a influÊncia da civilizaÇÃo (?) na ancestralidade … · palavras-chave: migração. rondônia....

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A INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO (?) NA ANCESTRALIDADE DO POVO INDÍGENA PAITER 1 SURUÍ Catia Cristina da Silva 2 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar como o processo de colonização influenciou na tradição cultural dos hábitos e costumes do povo indígena Paiter Suruí, em especial dos reflexos no ritual da pajelança, que é caracterizada como uma série de rituais que o pajé 3 realiza com o objetivo específico de cura e magia. Ao final, apresenta o Museu “Paiter A Soe”, construído há um ano na Aldeia G̃ apg ̃ ir 4 , uma das mais populosas dessa etnia, com a finalidade de preservar a memória identitária da cultura Suruí. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, estudo de campo nas Aldeias Amaral e Lapetanha no município de Cacoal-RO e entrevistas. O estudo demonstrou que, devido influência das missões religiosas, grande parte dos Paiter Suruí foi evangelizada e a ancestralidade imaterial, especificamente os rituais de cura e magia realizados pelos pajés, foi gradativamente extinta. Palavras-chave: Migração. Rondônia. Indígena. Tradição. Suruí. 1 INTRODUÇÃO O povo Paiter Suruí tem uma história ancestral bastante rica, permeada de simbolismos e rituais. As danças, pinturas, confecção de artesanatos, caça, pesca, entre outros, são hábitos e costumes típicos da cultura dessa etnia. Sua história foi tradicionalmente transmitida de geração em geração, pelos anciãos, através de narrativas e memórias preservadas pela tradição oral. Em Cacoal, cidade localizada na região centro-sul do interior de Rondônia, concentra-se o maior número de indígenas Paiter Suruí. O universo bastante rico e a 1 Paiter significa “Gente de Verdade” ou “Povo Verdadeiro”, autodenominação do povo Suruí. 2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. 3 Indivíduo responsável pela condução do ritualismo mágico a quem se atribui a autoridade xamanística de invocar e controlar espíritos. Chefe de pajelança. 4 G̃apg ̃ ir é nome de um dos clãs originais do povo Paiter Suruí. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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A INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO (?) NA ANCESTRALIDADE DO POVO

INDÍGENA PAITER1 SURUÍ

Catia Cristina da Silva2

RESUMO:O presente trabalho tem como objetivo analisar como o processo de colonizaçãoinfluenciou na tradição cultural dos hábitos e costumes do povo indígena Paiter Suruí, emespecial dos reflexos no ritual da pajelança, que é caracterizada como uma série de rituaisque o pajé3 realiza com o objetivo específico de cura e magia. Ao final, apresenta o Museu“Paiter A Soe”, construído há um ano na Aldeia G̃apg̃ir4, uma das mais populosas dessaetnia, com a finalidade de preservar a memória identitária da cultura Suruí. A metodologiautilizada foi pesquisa bibliográfica, estudo de campo nas Aldeias Amaral e Lapetanha nomunicípio de Cacoal-RO e entrevistas. O estudo demonstrou que, devido influência dasmissões religiosas, grande parte dos Paiter Suruí foi evangelizada e a ancestralidadeimaterial, especificamente os rituais de cura e magia realizados pelos pajés, foigradativamente extinta.

Palavras-chave: Migração. Rondônia. Indígena. Tradição. Suruí.

1 INTRODUÇÃO

O povo Paiter Suruí tem uma história ancestral bastante rica, permeada de

simbolismos e rituais. As danças, pinturas, confecção de artesanatos, caça, pesca, entre

outros, são hábitos e costumes típicos da cultura dessa etnia. Sua história foi

tradicionalmente transmitida de geração em geração, pelos anciãos, através de narrativas e

memórias preservadas pela tradição oral.

Em Cacoal, cidade localizada na região centro-sul do interior de Rondônia,

concentra-se o maior número de indígenas Paiter Suruí. O universo bastante rico e a

1 Paiter significa “Gente de Verdade” ou “Povo Verdadeiro”, autodenominação do povo Suruí.

2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestranda em DireitosHumanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

3 Indivíduo responsável pela condução do ritualismo mágico a quem se atribui a autoridade xamanística deinvocar e controlar espíritos. Chefe de pajelança.

4 G̃apg̃ir é nome de um dos clãs originais do povo Paiter Suruí.

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2proximidade com a realidade cultural urbana gerou o interesse de realizar o presente

trabalho, que tem como objetivo apresentar elementos históricos da etnia Paiter Suruí e

abordar algumas mudanças culturais ocorridas após o contato e processo de colonização,

em especial, sobre a pajelança.

Neste sentido, apresento na segunda seção a contextualização histórica do processo

migratório no Estado de Rondônia e seu impacto no modo de vida desta etnia, cujo contato

oficial ocorreu em 1969 e destacou-se como um período de muitos conflitos e mortes na

região.

Na terceira seção destaco aspectos culturais da ancestralidade Paiter Suruí e

elementos históricos relatados pelos anciãos dessa etnia que encontram-se memorizados no

livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, obra publicada em 2016 e uma das

fontes de pesquisa deste trabalho, além do estudo de campo e entrevistas.

E por fim, na quarta seção, apresento o Museu Paiter a Soe, idealizado pelo jovem

Luíz Suruí e construído há aproximadamente um ano na Aldeia G̃apg̃ir, no município de

Cacoal. O objetivo do museu é manter viva a memória cultural dos hábitos e costumes do

povo Paiter Suruí.

2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: MIGRAÇÃO E POVOSINDÍGENAS

No século XIX os acordos políticos entre fronteiras dos governos do Brasil e países

vizinhos foram firmados sem considerar os povos originários da amazônia ocidental, nos

quais “rios, montanhas, florestas, aldeias, povos indígenas foram divididos entre os países

como se fossem coisas, sem espírito, sem alma.” (SURUÍ et al, 2016, p. 241). A

administração laica e as missões eclesiásticas eram as principais formas de dominação do

território.

No começo do século XX, a construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e a instalação

das linhas telegráficas chefiada por Marechal Cândido Mariano Rondon, que ligava o sul e

sudeste ao norte do país, provocou um intenso fluxo migratório na região, resultando em

graves conflitos e mortes de indígenas e colonizadores.

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3Os Suruí foram os que mais sofreram no processo de colonização em Rondônia, já

que ocupavam tradicionalmente as margens da BR-364, onde hoje é o município de

Cacoal. Nesse sentido, destaca-se a narrativa de G̃athag Suruí:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 74.

Bem depois de conviver com meu pai, dentro da tradição, bem depois disso eucomecei a perceber a mudança, o tempo do medo. Esse tempo do medo chegouquando outros povos indígenas nos perceberam. Os yara ey5 também nosperceberam. Eles trouxeram o medo […] Eu fui para ver como era. Era apenasum caminho largo, muito aberto, sem movimento, sem carro. O caminho seguia abeira do rio. Foi ali que ouvimos um barulho muito alto, assustador, que eununca tinha ouvido antes. Parecia até que fazia a terra tremer […] Então vimosum trator muito grande, derrubando as árvores, arrastando a floresta. Vimos umtrator abrir uma trilha muito larga. Nós ficamos muito assustados com aquilo. Foiassim que eu vi o trator abrindo o caminho para os carros, abrindo a BR 364.Nós vimos isso pela primeira vez. Eu e meus pais vimos os yara ey pela primeiravez (SURUÍ et al, 2016, p. 75 e 77).

O intenso fluxo de pessoas, advindas de diversas regiões do país, demandou a

necessidade urgente de proteção dos povos indígenas, criando-se em 1910 o Serviço de

Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTIN que, oito anos

depois, passou a ser denominado Serviço de Proteção ao Índio – SPI. O principal objetivo

desse órgão era prestar assistência e promover a integração, cultura e respeito às terras dos

indígenas, mas sua atuação interferiu significativamente na tradição deste povo, de modo

que populações inteiras foram deslocadas para liberação de terras que seriam destinadas à

5 Yara é o não indígena, o branco. A forma yara ey é usada como plural.

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4colonização e infraestrutura. Um documento da época explica como se deu o contato com

os povos indígenas:

As táticas e técnicas de contato com povos indígenas, empregadas nas atividadesde atração e pacificação do SPI, foram paulatinamente desenvolvidas porRondon, no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final doséculo XIX. Eram práticas filiadas a uma longa genealogia que tinha origem noscontatos dos jesuítas com os povos indígenas desde o séc. XVI.

Uma das principais táticas, em um cerco pacífico de povos indígenas (Lima,1995), era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor deconfiança. Nas atividades de atração foram adotadas as seguintes técnicas:

1. A turma de atração deveria ser constituída por trabalhadores esclarecidos arespeito dos problemas de contato;

2. Chefe da equipe experiente no trato com os índios;

3. Participação de índios do mesmo tronco linguístico dos índios arredios paratrabalharem como guias e intérpretes;

4. Equipe de atração instalada dentro do território indígena;

5. Construção de um posto indígena protegido, além da plantação de roçado;

6. Exploração das redondezas do posto indígena protegido, conhecendo matas,rios e tapiris6;

7. Exibição de armas de fogo, diante de qualquer ataque de índios hostis,demonstrando que a equipe tinha poderio que não seria usado contra o grupo;

8. Instalação de tapiris com presentes, distribuindo-se os índios intérpretes pelasmatas. As trocas de presentes estabeleciam a fase inicial de “namoro” com osíndios arredios;

9. Após o contato inicial, a pacificação era consolidada com amplaconfraternização. Entretanto, se houvesse algum incidente grave, poderia ocorrero colapso da atividade de atração7.

Contato com o branco. Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/846. Acesso em: 5 ago. 2017.

6 Tapiri é uma estrutura de abrigo com caráter provisório que serve tanto para se proteger da chuva, comotambém para breve permanência dos brancos para deixar os presentes.

7 Fonte: http://www.funai.gov.br/index.php/todos-presidencia/2164-o-servico-de-protecao-aos-indios?start=1

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5Contudo, devido graves problemas de corrupção denunciados na época, foi criada

em 1967 a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em substituição ao SPI. Este tempo

ficou marcado como um período de muitas mortes de indígenas e não indígenas, noticiados

nos jornais que enfatizavam a necessidade de acelerar o processo de pacificação para evitar

que os indígenas fossem dizimados pelos milhares de garimpeiros que se encontravam na

região.

Nós não queríamos virar branco, yara. Mas não tivemos outra saída. Era a únicachance de ficar vivos, porque soubemos que esses yara ey estavam defendendonosso povo, davam roupa, comida, facão, remédios para as doenças. Eram maisamigos que os outros índios inimigos. Por causa do medo das guerras, tivemosque nos aproximar dos yara ey. Se nós tivéssemos bem, felizes, duvido quetivéssemos ido ao encontro deles, nós não iríamos usar roupas, chegar até osyara ey. (SURUÍ et al, 2016, p. 80)

A documentação sobre os massacres é escassa e são mais enfáticas quanto aos

ataques sofridos pelos não-índios do que os sofridos pela população indígena. Segundo

Mindlin (1985, p. 20), o serviço de proteção da FUNAI foi importante para defender o

povo indígena, mas não suficiente para conseguir conter os massacres. Embora os

documentos da época fossem enfáticos ao registrar os ataques violentos por parte dos

indígenas, estes sofreram violência muito maior, sendo que o trabalho de proteção

apontava mais à necessidade de acabar com os ataques dos índios que do desejo de evitar

seu extermínio (1985, p.19).

A partir das décadas de 60 e 70 o crescimento na região de Rondônia aconteceu de

forma bastante acelerada, época em que os incentivos fiscais e os grandes investimentos do

governo federal estimularam a migração. Disto, o acesso fácil e barato à terra atraiu muitos

empresários interessados em investir na agropecuária e indústria madeireira. A descoberta

do ouro e cassiterita também contribuiu significativamente para o aumento populacional,

sendo que entre 1960 e 1980 o número de habitantes passou de 70 mil para 500 mil, de

modo que em 1981 Rondônia ganha a condição de Estado.

Oficialmente, o primeiro contato com os Paiter Suruí ocorreu em 1969, através da

FUNAI, quando seus ancestrais migraram da região de Cuiabá para fugir dos yara ey. Esse

período ficou conhecido como o “Tempo das Correrias”.

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6O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, criado em 1970,

foi o executor dos projetos de colonização e responsável pela demarcação e distribuição de

terras para os colonos migrantes de diversas regiões do país que penetravam a floresta,

grande parte originária do Centro Sul.

Nesta época, a ocupação da área no entorno da Terra Indígena Sete de Setembro,

área tradicional dos Paiter Suruí, intensificou-se, dando origem ao assentamento dos

colonos na então chamada “vila de Cacoal”, região da amazônia ocidental.

Neste período os ataques se tornam mais raros e os indígenas passam a ser cada vez

mais colonizados e confinados às áreas reservadas. Segundo Mindlin, “os massacres

haviam passado a ser de outro tipo”. (1985, p.23)

Desde então, elementos da cultura indígena dos Paiter Suruí foram sendo

gradativamente influenciados por parte dos não indígenas, de maneira que muitos hábitos e

costumes tradicionais dessa etnia se perderam.

3 OS PAITER SURUÍ: HISTÓRIAS, RITUAIS E ESPIRITUALIDADE

A Terra Indígena Sete de Setembro, onde vivem os Paiter Suruí, está localizada em

uma região fronteiriça, ao norte do município de Cacoal-RO até o município de Aripuanã-

MT. O acesso à área se dá através das linhas8 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 14, pelo fato das aldeias

estarem distribuídas ao longo dos seus limites, tanto por questões de segurança quanto de

aproveitamento de antigas sedes de fazendas deixadas por invasores que se estabeleceram

dentro da área nas décadas de 70 e 80.

Abaixo, segue o mapa da localização da área:

8 A denominação de “linhas” é corrente na região, proveniente da marcação dos lotes dos projetos decolonização e expansão fronteiriça. Refere-se as estradas que dão acesso a lugares outrora inacessíveis, aomesmo tempo em que marcam geograficamente a área.

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Fonte: http://naturezadivina.org.br/textos/cultura-indigena/povos-surui/. Acesso

em 10 ago. 2017.

A homologação da terra ocorreu em 1983 e os Suruí, até então concentrados nessa

área, se dividiram por toda região. Até 2015, eram 25 aldeias espalhadas em uma área de

247.880 hectares demarcados e uma população aproximada de 1.350 pessoas. Atualmente,

segundo informação da FUNAI, são aproximadamente 1.500 indígenas localizados em 27

aldeias.

A cultura dos Paiter Suruí é riquíssima, com uma grande diversidade de rituais,

dentre eles o Mapimaí9, o Ngamangaré (roça nova), o Weyxomaré (pintura), o Hoeyateim

(festa em que o xamã controla os espíritos da aldeia), o Lawaãwewa (construção de casa

nova) e o Ytxaga (pesca com timbó). Entretanto, ao longo do tempo muitas festas e danças

tradicionais sofreram significativas alterações ou, até mesmo, foram abandonadas em

função dos conflitos ideológicos com as novas religiões introduzidas nas comunidades

indígenas. Disto, aspectos da cultura do não indígena foram gradativamente assimilados

pelos Paiter Suruí, dentre eles, datas comemorativas como natal, aniversários, etc.

(MARETTO et al, 2012)

9 Ritual da origem da humanidade, que reúne todas as pessoas da aldeia em torno da bebida, do alimento, decantos e danças, com trocas de presentes e favores.

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8A antropóloga Betty Mindlin, que viveu aproximadamente um ano nesta região com

os indígenas no início da década de 80, descreve que, apesar dos conflitos, as aldeias eram

permeadas por uma atmosfera de misticismo e espiritualidade, principalmente na época das

chuvas, momentos em que deitados em redes e aquecidos pelo fogo, os índios contavam

histórias e comiam iguarias típicas feitas de milho e caju. (Mindlin, 1985)

Maria do Carmo Barcellos, geóloga indigenista que reside em Cacoal há mais de

quarenta anos e conhecida como Maria dos Índios, conviveu desde o início dos nos 70 com

os Paiter Suruí nesta região. Em entrevista, ela apresentou um relatório de pesquisa

elaborado entre 2009 e 2010 pela Associação Metareilá, da qual fazia parte, onde constam

registradas muitas particularidades da história deste povo, como, por exemplo, a difícil

realidade vivida entre os anos 1971 e 1980, marcada como um período de mortalidade

extremamente alta devido a introdução de doenças desconhecidas, dentre elas o sarampo,

das quais o povo não teve resistência natural alguma e que quase dizimou essa etnia que

tinha uma população (estimada pelos próprios índios) de aproximadamente 5.000 pessoas.

O trabalho e convívio constante da geóloga com essa etnia contribuiu para a

elaboração do livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, publicado em 2016 e

lançado no mesmo ano na cidade de Cacoal. Esta obra, de conteúdo riquíssimo, retrata o

modo de vida dos Paiter Suruí através das narrativas dos anciãos, conforme relato de

G̃aami Anini Suruí:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 62.

À noite fazíamos festa. À noite o velho contava história, a história da origemdas gerações. Contava a história de Palob10, porque naquele tempo o velho jáfalava que existia deus. Ele não sabia ainda da existência de Jesus, mas falava

10 Palob é o grande pai criador.

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9que existia um criador que havia criado o céu e a terra, que havia criado oshumanos. Os velhos conheciam muitas histórias e aproveitavam o tempo paracontar essas histórias. Eles falavam também como se devia viver, porque pra nóstambém existem “pecados”. Ensinavam que não se deve matar o parente, pode-se matar o inimigo para se defender, mas não se pode procurar o conflito, fazer omal […] era a nossa lei: era proibido matar, proibido roubar, proibido mentir,acusar o outro, ter inveja. (SURUÍ et al, 2016, p. 65)

A cultura imaterial do povo Paiter Suruí, tema principal desta pesquisa, teve grande

influência dos primeiros missionários religiosos que se aproximaram da região norte a

partir da década de 70, através da missão evangélica americana Summer Institute of

Linguistics – SIL, que trabalha com traduções bíblicas para língua indígena. Contudo,

apesar do processo de evangelização dos povos indígenas iniciar-se nesta época, as

primeiras conversões ocorreram apenas dez anos depois, a partir de 1980, sendo que até a

década de 70, segundo Meireles (1983, p. 124), os Suruí “jamais se deixaram evangelizar

por missionários.” Hoje, a maior parte da população indígena Paiter Suruí converteu-se ao

cristianismo. Segundo G̃aami, o povo Suruí abandonou a dança, a cerimônia do pajé, o

mapimaí, e hoje tudo é considerado pecado. (2016, p. 172)

Abaixo, o indígena Itabira G̃apoi Suruí fala sobre a pajelança, principal ritual

religioso dessa etnia:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 110.

Como meu pai era pajé, ele fumava muito para se proteger, proteger a mãetambém. Eu peguei sarampo muito forte. Fui curado pelo espírito para estar vivoaté agora. Os espíritos ajudaram-me a me curar. […] Quando eu estava doente eusonhei. O irmão mais velho perguntava o que estava acontecendo comigo e eurespondia; “Eu estou morrendo”. Então eu vi uma mulher muito bonita, perto de

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10mim. Ela estava se escondendo, não mostrava o rosto. Ela tinha franja, oscabelos eram pretos e muitos longos. Ela ficou por trás de mim. Meu irmão nãotinha colar no pescoço, só colar na cintura e os objetos do pajé na mão. Ele ficouna minha frente, estava com o cigarro do pajé. […] No outro dia eu vi meu irmãoque estava ali me visitando. Perguntou-me como eu estava. Eu disse que estavacurado, porque o espírito havia me curado. Ele colocou em mim a pedra de cura,ysoah11, sinal do espírito em mim. Contei o meu sonho pra ele. Logo depois eledisse: Eu também estou ficando com febre, ficando doente. Ele piorou muitorápido, à noite estava muito mal, no outro dia estava morto. (SURUÍ et al, 2016,p. 114).

Na visita de campo que realizei na Aldeia Lapetanha, o ex-pajé Perpera Suruí (80

anos) relatou que já fez muitas curas através da pajelança. A conversa foi traduzida por um

jovem indígena residente na aldeia, pois Perpera tem dificuldade em falar nossa língua. Na

entrevista, ele contou uma história sobre o período em que ainda era pajé. Disse que certa

vez uma moça da aldeia estava praticamente morta, quando foi chamado pelos parentes

para fazer um rito de cura. Exemplificou, através de gestos, como se deu esse ritual: levou

as mãos justapostas até a boca, assoprou, esfregou e sobrepôs sobre o corpo da jovem

indígena, que retornou à vida.

Atualmente Perpera não realiza mais rituais de pajelança. Relatou que o motivo de

ter abandonado essa prática teria sido porque numa certa ocasião (não soube precisar há

quanto tempo) ele passou muito mal e achou que morreria, momento em que foi curado

através da oração de um parente que havia convertido-se ao cristianismo. Desde então,

decidiu abandonar os rituais da pajelança, “parô tudo, espíritu ruim”, e tornar-se cristão.

Hoje, ele é porteiro numa igreja evangélica localizada na sua aldeia, onde, de terno e

gravata, recebe os irmãos nos dias de culto.

Perpera relatou também que seu primeiro nome foi Yab-Lab, dado por sua mãe

desde a floresta. Após o contato com a FUNAI, passou a chamar-se Perpera Suruí, nome

que consta no seu documento de identidade. Hoje, é conhecido pelos irmãos da igreja

como Simão Pedro, que diz ser seu nome preferido.

O ex-pajé demonstra ter assimilado muito da cultura evangélica, assim como

grande parte dos indígenas da Aldeia Lapetanha, onde existem duas igrejas cristãs.

Segundo censo realizado pela Associação Metareilá (2010), esta aldeia conta com uma

população aproximada de 90 pessoas.

11 Ysoah é uma pedra usada em ritual de cura e proteção.

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11Na Aldeia Amaral, próxima a Aldeia Lapetanha, a maioria da comunidade indígena

também é evangélica. Segundo estimativa da geóloga Maria dos Índios, atualmente

existem, no mínimo, 20 igrejas espalhadas nas aldeias do povo Suruí, sendo a maior parte

de denominação evangélica. Abaixo, algumas fotos tiradas durante a visita de campo:

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

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124 O MUSEU PAITER A SOE

Ainda que muitos elementos da cultura imaterial dos Paiter Suruí foram se

perdendo no decorrer dos anos, estes perseveram em manter viva a memória de alguns

hábitos e costumes do seu povo. Disto, buscando valorizar a cultura dos seus ancestrais,

construíram há um ano em Cacoal o Museu Paiter A Soe12, localizado na aldeia G̃apg̃ir.

Este projeto é um sonho antigo dos Paiter Suruí e foi idealizado pelo professor indígena

Luiz Wymilawa Suruí.

O museu é instalado em uma casa de modelo tradicional da aldeia, feita de palha de

babaçu e construída pelos indígenas jovens, que foram supervisionados pelos anciãos.

Expõe panelas de barro, cestos de palha, artesanatos e diversos utensílios de uso tradicional

do povo indígena, de modo os visitantes possam conhecer um pouco dos hábitos e

costumes dos Paiter.

O objetivo maior do museu é estimular a reflexão da comunidade acerca das

principais mudanças ocorridas na história da cultura indígena e preservar a memória dos

seus ancestrais. Segundo pesquisa realizada pela Associação Metareilá no ano de 2010, não

obstante as significativas perdas da tradição tribal sofridas nas últimas décadas, 79% das

famílias ainda produzem artefatos materiais, como colares, anéis, pulseiras, entre outros.

Mulher indígena confeccionando artesanato.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

12 Paiter A Soe significa “coisas de paiter”.

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Museu Paiter A Soe.

Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.

Museu Paiter A Soe.

Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.

A comunidade Paiter Suruí, ainda que tenha perdido muito da sua ancestralidade

imaterial desde a época do contato, persevera em manter alguns elementos de suas

tradições.

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145 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho apresentou alguns elementos da trajetória histórica do povo indígena

Paiter Suruí e buscou abordar os principais impactos sofridos por esta etnia desde o contato

com os não indígenas, em especial, acerca da cultura imaterial.

Disto, destaca-se que no início do processo de colonização de Rondônia houve

grande resistência dos povos indígenas Paiter Suruí para com as práticas religiosas trazidas

pelos missionários, porém, essa resistência não se perpetuou, pois a divisão em pequenas

aldeias acarretou no enfraquecimento cultural desses indígenas, de modo que parte da

cultura foi dizimada e que um dos seus principais ritos religiosos, a pajelança, foi extinto.

Neste sentido, embora a Constituição Federal de 1988 reconheça aos índios o

“Direito a Diferença”, assegurando-lhes o respeito a organização social, costumes, línguas,

crenças, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,

conclui-se que tal reconhecimento alcançou tardiamente os Paiter Suruí.

Do exposto, é possível afirmar que os direitos constitucionalmente garantidos não

foram suficientes para alterar o processo de desculturalização que influenciou hábitos e

costumes deste povo, haja vista que sua ritualística imaterial foi significativamente

influenciada pelas missões religiosas.

Neste contexto, pelo menos quanto a cultura material, o Museu Paiter A Soe se

mostra como um mecanismo de resistência contra o esquecimento das riquezas culturais

dos Paiter Suruí.

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15REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF, Senado, 1988.

CARTA de Princípios e Ações Paiter Suruí– Disponível em: <http://www.paiter.org/parlamento_surui/>. Acesso em: 10 ago. 2017.

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