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1 Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI 24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR A imagem entre o erro e a realidade: o desenho enquanto proposição reflexiva 1 Ha li ssonJ úniorda S il va 2 Resumo: A pa rtir do c o nc e it o de e sc alada da a bstr aç ão pr opost o por V il é m F luss e r, busca - se , no p re se nte tr a ba lho, map e a r e pr oble matiz a r a n a ture z a d a s im a g e ns que c ompõem a re a li da de c ontempor â ne a ; e ntende n do tais im a g e ns té c nica s e /ou dig it a is e nqua nto tex tos c riptogr a fa dos, e e stes, por sua ve z , tal qua l de s e nhos c riptog r a fa dos. De s se modo, pr oc u ra - s e re inser ir a li ng u a g e m do de se nho no de b a te sobr e a s im a g e ns c ontempor â ne a s por meio de sua na ture z a mais e ssenc ial, do de se nho c omo li ng ua ge m visual bá sica que de fin e a quil o que de se nha , tal qua l li ng ua g e m e m pe rma ne nte pr oc e sso d e de fi niçã o. Ne sse se nti do, s e rã o discuti da s a l g umas p roposiç õe s a rtíst ica s que tra ba lh a m c om o d e se nho na int e rse c ç ã o d os e rr os c a r a c ter íst icos do e sfor ç o de re pr e s e ntaç ã ovisu a ldar e a li da de . Palavras-chave: I ma ge m; De se nho;Err o. Abstract: F rom the F luss e r ' s c onc e pt of e s c a latio n of a bstra c ti on, we se e k, in thi s stud y , map a nd discuss the na ture of the im a g e s that make up the c ontemp or a r y r e a li t y ; unde rsta ndin g these tec h niques a nd/or dig it a l im a ge s a s e nc r y pted tex ts, a nd these , in turn, li ke dr a wing s e n c r y pted. Thus, we se e k t o re inser t the lang u a g e of d ra win g in the de ba te on c ontempor a r y im a g e s th rou g h it s most e ss e nti a l na ture , the dr a wing a s ba sic visual lang ua ge that de fine s wha t dr a ws, a nd a s such a s a lan g ua g e in pe rma ne nt pr oc e ss o f d e finiti on of i t s e lf . I n thi s s e nse, some a rtist ic pr oposi ti ons wil l be discuss e d b y wo rkin g with the dr a wing a t the int e rs e c ti on of the c h a ra c ter ist ic e rr or s that e mer ge s with the e ff or t of visual r e pr e se nt a ti on of r e a li t y . Keywords: I m a g e ;Dr a w ing ;Err o r. Introdução De ntre a sli n g ua ge nspro duz idaspe loser hum a no, a im a g e m temsi dou m meio e fic a z pa ra re p re s e ntaç ã o e c onst it uiçã o da re a li da de . Os bisões pint a dos na c a ve rn a de Altamira , na Espa nha , por e x e mpl o, sã o tanto uma be la re pr e s e ntaç ã o visual pr é - hist ór ica d e tais a nim a is, qua nto uma mane ira de c onst it uir uma re a li da de mág i c a , a pa rtir da c r e nç a de que , a o se domi na r a fig u ra do a nim a l, ha ve ria meno r di fic uldade e m domi na roa nim a lre a l,gar a nti ndooa li mentone c e ssár iopar a a sobr e vivên c ia. 1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Professor no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina. Contato: [email protected]

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

A imagem entre o erro e a realidade: o desenho enquanto proposição reflexiva1

Halisson Júnior da Silva2

Resumo: A partir do conceito de escalada da abstração proposto por Vilém Flusser,

busca-se, no presente trabalho, mapear e problematizar a natureza das imagens que

compõem a realidade contemporânea; entendendo tais imagens técnicas e/ou digitais

enquanto textos criptografados, e estes, por sua vez, tal qual desenhos criptografados.

Desse modo, procura-se reinserir a linguagem do desenho no debate sobre as imagens

contemporâneas por meio de sua natureza mais essencial, do desenho como linguagem

visual básica que define aquilo que desenha, tal qual linguagem em permanente

processo de definição. Nesse sentido, serão discutidas algumas proposições artísticas

que trabalham com o desenho na intersecção dos erros característicos do esforço de

representação visual da realidade.

Palavras-chave: Imagem; Desenho; Erro.

Abstract: From the Flusser's concept of escalation of abstraction, we seek, in this study,

map and discuss the nature of the images that make up the contemporary reality;

understanding these techniques and/or digital images as encrypted texts, and these, in

turn, like drawings encrypted. Thus, we seek to reinsert the language of drawing in the

debate on contemporary images through its most essential nature, the drawing as basic

visual language that defines what draws, and as such as a language in permanent

process of definition of itself. In this sense, some artistic propositions wil l be discussed

by working with the drawing at the intersection of the characteristic errors that emerges

with the effort of visual representation of reality.

Keywords: Image; Drawing; Error.

Introdução

Dentre as linguagens produzidas pelo ser humano, a imagem tem sido um

meio eficaz para representação e constituição da realidade. Os bisões pintados na

caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo, são tanto uma bela representação visual

pré-histórica de tais animais, quanto uma maneira de constituir uma realidade mágica, a

partir da crença de que, ao se dominar a figura do animal, haveria menor dificuldade em

dominar o animal real, garantindo o alimento necessário para a sobrevivência.

1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional

de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2Professor no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Comunicação pela

Universidade Estadual de Londrina. Contato: [email protected]

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Evitemos a armadilha fácil de acreditar que tal comportamento se deve a

alguma possível ingenuidade ou simplicidade de pensamento dos povos pré-históricos.

Como constata o historiador da arte Ernst Gombrich em referência à esses povos, “os

seus processos de pensar, com frequência, são mais complicados do que os nossos”

(GOMBRICH, 1999, p. 39).Fenômenos da crença na correspondência entre imagem e

realidade são recorrentes no curso da história, e frequentemente independem de

representações realísticas:

Outrora, num passado sombrio e distante, era costume, quando morria um

homem poderoso, que os seus servos o acompanhassem na sepultura.

Sacrificavam-nos para que o senhor chegasse ao além com um séquito

condigno. Mais tarde esses horrores foram considerados cruéis, ou quiçá

onerosos demais, e a arte acudiu para ajudar. Em vez de servidores de carne e

osso, aos poderosos da Terra passaram a ser oferecidas imagens como

substitutos. As pinturas e os modelos encontrados em túmulos egípcios

estavam associados à ideia de fornecer servos para a alma no outro mundo

[...] (idem, p. 58).

Apesar da crença no poder vital das imagens no além vida, as

características formais da antiga pintura egípcia pouco intencionavam uma reprodução

realística da figura humana. A representação de um ser humano com dois pés e duas

mãos esquerdas3, por exemplo, é comumente associada à intencionalidade de clareza

narrativa mais do que uma suposta incapacidade de representação fiel da anatomia

humana. Todavia, tal figura estilizada não diminuía a fé que depositavam nela.

Tão ou mais importante do que a imagem em si, parece ser o contexto de

visualidade da mesma. A partir destas considerações iniciais, pretendemos estabelecer

um panorama em relação às imagens, a partir do conceito de escalada da abstração de

Vilém Flusser, que compreende as imagens técnicas, como as fotografias, por exemplo,

enquanto abstrações de textos; e o texto, por sua vez, enquanto abstração de imagens

tradicionais, como o desenho. Assim, abordaremos a linguagem do desenho enquanto

expressão visual elementar, seguido de sua utilização no contexto de algumas

proposições artísticas autorais.

3A pintura no Egito Antigo obedecia a uma série de normas estéticas conhecida posteriormente como Lei

da frontalidade. Por sua função essencialmente narrativa, as figuras deveriam ser claramente

reconhecíveis. Assim, as partes do corpo humano, por exemplo, eram representadas da maneira em que

poderiam ser mais facilmente identificadas: olhos e troncos eram mostrados de frente, enquanto cabeça,

braços e pernas eram vistos de lado.

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Escalada da abstração

No princípio, nossos antepassados pré-históricos interagiam entre si e

com a natureza através de gestos e sons que seu corpo era capaz de produzir no espaço

tridimensional e no tempo presente. Nesse mundo, o homem – ao contrário dos outros

animais – possui mãos que conseguem segurar volumes e, por meio da manipulação dos

objetos, passa a transformar o mundo em circunstância. Ao fazer isto, o homem começa

a criar cultura: “a manipulação é o gesto primordial; graças a ele o homem abstrai o

tempo do mundo concreto e transforma a si próprio em ente abstraidor, isto é, em

homem propriamente dito” (FLUSSER, 2008, p. 16). O pesquisador Norval Baitello Jr.

nos mostra que, ao passo que o homem começou a produzir marcas, representações

imagéticas, que permitiam uma leitura de mundo além do espaço-tempo conhecido até

então, “desencadeia-se uma revolução de consequências imprevisíveis: suas imagens

criam um novo olhar e uma nova percepção do tempo, um tempo circular que permite

ao observador retornar sempre a um ponto inicial” (BAITELLO JR., 2010, p. 53).

Porém, continua Baitello Jr., “uma das três dimensões do espaço se

perde nesta passagem. A dimensão da profundidade (que dá a materialidade palpável,

corpórea) perde-se no universo das imagens planas [...]” (idem, p. 53). Primeiro, a

dimensão do tempo ficou comprometida com a manipulação dos objetos palpáveis; em

seguida a dimensão de profundidade do espaço se perdeu na mediação realizada pelas

imagens planas tradicionais, fixas sobre superfícies, como no caso dos desenhos e das

pinturas, por exemplo.

O espaço tridimensional se tornou bidimensional com as imagens e,

quando de tais imagens começaram a surgir progressivamente símbolos não figurativos,

se abstrai mais uma dimensão do espaço. Com a invenção da escrita, a dimensão da

largura desaparece da leitura de mundo que existia até então, criando um universo

unidimensional. “As representações planas das imagens transformam-se em

representações lineares. O olhar não mais circula sobre a imagem, mas segue uma linha.

[...] Com a escrita o mundo passa a ser descritível, o que abre os caminhos para o

pensamento lógico, linear e conceitual” (ibidem, p. 54). Esclarece-se aqui que falamos

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da trajetória da linguagem no ocidente. A escrita oriental, por exemplo, conduz o olhar

de maneira não linear e, embora tal aproximação possa ser frutífera, nos centraremos,

neste momento, nas transformações do pensamento ocidental.

Para Flusser (2009, p. 09), mais do que uma evolução natural das

imagens, a escrita surgiu como uma reação a elas, quando tais imagens que deviam ser

“mapas do mundo, [...] passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das

imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens” gerando idolatria.

Assim, os textos surgem para acabar com essa inversão da função das imagens, para

“rasgá-las a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens”.

Ironicamente, o mesmo pensamento lógico e linear que buscava

desmagicizar as imagens tradicionais, acabou por criar as condições necessárias para o

surgimento de outro tipo de imagem, denominada por Flusser de imagem técnica ou

tecnoimagem:

Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da

técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são,

portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e

ontológica diferente das imagens tradicionais. [...] Elas são dificilmente

decifráveis pela razão curiosa de que aparentemente não necessitam ser

decifradas. [...] O mundo representado parece ser a causa das imagens

técnicas e elas próprias parecem ser o último efeito de complexa cadeia

causal que parte do mundo. O mundo a ser representado reflete raios que vão

sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos óticos, químicos

e mecânicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois, imagem e

mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia

ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser

símbolo e não precisar de deciframento (FLUSSER, 2009, p. 13/14).

Fruto de textos, que por sua vez são unidimensionais, as imagens

técnicas - como a fotografia ou o cinema, por exemplo - são, portanto, nulo

dimensionais, já que “a última dimensão espacial que lhes restava também é subtraída.

As tecnoimagens não são mais uma superfície, mas a construção conceitual de um plano

por meio da constelação de grânulos [...] que, reunidos, oferecem a ilusão de uma

superfície [...]” (BAITELLO JR., 2010, p. 54). Paradoxalmente, a imagem que parece

estar no mesmo nível da realidade concreta é a mais irreal das imagens. Assim, a partir

desta perspectiva, pode-se dizer que a mais "avançada" das linguagens criadas pelo ser

humano, a mais “real”, é a imagem técnica, ou ainda, sua versão mais recente, a imagem

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digital. Flusser denomina tal “progresso” da linguagem de escalada da abstração.

Entretanto:

Os quatro passos rumo à abstração [...] não formam série ininterrupta: foram

sempre interrompidos por passos de volta para o concreto. O propósito de

toda abstração é o de tomar distância do concreto para poder agarrá-lo

melhor. [...] De maneira que a história da cultura não é série de progressos,

mas dança em torno do concreto. No decorrer de tal dança, tornou-se sempre

mais difícil, paradoxalmente, o retorno para o concreto (FLUSSER, 2008, p.

20, grifo meu).

Logo, seria equivocado dizer que a noção de realidade que nós temos

da fotografia seja maior do que o realismo que as pessoas dos séculos passados

percebiam nas imagens tradicionais. É preciso considerar que o realismo que vemos em

determinadas imagens depende “tanto da materialidade da imagem e [...] do aparelho

biológico da espécie humana quanto dos regimes de visualidade que permitem que o

espectador veja tal materialidade como imagem e, acima de tudo, como imagem

realista”, nos diz o pesquisador Daniel Portugal (2011, p.42, grifos do autor). Assim,

um bisão de Altamira, como já mencionado, era tão real para nossos antepassados

distantes quanto a fotografia de um boi é para nós. O pensamento mágico de tempos

passados criava determinado ambiente propício à crença de que uma pintura equivaleria

à realidade concreta. Se hoje tal crença em imagens tradicionais parece ser difícil de

acontecer, o mesmo não pode ser dito em relação às imagens técnicas. Como constata o

historiador da arte, Ernst Gombrich (1999, p. 43) “todos nós alimentamos crenças que

consideramos tão axiomáticas quanto os primitivos consideram as deles – usualmente a

um ponto tal que delas nem nos conscientizamos, a menos que deparemos com gente

que as questione”.

Nesse sentido, podemos considerar que a fotografia é, em essência,

texto criptografado; e o texto, por sua vez, é desenho criptografado. Assim sendo, a arte

do desenho pode ser considerada como linguagem visual elementar e, desta maneira, as

representações da realidade contemporânea, por mais diversas que sejam, podem ser

compreendidas como reelaborações e recombinações de desenhos já feitos. O próprio

mundo social com suas edificações, mapas e fronteiras não deixa de ser também

resultados de desenhos. Ao mesmo tempo em que a linha entre dois países, duas

cidades, ou mesmo a linha de uma porta, estabelece parâmetros para a convivência

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social, estabelecem também linhas passíveis de serem transpostas e subvertidas na

medida em que tais parâmetros estabelecidos deixam de atender aos desejos e

necessidades humanas. A partir de tais considerações, considera-se oportuno considerar

tal linguagem como instrumento de investigação.

Desenho como instrumento de investigação

Quando o poeta Octavio Paz (1982, p. 36) diz que o homem é um ser de

palavras, que sem elas ele é inapreensível, ele pretende mostrar que a condição do ser

humano como tal é indissociável da linguagem. O sujeito humano só é possível quando

dá significado à própria existência. E tal significação, por sua vez, só é possível na

medida em que dá significado à realidade natural conforme cria sua própria realidade a

partir dela. Desse modo, a possibilidade de algo existir depende da capacidade da mente

humana de perceber e significar tal existência, construindo-a.

Assim sendo, o desenho parece ter localização privilegiada dentro do

contexto que se expõe, seja pela percepção do mesmo enquanto linguagem visual

elementar, seja por suas características particulares enquanto linguagem artística que o

diferencia ao mesmo tempo que o intersecciona com outras áreas e outras artes. No

sentido da primeira afirmação, a artista Edith Derdyk argumenta:

Da intersecção entre a representação gráfica que fixa e a fala fugaz que

escapa, a escrita foi sendo elaborada ao longo das primeiras tentativas

humanas por meio de registros visuais em direção à formalização do

conhecimento. O desenho do signo, aos poucos, foi se desencarnando da

imagem-figura para adquirir um valor fonético, abstrato, universal. Mas, em

seus primórdios, o desenho da palavra - os pictogramas, os hieróglifos, os

ideogramas, escritas analógicas e visuais - explicita sensivelmente a natureza

mental e inteligível do desenho como ato de expressão do pensamento

(DERDYK, 2010, p. 23, grifo meu).

Sobre essa percepção do desenho como forma de pensamento, observa a

pesquisadora Cecília Almeida Salles:

É importante destacar que o desenho, como reflexão visual, não está limitado

à imagem figurativa, mas abarca formas de representação visual de um

pensamento, isto é, estamos falando de diagramas, em termos bastante

amplos, como desenhos de um pensamento, uma concepção visual ou um

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pensamento esboçado. Não é um mapa do que foi encontrado, mas um mapa

confeccionado para encontrar alguma coisa (SALLES, 2010, p. 35).

Assim, possuindo também a capacidade de exercer a função de mapa, o

desenho reafirma sua característica transdisciplinar no processo de investigação tanto

em campos distintos das artes, quanto em outras linguagens artísticas, oferecendo a

possibilidade de "dar concretude a uma imaginação em processo de desenvolvimento”

(idem, p. 36). Como aponta o artista Diego Rayck:

Um levantamento histórico sobre desenho, sem muita dificuldade, pode situar

a posição deste na tradição da arte ocidental. A trajetória histórica do desenho

privilegia sua relação com a pintura, escultura e arquitetura, assim como seu

papel especial na concepção da obra, esta compreendida, durante um longo

período, em termos de um processo que tem início em uma idealização e

culmina em uma finalização materializada e conclusiva. No contexto

contemporâneo, tendo sido problematizadas as noções conclusivas e as

hierarquias técnicas no processo artístico, o desenho parece ocupar uma

posição diferente, discreta apesar de insistente (RAYCK, 2009, p. 28).

Desse modo, se pode observar que a linguagem do desenho é, ao

mesmo tempo, "tão antiga e tão permanente, em contínua resolução. Tal como o fluxo

contínuo do rio de Heráclito, nunca se desenha o mesmo desenho, nunca o traço da

linha será igual. Em permanente mutação, a natureza do desenho é sempre a mesma e

sempre outra!" (DERDYK, 2010, p. 17)”. Talvez por isso, como constata Rayck, seja

"difícil encontrar uma forma de abordá-lo sem reduzir sua complexidade. O desenho

parece fugidio às tentativas de apreendê-lo […]” (2009, p. 26). Segundo o artista:

Isto, parcialmente, parece se explicar por esta posição paradoxal do desenho

enquanto conceito amplo, interdisciplinar e dinâmico e, simultaneamente,

conjunto de práticas com certas particularidades que podem ser tratadas sob

esta mesma designação: desenho. [Tais características] não apresentam uma

dicotomia estanque, nem sequer um ponto fronteiriço nítido, mas [afirmam]

que esta condição complexa e conflituosa é constitutiva do desenho

(RAYCK, 2009, p. 26-27).

Considera-se assim, que uma proposta de investigação a partir da

linguagem do desenho não tem a pretensão de criar um novo modo de representação

visual ou uma pretensa representação unívoca por meio do desenho - embora, de certa

forma, tal postura não deixe de ser pretensiosa a seu modo. Assim, nesse caso, o que se

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pretende é evidenciar por meio do próprio trabalho a se instaurar a realidade enquanto

possibilidade poética, utilizando a arte do desenho como instrumento de investigação, e

não apenas como objeto.

O desenho então, nesse contexto, se instaura como uma linguagem que

abarca não só o que existe, o que é visível, mas também torna visível, objetivando o

possível! Rayck (2011, p. 96) nos diz que pelo ato de desenhar cria-se uma ficção que

exacerba as características ficcionais do próprio objeto que se desenha. Em outras

palavras, a partir do ato de desenhar cria-se uma ficção; ficção esta, porém, não menos

verídica do que a própria realidade.

Errando melhor

De maneira a inserir o desenho por meio de sua prática no debate sobre a

constituição imagética da realidade, abordarei, neste momento, duas proposições

artísticas realizadas nos meses de setembro e outubro de 2014.

A primeira proposição chama-se ERRE MELHOR4 (figura 2). A

premissa básica da proposta é trabalhar com certa inevitabilidade do erro. Se por um

lado, o erro é sugerido a partir da educação que recebemos sobre o que é certo ou não;

por outro, podemos isolá-lo objetivamente em determinada atividade, como, por

exemplo, durante a execução de determinada música. Mesmo que tal percepção pudesse

não ser aparente a princípio, ERRE MELHOR se desenvolveu na intersecção entre

estas duas abordagens do erro.

Assim, a proposta, desenvolvida durante o dia 16 de setembro de

2014,em horário comercial5, na Universidade Estadual de Maringá, contou com a

participação da violoncelista Karolyni Da Vila no período da manhã e do violonista

Diego Zanata no período da tarde. Ambos tinham que executar músicas que não

dominassem por completo, de modo que erros na execução fossem inevitáveis e

4O título ERRE MELHOR é derivado de uma passagem do texto Worst ward Ho do dramaturgo e escritor

irlandês Samuel Beckett: “All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail

again. Fail betterò (BECKETT, 1983, p. 7). 5A relação estabelecida com a ideia de “horário comercial” – 8h às 12h e 14h às 18h, com o intervalo de 2

horas para almoço entre manhã e tarde – procura refletir a noção implícita de controle e produtividade que

condiciona o cotidiano de grande parte dos trabalhadores.

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ocorressem naturalmente. Ao redor da(o) instrumentista, foram utilizados 16 cavaletes

como suporte para papeis A1,para que eu desenhasse com carvão o/a musicista

enquanto a música era tocada. A medida em que ocorriam erros na execução musical, eu

pausava o desenho que estava fazendo e iniciava outro ao lado, dando a volta e

consequentemente desenhando sobre os desenhos iniciados anteriormente, formando

assim, um acúmulo visual de erros (figuras 1 e 2). Embora tenham havido alguns

atrasos6, além de pequenas pausas para descanso, o trabalho transcorreu de forma

intensa, buscando confrontar entre si as necessidades de urgência e eficiência.

Figura 1 – Diego Zanata e Halisson Jr em ERRE MELHOR, 2014. Foto: Henrique Rozada.

6A instalação onde ocorreria a proposição artística deveria ter sido preparada no dia anterior por

funcionários da UEM, mas, por falha de comunicação interna da instituição, acabou sendo montada no

dia 16, a partir das 8h. Todavia, como se sabe, o erro era um dos pressupostos do trabalho. Tais

imprevistos, como este, constituem assim, parte da proposta.

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Figura 2 – Um dos desenhos em processo durante a realização de ERRE MELHOR, 2014. Foto: Henrique

Rozada.

A partir do erro musical, qualquer possível erro do desenho é redimido ao

se representar visualmente um músico ensaiando. As imagens resultantes certamente

não correspondem à uma representação realística do motivo desenhado, seja devido à

incompletude dos mesmos ou pela sobreposição de traços divergentes; todavia, são

estas mesmas características que permitem uma imagem que emule visualmente um

músico em seu ensaio, se esforçando para acertar as notas, buscando a execução perfeita

dos acordes.

A segunda proposição artística relaciona o desenho com a ideia de

visibilidade. Segundo as previsões de Flusser, o futuro de nossa sociedade se realizará

essencialmente por meio de sua materialização em imagens.

Todas as nossas condições objetivas, inclusive as biológicas, se passam às

nossas costas: elas não nos interessam. Por certo, continuam a se passar:

comemos, copulamos; há ciência, há técnica, há política, há economia. [...]

Mas tudo isso é quimérico; torna-se concreto apenas depois de levado das

costas para novo campo de interesse, ou seja, depois de “traduzido em

imagem”. Doravante, apenas a imagem é o concreto (FLUSSER, 2008, p.

189).

Se, por um lado, tal citação possa parecer absurda a princípio, por outro,

não é difícil identificar algumas de suas características nos dias que se passam. Dentre

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as inúmeras imagens compartilhadas nas mais diversas redes sociais da internet, uma

parte significativa corresponde aos autorretratos fotográficos conhecidos como selfies.

Em uma realidade onde tudo tende à imagem, “a ansiedade parece surgir a partir da

perspectiva de NÃO estar exposto ao olhar do outro o tempo todo”, nos sugere o

filósofo esloveno SlavojŽižek (2002, p. 225, tradução livre do original, grifo do autor).

A “invisibilidade” da proposição que procuro relatar ocorreu de tal

maneira que sequer foi tratada oficialmente como um trabalho artístico, não recebendo

nem mesmo um título, nem que fosse um título “s/ título”. Tal proposição ocorreu no

meu aniversário de 28 anos, no dia 4 de outubro de 2014. Organizei uma festa para

reunir meus amigos e comemorar a data. Como forma de inverter a lógica deste tipo de

evento, onde o aniversariante recebe presentes dos convidados, ofereci com

antecedência um presente a cada um que comparecesse à confraternização: um desenho

da pessoa nua a ser feito durante a festa.

Há certo paradoxo na ideia do “presentear” existente nesta proposição.

Para aceitar e receber o presente, o convidado teve que se desnudar, teve que me

“presentear” com sua nudez. Os desenhos foram feitos à lápis em papeis A4 em um

cômodo fechado e as sessões duraram entre 15 e 20 minutos. Depois de terminado, o

desenho foi entregue à pessoa desenhada dentro de um envelope de modo que ninguém

mais veria a imagem caso ela não quisesse. Em vez da exposição mediatizada pelas

imagens técnicas, na proposição discorrida a exposição foi mediatizada pelo desenho,

alterando os vetores de significação da experiência imagética: o observador é, ao

mesmo tempo, a imagem observada, materializada por mim por meio do desenho de

observação. Certamente houve a influência de minha subjetividade e técnica artística na

realização do desenho. Todavia, tal influência também esteve condicionada à

subjetividade do convidado no momento em que este aceitou participar da proposta,

gerando, assim, um ciclo de significação que possibilita evidenciar poeticamente as

relações entre sujeito e imagem que ocorrem cotidianamente, onde o sujeito subjetiva a

imagem, que, por sua vez, objetiva o sujeito.

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

Considerações finais

No trabalho apresentado, procuramos tecer relações que problematizem

as ideias comumente disseminadas acerca da linguagem imagética; colocando em

suspenso, por exemplo, juízos de valor que concebem a fotografia como uma imagem

mais realista que o desenho. Destarte, mesmo considerando tal expressão artística como

uma linguagem visual elementar, as proposições artísticas das quais tratamos não

pretenderam instituir o desenho como representação unívoca da realidade. Antes, se

quis evidenciar a realidade enquanto possibilidade poética, utilizando a arte do desenho

como instrumento de pesquisa, e não apenas como objeto. Assim, distante de querer

buscar uma verdade absoluta da realidade, procuramos abordar aqui a própria noção de

verdade da realidade, questionando esta enquanto algo estabelecido e posicionando-a ao

alcance da ação humana.

Referências

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

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