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A IDENTIDADE QUILOMBOLA E O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DE TERRAS
Aline da Fonseca Sá e Silveirai Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
Resumo Sapê do Norte é uma região localizada ao longo dos vales dos rios Itaúnas e Cricaré, situada nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, norte do estado do Espírito Santo. Esta é uma área que abriga cerca de 39 comunidades remanescentes de quilombos que, até os dias de hoje, mantêm certos hábitos que remontam o modo de viver, sua reprodução material, simbólica e afetiva dos tempos da escravatura. No entanto, até a presente data, não houve a titulação das terras quilombolas, como prevê os artigos 215 e 216 da Constituição Federal Brasileira de 1988. O poder público, portanto, negligencia séculos de história construídos pelas comunidades rurais negras para manter os benefícios e os interesses do capital das grandes empresas privadas. Palavras-chave: Sapê do Norte. Identidade quilombola. Políticas públicas. Territorialidade quilombola.
Introdução
A partir dos séculos XV e XVI as potências européias voltaram as suas atenções para a
colonização de territórios recém “descobertos” e/ou tidos como atrasados diante da
cultura européia. Seu principal objetivo era estabelecer novas relações de poder diante
de um novo padrão econômico; o capitalismo. Essas relações instituíam uma
classificação cultural global, onde a racialização identificaria a posição subalterna dos
povos colonizados diante dos colonizadoresii. Ferreira (2009) traduz essa condição
inventada no trecho em que se segue: O novo padrão mundial de poder capitalista determinava as novas identidades sociais e geoculturais dos povos através desta classificação social, que passou a associar a relação de dominação colonial eurocêntrica a uma hierarquia racial. A racialização das relações de poder passaria a identificar no corpo dos povos colonizados a marca de sua inferioridade, grafada e legitimada pelas características fenotípicas. Desta maneira, a situação de dominado e “inferior” atribuída aos povos não-europeus, não-brancos, não-cristãos, não-civilizados e não-des-envolvidos ficava grafada no corpo não-branco, e desta maneira se perpetuaria para além do colonialismo (p. 30-31).
Entende-se, aqui, que todas as formas de colonização são perversas visto que um de
seus objetivos é anular ou enfraquecer a cultura local em detrimento de uma cultura
homogeneizadora retratada através da figura do colonizador e de seus costumes.
Contudo, o caso do continente africano nos causa estupor por sua estupidez e
truculência.
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Desde a antiguidade, a África, a Europa e a Ásia mantinham relações econômicas, mas
a partir do século XV os europeus se apropriaram de parte dos territórios africanos.
Num primeiro momento, estabeleceram-se postos comerciais ao longo do litoral
Atlântico e Índico a fim de se facilitar a chegada à Ásia. Algumas décadas se passaram
e a colonização do continente americano demandou mão de obra barata e abundante.
Tanto no Brasil, quanto nos demais países do continente americano, havia os povos
indígenas que, inicialmente, foram usados como força de trabalho. Essa relação se deu
de forma escrava, mas também remunerada, ou seja, por meio de escambo. Com o
fortalecimento do lucrativo tráfico negreiro, a mão de obra indígena foi abandonada e
passou a ser perseguida e, quando possível, dizimada pelo colonizador.
Os escravos africanos começaram a ser comercializados ainda no século XVI, mas foi
com o ciclo da cana-de-açúcar que o tráfico negreiro se consolidou. Os negros eram
raptados de sua terra e submetidos a uma nova vida. A viagem entre os continentes
africano e o americano acontecia sob condições subumanas, onde cerca de 1/5 do povo
transplantado morria ainda no navio, muitos óbitos eram causados pela má alimentação,
a falta de higiene e consequentes epidemias geradas pelos motivos destacados. Aqueles
que bravamente resistiram a essas condições precárias chegaram muito debilitados e
assombrados com a nova realidade imposta; um lugar desconhecido, com línguas
distintas e, algumas, totalmente desconhecidas, além de costumes e culturas muito
distantes daquelas praticadas em solo africano. Ferreira (2009) destaca a importante
mudança ocorrida entre o colonizador e o negro africano assim que estes chegaram em
solo brasileiro:
Em decorrência desta inserção subalterna no mundo colonial, os africanos escravizados representavam vantagens ao colonizador em relação aos povos originários da América, tão conhecedores de seu próprio território, que passava a ser expropriado pelo europeu. A despersonalização do africano escravizado ficava ainda mais evidente no momento do desembarque no Brasil, quando eram batizados sob a égide cristã e passavam a ser designados como bem semovente de seus proprietários, que poderia ser alugado, leiloado, penhorado e hipotecado (p.68).
A reflexão destacada acima mostra que assim que o africano chegava à colônia
portuguesa, dois fortes laços com sua cultura eram “rompidos”. A tentativa do
rompimento com a fé e o impedimento do livre arbítrio do negro escravizado era
sustentada pela disseminação do medo e do controle exercido pelos senhores e pela
Coroa Portuguesa. Os exemplos mais recorrentes da imposição do medo e do controle
se sustentavam nas humilhações físicas e morais.
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Como a condição de escravo era determinada apenas pelas suas características físicas
(raça), em caso de fuga, a inserção social era praticamente impossível, além de sofrerem
com profissionais especializados na captura do fugitivo, os capitães do mato e a rede de
informação estabelecida entre os senhores. O estigma racial foi determinante para a
manutenção da escravidão por mais três séculos no Brasil.
A retirada forçada de seu território, o trabalho escravo e as condições subumanas a que
os negros eram submetidos, prontamente os indignaram. Essas insatisfaçõesiii os
motivaram a encontrar e tecer uma nova forma de sobreviver e, então, os quilombos
foram sendo confabulados e, então, formados. Para que um quilombo tivesse êxito era
importante que o seu acesso fosse limitado às ordem senhoriais e que, em caso de
invasão, a fuga acontecesse em condições vantajosas.
No entanto, da mesma forma que o medo era a arma usada pelos brancos contra os
negros, como forma de repressão, as insatisfações escravistas também causavam o
temor da elite branca. Com a intensificação dos protestos contra a escravidão, que
culminou na proibição do tráfico negreiro (Lei Eusébio de Queirós – 1850) e na Lei do
Ventre Livre (1871), o controle sobre os escravos começava a diminuir e a extinção da
escravidão já soava inevitável.
Ainda que a escravidão tenha sido abolida é sabido que a relação imposta entre os
senhores e os negros pouco mudou. As grandes propriedades de terra, ainda que
continuassem a pertencer à Coroa Portuguesa, elitizavam o acesso à terra e priorizavam
a sua posse pelas famílias portuguesas. Desde então, tem-se uma divisão social do
trabalho e política bem definida e uma corrida desigual pelas posses das terras; além da
condição social perversa imposta desde que este sistema foi implementado pelos
colonizadores. Situação, esta, que, ainda nos dias de hoje, pode ser observada tanto nos
grandes centros urbanos (periferias e subúrbios) como nas zonas rurais.
Os quilombos e a identidade quilombola
De acordo com Andrelino Campos, a denominação quilombo surgiu em função de uma
consulta realizada pelo Conselho Ultramarino (1740) ao Rei de Portugal, que, em sua
resposta, dava o nome de quilombos para toda habitação composta por mais de cinco
negros, geralmente em regiões despovoadas (2010:32). Por ser uma denominação
oficial, o conceito de quilombo supracitado passou a ser considerado pelo povo e muitos
cientistas sociais como tal. No entanto, não compartilhamos desse mesmo conceito, mas
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sim àquele elaborado por Sodré, “o quilombo não foi apenas o grande espaço de
resistência guerreira, mas representava recursos radicais de sobrevivência grupal, com
uma forma comunal de vida e modos próprios de organização” (Sodré apud Campos,
2010:32).
Acredita-se, no presente trabalho, que quilombos, mocambos ou terras de preto são
algumas das denominações de grupos sociais descendentes de escravos que resistiram e
se rebelaram contra o regime vigente na época. Esses territórios são entendidos como
independentes e forjados através da comunhão de um ideal comum: onde a liberdade
(do regime escravocrata) e os laços de solidariedade formaram um dos pilares para a
reconstrução da identidade negra.
É preciso enfatizar que muitos desses grupos se formaram antes da abolição da
escravatura, mas houve aqueles que se constituíram após esse momento. O governo, por
sua vez, não elaborou nenhuma política de integração dos quilombos, o que obrigou aos
quilombolas a desenvolverem suas próprias formas de organização. Esse isolamento
favoreceu o enaltecimento de suas manifestações culturais, bem como a organização
social, produtiva e religiosa, valorizando, portanto, características da etnicidade negra
africana.
As principais características das comunidades remanescentes de quilombos são:
predominantemente rural, onde são realizadas atividades de subsistência e extrativistas,
agricultura, pesca e pecuária tradicional, artesanato e agroindústria tradicional.
Geralmente, as comunidades conjugam territórios individuais, para cada família, e áreas
de uso comum, onde se configuram as atividades produtivas de maior porte e/ou
atividades de caráter extrovertido.
A territorialidade e a identidade quilombola em Sapê do Norte-ES
De acordo com a geógrafa Simone Raquel Batista Ferreira (2009), o espaço apropriado
pelas comunidades quilombolas de Sapê do Norte está organizado de modo peculiar e
reproduzem um modo de vida característico de suas tradições, a ver: A identidade de Sapê do Norte está vinculada à campesinidade negra presente nas terras de preto. Sua origem comum, os laços de parentesco, casamento endogâmico, saberes tradicionais e o modo de vida sempre inserido num padrão conflitivo com o sistema dominante tecem identidade neste espaço apropriado.
Sob quaisquer origens, as terras de preto trazem em si a história de afirmação étnica de uma população negra outrora escravizada (...). Ali, os antigos escravos passaram a se afirmar enquanto grupos familiares que produziam
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sua existência material através de práticas agrícolas, pastoreio e atividades extrativistas realizadas a partir do uso comum de determinados recursos, organizando-se num modo de vida peculiar, onde a terra representa a sustentação de vida (p. 11).
O trecho destacado se refere às diferentes formas de se viver contrária as práticas do
sistema econômico vigente, onde é clara a ausência de um espaço comunitário, premissa
para um modo de vida apresentado pela autora. Para tanto, desde o final da década 80,
intelectuais têm pensado e formulado projetos-lei que garantem o direito à terra aos
quilombolas como forma de permitir a continuidade das manifestações culturais
populares, indígenas e afro-brasileiras, consideradas patrimônio brasileiro (Artigo 215
da Constituição Federal Brasileira de 1988).
De uma forma geral, os quilombos desenvolveram uma relação peculiar com a natureza
e os quilombolas se transformaram em camponeses. Em determinados biomas, os
quilombolas se tornaram extrativistas, nas comunidades estabelecidas nas margens de
rios tornaram-se pescadores e ribeirinhos e nos locais interiores, agricultores.
A relação sociedade-natureza e/ou homem-meio, se deu, até os dias de hoje, de maneira
sustentável, ao passo que a manutenção da biodiversidade e da cultura afro-brasileira se
deu sem repercutir no temor de um possível colapso das gerações futuras, ao contrário
do que pode ser visto nas relações travadas no meio urbano.
O território quilombola deve ser delimitado a partir da identificação das formas
tradicionais de apropriação local, o que indica as práticas que remetem aos seus
ancestrais, assim como o suprimento da necessidade do grupo. Dentro deste território,
por ora delimitado, apresentam-se a(s) identidade(s) quilombola(s) das comunidades de
Sapê do Norte – ES.
A identidade quilombola das comunidades de Sapê do Norte está atrelada à
campesinidade. Laços de parentesco, a origem convergente, o casamento endogâmico,
os saberes tradicionais e o modo de vida peculiar são características gerais de sua
identidade.
A comunidade quilombola começou a se formar com a chegada de escravos fugitivos e
forros que viram em Sapê do Norte uma região propicia para a realização de práticas
agrícolas, pastoreio e extrativistas que visavam, primeiramente, sua sobrevivência.
Essas atividades eram realizadas a partir do uso comum das terras e dos recursos
naturais.
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De acordo com a fala dos próprios quilombolas, “a terra era rola”, ou seja, as terras não
tinham donos fixos, o que permitia a alternância de suas moradias, conforme a
necessidade na lida. As terras não configuravam como propriedade particular. O que
poderia ser vendido, conforme a vontade do “dono”, eram as construções (casas,
currais), mas a terra em si não era vendida. O que mostra a lógica camponesa de que a
terra não é tida como mercadoria, mas sim como patrimônio.
A reciprocidade das atividades quilombolas se faz presente na prática campesina e
também nos “ajuntamentos”, mais conhecido como mutirão. O que, mais uma vez,
evidencia as relações solidárias entre os moradores. Esses ajuntamentos eram realizados
para a derrubada da mata para dar lugar a roça, para a colheita ou para a construção de
casas.
Manifestações religiosas ainda são realizadas como memória da religiosidade negra, são
elas: “mesas de santo”, “cabula” ou “pemba”, regidos por Santa Bárbara, Santa Maria,
Cosme e Damião e São Cipriano, combinados com outros ritualistas como as
benzedeiras e rezadores. O sincretismo é latente, a religiosidade quilombola é uma
mescla de rituais com fortes traços afro-brasileiros, onde há a presença de entidades,
como os pretos velhos e caboclos, conjugada com santos cristãos (FERREIRA, 2009).
Entende-se, contudo, que não é possível abordar a questão da identidade de uma
determinada comunidade sem atrelar a ela o seu território e sua territorialidade. Para que
o debate tenha consistência, buscaram-se, brevemente em alguns autores, referências
para o entendimento dos conceitos de território e territorialidade.
A territorialidade pode ser entendida como uma forma espacial de comportamento
social, relacionada à utilização local por uma determinada sociedade que se estabelece
de forma histórico-social. Sua organização no espaço e no tempo garante particularidade
e permite o entendimento das relações entre a sociedade e o espaço (SACK, 1986).
Para somar a compreensão do inglês Robert Sack, Marcelo José Lopes de Souza
apresenta três definições do conceito de território, mas o autor é evidenciado pela ideia
de território como “o espaço concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente
construídos) que é apropriado, ocupado por um grupo. (...) um grupo não pode ser mais
compreendido sem o seu território” (p. 84).
E segue, ainda em SOUZA (2007:86): Aqui, o território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders).
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A partir dos anos 1960, com a chegada da empresa Aracruz Celulose S.A. na região em
debate, conflitos se iniciam. A floresta começou a ser derrubada para dar lugar à
monocultura do eucalipto em larga escala, num primeiro momento para a geração de
carvão vegetal (matéria-prima para a geração de energia para a siderurgia) e
posteriormente, e até os dias atuais, para a produção de celulose. Há, também, a
presença do cultivo de cana-de-açúcar para a produção de álcool. Esta é desenvolvida
pelas empresas DISA – Destilaria Itaúnas S.A. e ALCON – Álcool de Conceição da
Barra, ambas incentivadas pelo Proálcool, ainda na década de 1980.
Essas práticas monocultoras foram responsáveis pela enorme diminuição da diversidade
biológica local, consequentemente as comunidades dependentes desta biodiversidade
também foram afetadas. Pôde-se observar a diminuição significativa da pesca, frutos,
caças, disponibilidade de água e o espaço comum à comunidade usado para a prática da
agricultura itinerante.
As contaminações da água (lençol freático), do solo e do ar também podem ser
observadas e são consequências do largo uso de agrotóxicos e outros venenos. Muitos
córregos e nascentes encontram-se secos, o que representa uma ameaça aos povos do
local e é, consequentemente, a maior problemática relatada pelos indivíduos das
comunidades. Vale ressaltar que os camponeses têm os córregos como principal
referência para a construção de suas moradias, visto que a água é um recurso primordial
para a sua existência.
Há um grande percentual de ex-moradores das comunidades de Sapê do Norte que,
hoje, estão vivendo nas áreas periféricas das cidades do entorno, como São Mateus,
Conceição da Barra, Linhares e Grande Vitória, haja vista a dificuldade que o manejo
perverso das empresas imprimiu sobre a vida dos moradores. Os que permaneceram em
seu local de moradia encontram-se nucleados pelos extensos cultivos do eucalipto.
Consequentemente, a prática da agricultura itinerante realizada há décadas pelos
quilombolas foi interrompida, bem como diversas atividades que dependiam do
território estabelecido antes da chegada das empresas monocultoras.
Pode-se observar que em Sapê do Norte as territorialidades são conflitantes, pois se de
um lado as comunidades negras apresentam fortes laços de pertencimento e identidade
com o lugar, por outro a empresa monocultora de eucalipto se coloca há 50 anos como
umas das maiores produtoras de celulose e tem como premissa a acumulação de
riquezas. As diferentes territorialidades que se impõem são fortes e divergentes e os
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diálogos, entre os atores, não são compreendidos, pois não compartilham de ideologias
convergentes.
Sob a ótica deste ensaio, encara-se o território como um “espaço definido e delimitado
por e a partir de relações de poder” (SOUZA, 2007:78), logo não é possível considerar o
conceito de território sem que se analise, conjuntamente, o conceito de poder.
Para Hannah Arendt apud SOUZA, poder é algo inerente de um determinado povo. O
poder não existe sem o seu povo para legitimá-lo, como o trecho destacado: “O poder
corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em
comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo
e existe apenas enquanto o grupo de mantiver unido” (p.80). O poder entre as
comunidades, no entanto, se estabelece diferentemente do poder estabelecido pela
empresa que, muitas vezes, é interpretado como uma forma de violência contra os
moradores tradicionais.
Diante da problemática exposta, entende-se que para que a cultura tradicional
quilombola não se perca é imprescindível que se faça o reconhecimento e titulação das
terras habitadas por este grupo.
O processo de reconhecimento de terras
A Constituição Federal Brasileira reconhece as manifestações culturais populares,
indígenas e afro-brasileiras, como patrimônio brasileiro e portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da nossa sociedade
(Artigos 215 e 216 da Constituição Federal Brasileira de 1988). E segue construindo o
arcabouço necessário para a consolidação de uma política que contemple, além das
manifestações culturais, as fronteiras territoriais inerentes às comunidades em questão.
DECRETO N° 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003 Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 49, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008
Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.
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Art. 1º. Estabelecer procedimentos do processo administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos.
Art. 3º. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-definição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. Art. 4º. Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
ART. 68 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
A Fundação Palmares, instituição pública vinculada ao Ministério da Cultura, criada em
1988, foi o primeiro órgão criado a fim de promover e preservar a cultura afro-
brasileira, formulando e implantando políticas públicas que fomentem a participação da
população negra no Brasil. Sua principal atuação está na promoção da igualdade racial,
bem como a valorização, difusão e preservação da cultura negra; garantindo, portanto, o
respeito às diferentes identidades do povo.
Para tanto, a atuação da Fundação Palmares compreende a preservação do patrimônio
cultural material e imaterial afro-brasileiros; onde os patrimônios culturais materiais são
físicos, ou seja, aqueles que podem ser acessados, quais sejam: arqueológico,
paisagístico, etnográfico, entre outros. Já os imateriais são aqueles que, de acordo com a
Unesco, representam “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
e também artefatos e lugares que lhe são associados e as comunidades, os grupos e, em
alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural” (Unesco.org).
É importante frisar que o órgão responsável pelo tombamento de bens culturais e
proteção do patrimônio cultural material e imaterial é o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), a Fundação Palmares se responsabiliza pelas ações
relacionadas aos bens culturais afro-brasileiros. Já o INCRA (Instituo Nacional de
Colonização e Reforma Agrária), tem como finalidade a delimitação, demarcação e
titulação definitiva dos territórios quilombolas. Em outras palavras, a Fundação
Palmares propõe programas e projetos de valorização da cultura afro-brasileira,
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identificam seus patrimônios culturais materiais e imateriais, o IPHAN reconhece e
tomba os patrimônios citados e o INCRA dá a titulação definitiva aos quilombos que se
autorreconhecem como comunidades remanescentes de quilombos, segundo o Decreto
4.887/2003.
O reconhecimento de terras nas comunidades quilombolas em Sapê do Norte – ES
Das 39 comunidades levantadas pela pesquisadora Simone Raquel Batista Ferreira,
através da pesquisa Territórios Negros do Sapê do Norte (2003), realizada sob a
coordenação das organizações não-governamentais Koinonia – Presença Ecumênica e
Serviço (RJ) e FASE – Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (ES),
apenas 30 delas foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (tabelas 1 e 2).
É importante frisar que o Espírito Santo foi um dos principais portos do Brasil, o 3º
maior porto de chegada da mão de obra escrava negra (perdendo apenas para Bahia e
Rio de Janeiro) e, até a presente data, não há registros de terras quilombolas tituladas
pelo INCRA.
Tabela 1: Comunidades negras do Sapê do Norte Comunidade Município N° de famílias
Dona Guilhermina Conceição da Barra 6
Córrego Santa Isabel Conceição da Barra 23
Córrego do Sertão Conceição da Barra 14
Angelin 1 Conceição da Barra 21
Angelin 2 Conceição da Barra 17
Angelin DISA Conceição da Barra 6
Angelin 3 Conceição da Barra 12
Córrego do Macuco Conceição da Barra 8
Linharinho Conceição da Barra 42
Roda D’água, Porto Grande, Campo Grande e Lage
Conceição da Barra e São Mateus
13
Córrego São Domingos e Retiro Conceição da Barra e São Mateus
81
Córrego Santana Conceição da Barra e São Mateus
33
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São Jorge, Córrego do Sapato e Morro das Araras
São Mateus 80
Nova Vista 1 e Nova Vista 2 São Mateus 105
Dilô Barbosa São Mateus 52
Chiado e Contena São Mateus 53
Santaninha São Mateus 37
São Domingos de Itauninhas São Mateus 60
Cacimba São Mateus 24
Serraria e São Cristóvão São Mateus 52
Mata Sede São Mateus 45
Beira-Rio e Arural São Mateus 87
Córrego Seco São Mateus
Estiva São Mateus
Divino Espírito Santo São Mateus 40
Santa Luzia São Mateus 31
Pequi São Mateus
Palmitinho 1 e Palmitinho 2 São Mateus 77
FONTE: FERREIRA, S.R.B. “Donos do Lugar”: a territorialidade quilombola do Sapê do Norte – ES,
2009.
Tabela 2: Comunidades negras do Sapê do Norte reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares
Comunidade Município Data da Publicação
Angelin 1 Conceição da Barra 10/12/2004
Angelin 2 Conceição da Barra 10/12/2004
Angelin DISA Conceição da Barra 10/12/2004
Angelin 3 Conceição da Barra 10/12/2004
Linharinho Conceição da Barra 30/09/2005
Córrego do Sertão Conceição da Barra 13/12/2006
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Córrego Santa Isabel Conceição da Barra 13/12/2006
Dona Guilhermina Conceição da Barra 13/12/2006
Roda D’água Conceição da Barra 13/12/2006
Santana Conceição da Barra 13/12/2006
Santaninha Conceição da Barra 13/12/2006
São Jorge São Mateus 30/09/2005
Córrego do Sapato São Mateus 30/09/2005
Morro das Araras São Mateus 30/09/2005
São Cristóvão São Mateus 28/07/2006
Serraria São Mateus 28/07/2006
Beira-Rio e Arural São Mateus 13/12/2006
Cacimba São Mateus 13/12/2006
Chiado São Mateus 13/12/2006
Córrego Seco São Mateus 13/12/2006
Dilô Barbosa São Mateus 13/12/2006
Mata Sede São Mateus 13/12/2006
Nova Vista São Mateus 13/12/2006
Palmito São Mateus 13/12/2006
São Domingos de Itauninhas São Mateus 13/12/2006
FONTE: Fundação Cultural Palmares (acesso em 08/06/2012 às 22:14h).
Considerações Finais
Em consonância com o pensamento de Giuseppe Dematteis, o território deve ser
entendido como produto social, lugar de vida e de relações, mas também produtor e
produzido por forças econômicas, políticas e culturais (Saquet, 2009) que se assentam
em diferentes relações de poder (Raffestin, 2011). E por isso que o presente trabalho
defende o reconhecimento e o título das terras quilombolas como forma de manter a
cultura e a(s) identidade(s) de um grupo historicamente marginalizado. É o que Roberto
José Moreira chama de identidade social, aquela que “carrega tudo aquilo que foi, criou
e tornou, bem como tudo aquilo que incorporou da sociedade, conscientemente ou
inconscientemente” (2005:17). Não é possível falar sobre um grupo determinado sem
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contemplar as suas relações, pois são nelas em que cada identidade se expressa, através
das múltiplas ordens de pertencimento (materiais, afetivas, de pertencimento familiar,
entre outras) que se dão transversalmente nas redes de relacionamento. Sendo assim,
cada indivíduo que rompe com suas tradições, em busca de emprego nas cidades
vizinhas, além de se distanciar de suas raízes, enfraquece a rede relacional da(s)
identidade(s) quilombola(s) que, como já afirmamos, é baseada em cada elemento da
comunidade.
É possível afirmar que a territorialidade é construída, desconstruída e reconstruída, no
entanto, sabe-se que a manutenção do território ocupado há séculos pelos quilombolas
garante a continuidade do modo de viver que lhes é inerente, “... os homens vivendo em
sociedade, territorializam suas atividades, nas quais, há a reciprocidade e coexistência
(...), a natureza também está presente, como fator de diferenciação, juntamente com o
processo histórico, societário, que deixa formas no território” (Dematteis apud Saquet,
2009). Ou seja, ainda que os povos se reterritorializem, a reciprocidade com o meio será
diferenciada, portanto, novas maneiras de viver se desenrolarão, perdendo as suas
características histórico-sociais construídas há, pelo menos, três séculos.
E para concluir, faz-se necessário citar Roberto José Moreira, que nos contempla com a
afirmativa: “No que nos concerne no momento, as mais diferentes noções de rural e de
ruralidades remetem-nos à proximidade com a natureza, o solo, a terra, as estações e os
climas, suas vegetações e animais, produzindo objetividades, subjetividades,
espiritualidades e sensibilidades rurais” (2005:28). Tal como a tradição rural negra de
Sapê do Norte que, em meio a tantos obstáculos impostos pelos interesses das grandes
empresas privadas e da inação pública, sobrevive, ainda que nucleadas espacial e
tradicionalmente.
Fazer valer as políticas públicas já existentes é coadunar os interesses de uma pequena
parcela da população, que ainda tem muito para ensinar e (re)construir vivências junto à
sociedade, e acreditar que a legislação e o poder público estão ao lado da população,
contemplando as diferenças como a grandiosidade de um povo forjado de culturas
híbridas.
Notas i Graduada em Geografia pela UFF, Pós-Graduada em Relações Etnicorraciais pelo CEFET/RJ e mestranda em Geografia pela UERJ. ii A escravidão é uma prática muito antiga, talvez tão remota quanto a história da humanidade. No entanto, a forma mais conhecida desta prática foi aquela estabelecida entre conquistadores e “conquistados”, onde aqueles impunham uma condição de subserviência a estes.
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iii Das diversas manifestações de insatisfação, as mais comuns foram as fugas desesperadas, o suicídio por ingestão de terra e envenenamento, o aborto (a fim de “libertar” o próprio filho da escravidão futura) e a criação de irmandades negras. Referências BAUMAN, Zigmund. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. 3ª edição – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. CANCLINI, N.G. Culturas Híbridas. 4ªed. São Paulo: EDUSP, 2003, pp. XVII-XL. CARRIL, Lourdes Fátima Bezerra. Quilombo, Território e Geografia. Agrária, São Paulo, N.3, pp.156-171, 2006.
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