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A INDÚSTRIA CULTURAL E A LEITURA FÍLMICA: IMPLICAÇÕES DA RACIONALIDADE TÉCNICA PARA A FORMAÇÃO ESTÉTICA. FÁBIO JOSÉ ORSINI LOPES (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ). Resumo RESUMO O presente trabalho possui como plataforma inicial a evolução dos conceitos frankfurtianos de indústria cultural e semiformação cultural, inseridos no contexto do capitalismo contemporâneo, e sua relação com o processo formativo educacional. Parte–se de uma breve contextualização das propostas de análise calcadas na teoria crítica, afim de que se alcance a necessária atualização dos conceitos frankfurtianos. Em seguida, o trabalho busca identificar a transposição das categorias da indústria cultural e da razão instrumental para o processo formativo, buscando evidenciar o processo de subsunção das propostas de formação cultural ao padrão mercantilizado da indústria cultural e educacional. O trabalhao busca, ainda, analisar em que medida esta subsunção provoca consequências às possibilidades formativas, estéticas e emancipatórias, na medida em que imprime um formato de leitura racionalizado e massificado, próprio da lógica do “capital cultural“. Estaremos, portanto, por analisar a possível relação entre as atuais propostas formativas e os padrões de racionalidade instrumental que deram sustentação à industrialização dos bens culturais, e quais as conseqüências desse cenário para as capacidades e possibilidades de leitura dos signos culturais, notadamente os audiovisuais. Buscaremos, assim, depurar a relação entre indústria cultural e a prática formativa, buscando identificar as consequências da racionalização para as possibildades estéticas, de leitura e apreensão dos signos culturais. Palavras-chave: Indústria Cultural, Leitura Fílmica, Alfabetização Visual.

FÁBIO JOSÉ ORSINI LOPES

A INDÚSTRIA CULTURAL E LINGUAGEM FÍLMICA: IMPLICAÇÕES DA RACIONALIDADE TÉCNICA PARA A FORMAÇÃO ESTÉTICA

Maringá

Julho 2009

RESUMO

O presente trabalho possui como plataforma inicial a evolução dos conceitos frankfurtianos de indústria cultural e semiformação cultural, inseridos no contexto do capitalismo contemporâneo, e sua relação com o processo formativo

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educacional. Estaremos por analisar a possível relação entre as atuais propostas formativas e os padrões de racionalidade instrumental que deram sustentação à industrialização dos bens culturais, especificamente os audiovisuais, e quais as consequências desse cenário para as capacidades e possibilidades de leitura desses signos culturais.

Palavras-chave: Indústria Cultural, Semiformação cultural, leitura e interpretação dos signos audiovisuais, alfabetização visual.

INTRODUÇÃO

Em diferentes momentos e sob distintas iniciativas, o conjunto teórico filosófico que se convencionou intitular de Escola de Frankfurt vem passando por reiteradas avaliações do tempo, no afã de se conferir aos seus pressupostos a necessária e perseguida atualidade dos escritos frankfurtianos. As produções voltadas a tal exercício de atualização se mostram presentes e ricas, contribuindo significativamente para os debates atuais sobre a formação dos sujeitos.[1] No presente trabalho, parte-se dessa busca pela atualização dos conceitos de indústria cultural e semiformação, centrais na filosofia adorniana, para então discorrer sobre suas implicações às propostas formativas contemporâneas. A identificação entre o formato e raciocínio mercantis da indústria cultural e o processo de formação dos sujeitos constitui o alicerce central dos argumentos aqui considerados. Através do reconhecimento da extensão do formato da indústria cultural sobre as propostas formativas, este trabalho propõe reflexão sobre uma especificidade fruto deste cenário, qual seja: as implicações do modelo técnico-racional próprio da indústria cultural para a leitura dos signos e linguagens fílmicas. Uma vez reconhecido que as atuais sociedades convivem imersas em um conjunto de produtos audiovisuais, que veiculam randomicamente pelos mais diversos meios, as diversas capacidades e possibilidades de leitura desses signos se mostram centrais para qualquer debate pretensamente educativo.

A ATUALIZAÇÃO NECESSÁRIA - RELAÇÕES ENTRE O CAPITAL E INDÚSTRIA CULTURAL

Mesmo que o ânimo central deste trabalho não seja recuperar os princípios basilares dessa categoria de análise - a teoria crítica, convém minimamente conceituá-la. Perdoado o didatismo, pode-se sustentar que a chamada Escola de Frankfurt fora uma das propostas filosóficas mais significativas do século XX, surgida como denúncia e crítica das estruturas ideológicas dominantes, alicerçadas na evolução do capital. Movimento que teve seu epicentro no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, encabeçado por Max Horkheimer, e que se debruçava sobre um objetivo duplo: por um lado, a superação crítica do marxismo e da reflexão tradicional calcada nas filosofias idealistas da razão, ensejando a denúncia da própria razão instrumental; e, por outro, o radicalismo utópico de uma luta que almejava às possibilidades culturais emancipatórias, livres do controle da cultura administrada.

A atualização dos conceitos da teoria crítica possui um sem número de senões e ressalvas. Questões como a sistematização totalizada da cultura, as razões e

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funções ideológicas da cultura administrada, o aparato capitalista totalizante e massificante, despertam, não raro, posturas desconfiadas e reações apaixonadas. Ponto de partida coerente nas considerações que seguem pode ser encontrado na simples reflexão sobre o vocábulo "indústria cultural". Se, na maternidade desse conceito, a justaposição das expressões "indústria" e "cultura", kulturindustrie, possuía o escopo central de provocar, intencionalmente, estranhamento e choque, hoje pronuncia-se a mesma expressão com naturalidade inimaginável, como sendo um termo basilar do vocabulário contemporâneo semiculto. A indústria cultural parece ter transgredido a esfera de objeto sociológico para constituir-se em realidade per si, imanente ao tecido social. Constituída ideológica, econômica e fisicamente, tem, hoje, existência quase óbvia. Nada parece restar do caráter denunciativo e alarmante que coloriam o quadro frankfurtiano na gestação do conceito. De categoria filosófica de análise passou à objetividade concreta, onipresente e aparentemente insuperável. O triunfo econômico sobre a evolução e transmissão de produtos culturais constitui, hoje, quadro consensualmente estabelecido e reconhecido; a tal ponto que até se tornou objetivo de programas e ações governamentais e de instituições supranacionais. "Desenvolver a indústria cultural" é hoje meta de políticas públicas e planos de ação estratégicos. Frases como a citação utilizada por Hullot-Kentor, em seu artigo "Em que sentido a indústria cultural não mais existe"[2], nos auxiliam a compreender o atual estágio de desenvolvimento do conceito. O autor apresenta um excerto de um documento do governo chinês, ambiguamente reconhecido como a aurora do capitalismo moderno, apresentado à Organização Mundial do Comércio, OMC, no qual busca traçar o panorama do "estado de desenvolvimento da indústria cultural na China": "A China tem testemunhado um enorme desenvolvimento de sua indústria cultural, desde os anos 1990. Todavia, a indústria cultural na China é ainda muito incipiente se comparada a dos países desenvolvidos". Nesta breve passagem, torna-se clara a transmutação do conceito de indústria cultural. Nascido como intencional oximoro, o conceito transcendeu a esfera da denúncia; se, em sua gênese, apontava para a tecnicização dos bens culturais e para sua subsunção à lógica mercantil, agora representa todo o conjunto de produtos que impunemente se intitula e se "consome" como cultura. Sessenta anos depois, as palavras de Adorno e Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento", texto nuclear no edifício da filosofia crítica frankfurtiana, soam vaticínios: "O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural" [3].

As atuais propostas debatedoras da teoria crítica parecem se concentrar na relação entre o conceito original de indústria cultural e o desenvolvimento do sistema capitalista propriamente. A industrialização da cultura parece ter viabilizado e ratificado estratégias integradoras e legitimadoras, responsáveis pela formatação de padrões de consumo e interpretação social, suportes necessários ao desenfreio capitalista. Sistema que possibilitou (Dalbosco,2008)

"(...) uma estrutura socializadora, que ancora a pretensão autoritária de uma dominação tornada anônima na estrutura do eu do próprio sujeito, e uma cultura de massas fabricada industrialmente, que serve ao objetivo excludente de um consenso manipulado, (...) a um quadro assustador de uma sociedade sistematicamente integrada." (p. 187)[4].

Este casamento entre cultura e business representou um dos mais sólidos pilares da evolução do sistema de produção capitalista em praticamente todo o século passado. Fusões e aquisições empresariais conferiram à cultura a pecha de uma das grandes fontes de negócios bilionários pelo mundo. Produções culturais voltadas a públicos compradores, balizadas por planos de marketing, pesquisas de mercado, técnicas de vendas, especuladas a meia distância pelo capital investidor. No exercício de atualização a que se propõe este trabalho, mesmo que sob incontáveis "senões" à suposta universalidade da indústria cultural adorniana, no

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melhor modelo de sociedade dirigida e totalizada, a evolução deste sistema nos incita, hoje, a reconhecer ao menos duas condições: por um lado, este casamento entre capital e bens culturais mostra-se de prole fértil, o "mercado" é constantemente reinventado; e por outro, a característica central da indústria cultural neste início de século permanece, pois, assegurada: o caráter, a essência, a alma, segue sendo a relação mediada pelo capital. Cultura como mercadoria, vendável e submetida às regras e lógicas de mercado. Com Dalbosco (2008:193)[5] partilhamos a "hipótese de que as transformações da sociedade capitalista tardia e suas novas formas de legitimação não descaracterizam o fato de que as mais diferentes manifestações culturais continuam sendo transformadas em mercadorias e, enquanto tais, comercializadas com fins lucrativos".

A possibilidade de legitimar-se pela apropriação do talvez único mecanismo de transcendência e autonomia, ou seja, o desenvolvimento humano mediado pela absorção, apreensão e transformação da cultura viva, fora prontamente absorvida pelo raciocínio capitalista. A sublimação suplantada pela racionalidade e reprodutibilidade técnica. Essa a denúncia da teoria crítica, seja qual o seu momento histórico. O resultado desse processo de apropriação da cultura pela economia teria levado à pasteurização das possibilidades formativas e emancipatórias, à linearização e integralização dos bens e valores culturais. A consequência é que hoje tudo parece significar o mesmo, a mesma coisa; tudo parece simultaneamente crível ou fantástico, não importa; há sempre alguma verdade pronta para ser aceita de forma inquestionável. Renovadas "necessidades culturais" são prontamente satisfeitas, no melhor padrão de serviço a la carte, às avessas e administrado.

A INDÚSTRIA CULTURAL E O PROCESSO FORMATIVO

As implicações do desenvolvimento da indústria cultural para as ações e propostas formativas constitui temática recorrente nas análises frankfurtianas. Porém, nos dias atuais, a relação entre o desenvolvimento da indústria cultural e o processo formativo tem sido mais intensamente considerada.

De forma objetiva, o argumento defendido aqui é de que a estrutura e a intencionalidade mercantis presentes na evolução do conceito de indústria cultural faz-se sentir progressivamente nas propostas formativas contemporâneas. A formação esclarecida e esclarecedora, de raiz iluminista, no melhor sentido do esclarecimento kantiano, no processo de ajuste ao formato industrial definido pelo lucro, diluiu-se. A formação cultural burguesa, originalmente legitimadora e alicerce do poder dominante, ao transpor-se para a massa, alheia às aspirações culturais "sofisticadas" (mas, lembremos: liberta em seu tempo de trabalho pelo progresso técnico), deu-se pela homogeneização crescente das possibilidades culturais, culminando no que hoje conhecemos por cultura administrada. Processo irmanado à lógica de acumulação do capital, que possibilitou o manejo das "necessidades" culturais proletárias, ensejando o molde da semiformação cultural, o halbbildung adorniano, a formação conformadora. Iniciativas de formação em grande escala, festejadas muitas vezes com nomes como educação popular (pois entre seus argumentos estão a pretensa democratização do conhecimento e a facilitação ao seu acesso), as propostas formativas, também "industriais", produtos da assimilação da cultura pela indústria, prometiam a totalização e a integração sociais pela cultura conduzida. Promessas como a universalização da formação cultural, do acesso a bens e signos da cultura esclarecedora, se confirmaram crescentemente irresistíveis, anunciando a socialização pela apreensão da cultura. Processo com deformação congênita, pois o suposto acesso democratizado, sob regência do capital exploratório, não é nada senão a formatação pré-concebida de plateias inertes, formatadas para a assimilação dos produtos veiculados. O efeito alarmado

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pela teoria crítica aponta para a esterilização do potencial emancipatório originalmente contido em um bem cultural. Nas palavras de Adorno (1996)[6]:

"Para a consciência, as barreiras sociais são, subjetivamente, cada vez mais fluidas(...). Por inúmeros canais, se fornecem às massas bens de formação cultural. Neutralizados e petrificados, no entanto, ajudam a manter no devido lugar aqueles para os quais nada existe de muito elevado ou caro. Isso se consegue ao ajustar o conteúdo da formação, pelos mecanismos de mercado, à consciência dos que foram excluídos do privilégio da cultura...".(p.394)

O resultado dessa equação conhecida e tão exposta pela filosofia frankfurtiana é o engodo travestido de cultura, o logro, onde necessidades formativas e culturais são produzidas e reproduzidas, pois o fim mercantil é sempre um fim em si mesmo. A aparente inesgotável capacidade de reciclagem dessa indústria, o caráter novidadeiro, pretensamente criativo, auxilia a ocultar os argumentos cifrados, reais motivadores das produções mercadejadas. O alerta é de Adorno (1985):

"(...) o que se considera como progresso na indústria cultural, o insistentemente novo que ela oferta, permanece na obscuridade do sempre igual (homogêneo); toda mudança encobre um esqueleto no qual se muda tão pouco como na própria motivação do lucro, desde que tal motivação ganhou ascendência sobre a cultura".[7]

A teoria crítica, naquilo que melhor a caracteriza como crítica, tem auxiliado a desnudar não apenas a intencionalidade capitalista e lucrativa desse processo, mas, principalmente, a consequência corrosiva para a qualidade e efetividade das propostas formativas. Para Adorno, a "meia formação", produto da subordinação da cultura à lógica e funcionamento do capital, não se configuraria apenas em formação incompleta, posto que, quantitativamente, as possibilidades (in)formativas e culturais soam democratizadas; mas sim, e essencialmente, em anti-formação, que fatalmente conduziria o semiformado à heteronomia e desencontro de si. O travestimento falseado de cultura produziria o pior efeito contrário possível. O logro cultural e formativo a que é submetido o sujeito em formação, ao conformar, produz o reverso da emancipação iluminista. Nas palavras de Adorno (1996: 390): "Quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em categorias fixas (...), cada uma delas, isolada, coloca-se em contradição com seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma formação regressiva.[8]

A totalidade das conseqüências deste cenário para as possibilidades e finalidades genuinamente formativas talvez nunca venham a ser bem dimensionadas. O alerta da teoria crítica, por mais eloquente que seja, não parece conter o constante movimento de subsunção das propostas formativas ao raciocínio de mercado e à definição de preço para as possibilidades culturais. A receita padronizante, simplificadora e esquemática da indústria cultural parece ter encontrado nas propostas formativas terreno fértil para reproduzir-se ad infinitum. Fenômeno intensificado na última década, levando ao surgimento da expressão indústria educacional[9], para significar a condição em que se encontram as propostas formativas oficiais. A inclinação da indústria cultural para as simplificações e reducionismos, quando transposto, torna-se pródigo em produzir sistemas apostilados de ensino, com seus resumos literários e consensos fabricados. No Brasil, este cenário desenhou-se nitidamente nos últimos quinze anos. Reformas e propostas políticas formaram um cenário de franco alinhamento entre a chamada "Terceira Revolução Industrial"[10] e a formação educacional. Este momento se

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caracterizaria pela passagem da sociedade baseada no trabalho, mais especificamente, no emprego, para a sociedade do conhecimento, em que a mutação célere de cenários econômicos levaria à rápida produção e substituição de saberes, exigindo um trabalhador-cidadão apto à reciclagem profissional constante. Tal necessidade de atualização estaria desenhada com o mesmo pincel de criação das "necessidades" culturais. O sujeito em formação estaria fadado à reposição também constante de seu arsenal informativo como contraponto ao cenário de mutação do trabalho regido pelo capital. Como consequência, a formação passou a balizar-se pelas leis ferinas que envolvem mercadorias, serviços, preços, demandas. Projeto de formação substituído por plano de negócios. Para Gruschka (2008):

"Escolas e universidades atuam (...) há alguns anos na reorganização de um negócio que, por meio dos mais racionais empreendimentos, produz e disponibiliza mercadorias de sucesso. (...) Disso resultam surpreendentes analogias: estudantes universitários e escolares tornam-se clientes de um negócio, e para eles, mediante pagamento, serviços e produtos são oferecidos." (p. 176)[11]

Reformas importadas, "sugeridas" por organismos internacionais, legitimaram a aliança entre propostas formativas e as transformações do sistema de produção capitalista. Conceitos como competência e qualificação profissionais passam a ficar ancorados às propostas formativas contemporâneas, que acabam por adaptar-se às exigências desse contexto.

"Com isso, processos formativo-educacionais deixam de ter sua dinâmica e seu tempo próprios, sendo absorvidos pela lógica econômico-lucrativa, tornando-se prisioneiros de suas exigências. Torna-se evidente com isso a subordinação do significado da formação cultural (Bildung) e dos critérios de uma educação de qualidade à lógica da indústria educacional."[12]

A complexidade e imensidão das conseqüências deste quadro à formação dos sujeitos certamente ainda não são bem compreendidas. Os questionamentos são múltiplos e sinalizam para um triste cenário de formação corroída e danificada, essencialmente divorciada das razões humanas emancipatórias.

A SIGNIFICAÇÃO CORROÍDA E A ALFABETIZAÇÃO NECESSÁRIA

Propõe-se agora considerar a relação entre o padrão industrial das linguagens fílmicas e as possibilidades e capacidades de leitura dessas linguagens. A razão para este questionamento recai sobre o fato de as atuais linguagens audiovisuais, notadamente o cinema, conformarem exemplos esclarecedores do quadro até aqui exposto, de subsunção das propostas de formação a critérios mercantis. O objetivo é indagar sobre como o padrão de comunicação e significação audiovisuais do formato da indústria cultural dominante pode resultar em modelos de leitura e interpretação dessas linguagens e quais as necessidades e possibilidades educativas que advêm deste cenário.

Após seis décadas dos primeiros escritos adornianos sobre indústria cultural, hoje talvez seja adequado o reconhecimento de que, em sua totalidade, o grau de

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influência que as linguagens e produtos audiovisuais exercem nas sociedades contemporâneas nunca será facilmente compreendido. A inserção de bens e valores culturais no tecido social, bem como a fabricação de consensos e comportamentos mediados e midiatizados pelo conjunto das superestruturas de produção audiovisuais, possivelmente sempre resultarão em mais consequências do que qualquer propostas teórica possa apreender. A vigilância de Adorno (1986) já sinalizava:

"Que os filmes forneçam esquemas de modos de comportamento coletivo, não é algo que lhes seja exigido apenas adicionalmente pela ideologia. Pelo contrário, coletividade é algo que penetra até o íntimo do filme. Os movimentos que ele representa são impulsos miméticos. Antes de qualquer conteúdo e conceito eles animam os expectadores e os ouvintes a se movimentarem juntos, como num trem". (p.105)[13]

Impõe-se discutir em que medida a padronização da linguagem, consequência maior da soberania da técnica, ou seja, da racionalidade instrumental sobre as possibilidades formativas dos signos fílmicos, pode gerar também a formatação de um padrão pré-definido de leitura desses signos. Ou seja, indaga-se se a cultura administrada, no campo das atuais linguagens audiovisuais, pode se fazer refletir não apenas na reprodução ideológica de conteúdos, mas também na formação de leituras e leitores pré-concebidos, viciados e embebidos no padrão industrial tecnicizado. A questão central poderia ser assim resumida: o padrão da indústria cultural audiovisual, pela exata razão de ser padrão, ou seja, uma linguagem que responde a uma pauta pré-definida, inserida em uma cadeia extensa, envolvendo desde investimentos e estratégias de negócios às numerosas equipes multiprofissionais, estaria produzindo um efeito anestésico e modelador na leitura dos signos fílmicos. Na medida em que esta indústria especializa-se em um tipo de proposta narrativa, ou, na melhor das hipóteses, em alguns tipos, o expectador, simetricamente ansioso e receptivo ao padrão esperado, passaria também a condicionar sua capacidade perceptiva e interpretativa a esta faixa de sintonia. Um sistema, portanto. Ou ainda: um in put, referente ao nível de leitura e expectativa do sujeito em formação, identificado por técnicas de pesquisas de mercado e opinião, e um out put, relativo ao produto engendrado e oferecido às massas por canais distintos. A conformidade desta equação sugere que as capacidades e possibilidades de leitura limitem-se a uma mesma plataforma de linguagem, e não obstante evolução das tecnologias, tal evolução não se volta à ampliação de suas possibilidades significativas. Desta forma, o padrão técnico-racional impõe-se ele próprio como o símbolo maior destas linguagens. E tudo aquilo que escape a este padrão será lido como incomum, ou mesmo como desqualificado. A linguagem fílmica, sob o formato da indústria cultural, forçosamente mais sofisticada em tecnologias e recursos, acabaria por instituir um padrão de significação e leitura impositivo, posto que uma série de pré e pós-condições estruturais (tecnologias, investimentos, cadeias distributivas, etc.) lhe asseguram irremediável absorção dessas linguagens. O que faz com que as estruturas de narração que se choquem com este modelo soem, hoje, como resistências, com ares simultaneamente rebeldes e libertários. Segundo Adorno (1986):

"(...) no confronto com a indústria cultural, cujo padrão exclui o que previamente não tenha sido apreendido e mastigado, e que atua analogamente ao ramo dos cosméticos quando elimina rugas dos rostos, obras que não dominam inteiramente sua técnica e que, por isso, deixam passar algo de incontrolado, de ocasional, têm o seu lado liberador." (p.101)[14]

A hipótese aqui, desenvolvida sob a originalidade frankfurtiana, é de que: seguindo o raciocínio francamente industrial, as narrativas e linguagens audiovisuais contemporâneas respondem a um padrão determinado por objetivos de mercado, e

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que a extensão deste padrão também às propostas formativas, tanto na organização formal dos sistemas de ensino quanto nos conteúdos vendidos como culturais, aponta para consequências presumivelmente corrosivas. O efeito à leitura fílmica se mostra anestésico, posto que a padronização e formatação de linguagens implicam em possibilidades de significação também reduzidas e limitadas. Leituras e leitores pré-fabricados parece ser o resultado dessa equação. Assim, confrontadas com o atual cenário de casamento entre as propostas formativas e a lógica industrial educacional, as ferramentas de interpretação e análise defendidas pela teoria crítica frankfurtiana se mostram integralmente atualizadas. A utilização, em escalas cada vez maiores, de produtos e linguagens audiovisuais, especialmente o cinema e a publicidade, para finalidades pretensamente formativas, indica um campo de atuação fértil para a reflexão e intervenção críticas. Questões, portanto, que se impõem às propostas formativas, na medida em que as habilidades e competências de leituras das linguagens e signos audiovisuais constituem uma das ferramentas-chave na decodificação e apreensão dos bens culturais contemporâneos. É imperativo o reconhecimento pela conveniência de estudos voltados à identificação de padrões de leitura e interpretação dos signos fílmicos, e pela proposição de ações alfabetizadoras para a apreensão do universo das linguagens audiovisuais, tão incontornavelmente submetido à racionalidade técnica instrumental da indústria cultural. Cabe o questionamento, como educadores, críticos da cultura ou simples interessados na temática, sobre quais as reais possibilidades formadoras dos signos audiovisuais e se estão sendo minimamente alcançadas. A onipresença desses signos na cultura contemporânea, seja nos filmes, videoclipes, publicidade ou qualquer outra plataforma, reclama melhor trato e autoridade das propostas educativas e formativas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. W. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, T. W. Teoria da Semicultura. "Educação e Sociedade: revista

quadrimestral de Ciência da Educação". Ano VXII, n. 56. Campinas: Papirus, 1996.

ADORNO, T. W. Notas sobre o Filme. "Sociologia: T. W. Adorno". Gabriel Cohn

(org.) São Paulo: Ática, 1986.

DURÃO, Fábio Ackelrud; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre Fernandes (orgs.).

A indústria Cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008.

[1] Durão, Zuin e Vaz (orgs.), A Indústria Cultural Hoje, São Paulo: Boitempo, 2008.

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[2] Robert Hullot-Kentor. Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe; Indústria Cultural Hoje, pg. 21.

[3] Adorno e Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 104.

[4] Dalbosco: Problemas de atualidade da teoria crítica? Indústria educacional hoje (p. 187). A indústria Cultural Hoje. São Paulo: Boitempo, 2008.

[5] Idem, p. 193.

[6] Adorno, Teoria da Semicultura, em "Educação e Sociedade", trad. Newton Ramos-de-Oliveira et al., ano XVII, n. 56, Campinas: Papirus, 1996, pg 394.

[7] Adorno, Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

[8] Adorno, Teoria da Semicultura, em "Educação e Sociedade", ano XVII, n. 56, Campinas: Papirus, 1996, pg 390.

[9] Dalbosco, op. cit.

[10] Paulo Renato Souza, ex-ministro da Educação no Brasil, no livro A Revolução gerenciada: educação no Brasil 1995-2002 (São Paulo, Prentice Hall, 2005).

[11] Gruschka. Escola, Didática e Indústria Cultural (p. 176), em "A Indústria Cultural Hoje" São Paulo: Boitempo, 2008.

[12] Dalbosco. Op. cit. Pg. 194.

[13] Adorno. Notas sobre o filme. "Sociologia: T. W. Adorno", Gabriel Cohn (org.). São Paulo, Ática, 1986, p.105.

[14] Idem, pg. 101.