a improvisação livre como metodologia de iniciação ao ... · inserida em um idioma musical...

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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP A improvisação livre como metodologia de iniciação ao instrumento André Campos Machado ECA / USP – [email protected] Resumo: Este texto visa apresentar a estrutura de um caderno de iniciação aos instrumentos de cordas dedilhadas tendo como metodologia a livre improvisação. Ele foi desenvolvido por meio da realização de cinco oficinas nos conservatórios estaduais de música do triângulo mineiro, pela análise de partituras de músicas para instrumentos de cordas dedilhadas e do livro “Notação na Música Contemporânea” de Jorge Antunes. Para discussão sobre a livre improvisação serão utilizados alguns conceitos apresentados por Rogério Costa e Harald Stenström. Palavras-chave: improvisação livre, cordas dedilhadas, gesto instrumental. The free improvisation as a methodology of initiation into the instrument Abstract: This paper aims to provide the structure of a contract initiation to having plucked strings instruments as a methodology of free improvisation. It was developed by conducting five workshops in the conservatories of music from the state of Minas Gerais, the analysis of sheet music for plucked strings instruments and the book " Notação na Música Contemporânea " by Jorge Antunes. For discussion of free improvisation will use some concepts presented by Rogério Costa and Harald Stenström. Keywords: free improvisation, plucked strings, instrumental gesture. 1. Introdução Ao contrário da improvisação idiomática, ou seja, a improvisação que está inserida em um idioma musical definido como jazz, samba, rock, onde são necessários anos de estudo instrumental e teórico para que se consiga dominar o gênero musical a que se proponha improvisar; a improvisação livre, como o próprio nome sugere, está liberta de tais pré-requisitos, uma vez que não está amarrada necessariamente a nenhum princípio da tradição musical. Para Costa (2003), a improvisação livre é aquela que procura não se subordinar a nenhum idioma específico (e nem a eles se opor, necessariamente) - supõe-se que a ênfase recaia sobre o enténdre 1 que é uma intenção de escuta dirigida às características pré-musicais do som descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo. Neste sentido, a livre improvisação se dá mais propriamente num ambiente de escuta reduzida que é, segundo Schaeffer uma escuta que busca escapar tanto de uma intenção de compreender "significados" (semânticos, gestuais ou mesmo musicais no sentido de estar inserida em algum idioma) quanto de uma identificação de causas instrumentais. (COSTA, 2003: 38). Para a prática da livre improvisação o performer precisa portanto estar ciente das possibilidades sonoras e timbrísticas do seu instrumento, desprender-se da memória musical/motora, despir-se dos preconceitos e abraçar o novo, atentando-se aos vários sons ao seu redor, sejam eles oriundos de objetos do cotidiano, instrumentos musicais ou eletrônicos.

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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP

A improvisação livre como metodologia de iniciação ao instrumento

André Campos Machado ECA / USP – [email protected]

Resumo: Este texto visa apresentar a estrutura de um caderno de iniciação aos instrumentos de cordas dedilhadas tendo como metodologia a livre improvisação. Ele foi desenvolvido por meio da realização de cinco oficinas nos conservatórios estaduais de música do triângulo mineiro, pela análise de partituras de músicas para instrumentos de cordas dedilhadas e do livro “Notação na Música Contemporânea” de Jorge Antunes. Para discussão sobre a livre improvisação serão utilizados alguns conceitos apresentados por Rogério Costa e Harald Stenström.

Palavras-chave: improvisação livre, cordas dedilhadas, gesto instrumental.

The free improvisation as a methodology of initiation into the instrument

Abstract: This paper aims to provide the structure of a contract initiation to having plucked strings instruments as a methodology of free improvisation. It was developed by conducting five workshops in the conservatories of music from the state of Minas Gerais, the analysis of sheet music for plucked strings instruments and the book " Notação na Música Contemporânea " by Jorge Antunes. For discussion of free improvisation will use some concepts presented by Rogério Costa and Harald Stenström.

Keywords: free improvisation, plucked strings, instrumental gesture. 1. Introdução

Ao contrário da improvisação idiomática, ou seja, a improvisação que está

inserida em um idioma musical definido como jazz, samba, rock, onde são necessários anos

de estudo instrumental e teórico para que se consiga dominar o gênero musical a que se

proponha improvisar; a improvisação livre, como o próprio nome sugere, está liberta de tais

pré-requisitos, uma vez que não está amarrada necessariamente a nenhum princípio da

tradição musical. Para Costa (2003), a improvisação livre é

aquela que procura não se subordinar a nenhum idioma específico (e nem a eles se opor, necessariamente) - supõe-se que a ênfase recaia sobre o enténdre1 que é uma intenção de escuta dirigida às características pré-musicais do som descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo. Neste sentido, a livre improvisação se dá mais propriamente num ambiente de escuta reduzida que é, segundo Schaeffer uma escuta que busca escapar tanto de uma intenção de compreender "significados" (semânticos, gestuais ou mesmo musicais no sentido de estar inserida em algum idioma) quanto de uma identificação de causas instrumentais. (COSTA, 2003: 38).

Para a prática da livre improvisação o performer precisa portanto estar ciente das

possibilidades sonoras e timbrísticas do seu instrumento, desprender-se da memória

musical/motora, despir-se dos preconceitos e abraçar o novo, atentando-se aos vários sons ao

seu redor, sejam eles oriundos de objetos do cotidiano, instrumentos musicais ou eletrônicos.

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O ensino tradicional de instrumento valoriza especialmente a decodificação dos

símbolos impressos na partitura, ocasionando muitas vezes uma demora no aprendizado

instrumental causada pelo descompasso entre a internalização dos conceitos teórico-musicais e a

prática da leitura no instrumento, além de adiar as experiências com improvisação para estágios

mais avançados do processo de aprendizagem. Para STENSTRÖM (2009) a improvisação livre,

por outro lado, permite sua prática a pessoas com as mais diversas formações musicais,

possibilitando inclusive a sua prática a pessoas que nunca tiveram contanto com instrumento

musical. Em Exploratoruim (apud, Stenström) dos oito motivos justificáveis para se improvisar,

os seguintes vêm de encontro às questões desta pesquisa:

Pode-se aprender a improvisar em qualquer nível, como um iniciante, sem educação instrumental anterior ou conhecimento musical, e como músico profissional. Para os leigos, a improvisação é uma possibilidade de descobrir e desenvolver talentos ocultos. Para os músicos treinados, a improvisação pode proporcionar experiências totalmente novas e estimulantes. Pode-se improvisar em qualquer combinação pensável ou impensável de instrumentos. (STENSTRÖM, 2009: 12)

Pensando nas possibilidades musicais e instrumentais proporcionadas pela livre

improvisação, esta pesquisa investiga uma alternativa de iniciação aos instrumentos de cordas

dedilhadas por meio da sua prática, sistematizando a proposta através da criação de um

caderno onde os elementos da técnica instrumental, doravante tratados por gestos

instrumentais, pudessem ser registrados. Para tal, foi necessária a adaptação dos símbolos

musicais utilizados para representar os gestos instrumentais, buscando uma forma de

notação/representação que seja simples, não enrijeça o contato com o instrumento e contribua

para o desenvolvimento da técnica instrumental.

A elaboração do caderno de iniciação deu-se pela realização de duas atividades

paralelas: cinco oficinas de improvisação livre nos conservatórios estaduais de música do

triângulo mineiro e a pesquisa de uma forma de registro gráfico dos gestos instrumentais.

As oficinas ocorreram nos conservatórios de Ituiutaba, Araguari, Uberaba e

Uberlândia e funcionaram como um laboratório para experimentação das possibilidades de

notação musical desenvolvidas durante os roteiros das improvisações. Os gestos instrumentais

foram adaptados e posteriormente registrados, baseados nestas oficinas, na análise de

partituras de músicas compostas para instrumentos de cordas dedilhadas e do livro “Notação

na Música Contemporânea” de Jorge Antunes. Neste trabalho será abordado, portanto a

estrutura deste caderno de iniciação aos instrumentos de cordas dedilhadas tendo como

principal metodologia a prática da livre improvisação.

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2. O Caderno de iniciação

O caderno de iniciação aos instrumentos de cordas dedilhadas consta de cinco

partes ou capítulos. Na primeira parte estão registrados os gestos instrumentais selecionados

para a pesquisa em formato de exercício ou roteiro para improvisação. A segunda está

destinada à prática da improvisação em duo, a terceira consta de propostas de improvisação

livre solo ou coletiva, a quarta é também para improvisação livre solo ou coletiva, porém,

utilizando-se da técnica estendida2 ou expandida. A última parte propõe improvisações em

grupo através de um jogo de caça palavras.

2.1. Primeira Parte

Este capítulo apresenta os gestos instrumentais selecionados para o caderno

através de três propostas: percussão no instrumento, exercícios básicos de como pulsar ou

pressionar as cordas e rasgueados grafados em formato de tablatura3 e modelos/roteiros para

improvisação livre baseados em cada gesto instrumental. Foram selecionados os seguintes:

Percussão no instrumento:

Cordas soltas “�”, harmônicos naturais “◊”, notas mortas “” e rasgueado “↓ ↑”.

Notas presas: Notas com duração curta “ ”, notas com duração muito curta “ ”, notas com duração indefinida “ ”, notas com vibrato4 e duração curta “ ” e notas com vibrato e duração indefinida “ ”.

Pestanas: Pestana inteira “C”, meia pestana inferior “ ” e meia pestana superior “ ”.

Glissando: Ascendente “/” e descendente “\” com mão esquerda.

Ascendente “ ” e descendente “ ” com mão direita.

Bend: Ascendente “ ” e descendente “ ”.

Pizzicato: Com a mão direita “pizz.”, com ambas as mãos5 “ ” e pizzicato Bartok “ ”.

Tâmbora: Tâmbora ou Tamb.

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Após o treinamento dos gestos instrumentais proporcionado pelos exercícios e

roteiros de improvisação contidos neste capítulo seguem-se outros quatro, onde o interessado

poderá praticá-los através de novos roteiros de improvisação livre solo, em duos ou grupo. Os

demais capítulos trabalham de forma particular os mesmos gestos instrumentais aqui contidos,

porém será apresentado apenas um exemplo de cada capítulo.

2.2. Segunda Parte

Elaborada para a prática da

improvisação em duo, a orientação é para

que ocorra inicialmente entre o professor e o

aluno, podendo posteriormente ser praticado

somente entre alunos. Consta de cinco

roteiros obedecendo à mesma estrutura

notacional, com gestos instrumentais

grafados em uma moldura seguidos de uma

linha indicativa da duração6.

Exemplo 1: improvisação livre em duo.

2.3. Terceira Parte

Neste capítulo estão presentes cinco

exercícios para improvisação livre solo,

porém, os três últimos roteiros podem ser

praticados também em grupo caso a

iniciação instrumental seja destinada a mais

de um aluno. No exemplo a seguir, devem-

se seguir as referências gestuais contidas

nas molduras, mudando entre elas de

acordo com as indicações das setas.

Exemplo 2: improvisação livre solo ou coletiva.

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2.4. Quarta Parte

Destinada à improvisação livre

através da técnica estendida, a quarta parte

do caderno de iniciação sugere como

expansão da técnica além da palheta, já

tradicionalmente utilizada pelos

instrumentos de cordas dedilhadas, objetos

de uso escolar como lápis, caneta, borracha,

régua e folha de papel. Em Falso Berimbau

o objeto escolhido para ampliação da

técnica foi o lápis/caneta.

Exemplo 3: improvisação livre solo ou coletiva.

2.5. Quinta Parte

Para concluir o caderno de iniciação optou-

se por roteiros onde os executantes possam

praticar todos os gestos instrumentais vistos

nos capítulos anteriores, sejam eles

oriundos da técnica tradicional ou

estendida. A alternativa escolhida para

improvisação foi o uso de palavras

previamente selecionadas e apresentadas

através de um jogo de caça palavras. Estas

palavras têm por objetivo fornecer

indicativos de ações instrumentais aos

performers, que devem seguir estas

instruções para a improvisação.

Exemplo 4: improvisação livre coletiva

3. Considerações

As cordas dedilhadas possuem uma tradição do aprendizado informal, buscando

alternativas para iniciação instrumental em bancas de revista, dicas de amigos, vídeo-aulas

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disponíveis em sítios como youtube, vimeo, facebook entre outros. Este tipo de aprendizado

pode ser frutífero para alguém que já possua alguma habilidade no instrumento, mas não tem

acesso a uma educação musical formal, porém, esta prática não é aconselhável para quem

procura os primeiros contatos com o instrumento.

Para um aprendizado eficaz, sem atrasos no processo de aprendizagem do

instrumento, a orientação de um professor ou tutor, subsidiado por bibliografias específicas do

referido instrumento é essencial. Sua formação e didática permitem-no traçar caminhos,

alternativas consagradas ou mesmo em fase de experimentação que podem em muito

propiciar o desenvolvimento instrumental mais seguro. Esta pesquisa não tem por finalidade

negar ou ignorar tantas outras metodologias de iniciação ao instrumento existentes, apenas

busca uma alternativa que seja atual e prepare os aprendizes para a prática da música

contemporânea e é claro para a improvisação livre.

Espera-se que este caderno possa proporcionar aos iniciantes o aprendizado dos

gestos instrumentais das cordas dedilhadas além de propiciar momentos de prazer na prática

do divertido jogo da livre improvisação.

6. Referências

ANTUNES, Jorge. Notação na música contemporânea. Brasília: Sistrum, 1989. CORRÊA, Roberto. A Arte de Pontear Viola. 2ª ed. Brasília: Viola Corrêa, 2000. COSTA, Rogério Luiz Moraes. O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC-SP. GILBERT, Daniel; MARLIS, Beth. Guitar Soloing: The Compemporary Guide To Improvisation. Milwaukee: Hal Leonard Corporation, 1997. PUJOL, Emilio. Escuela Razonada de la Guitarra. Libro Primero. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1956. STENSTRÖM, Harald. Free Ensemble Improvisation. Gothenburg, 2009. Tese (Doctor of Philosophy in Musical Performance and Interpretation at the Academy of Music and Drama) University of Gothenburg. Notas

1 Um dos quatro tipos de escuta propostos por Pierre Schaeffer em seu tratado dos objetos musicais: écouter (escutar), ouïr (ouvir), entendre (entender) e comprendre (compreender). 2 Trata-se da execução não convencional dos instrumentos musicais através da utilização de objetos com o objetivo de ampliar, expandir as possibilidades sonoras e musicais dos instrumentos, com ou sem auxílio de meios eletrônicos.

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3 A tablatura é uma forma de registro musical escrito, que informa ao intérprete em qual casa ou posição devem ser colocados os dedos em um determinado instrumento, ao invés de informar as notas de uma partitura. As tablaturas podem possuir ou não a representação rítmica. 4 O vibrato é um recurso técnico expressivo comum em instrumentos de cordas, sopro e também no canto. É um dos elementos característicos da identidade sonora de um instrumentista, sendo possível, muitas vezes, reconhecer o intérprete pela forma com que executa o vibrato. Segundo PUJOL (1956, p. 70) o vibrato é facultativo e não se indica ou representa graficamente, no entanto, CORREA (2000, p. 85) registra-o da seguinte forma: e

. Já GILBERT e MARLIS (1997, p. 38) apresenta outra forma de representação:

Gilbert e Marlis

5 Conhecido também por Tapping, Tap ou T. 6 Modelos baseados em ANTUNES (1980: 133)