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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI
24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR
A imagem entre o erro e a realidade: o desenho enquanto proposição reflexiva1
Halisson Júnior da Silva2
Resumo: A partir do conceito de escalada da abstração proposto por Vilém Flusser,
busca-se, no presente trabalho, mapear e problematizar a natureza das imagens que
compõem a realidade contemporânea; entendendo tais imagens técnicas e/ou digitais
enquanto textos criptografados, e estes, por sua vez, tal qual desenhos criptografados.
Desse modo, procura-se reinserir a linguagem do desenho no debate sobre as imagens
contemporâneas por meio de sua natureza mais essencial, do desenho como linguagem
visual básica que define aquilo que desenha, tal qual linguagem em permanente
processo de definição. Nesse sentido, serão discutidas algumas proposições artísticas
que trabalham com o desenho na intersecção dos erros característicos do esforço de
representação visual da realidade.
Palavras-chave: Imagem; Desenho; Erro.
Abstract: From the Flusser's concept of escalation of abstraction, we seek, in this study,
map and discuss the nature of the images that make up the contemporary reality;
understanding these techniques and/or digital images as encrypted texts, and these, in
turn, like drawings encrypted. Thus, we seek to reinsert the language of drawing in the
debate on contemporary images through its most essential nature, the drawing as basic
visual language that defines what draws, and as such as a language in permanent
process of definition of itself. In this sense, some artistic propositions wil l be discussed
by working with the drawing at the intersection of the characteristic errors that emerges
with the effort of visual representation of reality.
Keywords: Image; Drawing; Error.
Introdução
Dentre as linguagens produzidas pelo ser humano, a imagem tem sido um
meio eficaz para representação e constituição da realidade. Os bisões pintados na
caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo, são tanto uma bela representação visual
pré-histórica de tais animais, quanto uma maneira de constituir uma realidade mágica, a
partir da crença de que, ao se dominar a figura do animal, haveria menor dificuldade em
dominar o animal real, garantindo o alimento necessário para a sobrevivência.
1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional
de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2Professor no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Comunicação pela
Universidade Estadual de Londrina. Contato: [email protected]
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Evitemos a armadilha fácil de acreditar que tal comportamento se deve a
alguma possível ingenuidade ou simplicidade de pensamento dos povos pré-históricos.
Como constata o historiador da arte Ernst Gombrich em referência à esses povos, “os
seus processos de pensar, com frequência, são mais complicados do que os nossos”
(GOMBRICH, 1999, p. 39).Fenômenos da crença na correspondência entre imagem e
realidade são recorrentes no curso da história, e frequentemente independem de
representações realísticas:
Outrora, num passado sombrio e distante, era costume, quando morria um
homem poderoso, que os seus servos o acompanhassem na sepultura.
Sacrificavam-nos para que o senhor chegasse ao além com um séquito
condigno. Mais tarde esses horrores foram considerados cruéis, ou quiçá
onerosos demais, e a arte acudiu para ajudar. Em vez de servidores de carne e
osso, aos poderosos da Terra passaram a ser oferecidas imagens como
substitutos. As pinturas e os modelos encontrados em túmulos egípcios
estavam associados à ideia de fornecer servos para a alma no outro mundo
[...] (idem, p. 58).
Apesar da crença no poder vital das imagens no além vida, as
características formais da antiga pintura egípcia pouco intencionavam uma reprodução
realística da figura humana. A representação de um ser humano com dois pés e duas
mãos esquerdas3, por exemplo, é comumente associada à intencionalidade de clareza
narrativa mais do que uma suposta incapacidade de representação fiel da anatomia
humana. Todavia, tal figura estilizada não diminuía a fé que depositavam nela.
Tão ou mais importante do que a imagem em si, parece ser o contexto de
visualidade da mesma. A partir destas considerações iniciais, pretendemos estabelecer
um panorama em relação às imagens, a partir do conceito de escalada da abstração de
Vilém Flusser, que compreende as imagens técnicas, como as fotografias, por exemplo,
enquanto abstrações de textos; e o texto, por sua vez, enquanto abstração de imagens
tradicionais, como o desenho. Assim, abordaremos a linguagem do desenho enquanto
expressão visual elementar, seguido de sua utilização no contexto de algumas
proposições artísticas autorais.
3A pintura no Egito Antigo obedecia a uma série de normas estéticas conhecida posteriormente como Lei
da frontalidade. Por sua função essencialmente narrativa, as figuras deveriam ser claramente
reconhecíveis. Assim, as partes do corpo humano, por exemplo, eram representadas da maneira em que
poderiam ser mais facilmente identificadas: olhos e troncos eram mostrados de frente, enquanto cabeça,
braços e pernas eram vistos de lado.
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Escalada da abstração
No princípio, nossos antepassados pré-históricos interagiam entre si e
com a natureza através de gestos e sons que seu corpo era capaz de produzir no espaço
tridimensional e no tempo presente. Nesse mundo, o homem – ao contrário dos outros
animais – possui mãos que conseguem segurar volumes e, por meio da manipulação dos
objetos, passa a transformar o mundo em circunstância. Ao fazer isto, o homem começa
a criar cultura: “a manipulação é o gesto primordial; graças a ele o homem abstrai o
tempo do mundo concreto e transforma a si próprio em ente abstraidor, isto é, em
homem propriamente dito” (FLUSSER, 2008, p. 16). O pesquisador Norval Baitello Jr.
nos mostra que, ao passo que o homem começou a produzir marcas, representações
imagéticas, que permitiam uma leitura de mundo além do espaço-tempo conhecido até
então, “desencadeia-se uma revolução de consequências imprevisíveis: suas imagens
criam um novo olhar e uma nova percepção do tempo, um tempo circular que permite
ao observador retornar sempre a um ponto inicial” (BAITELLO JR., 2010, p. 53).
Porém, continua Baitello Jr., “uma das três dimensões do espaço se
perde nesta passagem. A dimensão da profundidade (que dá a materialidade palpável,
corpórea) perde-se no universo das imagens planas [...]” (idem, p. 53). Primeiro, a
dimensão do tempo ficou comprometida com a manipulação dos objetos palpáveis; em
seguida a dimensão de profundidade do espaço se perdeu na mediação realizada pelas
imagens planas tradicionais, fixas sobre superfícies, como no caso dos desenhos e das
pinturas, por exemplo.
O espaço tridimensional se tornou bidimensional com as imagens e,
quando de tais imagens começaram a surgir progressivamente símbolos não figurativos,
se abstrai mais uma dimensão do espaço. Com a invenção da escrita, a dimensão da
largura desaparece da leitura de mundo que existia até então, criando um universo
unidimensional. “As representações planas das imagens transformam-se em
representações lineares. O olhar não mais circula sobre a imagem, mas segue uma linha.
[...] Com a escrita o mundo passa a ser descritível, o que abre os caminhos para o
pensamento lógico, linear e conceitual” (ibidem, p. 54). Esclarece-se aqui que falamos
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da trajetória da linguagem no ocidente. A escrita oriental, por exemplo, conduz o olhar
de maneira não linear e, embora tal aproximação possa ser frutífera, nos centraremos,
neste momento, nas transformações do pensamento ocidental.
Para Flusser (2009, p. 09), mais do que uma evolução natural das
imagens, a escrita surgiu como uma reação a elas, quando tais imagens que deviam ser
“mapas do mundo, [...] passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das
imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens” gerando idolatria.
Assim, os textos surgem para acabar com essa inversão da função das imagens, para
“rasgá-las a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens”.
Ironicamente, o mesmo pensamento lógico e linear que buscava
desmagicizar as imagens tradicionais, acabou por criar as condições necessárias para o
surgimento de outro tipo de imagem, denominada por Flusser de imagem técnica ou
tecnoimagem:
Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da
técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são,
portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e
ontológica diferente das imagens tradicionais. [...] Elas são dificilmente
decifráveis pela razão curiosa de que aparentemente não necessitam ser
decifradas. [...] O mundo representado parece ser a causa das imagens
técnicas e elas próprias parecem ser o último efeito de complexa cadeia
causal que parte do mundo. O mundo a ser representado reflete raios que vão
sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos óticos, químicos
e mecânicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois, imagem e
mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia
ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser
símbolo e não precisar de deciframento (FLUSSER, 2009, p. 13/14).
Fruto de textos, que por sua vez são unidimensionais, as imagens
técnicas - como a fotografia ou o cinema, por exemplo - são, portanto, nulo
dimensionais, já que “a última dimensão espacial que lhes restava também é subtraída.
As tecnoimagens não são mais uma superfície, mas a construção conceitual de um plano
por meio da constelação de grânulos [...] que, reunidos, oferecem a ilusão de uma
superfície [...]” (BAITELLO JR., 2010, p. 54). Paradoxalmente, a imagem que parece
estar no mesmo nível da realidade concreta é a mais irreal das imagens. Assim, a partir
desta perspectiva, pode-se dizer que a mais "avançada" das linguagens criadas pelo ser
humano, a mais “real”, é a imagem técnica, ou ainda, sua versão mais recente, a imagem
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digital. Flusser denomina tal “progresso” da linguagem de escalada da abstração.
Entretanto:
Os quatro passos rumo à abstração [...] não formam série ininterrupta: foram
sempre interrompidos por passos de volta para o concreto. O propósito de
toda abstração é o de tomar distância do concreto para poder agarrá-lo
melhor. [...] De maneira que a história da cultura não é série de progressos,
mas dança em torno do concreto. No decorrer de tal dança, tornou-se sempre
mais difícil, paradoxalmente, o retorno para o concreto (FLUSSER, 2008, p.
20, grifo meu).
Logo, seria equivocado dizer que a noção de realidade que nós temos
da fotografia seja maior do que o realismo que as pessoas dos séculos passados
percebiam nas imagens tradicionais. É preciso considerar que o realismo que vemos em
determinadas imagens depende “tanto da materialidade da imagem e [...] do aparelho
biológico da espécie humana quanto dos regimes de visualidade que permitem que o
espectador veja tal materialidade como imagem e, acima de tudo, como imagem
realista”, nos diz o pesquisador Daniel Portugal (2011, p.42, grifos do autor). Assim,
um bisão de Altamira, como já mencionado, era tão real para nossos antepassados
distantes quanto a fotografia de um boi é para nós. O pensamento mágico de tempos
passados criava determinado ambiente propício à crença de que uma pintura equivaleria
à realidade concreta. Se hoje tal crença em imagens tradicionais parece ser difícil de
acontecer, o mesmo não pode ser dito em relação às imagens técnicas. Como constata o
historiador da arte, Ernst Gombrich (1999, p. 43) “todos nós alimentamos crenças que
consideramos tão axiomáticas quanto os primitivos consideram as deles – usualmente a
um ponto tal que delas nem nos conscientizamos, a menos que deparemos com gente
que as questione”.
Nesse sentido, podemos considerar que a fotografia é, em essência,
texto criptografado; e o texto, por sua vez, é desenho criptografado. Assim sendo, a arte
do desenho pode ser considerada como linguagem visual elementar e, desta maneira, as
representações da realidade contemporânea, por mais diversas que sejam, podem ser
compreendidas como reelaborações e recombinações de desenhos já feitos. O próprio
mundo social com suas edificações, mapas e fronteiras não deixa de ser também
resultados de desenhos. Ao mesmo tempo em que a linha entre dois países, duas
cidades, ou mesmo a linha de uma porta, estabelece parâmetros para a convivência
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social, estabelecem também linhas passíveis de serem transpostas e subvertidas na
medida em que tais parâmetros estabelecidos deixam de atender aos desejos e
necessidades humanas. A partir de tais considerações, considera-se oportuno considerar
tal linguagem como instrumento de investigação.
Desenho como instrumento de investigação
Quando o poeta Octavio Paz (1982, p. 36) diz que o homem é um ser de
palavras, que sem elas ele é inapreensível, ele pretende mostrar que a condição do ser
humano como tal é indissociável da linguagem. O sujeito humano só é possível quando
dá significado à própria existência. E tal significação, por sua vez, só é possível na
medida em que dá significado à realidade natural conforme cria sua própria realidade a
partir dela. Desse modo, a possibilidade de algo existir depende da capacidade da mente
humana de perceber e significar tal existência, construindo-a.
Assim sendo, o desenho parece ter localização privilegiada dentro do
contexto que se expõe, seja pela percepção do mesmo enquanto linguagem visual
elementar, seja por suas características particulares enquanto linguagem artística que o
diferencia ao mesmo tempo que o intersecciona com outras áreas e outras artes. No
sentido da primeira afirmação, a artista Edith Derdyk argumenta:
Da intersecção entre a representação gráfica que fixa e a fala fugaz que
escapa, a escrita foi sendo elaborada ao longo das primeiras tentativas
humanas por meio de registros visuais em direção à formalização do
conhecimento. O desenho do signo, aos poucos, foi se desencarnando da
imagem-figura para adquirir um valor fonético, abstrato, universal. Mas, em
seus primórdios, o desenho da palavra - os pictogramas, os hieróglifos, os
ideogramas, escritas analógicas e visuais - explicita sensivelmente a natureza
mental e inteligível do desenho como ato de expressão do pensamento
(DERDYK, 2010, p. 23, grifo meu).
Sobre essa percepção do desenho como forma de pensamento, observa a
pesquisadora Cecília Almeida Salles:
É importante destacar que o desenho, como reflexão visual, não está limitado
à imagem figurativa, mas abarca formas de representação visual de um
pensamento, isto é, estamos falando de diagramas, em termos bastante
amplos, como desenhos de um pensamento, uma concepção visual ou um
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pensamento esboçado. Não é um mapa do que foi encontrado, mas um mapa
confeccionado para encontrar alguma coisa (SALLES, 2010, p. 35).
Assim, possuindo também a capacidade de exercer a função de mapa, o
desenho reafirma sua característica transdisciplinar no processo de investigação tanto
em campos distintos das artes, quanto em outras linguagens artísticas, oferecendo a
possibilidade de "dar concretude a uma imaginação em processo de desenvolvimento”
(idem, p. 36). Como aponta o artista Diego Rayck:
Um levantamento histórico sobre desenho, sem muita dificuldade, pode situar
a posição deste na tradição da arte ocidental. A trajetória histórica do desenho
privilegia sua relação com a pintura, escultura e arquitetura, assim como seu
papel especial na concepção da obra, esta compreendida, durante um longo
período, em termos de um processo que tem início em uma idealização e
culmina em uma finalização materializada e conclusiva. No contexto
contemporâneo, tendo sido problematizadas as noções conclusivas e as
hierarquias técnicas no processo artístico, o desenho parece ocupar uma
posição diferente, discreta apesar de insistente (RAYCK, 2009, p. 28).
Desse modo, se pode observar que a linguagem do desenho é, ao
mesmo tempo, "tão antiga e tão permanente, em contínua resolução. Tal como o fluxo
contínuo do rio de Heráclito, nunca se desenha o mesmo desenho, nunca o traço da
linha será igual. Em permanente mutação, a natureza do desenho é sempre a mesma e
sempre outra!" (DERDYK, 2010, p. 17)”. Talvez por isso, como constata Rayck, seja
"difícil encontrar uma forma de abordá-lo sem reduzir sua complexidade. O desenho
parece fugidio às tentativas de apreendê-lo […]” (2009, p. 26). Segundo o artista:
Isto, parcialmente, parece se explicar por esta posição paradoxal do desenho
enquanto conceito amplo, interdisciplinar e dinâmico e, simultaneamente,
conjunto de práticas com certas particularidades que podem ser tratadas sob
esta mesma designação: desenho. [Tais características] não apresentam uma
dicotomia estanque, nem sequer um ponto fronteiriço nítido, mas [afirmam]
que esta condição complexa e conflituosa é constitutiva do desenho
(RAYCK, 2009, p. 26-27).
Considera-se assim, que uma proposta de investigação a partir da
linguagem do desenho não tem a pretensão de criar um novo modo de representação
visual ou uma pretensa representação unívoca por meio do desenho - embora, de certa
forma, tal postura não deixe de ser pretensiosa a seu modo. Assim, nesse caso, o que se
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pretende é evidenciar por meio do próprio trabalho a se instaurar a realidade enquanto
possibilidade poética, utilizando a arte do desenho como instrumento de investigação, e
não apenas como objeto.
O desenho então, nesse contexto, se instaura como uma linguagem que
abarca não só o que existe, o que é visível, mas também torna visível, objetivando o
possível! Rayck (2011, p. 96) nos diz que pelo ato de desenhar cria-se uma ficção que
exacerba as características ficcionais do próprio objeto que se desenha. Em outras
palavras, a partir do ato de desenhar cria-se uma ficção; ficção esta, porém, não menos
verídica do que a própria realidade.
Errando melhor
De maneira a inserir o desenho por meio de sua prática no debate sobre a
constituição imagética da realidade, abordarei, neste momento, duas proposições
artísticas realizadas nos meses de setembro e outubro de 2014.
A primeira proposição chama-se ERRE MELHOR4 (figura 2). A
premissa básica da proposta é trabalhar com certa inevitabilidade do erro. Se por um
lado, o erro é sugerido a partir da educação que recebemos sobre o que é certo ou não;
por outro, podemos isolá-lo objetivamente em determinada atividade, como, por
exemplo, durante a execução de determinada música. Mesmo que tal percepção pudesse
não ser aparente a princípio, ERRE MELHOR se desenvolveu na intersecção entre
estas duas abordagens do erro.
Assim, a proposta, desenvolvida durante o dia 16 de setembro de
2014,em horário comercial5, na Universidade Estadual de Maringá, contou com a
participação da violoncelista Karolyni Da Vila no período da manhã e do violonista
Diego Zanata no período da tarde. Ambos tinham que executar músicas que não
dominassem por completo, de modo que erros na execução fossem inevitáveis e
4O título ERRE MELHOR é derivado de uma passagem do texto Worst ward Ho do dramaturgo e escritor
irlandês Samuel Beckett: “All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail
again. Fail betterò (BECKETT, 1983, p. 7). 5A relação estabelecida com a ideia de “horário comercial” – 8h às 12h e 14h às 18h, com o intervalo de 2
horas para almoço entre manhã e tarde – procura refletir a noção implícita de controle e produtividade que
condiciona o cotidiano de grande parte dos trabalhadores.
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ocorressem naturalmente. Ao redor da(o) instrumentista, foram utilizados 16 cavaletes
como suporte para papeis A1,para que eu desenhasse com carvão o/a musicista
enquanto a música era tocada. A medida em que ocorriam erros na execução musical, eu
pausava o desenho que estava fazendo e iniciava outro ao lado, dando a volta e
consequentemente desenhando sobre os desenhos iniciados anteriormente, formando
assim, um acúmulo visual de erros (figuras 1 e 2). Embora tenham havido alguns
atrasos6, além de pequenas pausas para descanso, o trabalho transcorreu de forma
intensa, buscando confrontar entre si as necessidades de urgência e eficiência.
Figura 1 – Diego Zanata e Halisson Jr em ERRE MELHOR, 2014. Foto: Henrique Rozada.
6A instalação onde ocorreria a proposição artística deveria ter sido preparada no dia anterior por
funcionários da UEM, mas, por falha de comunicação interna da instituição, acabou sendo montada no
dia 16, a partir das 8h. Todavia, como se sabe, o erro era um dos pressupostos do trabalho. Tais
imprevistos, como este, constituem assim, parte da proposta.
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Figura 2 – Um dos desenhos em processo durante a realização de ERRE MELHOR, 2014. Foto: Henrique
Rozada.
A partir do erro musical, qualquer possível erro do desenho é redimido ao
se representar visualmente um músico ensaiando. As imagens resultantes certamente
não correspondem à uma representação realística do motivo desenhado, seja devido à
incompletude dos mesmos ou pela sobreposição de traços divergentes; todavia, são
estas mesmas características que permitem uma imagem que emule visualmente um
músico em seu ensaio, se esforçando para acertar as notas, buscando a execução perfeita
dos acordes.
A segunda proposição artística relaciona o desenho com a ideia de
visibilidade. Segundo as previsões de Flusser, o futuro de nossa sociedade se realizará
essencialmente por meio de sua materialização em imagens.
Todas as nossas condições objetivas, inclusive as biológicas, se passam às
nossas costas: elas não nos interessam. Por certo, continuam a se passar:
comemos, copulamos; há ciência, há técnica, há política, há economia. [...]
Mas tudo isso é quimérico; torna-se concreto apenas depois de levado das
costas para novo campo de interesse, ou seja, depois de “traduzido em
imagem”. Doravante, apenas a imagem é o concreto (FLUSSER, 2008, p.
189).
Se, por um lado, tal citação possa parecer absurda a princípio, por outro,
não é difícil identificar algumas de suas características nos dias que se passam. Dentre
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as inúmeras imagens compartilhadas nas mais diversas redes sociais da internet, uma
parte significativa corresponde aos autorretratos fotográficos conhecidos como selfies.
Em uma realidade onde tudo tende à imagem, “a ansiedade parece surgir a partir da
perspectiva de NÃO estar exposto ao olhar do outro o tempo todo”, nos sugere o
filósofo esloveno SlavojŽižek (2002, p. 225, tradução livre do original, grifo do autor).
A “invisibilidade” da proposição que procuro relatar ocorreu de tal
maneira que sequer foi tratada oficialmente como um trabalho artístico, não recebendo
nem mesmo um título, nem que fosse um título “s/ título”. Tal proposição ocorreu no
meu aniversário de 28 anos, no dia 4 de outubro de 2014. Organizei uma festa para
reunir meus amigos e comemorar a data. Como forma de inverter a lógica deste tipo de
evento, onde o aniversariante recebe presentes dos convidados, ofereci com
antecedência um presente a cada um que comparecesse à confraternização: um desenho
da pessoa nua a ser feito durante a festa.
Há certo paradoxo na ideia do “presentear” existente nesta proposição.
Para aceitar e receber o presente, o convidado teve que se desnudar, teve que me
“presentear” com sua nudez. Os desenhos foram feitos à lápis em papeis A4 em um
cômodo fechado e as sessões duraram entre 15 e 20 minutos. Depois de terminado, o
desenho foi entregue à pessoa desenhada dentro de um envelope de modo que ninguém
mais veria a imagem caso ela não quisesse. Em vez da exposição mediatizada pelas
imagens técnicas, na proposição discorrida a exposição foi mediatizada pelo desenho,
alterando os vetores de significação da experiência imagética: o observador é, ao
mesmo tempo, a imagem observada, materializada por mim por meio do desenho de
observação. Certamente houve a influência de minha subjetividade e técnica artística na
realização do desenho. Todavia, tal influência também esteve condicionada à
subjetividade do convidado no momento em que este aceitou participar da proposta,
gerando, assim, um ciclo de significação que possibilita evidenciar poeticamente as
relações entre sujeito e imagem que ocorrem cotidianamente, onde o sujeito subjetiva a
imagem, que, por sua vez, objetiva o sujeito.
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Considerações finais
No trabalho apresentado, procuramos tecer relações que problematizem
as ideias comumente disseminadas acerca da linguagem imagética; colocando em
suspenso, por exemplo, juízos de valor que concebem a fotografia como uma imagem
mais realista que o desenho. Destarte, mesmo considerando tal expressão artística como
uma linguagem visual elementar, as proposições artísticas das quais tratamos não
pretenderam instituir o desenho como representação unívoca da realidade. Antes, se
quis evidenciar a realidade enquanto possibilidade poética, utilizando a arte do desenho
como instrumento de pesquisa, e não apenas como objeto. Assim, distante de querer
buscar uma verdade absoluta da realidade, procuramos abordar aqui a própria noção de
verdade da realidade, questionando esta enquanto algo estabelecido e posicionando-a ao
alcance da ação humana.
Referências
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mídia. São Paulo: Paulus, 2010.
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Paulo, Annablume: 2008.
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GOMBRICH, Ernst H. A história da Arte. 16ª Ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999.
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PORTUGAL, Daniel. O realismo entre as tecnologias da imagem e o regimes de
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RAYCK, Diego. Locus suspectus: o desenho no espaço e os espaços do desenho. 2009.
Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais) - CEART/UDESC,
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