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A INFLUÊNCIA DA COMISSÃO MISTA BRASIL-BOLÍVIA NO DISTRITO DO LADÁRIO DAIANE LIMA DOS SANTOS * A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) teve seu projeto a partir do século XX com o objetivo de efetivar a ligação terrestre com os locais mais afastados. Se por um lado, a navegação favoreceu a exportação, por outro lado, a chegada da estrada de ferro acabou ocasionando o declinamento da navegação que deixou de ser o principal meio de transporte. É de se notar a preocupação da construção do ramal que ligaria a cidade de Itapura em São Paulo à Corumbá e logo a Bolívia, a partir do trabalho de Queiroz (1999) “Uma ferrovia entre dois mundos: A E. F. Noroeste do Brasil na construção histórica de Mato Grosso (1918- 1956)fruto da tese de doutorado em que faz uma análise acerca do prolongamento da estrada de ferro que ligaria o Brasil a Bolívia Já o decreto seguinte (nº 6.899, de 24.3.1908, cit.), que tornou efetiva a mudança do traçado, veio acrescentar uma inovação no novo trecho mato-grossense da ferrovia a ser construída: tratava-se agora de uma “estrada de ferro de Itapura a Corumbá e daí à fronteira do Brasil com a Bolívia” (cláusula 2, grifo nosso). Na verdade, segundo se informa, já a Comissão Schnoor chegara a efetuar reconhecimentos também no terreno além de Corumbá, ultrapassando mesmo a fronteira e chegando até a localidade boliviana de Puerto Suárez (Sá CARVALHO, 1942, p. 23). (QUEIROZ, 1999. p.39). Nota-se que os reconhecimentos foram feitos por parte da Comissão, porém, as obras não tiveram início tão logo por conta de inúmeros fatores que o mesmo autor descreve. Apesar disso, a questão começou a ganhar relevância e o diretor da Noroeste a época, Arlindo Luz, trata do assunto conforme Queiroz (1999, p.40) A questão, de todo modo, reaparece em nosso período já no relatório de Luz, em 1921, o qual enfatiza: “urge levar a linha” até Corumbá e daí a Puerto Suárez (Bolívia), visando uma futura ligação transcontinental (R21, p. 46).* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/FCH/UFGD). Bolsista CAPES/Demanda Social. Orientador: Linderval Augusto Monteiro.

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A INFLUÊNCIA DA COMISSÃO MISTA BRASIL-BOLÍVIA NO DISTRITO

DO LADÁRIO

DAIANE LIMA DOS SANTOS*

A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) teve seu projeto a partir do século XX

com o objetivo de efetivar a ligação terrestre com os locais mais afastados. Se por um lado, a

navegação favoreceu a exportação, por outro lado, a chegada da estrada de ferro acabou

ocasionando o declinamento da navegação que deixou de ser o principal meio de transporte.

É de se notar a preocupação da construção do ramal que ligaria a cidade de Itapura em

São Paulo à Corumbá e logo a Bolívia, a partir do trabalho de Queiroz (1999) “Uma ferrovia

entre dois mundos: A E. F. Noroeste do Brasil na construção histórica de Mato Grosso (1918-

1956)” fruto da tese de doutorado em que faz uma análise acerca do prolongamento da estrada

de ferro que ligaria o Brasil a Bolívia

Já o decreto seguinte (nº 6.899, de 24.3.1908, cit.), que tornou efetiva a mudança do

traçado, veio acrescentar uma inovação no novo trecho mato-grossense da ferrovia a

ser construída: tratava-se agora de uma “estrada de ferro de Itapura a Corumbá e daí

à fronteira do Brasil com a Bolívia” (cláusula 2, grifo nosso). Na verdade, segundo

se informa, já a Comissão Schnoor chegara a efetuar reconhecimentos também no

terreno além de Corumbá, ultrapassando mesmo a fronteira e chegando até a

localidade boliviana de Puerto Suárez (Sá CARVALHO, 1942, p. 23). (QUEIROZ,

1999. p.39).

Nota-se que os reconhecimentos foram feitos por parte da Comissão, porém, as obras

não tiveram início tão logo por conta de inúmeros fatores que o mesmo autor descreve. Apesar

disso, a questão começou a ganhar relevância e o diretor da Noroeste a época, Arlindo Luz,

trata do assunto conforme Queiroz (1999, p.40) “A questão, de todo modo, reaparece em nosso

período já no relatório de Luz, em 1921, o qual enfatiza: “urge levar a linha” até Corumbá e daí

a Puerto Suárez (Bolívia), visando uma futura ligação transcontinental (R21, p. 46).”

* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade

Federal da Grande Dourados (PPGH/FCH/UFGD).

Bolsista CAPES/Demanda Social.

Orientador: Linderval Augusto Monteiro.

2

Assim, a preocupação estava voltada para a urgência em fazer a ligação transcontinental,

sobretudo, devido aos acordos já solidificados anteriormente entre o Brasil e a República da

Bolívia. Por isso, ainda dando continuidade ao assunto reforçou que essa ligação surgiu como

projeto de conclusão da NOB intimamente ligado a esses acordos firmados entre Brasil e

Bolívia. Era um projeto de extrema relevância para a NOB e que ganhou destaque no relatório

do engenheiro-chefe da Comissão Mista, Whately, de 1944.

De todo modo, a dita ligação teve início em 1939, ligação que seria feita da cidade de

Corumbá até a cidade de Santa Cruz de la Sierra na Bolívia. Para tanto criou-se a Comissão

Mista Brasil-Bolívia. Após o início das obras, aponta que foram relatadas algumas dificuldades

e uma das maiores talvez fosse a que destaca citando o relatório

Assim, enquanto não fossem ligadas as duas pontas de trilhos, de modo a permitir

pelo menos um tráfego provisório, de serviço, todos os materiais necessários à frente

aberta em Corumbá precisavam ser transportados pelo rio Paraguai, de Porto

Esperança ao porto de Ladário, junto a Corumbá (R49, p. 55). (QUEIROZ, 1999,

p.42).

A ligação das pontas de trilho seria o elemento facilitador da logística do transporte, tão

precário para a época. Havia a urgência de ligação, mesmo que provisória para realizar o

transporte do material necessário a construção da estrada de ferro. Nesse sentido, deu destaque

também a fala do engenheiro chefe Whately que elencou a questão do transporte da seguinte

maneira

As observações do engenheiro Whately, que era então o chefe da Comissão Mista

responsável pela construção dessa ferrovia, parecem dar razão a Covello. De fato,

escrevendo em 1944, assim se expressou aquele engenheiro: “A principal dificuldade

que se opôs à campanha de estudos e persiste na atual fase de construção, embora

mais atenuada, foi o transporte” (op. cit., p. 16). Na ausência do prolongamento, os

citados materiais eram providos por via fluvial, sendo desembarcados no porto de

Ladário – o que aliás exigiu a prévia construção de um pequeno trecho ferroviário

ligando Ladário ao ponto inicial da Brasil-Bolívia (cf. WHATELY, op. cit., p. 10;

CARVALHO, 1942, p. 43, p. 112). (QUEIROZ, 1999, p.43).

Deveria ser feita uma ligação ferroviária para o transporte do material a fim de que

chegasse a Corumbá. Essa ligação foi feita a partir do Porto de Ladário, onde os materiais eram

desembarcados.

Instalação da oficina

3

A Comissão Mista Brasil-Bolívia proporcionou a abertura de caminhos e formou

cidades para a Bolívia, favorecendo o desenvolvimento comercial entre os dois países e

minimizando a distância da viagem. A sua consolidação decorre do Tratado de Petrópolis, o

qual o Brasil assumiu a responsabilidade de construir trajetos terrestres visando a comunicação

entre os dois países. Podemos perceber isso, no noticioso Tribuna (23/07/ 1939) que traz

Como compensação da anexação do Território do Acre, o Brasil se obrigou a dar a

Bolívia, uma indenização pecuniária de dois milhões de libras, com a condição desses

recursos serem empregados na construção de caminhos de ferro ou de rodagem [...]

Obrigou-se, ainda, o Brasil a construir além de uma ferrovia do Porto de Santo

Antônio, no rio Mamoré, até Guajará-Mirim, no Mamoré, um ramal férreo que

passando por Villa Murtinho ou outro ponto próximo, chegasse à Villa Bella, na

Bolívia atravessando, assim o rio Mamoré. (Jornal Tribuna de 23/07/1939, Ano 23,

nº 10.093. Diretor: Vicente Bezerra Neto).

O Brasil, por seu lado, acabou cumprindo os acordos anteriormente consolidados com

a Bolívia favorecendo desta forma, uma estreita ligação comercial entre os dois conforme

destaca o relato do senhor Edelberto Gomes Campos Vianna 1

A Comissão Mista - o Brasil - ele fez a estrada para Bolívia tirando a Bolívia do

isolamento como já disse, e por onde ele passou fez uma cidade. O Brasil fez cidades

pra Bolívia: fez Porto Suarez, fez Carmen que fica ali ao lado de Águas Calientes, fez

a estrada de Roboré - estou falando as cidades maiores né-, a cidade de São José, a

cidade de Bailon e até Guaracache que fica perto de Santa Cruz. Nessa área toda a

gente conhece trecho por trecho porque a gente trabalhou nessa estrada. (Edelberto

Gomes Campos Vianna, entrevista concedida em 2015).

Percebe-se que na fala que a grande contribuição do Brasil ao construir a estrada de

ferro, foi a de tirar a Bolívia do “isolamento”. Deste modo, as cidades bolivianas ficaram sendo

conhecidas dos trabalhadores brasileiros que também adentravam a região na construção dos

trilhos.

Nesse sentido a história oral como instrumento de pesquisa conforme ressalta Pollack

(1992, p.8) “Agora, é óbvio que a coleta de representações por meio da história oral, que é

também história de vida, tornou-se claramente um instrumento privilegiado para abrir novos

campos de pesquisa.”

Desta forma, João Lisbôa de Macedo (1997, p. 6) aponta qual foi o local da instalação

da Comissão Mista no Ladário “[...]quando foi utilizada a área portuária, então denominada

1 Filho de Tancredo Gomes de Campos Vianna, o primeiro chefe de estação em Ladário.

4

Porto de Malheiros, adjacente a leste do arsenal. Ali esteve o canteiro de obras da Comissão

Mista, na construção dos primeiros vagões e gôndolas, lavra dos dormentes e demais artefatos.”

Ao ser instalada em Ladário proporcionou aquela localidade uma oportunidade de

crescimento. É de se notar no relato do senhor Eury2 - ex-torneiro mecânico da marinha – que

a chegada da estrada de ferro foi significativa para a localidade do Ladário.

Há um tempo atrás veio a Comissão Mista. Veio para fazer a estrada de ferro Brasil-

Bolívia que foi determinada pelo presidente Getúlio Vargas. Veio pra cá essa

sociedade Brasil-Bolívia. Isso já foi no começo do ano de 39/40 por ai. Isso eu me

lembro. Justamente na mesma época vieram inaugurar o dique seco na marinha. O

dique já foi outra Companhia que veio fazer o dique, foi a Raja Gabaglia. Então dessa

Comissão Mista ai veio uma empresa, a Companhia de São Paulo, Sotema (Sociedade

Técnica de Materiais) que vieram para montar os vagões aqui em Ladário. Ai veio

Getúlio Vargas para inaugurar um trecho da Brasil- Bolívia. Não me lembro o trecho

que foi, mas ele veio para inaugurar o primeiro trecho. (EURY L. MACÊDO,

entrevista concedida em 2015).

Fica evidente a época em que foi instalada a oficina da Comissão Mista no distrito do

Ladário, cuja figura do presidente marcou a memória dos moradores daquela localidade que

além de inaugurar a estrada, inaugurou o dique seco no sexto distrito naval da marinha.

Apesar disso, existe nas recordações dos entrevistados, a existência de trilhos de estrada

de ferro anterior a instalação da Comissão Mista no Ladário, conforme destaca:

Anterior a Comissão Mista tinha aqui em Ladário que tá até hoje em dia pode ver aqui

perto da igreja tem uma locomotivazinha. Existiam mais duas. Essa estrada de ferro

não cruzava Corumbá. Essa empresa que não era do meu tempo, uma empresa inglesa

veio pra cá para explorar o minério e trouxeram essas locomotivas e assim estenderam

a estrada férrea. Ai subiu por aqui, chegou por aqui assim e subia. Encontrava por

aqui e ia sair lá. Bom, agora depois quando veio a essa Brasil-Bolívia ai que estendeu

e foi pra Bolívia ai que subiu os trilhos. (EURY L. MACÊDO, entrevista concedida

em 2015).

O relato do seu Eury aponta para uma ligação de estrada que existia na região do

Urucum, construída por uma empresa de origem inglesa a qual utilizava de uma locomotiva

para efetivar o transporte de minério que era descarregado no porto do Ladário.

2 Militar de marinha aposentado.

5

Decorrente disso, haviam duas locomotivas que acabaram sendo reaproveitadas pela

Comissão Mista, chegando a se tornar trem de passageiros. Na fala do senhor Edelberto Gomes

isso torna-se perceptível:

Essa locomotiva um, ela que levava lá dentro os vagões para desembarcar, para

descarregar. É bom relembrar que essa locomotiva um e a dois quando chegou aqui a

Mista em 1937, ela já existia, não em Ladário mas no morro do Urucum. Ela fazia

parte de uma mineradora inglesa que tinha, não me lembro o nome sabe, e ela tinha

falido, e ficou essa locomotiva. Ela abandonou lá a mineração e essa locomotiva fazia

o transporte de vagãozinho pequenininho de lá do Urucum até Mista né. Antes tinha

um trilho que descia ali onde hoje em dia tem aquele embarcador de gado lá na Mista.

Ela vinha do urucum com minério e embarcava ali. Só que ali antigamente, o porto,

não é como hoje, tudo aterradinho. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA,

entrevista concedida em 2015).

Os relatos de ambos se convergem ao afirmar que as locomotivas pertenciam a extinta

firma inglesa que fazia os trabalhos na região do Urucum e que posteriormente foram

aproveitadas pela Comissão Mista Brasil-Bolívia. Significa que já haviam trilhos construídos

naquelas imediações para o transporte do minério que chegava até o porto do Ladário para ser

embarcado e transportado para outras regiões.

A promessa de emprego

A grande chegada de migrantes na região do Ladário se deu, de acordo com os relatos,

devido as notícias de oferta de emprego que circulavam em todas as regiões do Brasil. Uma

oferta promissora que atraía os olhares de muitos conforme destaca o senhor Edelberto Gomes

Campos Vianna

Os jornais da época faziam muita propaganda aqui de uma estrada de ferro que estava

nascendo na região e que precisava de centenas de funcionários. A essa procura meu

pai veio. Meu pai foi chefe de estação no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, era

ferroviário. Como aqui era uma empresa ferroviária do governo federal, aqui viemos.

Chegamos aqui em 1942. Uma viagem de quatorze dias e quatorze noites. Hoje em

dia se faz bem mais rápido, mas na época para começar a estrada, cada cidade que se

baldeava se demorava pra caramba. Chegando em Porto Esperança - porque a noroeste

não chegava aqui - então baldeava no Cidade Branca ou Fernandes Vieira. Eram dois

navios a vapor que faziam Porto Esperança-Corumbá. (EDELBERTO GOMES

CAMPOS VIANNA, entrevista concedida em 2015).

Foi exatamente à procura de emprego na construção da estrada de ferro que ligaria o

Brasil a Bolívia que a sua família, de origem mineira migrara para a região. Nesse sentido,

6

apontou como eram feitas as viagens um tanto demoradas, sobretudo no que diz respeito a

estrada que chegava somente até Porto Esperança, de onde eram feitas as baldeações em

vapores de transporte de passageiros.

Num outro relato, do senhor Marcionílio de Souza Carvalho3 que trabalhou como

artífice de mecânica4, isto é, para manutenção das máquinas, aponta que com 15 anos de idade

foi trabalhar na Comissão Mista Brasil-Bolívia como ajudante, onde trabalhou até o ano de

1962 (trabalhou até a data em que a estrada de ferro Brasil-Bolívia foi concluída, ou seja,

quando chegou em Santa Cruz de la Sierra de acordo com a previsão do projeto de construção).

Em sua primeira fala da entrevista já afirma a forma como conheceu o senhor Edelberto

Vianna

Quando eu tinha 18 anos conheci Edelberto lá na Bolívia porque o pai dele era da

Comissão Mista e ele trabalhava nas estradas. Tinha muitos brasileiros lá na Bolívia.

Comecei em El Carmem, ficamos dois anos em Roboré e mais dois em São José. Foi

em São José que conheci ele. Entrei como aprendiz de mecânica. (MARCIONÍLIO

DE SOUZA CARVALHO, entrevista concedida em 2015).

Muitos brasileiros eram mandados para trabalhar no lado Boliviano sendo lá o primeiro

contato estabelecido entre os dois ex-trabalhadores da estrada de ferro, ambos brasileiros.

Percebe-se a grande rotatividade de brasileiros, que por sua vez, tiveram oportunidade de

conhecer as cidades bolivianas ao longo do trajeto da estrada de ferro.

Local de moradia para os migrantes

A intensificação do movimento migrante foi acarretada a partir da oferta de emprego na

construção da estrada de ferro, por isso, explicou que muitos vieram com o objetivo de trabalhar

na referida estrada. Nesse sentido, destacou ainda as dificuldades enfrentadas pelos

trabalhadores

3 O pai era encarregado de restaurante porque ele era chefe de cozinha. O meu padrinho que trabalhava na

Comissão Mista convidou meu pai para trabalhar na Comissão Mista. Nesse sentido, trabalhou lá por 7 anos e 8

meses, 1 de novembro de 1963 foi transferido para marinha por que a Comissão Mista pertencia ao governo federal

repartição pública. 4 Botava as máquinas para funcionar e consertava ela. Trabalha com lenha na fornalha, que aquecia água e dava o

vapor, o vapor seco que fazia funcionar as máquinas.

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Essa estrada foi muito sofrida porque morreu muito nordestino, muito mineiro. Os

jornais da época notificavam que estava aqui uma grande empresa e era bom, mas

quando chegava aqui, a maioria morria de maleita de impaludismo. Era bem insalubre

o lugar e não tinham casas para pessoa morar, morava dentro de vagão como nós

moramos também dentro de vagão durante um bom período até que se fosse feito as

casas. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA, entrevista concedida em 2015).

Assinalou que não havia estrutura para suportar a quantidade de trabalhadores que

estavam na busca de emprego, tendo que se abrigar por sua vez, de modo temporário, em vagões

até que as casas fossem construídas.

Em se tratando disso, afirma que existiu a Pensão Mineira, que oferecia condições

mínimas de habitação para os trabalhadores enquanto aguardavam ser chamados para suas

funções. Apontou ainda a localização exata do local de funcionamento da Pensão Mineira

“Quando nós chegamos aqui, ali onde é o banco do Bradesco, ali era a única pensão que tinha

para os migrantes que chegava. Chamava Pensão Mineira. Ali nós ficávamos, para aguardar um

outro transbordo.” (EDELBERTO VIANNA, 2015).

A precariedade em lugares para atender a demanda de trabalhadores era enorme, mas

foi sanada a partir do momento que foram construídas as casas no entorno da oficina que

consequentemente se tornou o bairro mais bem estruturado do Ladário.

No que diz respeito ao lado estrangeiro ressaltou o lado obscuro do trabalho na

construção da estrada de ferro “A Bolívia tinha a parte pantanosa sabe, muitos pântanos. A

época que ficamos lá, ficamos doentes, tivemos que vir embora e viemos direto pra Ladário.”

As péssimas condições de trabalho acarretavam nas mortes contínuas de trabalhadores

sobretudo por questões de insalubridade do ambiente, sendo que o impaludismo era uma das

doenças mais comuns da época.

O trem de passageiros

Convém destacar que o trem de passageiros era a locomotiva um que pertenceu a

empresa inglesa e foi reaproveitado pela Comissão Mista Brasil-Bolívia conforme afirma “Que

antigamente tinha até trem de passageiro aqui, Corumbá e Ladário. O trem de passageiro da

Comissão Mista, não tinha um nome específico e inclusive vinha com os vagões tudinho

passageiro para levar em Ladário” (MARCÍONILIO CARVALHO, 2015).

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O referido trem fazia o transporte tanto dos trabalhadores ferroviários quanto dos

trabalhadores civis, como por exemplo, os militares da marinha. Meio de transporte esse que

durou até a finalização da estrada pois após entrega da estrada de ferro, o trem de passageiro

foi entregue para marinha e posteriormente devolvido para o município segundo senhor

Edelberto: “A locomotiva um foi entregue para marinha e o guindaste elétrico também. A área

o prefeito sem saber o que fazer, a marinha provisoriamente ficou ali, dando guarda, depois a

marinha desmanchou um galpão e fizeram a parte de estrutura do Clube da Camala”

Após a entrega da estrada de ferro, a locomotiva um foi entregue para Marinha e a

mesma, tempos depois devolveu para o município. Hoje ela integra um dos pontos turísticos do

município sendo conhecida como trem Maria Fumaça, exposta na praça de Nossa Senhora dos

Remédios.

A origem do bairro

A origem do bairro hoje denominado de Boa Esperança, de acordo com o relato do

senhor Edelberto está intimamente ligada a instalação da oficina da Comissão Mista no Porto

Malheiros

Na época da Comissão Mista, a Mista ali era o lugar mais lindo que Ladário teve sabe.

Promissor. Ali tinha um abatedouro público, tinha uma olaria, tinha cimento que

embarcava dia e noite no porto e aquele outro ponto que tem abandonado hoje em dia,

ele ia margeando o muro da marinha. A cerca da marinha hoje tem uma empresa de

navegação ali. Aquela ponte ali, ali tinha um guindaste com um vapor enorme que é

onde se desembarcava tudo que tem hoje em dia, que tinha na época da Comissão

Mista. Então as locomotivas vinham da Inglaterra, elas vinham de navio toda

desmontada e ali então que tirava ela do navio e montava ali mesmo. Então foi as

locomotivas grandes que vieram porque antes da locomotiva vir em Ladário já tinha

duas locomotivas perto de Corumbá. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA,

entrevista concedida em 2015).

Nota-se em primeiro lugar um saudosismo ao elencar as potencialidades do local que

tivera origem porque a oficina da Comissão Mista ali se instalara. Em sua descrição fica claro

a forma que o material chegava através do porto, onde foram montadas as locomotivas maiores

para transporte de cargas.

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Ainda em sua fala é perceptível a falta de reconhecimento por parte dos ladarenses da

importância que teve o bairro Mista naqueles tempos, se constituindo o melhor bairro que o

distrito tivera mas que acabou ficando no esquecimento

Muitas pessoas aqui em Ladário não sabem a origem da Mista e é um dos bairros mais

antigos e históricos de Ladário e hoje em dia abandonado. Ali funcionava armazéns,

funcionava posto médico – os melhores médicos –, tudo pela Comissão Mista.

Funcionava um grande restaurante que dava apoio a estrada de ferro e tinha uma boa

infraestrutura. Tinha as casas de todos os funcionários, tinha serviço de água, de luz

própria da Comissão Mista – que Ladário não tinha energia 24 horas, a energia era

seis horas ou dez horas por dia, nada mais – e a Mista amanhecia com energia pois

tinha um grande motor. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA, entrevista

concedida em 2015).

Toda estrutura de serviço de abastecimento de água, de fornecimento de energia elétrica

e demais mecanismos eram vivenciados pelos moradores da Mista. Uma estrutura que Ladário

não usufruiria se ali não tivesse sido instalada a oficina da Comissão Mista Brasil-Bolívia.

Segundo os relatos, o local foi um ponto importantíssimo de cargas e descargas e construção de

locomotivas para o transporte de todo tipo de material necessário para a sustentar a estrada de

ferro.

No que tange a questão de boa moradia e qualidade de vida, o senhor Marcionílio coloca

que em 1956 quando foi para Ladário, ficou morando na Comissão Mista “Quando vim em

1956, fiquei em Ladário, morando na Comissão Mista. Mesmo depois que parei de trabalhar na

Comissão e fui trabalhar na marinha, fiquei na morando na Mista até 1975. O pessoal da

Noroeste também tinha direito a morar na Comissão Mista”.

Ao que parece não haviam restrições quanto a permanecer na Mista após a entrega da

estrada de ferro e o fim da Comissão Mista que de acordo com o senhor Marcionílio era:

Essa Comissão Mista era uma minicidade, tinha cinema, luz elétrica e restaurante que

fornecia a comida para os trabalhadores. Tinha as casas que a Comissão Mista fez. O

cinema acontecia uma vez por semana, no restaurante. Coisa que Ladário não existia

na época. Ladário não tinha cinema nem luz, só no lampião. (MARCIONÍLIO DE

SOUZA CARVALHO, entrevista concedida em 2015).

Demonstra que a Comissão Mista possuía uma estrutura boa para o distrito do Ladário

que não desfrutava de muitos recursos. Até mesmo contribuiu com o fornecimento de energia

elétrica por meio de um gerador para a marinha. Havia uma grande comunicabilidade entre a

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Comissão Mista e a Marinha, tornando-se evidente sobretudo, após o fim dos trabalhos da

Comissão Mista Brasil-Bolívia, na qual trabalhadores foram reaproveitados pela Marinha.

Reaproveitamento dos funcionários da Comissão Mista Brasil-Bolívia

A inauguração da estrada de ferro acarretou no fim da Comissão Mista Brasileiro

Boliviana. A construção da estrada de ferro que ligava o Brasil a Bolívia foi feita em

aproximadamente 20 anos e assim a Comissão se extinguiu. Foi um evento que promoveu uma

verdadeira festa entre brasileiros e bolivianos conforme descreve:

Quando a Comissão Mista acabou e entregamos ela lá em Santa Cruz em 1963,

entregamos essa estrada com muita festa. Os bolivianos ficaram muito felizes com a

entrega da estrada. Como já disse o Brasil fez várias cidades para a Bolívia. Uma

amizade muito grande. Naquele tempo não tinha esse negócio de passaporte, boliviano

e brasileiro entrava e saia da Bolívia e não tinha também esse problema de droga que

tem hoje, a gente nem conhecia o que que era isso. A Bolívia era outra né, então a

fronteira também era outra, não tinha violência. Era um lugar de amizade e a Comissão

mista, lá em Ladário era festiva por que os bolivianos gostavam muito de festa né,

tempo para baile. Então o pessoal descia lá para ver os bailes. (EDELBERTO GOMES

CAMPOS VIANNA, entrevista concedida em 2015).

Em seu relato, é notório a relação de amizade e a boa convivência entre os trabalhadores

dos dois países, chegando a ter uma confraternização que reuniu todos. Ressaltou também a

importância da livre circulação nos dois países favorecendo uma relação amistosa no período

em que a estrada estava sendo construída.

Parece que a área, com o fim dos trabalhos, não foi devolvida ao município num

primeiro momento, somente em 1963/64. Nesse intervalo, a área da oficina foi alvo dos

depredadores

A Mista quando acabou ficou aquelas casas, aquele galpão tudo montado, ela só levou

os objetos que tinha dentro, os maquinários que entregou para a Bolívia. Não sabia o

que fazer com a área, era só anexar ao município. O prefeito ficou observando a turma

destruindo, cada um destruía, vinha destruía desmanchava casa, levava material, cada

um fazia aquilo que queria. Foi onde a Marinha entrou para por ordem, então os

fuzileiros navais ficavam dando serviço dia e noite ali para evitar depredação.

(EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA, entrevista concedida em 2015).

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A área ficou inutilizada es casas abandonadas ou mesmo desmanchadas. Parece que não

havia interesse em ficar morando ali tendo que a marinha intervir na situação por um tempo até

a área ser entregue para a Noroeste do Brasil.

De acordo com o senhor Edelberto, os moradores da Mista ficaram desamparados

Cortou a água, cortou luz, cortou tudo. Nós ficamos desamparados ali pegando água

no rio, sem luz elétrica, sem nada, compreendeu? Ficou abandonado. Ninguém sabia

o que fazer. A prefeitura não urbanizou, não procurou abrir rua, aquelas casas para

passar para prefeitura como foi que Corumbá fez e outras cidades fizeram. Não. Ficou

lá. Foi ficando em decadência, a Mista foi acabando, as casas foram virando

abandonada. Ali ele entregou para Noroeste do Brasil. A noroeste passou a cobrar

aluguel dos moradores como se ela fosse a dona do local. Aquilo era para ser da

prefeitura e a Noroeste começou a cobrar aluguel. Eu me revoltei contra aquilo, falei

eu não vou pagar. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA, entrevista concedida

em 2015).

Situação que explana e aponta um sentimento de revolta tendo em vista a aparente

“inutilidade” da área que fez trazer problemas aos moradores. O município se eximiu da área,

ao passo que, a Noroeste em sua intervenção, acabou cobrando taxas até então inexistentes.

Problema que foi resolvido com a intervenção do governo estadual por meio da mobilização

dos moradores através de ofício. Nesse sentido, a mobilização proporcionou as estruturas

necessárias como o serviço de saneamento e serviço de eletricidade.

E os trabalhadores da extinta Comissão Mista?

Pelos relatos, nota-se que houve o reaproveitamento dos trabalhadores como, por

exemplo, os mecânicos (de motor a diesel), torneiros, fundidores e outros. A grande maioria

dos trabalhadores foram reaproveitados pela marinha, alguns foram para Noroeste, Bacia do

Prata, para Cuiabá no IBGE

O governo federal então fez a integração do povo, aproveitar os funcionários da

Comissão Mista né, que trabalharam na Bolívia. Então foi uma parte pra marinha,

outra parte por que eram funcionários federais né, pra polícia federal, outro pra receita,

correio, ministério do trabalho, então foi tudo redistribuído, eu fui pra marinha. Fomos

entre 142 funcionários pra marinha, sabe. A marinha na época, ela não tinha estrutura

para pegar tanta gente. (EDELBERTO GOMES CAMPOS VIANNA, entrevista

concedida em 2015).

De todo modo, a grande maioria dos trabalhadores não ficaram desamparados porque

houve uma preocupação de reaproveitamento dos funcionários. A marinha só não pode

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reaproveitar todos porque era um quantitativo grandioso e não haveria estrutura, nesse sentido,

foi feita a distribuição entre as repartições ligadas ao governo federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do trabalho com as fontes orais, tornou-se perceptível que a Comissão Mista

Brasil-Bolívia foi um fator de desenvolvimento para o distrito do Ladário. Foi ela, a responsável

por fornecer a energia elétrica, por exemplo. Contribuiu com mecanismos estruturais e

avançados do qual o distrito não dispunha. O fato do entorno da oficina ter toda uma estrutura,

era considerada pelos ex-trabalhadores uma “minicidade” dentro do distrito que seria capaz de

atender a tudo aquilo que um morador necessitasse.

Em vista disso, da mesma forma que a “minicidade” foi instalada com a Comissão

Mista, foi com ela encerrada. A “minicidade” só durou o tempo que a Comissão Mista realizou

seus trabalhos, após esse período, ficou largada ao abandono gerando um sentimento de revolta

daqueles que lá moravam. Hoje, só sobrou resquícios do que foi um dos melhores bairros que

o distrito do Ladário possuiu no século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Editora Fiocruz/ Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundação Getúlio Vargas, 2000. 204p.