno em relao ao fato objetivo que pode se concretizar27.

    Como cedio, ao lado das normas de conduta, tem-se as normas organizacionais. Por isso, Miguel Reale diz que norma jurdica uma estrutura propositalmente enunciativa de uma forma de organizao ou de conduta que deve ser seguida de modo objetivo e obrigatrio28. A obrigatoriedade retira a identificao do agente emissor, bem como dos destinatrios.

    24RAMOS, Andr de Carvalho. Direitos humanos em juzo. So Paulo: Max Limonad, 2001. p. 27. 25CAUPERS, Joo. Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a Constituio. Lisboa: Almedina, 1985. p. 18. 26ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros

    Ed., 2008. p. 58. 27GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre interpretao/aplicao do direito. So Paulo: Malheiros

    Ed., 2002. p. 143. 28REALE, Miguel. Lies preliminaries de direito. 24. ed. So Paulo: Saraiva, 1999. p. 95.

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    Dessa forma, Trcio Sampaio Ferraz Jnior afirma que norma um comando despsicologizado, isto , um comando que a figura do emissor perde importncia e o destinatrio no identificado, haja vista que as normas jurdicas so comandos genricos e universais29.

    Por essa razo, Hans Kelsen procura o fundamento de validade de uma norma em outra de nvel superior at atingir a mais elevada, que tem de ser pressuposta, uma vez que no pode ser posta por uma autoridade, cuja competncia teria de se fundar em uma norma mais elevada. Ele denomina a norma pressuposta de norma fundamental30.

    As normas de direitos fundamentais incluem, alm daquelas estabelecidas diretamente do texto da Constituio, as que lhe so decorrentes. O cerne do problema consiste em definir o critrio para a atribuio da norma de direito fundamental. Segundo Robert Alexy, uma norma jurdica ser de direito fundamental se for possvel estabelecer uma correta fundamentao a direitos fundamentais31.

    Essas normas jurdicas podem ser estruturadas por regras e pelos princpios32. Para Robert Alexy, os princpios so normas que ordenam que algo seja realizado

    na maior medida do possvel dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Logo, os princpios so mandamentos de otimizao. Ao contrrio, as regras so normas que so sempre satisfeitas ou no satisfeitas e contm determinaes daquilo que ftica e juridicamente possvel33.

    Como consequncia, o conflito de regras resolvido se uma clusula de exceo introduzida em uma das regras ou se uma delas invalidada. Em contrapartida, a coliso entre princpios leva a precedncia de um princpio em face do outro, sob determinadas condies. Faz-se, ento, um sopesamento entre os interesses conflitantes com base no caso concreto.

    Para Ronald Dworkin, princpio um padro que deve ser seguido, no para assegurar uma situao econmica, poltica ou social, mas sim, para atender a uma

    29FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. 2. ed. So Paulo: Atlas, 1994. p. 118-119.

    30KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 215-217. 31ALEXY, Robert. op. cit., p. 73-74. 32Cf. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. op. cit., p. 1159 e ss; GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 122 e ss;

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 1992. p. 91 e ss; BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 243 e ss; ALEXY, Robert. op. cit., p. 85 e ss.

    33ALEXY, Robert. op. cit., p. 90-91.

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    exigncia de justia, de equidade ou at outra dimenso moral34. Dessa forma, os princpios tm peso ou importncia que so considerados no momento de resolver a coliso. Todavia, as regras tambm so padres de comportamento a serem seguidos que, no entender desse doutrinador, so aplicveis maneira do tudo-ou-nada35. Assim, todas as excees devem ser arroladas nos enunciados das regras e eventual conflito de regras ser solucionado pela validade de uma e a invalidade de outra. O elemento norteador de validade da regra expresso em outra regra que confere a procedncia pelos critrios da hierarquia, especialidade e temporalidade.

    Jos Joaquim Gomes Canotilho diz que princpios so normas jurdicas impositivas de uma otimizao com variantes de sua concretizao, conforme as condicionantes fticas e jurdicas, ao passo que regras so normas que prescrevem uma exigncia que ou no cumprida. Como corolrio, para esse doutrinador portugus, os princpios so objeto de ponderao e harmonizao, pois eles contm apenas exigncias ou standards, ao contrrio das regras, que so fixaes normativas definitivas que inviabilizam a validade simultnea de regras conflitantes36.

    Eros Roberto Grau acrescenta, na distino entre regras e princpios, o fato de atuarem como mecanismo de controle da produo de regras, haja vista que estes podem ser a medida do controle externo da produo de normas. Outrossim, Eros Grau aduz que o intrprete escolher o princpio a partir do contedo do prprio princpio, ao passo que a regra ser validada diante de critrios formais, exteriores a ela37.

    Feitas essas consideraes, sabe-se que, na relao de trabalho, o empregado um ser humano apto a receber e exigir direitos independentemente de sua condio de ser subordinado juridicamente. Alm do direito social do trabalho, que tpico da relao de emprego, a sade e o meio ambiente em que est inserido constituem direitos fundamentais para se evitar os acidentes do trabalho. Ver-se-, a seguir, como esses direitos manifestam-se em normas jurdicas.

    34DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. Trad. Jefferson Luiz Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 40 e ss.

    35Eros Roberto Grau apresenta crtica a esse conceito de Ronald Dworkin ao compreender que as regras comportam excees ao verificar que na coliso de princpios, o afastamento de um deles em favor do outro importa em perda de efetividade das regras que quele do concretude. Ademais, esse autor sustenta que as regras tambm podem se manifestar em sua dimenso de peso. GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 157.

    36CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. op. cit., p. 1162. 37GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 167.

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    1.3. Direito fundamental sade

    1.3.1. Conceito de sade

    A Constituio da Organizao Mundial da Sade (OMS), de 7 de abril de 1948, trouxe em seu prembulo os contornos do contedo da sade nos seguintes termos: Sade o estado de completo bem-estar fsico, mental e social de uma pessoa e no apenas ausncia de doena ou enfermidade. Esse prembulo fixou a ideia de sade como um bem coletivo, o que pode ser corroborado pelos seguintes princpios: a sade de todos fundamental para se alcanar a paz e a segurana e depende da mais ampla cooperao de indivduos e Estados; os resultados alcanados por qualquer Estado na promoo e proteo da sade so valiosos para todos, e a desigualdade dos diferentes pases na promoo da sade e no controle das doenas, especialmente as transmissveis, constitui um perigo comum38.

    Ento, o bem-estar das pessoas pressupe, alm da dimenso individual, uma perspectiva coletiva que, por seu turno, implica no reconhecimento de deveres, tanto por parte do Estado como das outras pessoas. A prpria Lei 8080/90, em seu artigo 3o, estabelece que a sade tem como fatores condicionantes, entre outros, a alimentao, a moradia, o saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educao, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e servios essenciais. Ento, os nveis de sade da populao expressam a organizao social e econmica do pas.

    Outrossim, possvel inferir-se do prembulo da Constituio da OMS que a sade um bem jurdico de desenvolvimento, com a necessidade de preservao presente e futura do indivduo e de toda a humanidade.

    Considerando os mltiplos aspectos que gravitam em torno da sade, Sueli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano Nunes Jnior a conceituam como o bem jurdico fundamental que, por meio da integrao dinmica de fatores individuais, coletivos e de

    38ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE. Constituio da Organizao Mundial da Sade. Disponvel em: . Acesso em: 29 out. 2012.

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    desenvolvimento, visa a assegurar ao indivduo o estado de completo bem-estar fsico, psquico e social39.

    Sob o enfoque trabalhista, a Conveno 155 da Organizao Internacional do Trabalho diz que sade, com relao ao trabalho, abrange no s a falta de afeces e doenas, mas tambm os elementos fsicos e mentais que atingem a sade e esto diretamente relacionados com a segurana e a higiene do trabalho40.

    Dessa forma, sade do trabalhador uma espcie do gnero sade que demanda a interao entre os fatores ocupacionais. Por isso, Bernardino Ramazzini, pai da Medicina do Trabalho, diz que o mdico, ao visitar um doente, deve se informar de muita coisa a seu respeito, pelo prprio ou por seus acompanhantes, que foram j anunciadas por Hipcrates, a saber: o que o doente sente, qual a causa, desde quantos dias, se seu ventre funciona e que alimento ingeriu. Ento, Ramazzini acrescenta a seguinte indagao: a que arte exerce? Por meio dessa pergunta possvel chegar s causas ocasionais do mal e, por conseguinte, atingir-se-ia uma cura mais feliz41.

    Ento, a sade ocupacional sade pblica dirigida a uma comunidade de trabalhadores e, como tal, deveria estar includa no sistema de sade e integrada estrutura, aos programas e s agncias de sade pblica42. Os objetivos da sade ocupacional so: a promoo e a manuteno do mais alto grau de bem-estar fsico, mental e social dos trabalhadores em todas as ocupaes; a preveno entre os trabalhadores de desvios de sade causados pelas condies de trabalho; a proteo dos trabalhadores em seus empregos dos riscos resultantes de fatores adversos sade; a colocao e a manuteno do trabalhador adaptadas s condies fisiolgicas e psicolgicas. Em suma: a adaptao do trabalho ao homem e de cada homem a sua atividade43.

    A cincia jurdica, atenta aos fatos sociais, capta esse conceito de sade e procura atribuir valores especficos de uma sociedade em dado momento histrico, uma vez que a sade depende no somente de fatores individuais, mas tambm da integrao de fatores sociais e de desenvolvimento. Dessa forma, o efeito irradiador ser a proliferao de normas jurdicas para tutelar o assunto.

    39DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitrio. So Paulo: Ed. Verbatim, 2010. p. 13.

    40ORGANIZAO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conveno 155. Disponvel em: . Acesso em: 21 abr. 2011.

    41RAMAZZINI, Bernardino. De morbis artificum diatriba. Chicago: University of Chicago Press, 1940. p. 17. 42MENDES, Ren. Medicina do trabalho e doenas profissionais. So Paulo: Sarvier, 1980. p. 18. 43Id. Ibid., p. 11-12.

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    1.3.2. Proteo jurdica sade do trabalhador

    A sade considerada como um direito fundamental do trabalhador. Todavia, esse reconhecimento s foi atingido no sculo XIX com a Revoluo Industrial. As primeiras leis sobre sade do trabalhador foram editadas na Inglaterra.

    Em 1830, um proprietrio de uma fbrica inglesa incomodado com as pssimas condies de trabalho das crianas trabalhadoras procurou Robert Baker, mdico ingls, para que este o aconselhasse quanto a melhor maneira de proteger a sade das crianas.

    Em resposta, Baker aconselhou-o a contratar um mdico da localidade em que funcionava a fbrica para visitar, diariamente, o local de trabalho e estudar a sua possvel influncia sobre a sade dos pequenos operrios, que deveriam ser afastados de suas atividades profissionais to logo fosse notado que estas estivessem prejudicando a sua sade. Essa foi a origem do servio mdico industrial de todo o mundo.

    A iniciativa desse empregador mostrou a necessidade que urgia de medidas de proteo ao trabalhador e, dessa maneira, uma comisso parlamentar de inqurito elaborou um cuidadoso relatrio que concluiu que os legisladores se omitiram na tentativa de estabelecer regras que assegurassem o mnimo de condies de trabalho aos mais oprimidos da relao de emprego.

    O impacto desse relatrio fez a edio da lei inglesa (Factory Act), de 1833, que foi o marco da regulamentao no campo de proteo ao trabalhador, pois ela estabeleceu os limites de jornada de trabalho para menores de 18 anos, fixou a idade mnima no trabalho em 9 anos, determinou a obrigatoriedade de escolas nas fbricas, que deveriam ser frequentadas por menores de 13 anos, e um mdico deveria atestar que o desenvolvimento fsico da criana correspondia a sua idade cronolgica44.

    A Carta Encclica Rerum Novarum foi editada, em 1891, por Leo XIII e trouxe alguns parmetros para as condies de trabalho dos operrios, sobretudo, a durao do labor45.

    44MENDES, Ren. op. cit., p. 7-8. 45O captulo 25 revela a proteo do trabalho dos operrios, das mulheres e das crianas e prescreve, in

    verbis: No que diz respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo um dever da autoridade pblica subtrair o pobre operrio desumanidade de vidos especuladores, que abusam, sem nenhuma descrio, tanto das pessoas como das coisas. No justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o esprito e enfraquecer o corpo. A actividade do homem,

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    Apesar do avano de algumas leis, na primeira etapa de proteo sade do trabalhador, a preocupao restringia-se pela insero apenas do profissional mdico no ambiente laboral, que buscava apenas o atendimento do trabalhador doente sem influenciar ou mesmo analisar os fatores etiolgicos ocupacionais da enfermidade, isto , no se buscava relao com o trabalho desenvolvido. O mdico do trabalho era um profissional de confiana do empregador, que tinha a obrigao apenas de curar o trabalhador para permitir o retorno linha de produo. A Recomendao 97 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) sobre a proteo sade dos trabalhadores instava os Estados-membros a incentivar a formao de mdicos do trabalho.

    A segunda etapa evolutiva deu-se com a Declarao Universal dos Direitos do Homem que, com seus princpios, permitiu o ingresso de outros profissionais especializados no diagnstico e na preveno de doenas e acidentes, com uma avaliao multidisciplinar do ambiente do trabalho. Nessa seara, a Recomendao 112 da OIT previu a criao de servios de Medicina do Trabalho, ou seja, servios nos locais de prestao do trabalho com vistas a assegurar a proteo do trabalhador de todo o risco que possa prejudicar sua sade e que decorra do seu trabalho ou das condies em que ele exercido; contribuir adaptao fsica e mental dos trabalhadores, em particular pela adequao do trabalho e pela colocao em lugares de trabalho correspondentes s suas aptides; contribuir ao estabelecimento do mais alto nvel de bem-estar fsico e mental dos trabalhadores.

    No Brasil, os servios mdicos tornaram-se obrigatrios somente em 1976, com a Portaria 3237 do Ministrio do Trabalho. A equipe multidisciplinar para a preveno dos danos sade do trabalhador passou obrigatoriedade somente em 1978, por fora da Portaria 3214 do Ministrio do Trabalho, que criou o Servio Especializado de Segurana e Medicina do Trabalho (SESMT), com a participao obrigatria nas empresas de mdicos,

    restrita como a sua natureza, tem limites que se no podem ultrapassar. O exerccio e o uso aperfeioam-na, mas preciso que de quando em quando se suspenda para dar lugar ao repouso. No deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempo do que as foras permitem. Assim, o nmero de horas de trabalho dirio no deve exceder a fora dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcionada qualidade do trabalho, s circunstncias do tempo e do lugar, compleio e sade dos operrios. O trabalho, por exemplo, de extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra, sendo mais pesado e nocivo sade, deve ser compensado com uma durao mais curta. Deve-se tambm atender s estaes, porque no poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria numa estao, noutra de facto insuportvel ou somente se vence com dificuldade. CARTA ENCCLICA RERUM NOVARUM. Vaticano. Disponvel em: . Acesso em: 21 abr. 2011.

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    de engenheiros, de enfermeiros, de tcnicos de segurana do trabalho e de auxiliares de enfermagem. Nessa fase tambm surgiram novas normas sobre ergonomia.

    A ltima etapa cristaliza-se com a participao ativa do empregado no processo de combate e preveno doena e sua etiologia. O obreiro sai de sua posio inerte e promove a busca por melhores condies de trabalho. As regras constitucionais de destaque esto a seguir desenvolvidas.

    A sade , ento, objeto de um direito social. Essa consagrao deu-se no art. 6o da Constituio Federal de 1988. O direito social pode ser identificado a partir de uma dimenso subjetiva, como direitos a prestaes pblicas que so materializadas por meio de servios e aes do Poder Pblico que permitam que o indivduo partilhe os benefcios da vida em sociedade. Cogita-se em prestaes pblicas para a matria de sade.

    Ao lado dessa identificao, o direito social pode ser enfocado a partir da premissa de que as relaes sociais, formadas naturalmente, so o reflexo das foras que vigoram no fenmeno produtivo. a conhecida dimenso objetiva. Dessa maneira, essas relaes jurdicas necessitam da atividade moduladora do Estado; pois, ao verificar a desigualdade originria nelas, ele deve definir padres de comportamento que probam o abuso de poder econmico. Esse o campo do Direito do Trabalho46.

    Portanto, o direito sade do trabalhador corresponde tanto ao direito subjetivo prestao pblica como regulao e normatizao da relao de emprego.

    No tocante ao direito subjetivo prestao pblica, a Constituio Federal de 1988, no artigo 200, inciso II, determina que compete ao Sistema nico de Sade executar as aes de vigilncia sanitria e epidemiolgica, bem como as de sade do trabalhador.

    J com relao ao direito de regulao e normatizao da relao de emprego em matria de sade do trabalhador, o Estado procurou balizar essa relao pelas diversas disposies da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), tais como: a presena de servios mdicos e rgo de segurana nas empresas (artigos 162 e 163); a obrigatoriedade de realizao de exames mdicos nos empregados (artigo 168); regras especficas para edificaes (artigos 170 a 174), iluminao (artigo 175), conforto trmico (artigo 176 a 178), instalaes eltricas (artigos 179 a 181), movimentao, armazenagem e manuseio de materiais (artigos 182 e 183), mquinas e equipamentos (artigos 184 a 186), caldeiras, fornos e recipientes sob presso (artigos 187 e 188). Quanto ao trabalho realizado em

    46DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JNIOR, Vidal Serrano. op. cit., p. 62.

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    condies perigosas ou insalubres, o texto legal procurou tambm fixar as arestas para a continuidade da atividade econmica, ao estabelecer os percentuais de pagamento ao empregado em caso de trabalho nessas situaes (artigos 189 a 197)47.

    O Estado brasileiro tambm procurou preservar a sade e integridade dos trabalhadores ao ratificar, principalmente, a Conveno 155 da OIT, que se refere segurana e a sade dos trabalhadores em todas as reas de atividade econmica48.

    O direito social engloba mecanismos que permitem aos prprios indivduos a proteo dos direitos envolvidos. Esses mecanismos so as garantias, que so direitos que no outorgam um bem ou uma vantagem em si, mas so direitos-instrumentais para tutelar o direito principal49.

    Alm das garantias aplicveis em defesa de qualquer direito trabalhista, como o acesso jurisdio e s normas autnomas elaboradas no bojo das negociaes coletivas, destaca-se o direito de recusa do empregado de executar qualquer tipo de atividade que coloque em risco sua vida e sua sade.

    Trata-se de uma das faces do ius resistentiae, que confere ao empregado o direito de no cumprir a ordem patronal quando ilegal ou quando o seu cumprimento resultar perigo de dano ou o prprio dano sua integridade fsica50.

    O direito de resistncia a oposio ao poder diretivo do empregador que, por sua vez, no absoluto. A CLT, no artigo 483, qualifica a ordem patronal como falta grave em caso de ser exigido do empregado servios superiores s suas foras ou impingir perigo de mal considervel.

    A viabilidade do direito de resistncia do empregado pode-se dar com a implementao da Comisso Interna de Preveno de Acidentes (CIPA), uma vez que sua incumbncia a deteco de riscos inerentes ao trabalho e a orientao aos trabalhadores sobre esses riscos.

    47No direito brasileiro, esse pagamento feito pelos adicionais de periculosidade e insalubridade. 48O Brasil ratificou outras Convenes da OIT sobre sade e segurana referentes a categorias econmicas

    especficas, tais como: a Conveno 136, que protege contra os riscos de intoxicao pelo benzeno; a Conveno 162, que dispe sobre a utilizao do amianto com segurana; a Conveno 167, que dispe sobre a segurana e sade na construo. Disponvel em: http://www.oit.org.br/convention. Acesso em 29 de outubro de 2012.

    49SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2004. p. 416.

    50CECLIA, Silvana Louzada Lamattina. Responsabilidade do empregador por danos sade do trabalhador. So Paulo: LTr, 2008. p. 22.

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    Portanto, o direito sade do empregado um direito social em todas as faces, desde direito subjetivo prestao pblica, direito objetivo normatizao estatal e direito-instrumental de garantia.

    Para o completo desenvolvimento da sade do trabalhador, imprescindvel que as condies do meio ambiente do trabalho sejam adequadas. Ento, veja-se.

    1.4. Direito fundamental ao meio ambiente

    1.4.1. Conceito de meio ambiente e suas espcies

    A palavra ambiente indica esfera, crculo, o mbito que nos cerca, em que vivemos. Dessa forma, o vocbulo j engloba a palavra meio. Todavia, o ambiente compe-se de um conjunto de elementos naturais ou artificiais, cuja interao constitui e condiciona a vida do homem51. Logo, a expresso meio ambiente mais rica de sentido por se referir a conexo de valores.

    Em consonncia com a Declarao de Estocolmo sobre o meio ambiente, de 1972, que centralizou o homem no meio ambiente, o legislador brasileiro definiu-o nos seguintes termos: um conjunto de condies, leis, influncias e interaes de ordem qumica, fsica e biolgica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (artigo 3, inciso I da Lei 6938/81).

    Jos Afonso da Silva conceitua meio ambiente nos seguintes termos: a interao do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas52. A integrao busca assumir uma concepo unitria do ambiente, compreensiva dos recursos naturais, artificiais e culturais.

    O conceito de Jos Afonso da Silva traz baila trs aspectos do meio ambiente, a saber: artificial, cultural e natural. O meio ambiente artificial constitudo pelo espao urbano construdo, que se manifesta no conjunto das edificaes (espao urbano fechado) e nos equipamentos pblicos (ruas, praas, reas verdes, espaos livres em geral: espao

    51PRIEUR, Michel. Droit de lenvironnement. 5. ed. Paris: Dalloz, 2004. p. 2. 52SILVA, Jos Afonso da. Direito ambiental constitucional. 8. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2010. p. 18.

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    urbano aberto). J, o meio ambiente cultural integrado pelo patrimnio histrico, artstico, arqueolgico, paisagstico, turstico, que agregado de valor especial que se adquiriu ou se impregnou ao longo da Histria. Por fim, o meio ambiente natural ou fsico composto pela interao dos seres vivos e seu meio, onde se d a correlao recproca entre as espcies e suas relaes com o ambiente fsico que ocupam.

    Ao exercer o seu trabalho, o homem o faz no meio ambiente. Ento, meio ambiente do trabalho o local em que se desenvolve boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida est intimamente ligada qualidade desse ambiente. O meio ambiente do trabalho insere-se no meio ambiente artificial, para Jos Afonso da Silva.

    Raimundo Simo de Melo53 e Celso Antonio Pacheco Fiorillo consideram o meio ambiente do trabalho um aspecto autnomo do meio ambiente, sendo que este ltimo autor o define nos seguintes termos: o local onde as pessoas desempenham atividades laborais, sejam remuneradas ou no, cujo equilbrio est baseado na salubridade do meio e na ausncia de agentes que comprometam a incolumidade fsico-psquica dos trabalhadores, independentemente da condio que ostentem54.

    Apesar da importncia dessa classificao dos aspectos do meio ambiente, filia-se ao seu duplo sentido adotado pela prpria Declarao de Estocolmo, de 1972, que proclama que os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, so essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo de seus direitos fundamentais, inclusive, o direito vida55.

    Essa ordenao dual de meio ambiente tambm preconizada pelo doutrinador Michel Prieur. Enquanto um dos sentidos aproxima-se de ecologia e refere-se ao equilbrio de foras concorrentes que condicionam a vida de um grupo biolgico; o outro, est relacionado aos arquitetos e urbanistas e corresponde a zona de contato entre um espao construdo e o meio56.

    53MELO, Raimundo Simo de. Direito ambiental do trabalho e a sade do trabalhador. 2. ed. So Paulo: LTr, 2006. p. 24.

    54FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 7. ed. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 43-44.

    55ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Declarao Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponvel em: . Acesso: 19 out. 2012.

    56PRIEUR, Michel. op. cit., p. 2.

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    Nesse sentido, o meio ambiente cultural e o do trabalho so espcies do meio ambiente artificial57.

    1.4.2. Proteo jurdica ao meio ambiente do trabalho

    Dentro da necessidade humana de perseguir os valores de solidariedade e de fraternidade, os Estados positivaram normas jurdicas com o escopo de melhorar a sade pblica e de manter o equilbrio ecolgico. Esse conglomerado de normas jurdicas constitui o direito ambiental ou direito ao meio ambiente58.

    Dessa forma, o direito ambiental est intimamente unido aos valores consagrados nas Declaraes de Direitos e liberdades pblicas.

    A Declarao de Estocolmo, de 1972, reconheceu o direito ao meio ambiente como um direito humano ao prescrever que o homem tem um direito fundamental liberdade, igualdade e s condies satisfatrias de vida em um ambiente cuja qualidade permita viver em dignidade e com bem-estar (princpio 1). A Carta africana dos direitos do homem e dos povos, de 1981, proclamou que todos os povos tm direito a um ambiente satisfativo e global, propcio ao seu desenvolvimento (artigo 24). Esse documento recebeu um aditivo pelo Protocolo de So Salvador, que mencionou que toda pessoa tem direito de viver em um ambiente salubre (artigo 11-1). Finalmente, a Declarao sobre meio ambiente e desenvolvimento, do Rio de Janeiro, de 1992, enunciou que todos os seres humanos tm direito a uma vida sadia (princpio 1)59.

    Essa tutela estendeu-se, igualmente, ao meio ambiente do trabalho. A Organizao Internacional do Trabalho prescreveu na Conveno 187 que todos os Estados-membros devero fomentar e promover, em todos os nveis relevantes, o direito dos trabalhadores a um ambiente de trabalho seguro e saudvel60. Assim, o direito ao meio ambiente saudvel um direito humano de terceira dimenso.

    57Norma Sueli Padilha tambm considera apenas duas linhas mestras, quais sejam, o meio ambiente natural e o artificial, sendo este resultado da interferncia e interao do homem com o meio. Logo, o meio ambiente cultural e o do trabalho so desdobramentos do meio ambiente artificial. PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado. So Paulo: LTr, 2002. p. 27.

    58PRIEUR, Michel. op. cit., p. 8. 59Id. Ibid., p. 58. 60ORGANIZAO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conveno 187. Disponvel em:

    . Acesso em: 16 set. 2012.

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    Com a finalidade de conferir maior efetividade, o meio ambiente foi erigido a direito fundamental pela Constituio Federal de 1988, que no artigo 225 estabeleceu que o meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida e constitui, simultaneamente, direito de todos e dever do Poder Pblico e da coletividade de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    Infere-se do texto constitucional que todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Dessa forma, o meio ambiente um bem jurdico constitucionalmente protegido, sendo de uso comum do povo, ou seja, um patrimnio coletivo.

    Patrimnio o conjunto de elementos necessrios realizao, ao desenvolvimento do indivduo ou da coletividade. O contedo do patrimnio ultrapassa a realidade econmica e no se compe somente de bens comercializveis, sendo considerado como um direito da personalidade do sujeito de direito, isto , uma potncia jurdica. O conceito de patrimnio transtemporal e torna-se uma herana do passado que transita no presente e destina-se s geraes futuras.

    Assim, o meio ambiente ecologicamente equilibrado um patrimnio coletivo, isto , um conjunto de condies bsicas necessrias para manuteno e para a realizao da sociedade enquanto comunidade. O desfrute do bem comunitrio e reverte-se ao bem-estar individual conforme a posio de cada pessoa na sociedade61.

    Esse bem-estar consubstanciado na essencial qualidade de vida que se projeta alm do direito vida, pois as condies do meio so determinantes no somente para a sobrevivncia, mas tambm para uma existncia digna.

    A expresso qualidade de vida traduz todo o necessrio aparato interno e externo ao homem, dando-lhe condies de desenvolver suas potencialidades como indivduo e como parte fundamental de uma sociedade. Segundo Cristiane Derani, a qualidade de vida no ordenamento brasileiro apresenta dois aspectos, a saber: o nvel de vida material e o do bem-estar fsico e o espiritual. A sadia qualidade de vida abarca o fato de que o mnimo material sempre necessrio para o deleite espiritual. O mnimo material para a consecuo deste ideal dado pelos elementos da realidade que historicamente informam esses princpios. Considerando o aspecto histrico-material do conceito de qualidade de vida, possvel seccion-lo nas seguintes partes: a) aspecto fsico, ou seja, ela deve indicar

    61DERANI, Cristiane. Direito ambiental econmico. 2. ed. So Paulo: Max Limonad, 2001. p. 260-263.

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    as condies mnimas do meio fsico; b) referncia antropolgica, que se consubstancia no acesso e na abundncia dos recursos naturais que diferenciam o desenvolvimento das sociedades e c) tutela do bem-estar que almeja atender s necessidades bsicas, quais sejam: alimentao, habitao, sade e educao62.

    Ao lado do aspecto subjetivo do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituio impe a dimenso objetiva que se consubstancia no dever de proteo do Estado e da coletividade de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    O indivduo deve ter um comportamento social frente comunidade. O Poder Pblico tem a funo ambiental pblica de preservar o meio ambiente, que no lhe uma atividade exclusiva. O preceito constitucional refere-se ao dever do Estado para efetivao dessa tutela ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse poder estatal nico e seu exerccio diludo na atividade administrativa a partir de competncias constitucionalmente estabelecidas. Outrossim, o Estado deve editar normas para regular o uso adequado e racional dos recursos naturais.

    Portanto, a Constituio brasileira trata o meio ambiente como um direito fundamental de todas as pessoas em sua dupla dimenso, isto , como direito subjetivo e tambm como dever de proteo do Estado e da comunidade. A considerao do ambiente como tarefa ou fim normativo-constitucional implica a existncia de deveres jurdicos ao Estado e demais poderes pblicos e representa a faceta objetiva desse direito fundamental. Trata-se de uma norma impositiva que deve ser observada pelo Estado e pela comunidade63.

    No tocante ao meio ambiente do trabalho, a Constituio Federal estabeleceu como direito subjetivo do trabalhador a reduo dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de sade, de higiene e de segurana (artigo 7o, XXII).

    Esse direito fundamental vincula o Estado e o particular e, por isso, o empregador deve adotar medidas que concretizem o direito constitucional do trabalhador e, em contrapartida, o rgo estatal competente tem a funo de fiscalizar e exigir o implemento das providncias necessrias para minorar os riscos do trabalho. A Constituio Federal

    62DERANI, Cristiane. op. cit., p. 83-84. 63CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. So Paulo: Ed. Revista dos

    Tribunais, 2008. p. 181.

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    atribui dentre as competncias do Sistema nico de Sade a colaborao na proteo do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (artigo 200, inciso VIII).

    Entretanto, caso seja impossvel a eliminao integral dos riscos, o empregador tem a obrigao de fornecer os equipamentos de proteo individual e coletiva com o fim de neutraliz-los, bem como o responsvel pelo pagamento dos adicionais de insalubridade e periculosidade.

    Por fim, todas essas obrigaes tm uma direo prospectiva, qual seja, as geraes vindouras devem receber os mesmos recursos e condies existentes no presente para que possam manter o modo de vida atual. As relaes de trabalho exigem que se preserve a fora de trabalho para a continuidade da prpria atividade econmica.

    O direito ambiental repousa sobre grandes princpios com fora normativa que so comuns para todos os povos do planeta em expresso da solidariedade mundial devido globalizao dos problemas ambientais. A Conferncia de Estocolmo, de 1972, foi o ponto de partida para a elaborao de princpios prprios e a Conferncia do Rio de Janeiro ampliou-os.

    Veja-se a seguir os princpios ambientais e suas respectivas implicaes na esfera trabalhista64.

    1.4.2.1. Princpio do desenvolvimento sustentvel

    O princpio do desenvolvimento sustentvel aquele que determina a utilizao parcimoniosa dos recursos naturais a fim de que possam ser reutilizados65. medida que o bem matria-prima ao desenvolvimento, elemento essencial sadia qualidade de vida para todos os seres66.

    A Declarao de Estocolmo de 1972 j garantiu implicitamente esse princpio ao prever que os recursos no renovveis devem ser usados com cautela para no serem esgotados, assim como o desenvolvimento econmico e social devem assegurar um meio de vida e de trabalho favorvel, inclusive, com mecanismos de melhoria da prpria

    64Os princpios ambientais a seguir identificados seguem a nomenclatura de Michel Prieur, na obra Droit de lenvironnement, cit., p. 51 e ss.

    65PRIEUR, Michel. op. cit., p. 68. 66RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituies de direito ambiental. So Paulo: Max Limonad, 2002. v. 1, p. 136.

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    qualidade de vida67. A consagrao explcita deu-se na Declarao sobre meio ambiente e desenvolvimento do Rio de Janeiro, de 1992, que estabeleceu que a proteo do meio ambiente deve constituir parte integrante do desenvolvimento para se atingir o desenvolvimento sustentvel (princpio 4)68.

    A Constituio Federal de 1988 incorporou esse princpio ao pontuar que a ordem econmica fundada na livre iniciativa e na valorizao do trabalho humano, assegurando a todos uma existncia digna de acordo com os ditames de justia social e observado, dentre outros, o princpio de defesa do meio ambiente (artigo 170, inciso VI).

    No mbito trabalhista, o busca de emprego deve ser acompanhada de qualidade e dignidade a fim de implementar o princpio do desenvolvimento sustentvel.

    Esse princpio foi perseguido pela Associao Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e pela Associao Nacional dos Magistrados da Justia do Trabalho (ANAMATRA), no Supremo Tribunal Federal, pelo ajuizamento da ao direta de inconstitucionalidade que visa declarao de inconstitucionalidade do artigo 2 da Lei 9055/95, que trata da produo e comercializao do amianto na variedade crisotila, do grupo dos minerais das serpentinas, e demais fibras de mesma origem, usadas para o mesmo fim e, ainda, est pendente de julgamento69.

    Como cedio, o amianto uma substncia usada, principalmente, em telhas, gessos e outros elementos da construo civil, e causa desde asbestose70 at cncer pulmonar.

    Assim, a eliminao do amianto representar a preservao da sade dos trabalhadores e a sustentabilidade do desenvolvimento para as presentes e futuras geraes.

    67ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Declarao de Estocolmo sobre o meio ambiente humano. Disponvel em: . Acesso em: 26 set. 2012.

    68ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Declarao Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cit. 69SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4066), Relator Ayres Britto.

    Disponvel em: . Acesso em: 26 set. 2012.

    70Asbestose : Pneumoconiose produzida pela inalao de fibras de asbesto e, que alm de ocasionar fibrose pulmonar, pode estar acompanhada de cncer brnquico. FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Dicionrio Aurlio da lngua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 218.

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    1.4.2.2. Princpio da preveno

    O princpio da preveno consiste em evitar a ocorrncia de danos ao meio ambiente por meio de medidas apropriadas ditas preventivas a partir da elaborao de um plano de trabalho ou de uma atividade71. Esse princpio foi veiculado na Conveno de Basileia sobre o controle de movimentos transfronteirios de resduos perigosos e seu depsito, de 1989. Esse diploma internacional previu, em seu prembulo, que a forma mais eficaz de proteger a sade humana e o meio ambiente dos resduos perigosos reduzir sua gerao em termos de quantidade e/ou potencial de seus riscos72.

    O objetivo desse princpio afastar a manifestao do risco conhecido e provado. Essa ao de evitar resultados danosos prefervel a medidas de reparao, de restaurao ou de represso que so feitas aps uma violao ambiental.

    Esse princpio da preveno manifesta-se, na rea trabalhista, por instrumentos administrativos e judiciais.

    O Poder Executivo implementa o princpio da preveno por meio da interdio do estabelecimento, do setor de servio, da mquina ou do equipamento ou, ainda, com o embargo obra se estiverem presentes o grave e iminente risco para o trabalhador (artigo 161, da CLT). Do mesmo modo, a autoridade estatal dever indicar as providncias que devero ser adotadas para a preveno de infortnios de trabalho.

    O Judicirio trabalhista depara-se com questes coletivas propostas pelo Ministrio Pblico do Trabalho, pelos sindicatos, pelas associaes civis com o fim de impor obrigaes de fazer e de no fazer aos empregadores no tocante ao meio ambiente laboral em situaes de risco grave e iminente, inclusive, com pedidos de interdio ou embargo da obra73.

    Anteriormente propositura dessa demanda coletiva, o Ministrio Pblico, exclusivamente, poder utilizar o inqurito civil pblico, que um procedimento administrativo de natureza inquisitorial destinado a investigar fatos relevantes em diversos

    71PRIEUR, Michel. op. cit., p. 71. 72MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2006.

    p. 80-81. 73Smula 736 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: Compete Justia do Trabalho julgar as aes que

    tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas segurana, higiene e sade dos trabalhadores. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Smula 736. Disponvel em: . Acesso em: 19 set. 2012.

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    assuntos no penais, sobretudo, o meio ambiente (artigo 129, inciso III, da Constituio Federal). Na esfera trabalhista, o ramo ministerial que tem atribuio para investigar eventuais irregularidades ambientais o Ministrio Pblico do Trabalho.

    Esse rgo pode, tambm, emitir recomendaes com o escopo de melhorar o meio ambiente laboral sem carter vinculante, mas com implicaes prticas de grande fora moral, psicolgica e poltica, em decorrncia do artigo 6o, inciso XX, da Lei Complementar 75/93.

    O Ministrio Pblico do Trabalho e outros rgos pblicos podero firmar termo de ajustamento de conduta s exigncias legais (TAC), que uma espcie de acordo entre o respectivo rgo e aquele que descumpriu normas jurdicas ambientais com o objetivo de adequar-se conduta, mediante a cominao de astreintes. Trata-se de ttulo executivo extrajudicial, que se no adimplido, enseja a execuo direta na Justia do Trabalho ao envolver questes do meio ambiente laboral (artigo 876 da CLT).

    Ao lado do princpio da preveno, existe o da precauo.

    1.4.2.3. Princpio da precauo

    A primeira manifestao escrita do princpio da precauo que se tem notcia foi a Charte que Jean de Lvis de Mirapoix editou, em 1303, para regulamentar a venda de carne a fim de enfrentar os perigos identificados naquela poca74.

    Todavia, somente com a Declarao do meio ambiente e desenvolvimento do Rio de Janeiro Eco-92 que o princpio da precauo foi consagrado com o escopo de proteger o meio ambiente (princpio 15). Quando houver ameaa de danos srios e irreversveis, a ausncia absoluta de certeza cientfica no deve ser utilizada como razo para postergar medidas eficazes e economicamente viveis para prevenir a degradao ambiental.

    Assim, o princpio da precauo tem uma funo pacificadora, firmando-se como postulado de atuar previamente contra um risco. De acordo com Cristiane Derani, o princpio da precauo sintetiza-se na busca do afastamento, no tempo e no espao, do

    74PRINCIPE de Prcaution. Association des retraites du groupe (CEA). Disponvel em: . Acesso em: 19 set. 2012.

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    perigo, na busca tambm da proteo contra o prprio risco e na anlise do potencial danoso oriundo do conjunto de atividades. Sua manifestao d-se, mais apropriadamente, na formao de polticas pblicas ambientais, onde a exigncia de utilizao da melhor tecnologia disponvel necessariamente um corolrio75.

    No mesmo sentido, para Teresa Ancona Lopez, princpio da precauo aquele referente aos rumos e aos valores do sistema de previso de riscos hipotticos, coletivos ou individuais, que assustam a comunidade ou os indivduos isoladamente com danos graves e irreversveis e sobre os quais no h certeza cientfica. O princpio da precauo requer a adoo de medidas drsticas e eficazes com o fim de antecipar o risco suposto e possvel, mesmo em face da incerteza76.

    O afastamento de riscos hipotticos no meio ambiente do trabalho enseja uma srie de providncias dos empregadores, dos empregados e dos Poderes Estatais, haja vista que o princpio da precauo tambm uma medida de controle da elaborao de regras.

    O Poder Legislativo previu, na CLT, uma srie de obrigaes legais, das quais se destacam que as empresas so obrigadas a fornecer os equipamentos de proteo individual aos seus empregados, gratuitamente, adequados ao risco e em perfeito estado de conservao e funcionamento, sempre que as medidas de ordem geral no forem suficientes (artigo 166 da CLT). O empregador deve orientar e treinar os trabalhadores sobre o uso correto, guarda e conservao, bem como substitu-los quando danificados ou extraviados, responsabilizando-se pela sua higienizao e pela manuteno peridica (artigo 157 da CLT).

    Integrando a funo legislativa, o Poder Executivo pode completar a lei, segundo o seu esprito e contedo, sobretudo nos aspectos que a prpria lei outorga esfera regulamentar. Dessa forma, o artigo 200 da CLT conferiu ao Ministrio do Trabalho e Emprego a tarefa de estabelecer disposies complementares quelas j previstas em matria de atenuao dos riscos ambientais, tendo-se em vista as peculiaridades de cada setor.

    Nesse diapaso, a Portaria 3214/78 do Ministrio do Trabalho e Emprego veiculou as normas regulamentadoras (NRs) relativas segurana e medicina do

    75DERANI, Cristiane. op. cit., p. 170. 76LOPEZ, Teresa Ancona. Princpio da precauo e evoluo da responsabilidade civil. So Paulo: Quartier

    Latin, 2010. p. 103.

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    trabalho. Veja-se, a seguir, as principais normas relacionadas ao afastamento de danos ambientais77.

    A norma regulamentadora no 4 (NR-4) estabeleceu que as empresas privadas, os rgos pblicos da administrao direta e dos poderes Legislativo e Judicirio que tenham empregados celetistas mantero, obrigatoriamente, servios especializados em engenharia de segurana e de medicina do trabalho, com a finalidade de promover a sade e proteger a integridade do trabalhador no local de trabalho. Esses servios sero compostos de mdico do trabalho, engenheiro de segurana do trabalho, enfermeiro do trabalho, tcnico de segurana do trabalho, auxiliar de enfermagem do trabalho, sendo o nmero de integrantes dimensionado conforme a gradao do risco da atividade principal e ao nmero total dos empregados do estabelecimento.

    Referente ao cuidado de eliminar as doenas ocupacionais, a norma regulamentadora no 7 (NR 7) criou o Programa de Controle Mdico de Sade Ocupacional (PCMSO) destinado a precauo, ao rastreamento e ao diagnstico precoce dos agravos sade relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclnica, alm da constatao de casos de doenas profissionais ou danos irreversveis sade do trabalhador, devendo ser planejado e implementado com base nos riscos sade. Essa norma prev a realizao de exames mdicos admissional, peridico e demissional, considerando os riscos em que o trabalhador est submetido.

    Finalmente, a norma regulamentadora no 9 (NR-9) previu a obrigatoriedade para os empregadores da elaborao do Programa de Preveno dos Riscos Ambientais (PPRA), com o escopo de preservar a sade e a integridade fsica dos trabalhadores, por meio da antecipao, reconhecimento e avaliao e consequente controle dos riscos ambientais existentes ou que venham existir no meio ambiente de trabalho.

    Um outro instrumento usado pelo Poder Executivo para evitar danos ambientais Estudo Prvio de Impacto Ambiental (EPIA), cujo objetivo apontar e avaliar os impactos e degradaes ambientais gerados tanto na fase de implantao como na operao da atividade ou obra.

    Essa atividade administrativa exteriorizao do poder de polcia, que a faculdade discricionria que se reconhece Administrao Pblica de restringir e

    77MINISTRIO DO TRABALHO. Portaria 3214/78. Disponvel em: . Acesso em: 24 set. 2012.

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    condicionar o uso e o gozo dos direitos individuais, especialmente os de propriedade, em benefcio do bem-estar geral78.

    Na seara ambiental, o estudo de impacto ambiental exterioriza-se no conjunto de rgos e servios pblicos incumbidos de fiscalizar, controlar e deter as atividades individuais que se revelem contrrias, inconvenientes ou nocivas coletividade no tocante a diversos aspectos, tais como: segurana, higiene, sade, domnio econmico, conservao dos ecossistemas79.

    Esse poder de polcia ambiental est presente na exigncia celetista de prvia inspeo e aprovao das instalaes, para que o estabelecimento inicie suas atividades (artigo 160, da CLT). As modificaes substanciais tambm devem ser comunicadas Gerncia Regional do Trabalho e Emprego para nova inspeo.

    Ademais, o Poder Judicirio, se provocado, poder atuar na concretizao desse princpio ao proferir decises, sobretudo, em carter de urgncia, para impedir condutas que acarretem danos irreversveis diante de riscos hipotticos e no previstos at ento.

    Assim, atinge-se a sustentabilidade das atividades humanas e a segurana das geraes futuras ao se seguir o princpio ambiental da precauo. O alcance efetivo dele depende substancialmente da forma e da extenso da cautela econmica, correspondente a sua realizao.

    1.4.2.4. Princpio da informao

    O direito de informao um direito fundamental de quarta dimenso que compreende a liberdade de receber ou de comunicar informaes80. A Declarao do meio ambiente e desenvolvimento do Rio de Janeiro, de 1992, proclamou o direito informao nas questes ambientais (princpio 10).

    O direito informao do meio ambiente laboral confere aos trabalhadores o acesso s reais condies ambientais a que esto expostos, bem como a prpria organizao do trabalho.

    78MEIRELLES, Hely Lopes. Os poderes do administrador pblico. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Seleo histrica, p. 335, 1945-1995.

    79Autores favorveis exigncia de estudo prvio de impacto ambiental para o meio ambiente de trabalho: PADILHA, Norma Sueli. op. cit., p. 118-121; MELO, Raimundo Simo de. op. cit., p. 79.

    80PRIEUR, Michel. op. cit., p. 105.

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    Nesse sentido, a Conveno 161 da OIT diz que todos os trabalhadores devem ser informados sobre os riscos inerentes ao trabalho, e a Conveno 148 da OIT estabelece que os trabalhadores ou os seus representantes podero apresentar propostas, receber informaes e orientaes, recorrer em instncias apropriadas, a fim de garantir a proteo contra os riscos profissionais devidos contaminao do ar, do rudo e das vibraes nos locais de trabalho.

    A Consolidao das Leis do Trabalho pontua a necessidade das informaes no ambiente de trabalho ao determinar que o Ministrio do Trabalho e Emprego adote regras informacionais sobre: a) a obrigatoriedade de indicar a carga mxima permitida nos equipamentos de transporte; b) os avisos de proibio de fumar e da advertncia quanto natureza perigosa ou nociva sade, das substncias em movimentao ou em depsito; c) as recomendaes de primeiros socorros e de atendimento mdico e d) smbolo de perigo, padronizado internacionalmente, nos rtulos dos materiais ou das substncias armazenadas ou transportadas (artigos 182, inciso III, e 197).

    A norma regulamentar no 5 (NR 5), de 17/08/92, atribuiu Comisso Interna de Preveno de Acidentes, em colaborao como o Servio Especializado de Segurana e Medicina do Trabalho (SESMT) das empresas e aps a oitiva dos trabalhadores, a elaborao do mapa de risco ambiental, com a identificao de todos os riscos no local de trabalho81. Esse mapa dever ser publicado em locais visveis no meio ambiente laboral para que os trabalhadores sejam informados.

    Decorre do princpio da informao, a obrigatoriedade de o empregador elaborar o Perfil Profissiogrfico Previdencirio (PPP) que um documento histrico-laboral pessoal/individual do trabalhador, com propsitos previdencirios, para a obteno de informaes relativas fiscalizao do gerenciamento de riscos e existncia de agentes nocivos no ambiente de trabalho, para orientar e subsidiar nos processos de reconhecimento de aposentadoria especial (artigo 68, 6, do Decreto 3048/99). Na resciso do contrato de trabalho ou no desligamento do cooperado, o empregador dever entregar-lhe uma cpia, sob pena de multa. Infere, ento, que o Perfil Profissiogrfico Previdencirio um documento obrigatrio para os empregados, avulsos e cooperados.

    Dessa forma, os trabalhadores informados so aptos para uma participao efetiva no local de trabalho.

    81MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO. NR 5. Disponvel em: . Acesso em: 20 set. 2012.

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    1.4.2.5. Princpio da participao

    O direito fundamental ao meio ambiente traz, ao Poder Pblico em todas as