a identidade nacional portuguesa

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    A questo das identidades pessoais ou coletivas, sociais, locaisou nacionais sem dvida das mais controversas, levantandoproblemas filosficos e epistemolgicos demasiadamente mal resol-

    vidos at hoje, na minha opinio, por resvalarem com excessiva fre-qncia para o essencialismo identitrio. Foi por isso, creio eu, que ahistoriografia convencional se manteve ctica e mesmo distante pe-rante a questo das identidades.

    S h cerca de um quarto de sculo, com a eroso paulatina do para-digma da histria estrutural da primeira Ecole des Annales,correlativapor seu turno eroso das clivagens polticas tradicionais subjacen-tesformaodamaioriadosatuaisregimesrepresentativos 1, quea

    questo da identidade nacional comeou a adquirir, sob a influnciacrescente da antropologia e da sociologia ps-modernistas2, um pa-pelcadavezmaisimportantenapesquisaeinterpretaohistoriogr-ficas.

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    * Este texto foi inicialmente escrito a convite do professor Lus Ado da Fonseca para aMesa-redonda sobre Identidades Nacionais no Mundo Luso-Brasileiro da Sesso deHistria do Congresso Brasil-Portugal realizada em Salvador, Bahia, 22-24 de novem-bro de 2000.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, no 3, 2003, pp. 513 a 533.

    A Identidade Nacional Portuguesa: Contedo eRelevncia*

    Manuel Villaverde Cabral

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    Permaneceirresolvida,contudo,noestudodasidentidadesnacionaismodernas a controvrsia acerca do primado da Nao sobre o Estadoou deste sobre aquela. E mais complexo ainda , seguramente, o esta-

    tuto das identidades antigas, isto , anteriores Revoluo America-na, ativao poltica explcita do patriotismo pela Revoluo Fran-cesa e, posteriormente, pela ecloso de movimentos de independn-cia nacional desde o sculo XIX at ao perodo da chamada Descoloni-zao.

    INSTRUMENTALISTAS, PRIMORDIALISTAS E CONCILIADORES

    Com efeito, parecem-me incontornveis alguns dos argumentos

    que no todos dos autores que, como Ernest Gellner (1993), confe-rem ao Estado uma espcie de primado emprico sobre a Nao e acorrelativa identidade, que surgiria ento como o resultado por as-sim dizer, compensatrio de processos de aculturao individuali-zantes e desenraizadores como a urbanizao, a industrializao e aprpria alfabetizao, em suma, aquilo a que, na sociologia histrica,se d vulgarmente o nome de modernizao.

    Para Gellner, como sabido, o primado do Estado sobre a Nao, quede algum modo reduz as chamadas identidades nacionais a uma di-menso virtualmente instrumental, pode ser resumido em mensa-gens de cariz algo provocatrio como: Dem-me um Estado e eu vosdarei uma Nao ou As etnias de hoje so naes mal sucedidas; asnaes de hoje mais no so do que etnias bem-sucedidas! (idem).

    Domesmomodo,porm,sodificilmenterefutveisalgunsdosargu-mentos que no todos, tambm daqueles que, como Anthony

    Smith (1986), defendem que nenhuma elite guerreira, cultural e/oueconmica seria suscetvel de fundar um Estado se as massas queessa elite pretende representar e dirigir no possussem, partida,uma qualquer identidade coletiva referida ao territrio objeto desseEstado. Resta saber se esta ltima corresponde, efetivamente, quiloqueosdefensoresdonacionalismoculturalepolticodesignamcomoidentidade nacional.

    Uma verso extrema dessa corrente essencialista mais adequada-

    mentedesignada,porventura,comoprimordialista,conformesugerePaul Brass (1994) pode encontrar-se, por exemplo, em um livro doantroplogo de origem catal Josep Llobera, com a sua introduo da

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    noo de potencial tnico contra qualquer idia de inveno datradio. Com efeito, logo de incio, Llobera introduz essa idia deum potencial etnonacional como um conceito fundamental da sua

    teoria, acrescentando imediatamente que: O potencial etnonacionalaparece no perodo moderno como umdom: uma regio tem esse po-tencial ou no o tem (Llobera, 1996:13, nfases minhas).

    E para que no subsistam dvidas quanto natureza primordialistadessa noo, j antes o autor havia escrito: Nas suas origens e na suaessncia, a identidade nacional uma tentativa depreservaros costu-mes dos nossos antepassados [...] O nacionalismo pe em destaque a

    necessidadedas razes e da tradio na vida de qualquer comunidade;evoca a posse comum de uma rica herana de recordaes (Renan)(idem:11,nfasesminhas).Preservarenecessidadeso,porassimdizer, as palavras-chave dessa concepo primordialista da identida-de.

    Atribuindo Nao o carcter sagrado que herdou da religio, Llo-bera conclui, em oposio radical s teses do primado emprico do

    Estado sobre qualquer identidade nacional, que o grau de xito daspolticas de construo da nao projetadas pelo Estado est em rela-o direta com o maior grau de homogeneidade nacional tnica queexiste em um pas (idem:289-290). Paradoxalmente, no mesmo livroonde o caso da Catalunha abundantemente abordado no contextoibrico,oautorconsideraqueofatodePortugalseterconvertidoemum estado independente e de ter permanecido como tal foi, em gran-de medida, o resultado de um acidente histrico ( idem:111-112).

    possvel que assim tenha acontecido, mas essa concluso no se li-mitaaferirasconvicesdosnacionalistasportugueses,emcontrastecom a firme convico do autor a respeito do potencial etnonacio-nal da Catalunha, apesar de esta no ter logrado transformar essepotencial em Estado, nem na mesma altura em que o Estado portu-gus conseguiu recuperar sua autonomia em relao ao rei de Espa-nha no sculo XVII nem mais tarde. Estranhamente, o autor no utili-za uma nica referncia portuguesa clssica acerca da formao do

    Estado e da Nao portugueses, nem muito menos qualquer refern-ciaatualizada,comoseriaocasodeJosMattosoeAntnioHespanha(ver adiante).

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    Narealidade,avisoqueLloberaapresentadocasoportugusnosinverte radicalmente tudo quanto ele prprio afirmara acerca do pa-pel subordinado do Estado na construo da Nao, como mostra que

    toda e qualquer concepo primordialista da identidade nacional en-tra, rapidamente, em flagrantes contradies sempre que muda denao de referncia: o que serve de identidade a umas naes pare-ce j no servir a outras, pois, no caso portugus, o xito do Estado na-cional j no serviria como comprovao do potencial tnico, parausarasexpressesdoprprioLlobera.NoporacasoqueRenan,hpouco invocado por Llobera, confessava no prprio livro onde per-guntavaQuest-ce quune nation(1882): O esquecimento e mesmo oerro histrico so factores essenciais na formao de uma nao, e por isso que o progresso dos estudos histricos constitui um verda-deiro perigo para a nacionalidade (RenanapudGuiomar, 1974:5).

    Com efeito, j um autor como Paul Brass, embora reconhecendo ha-ver alguns aspectos da formulao primordialista com os quais no difcil concordar, insistira simultaneamente em que

    [...] o estudo da etnicidade e da nacionalidade , em larga medida, o

    estudo de mudanas culturais politicamente induzidas. Mais precisa-mente, o estudo do processo atravs do qual as elites e contra-elitesinternas aos grupos tnicos selecionam determinados aspectos dacultura do grupo, atribuindo-lhes novo valor e significado, e usan-do-os como smbolos para mobilizar o grupo, defender os seus inte-resses e competir com outros grupos (Brass, 1994:83-87).

    Trata-se, em suma, de uma concepo bastante prxima de Gellner,aoconcederamplamargemscontingnciashistricaseatgeogrfi-

    cas na construo das identidades etnoculturais.

    A verdade, porm, que tambm no se pode dizer que a conhecidatese de Benedict Anderson (1993) sobre as comunidades imagin-rias3 onde o autor procura de algum modo conciliar as concepesprimordialistas com as concepes instrumentais da identidade na-cional tenha logrado superar de forma conclusiva a controvrsia so-

    bre a primazia da Nao ou do Estado nos processos identitrios me-

    diante a tentativa de deslocar a nfase do debate para as interaessimblicas e materiais entre comunidade e Estado na construo dasidentidades nacionais hodiernas.

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    Algo de semelhante acontece, tambm, com a idia da inveno datradio proposta por Hobsbawm (1985), em que o autor propeuma tese igualmente conciliatria sobre o papel do Estado na atuali-

    zaonormativadossentimentosnacionais,inclusivenombitodastradies lingsticas e religiosas, habitualmente inscritas nas alega-das matrizes identitrias. No caso portugus, investigaes recentestm mostrado, efetivamente, que a difuso e padronizao da lnguaportuguesa esto longe de ter precedido a constituio do Estado, ha-vendo pelo contrrio exigido freqentes intervenes estatais no sen-tido de estabelecer normativamente a tradio, pelo menos desde oreinado de D. Dinis na viragem do sculo XIII para o sculo XIV (Mar-quilhas, 2000).

    E no necessrio recordar que tambm a unidade religiosa da atualnao portuguesa no se fez sem a represso promovida, recorrente-mente, pela aliana entre o Estado e a Igreja catlica, no s contramuulmanos e judeus, mas tambm contra todas as manifestaes daReformaemPortugal;inversamente,saapropriaodoaparelhodeEstado pela contra-elite liberal permitiu consagrar e apenas de for-ma temporria e precria a separao entre Igreja e Estado; nas anti-

    gas possesses ultramarinas portuguesas onde no houve coloniza-o propriamente dita, ou seja, povoamento portugus, a influnciacultural nacional ainda hoje observvel se deve, freqentemente,mais ao papel da Igreja do que ao do Estado e das instituies da so-ciedade civil.

    Contas feitas, no presente estado da questo, sou tentado a ver emabordagens conciliadoras, como as de Anderson e Hobsbawm, as so-lues disponveis mais adequadas para o estudo sincrnico dasidentidades empricas, desde que aceitemos abandonar ao indecid-vel histrico a sua dimenso diacrnica e, por maioria de razo, assuas origens fundacionais. Esse meio-caminho entre as concepesinstrumental e primordial da identidade nacional tambm retoma-do, alm de Paul Brass, citado h pouco, por autores associados aoschamados estudos ps-coloniais, como Homi Bhabha (1990). Em con-trapartida, que os defensores mais acrrimos do primado ontolgicodaNao,nosentidodeunidadeetnoculturalqueatribuemaotermo,

    como Smith e Llobera, desqualificam as teses conciliatrias por cede-rem, em ltima instncia, primazia emprica do Estado na constru-o contingente das chamadas identidades nacionais.

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    GENEALOGIAS DA IDENTIDADE NACIONAL PORTUGUESA

    Para o caso da identidade nacional portuguesa, basicamente uma

    abordagem conciliatria a adotada, por exemplo, por Jos Mattosonos seus estudos sobre a identidade portuguesa. O autor no s resis-te ao essencialismo identitrio como chega a dar formalmente a pri-mazia ao Estado no processo de construo da Nao, nomeadamen-te no seu recente livro sobreA Identidade Nacional: O que cria e sus-tenta a identidade portuguesa , de facto, o Estado (Mattoso,1998:82-83). Todavia, o autor tambm no deixa de interrogar-se, na-quele e em outros trabalhos como medievalista especializado no pe-rodo da formao do Estado portugus ao longo da primeira metade

    do sculo XII, sobre algo que se poderia designar, na linha do poten-cial etnonacional de Llobera, como a existncia de Portugal antesde Portugal, perguntando-se s vezes se no seriam j portugue-ses os habitantes do futuro Portugal? (Mattoso, 1991; 1992).

    Desde logo, porm, tais portugueses nunca seriam, do ponto devista emprico e de acordo com o prprio Mattoso, mais do que os ha-

    bitantes de uma estreita faixa territorial do Norte do pas entre o rioMinho e o rio Douro, quando muito entre os rios Minho e Mondego,masnoincluiriamnemoshabitantesdeLisboanem,decididamente,osdetodoessevastoPortugalmediterrnicosituadonasmargensea sul do rio Tejo (Silbert, 1966). Um argumento suplementar contra aconcepo da nao como etnia residiria, apesar da naturalizao danao portuguesa decorrente da longa durao e da continuidadedo Estado nacional, no fato de a sociedade portuguesa no constituir,manifestamente, do ponto de vista das tradies culturais, uma et-nia, mas sim vrias, pelo menos duas, conforme se pode ainda ver,

    hoje em dia, atravs, por exemplo, dos mapas do comportamentoeleitoral,maximenas eleies presidenciais de 1986 e de 1996.

    Comefeito,porforadadrsticareduoimpostapelomecanismodaeleio presidencial em dois turnos, a continuam a espelhar-se osdois grandes espaos culturais que esto na origem do territrio naci-onal, bem como as tradicionais clivagens a eles associadas, basica-mente: Norte/Sul e campo/cidade, dobradas pelas diferenas indu-zidas pela evoluo histrica da implantao do catolicismo e tam-

    bm pelas clivagens centro/periferia e proprietrios/assalariados(Cabral,1992).Alis,dopontodevistaetnolgico,nomeadamentedacultura material, esses espaos no seriam apenas dois, mas sim

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    trsdeacordocomosestudosdeJorgeDias(1982)edeOrlandoRibei-ro (1998). Porm, do ponto de vista sociocultural e, em particular, doponto de vista poltico, so as tenses entre um Norte tradicionalista

    e conservador e um Sul progressista e inovador que sobressaem(Mattoso, 1998:79-81, maxime80; 1991,II:215 e ss.). Com conotaesideolgicas opostas, j Baslio Teles (1901) havia codificado no finaldo sculo XIX essa profunda clivagem poltica.

    Poroutraspalavras,mesmoquefossepossvelreconduziraoNoroes-te atlntico do Portugal atual um potencial etnonacional qualquer,todo o resto do territrio portugus metade ou mais dele, incluindoafuturacapitaldoreinoteriasido,porassimdizer,anexadoenacio-

    nalizado a partir de cima, do duplo ponto de vista territorial e simb-lico, isto , pela elite nortenha guerreira e catlica capitaneada porAfonso Henriques e os seus sucessores prximos na chefia do Estadoportugus recm-fundado.

    Alternativamente, a par dessa tese de segundo grau sobre a cons-truo da nacionalidade portuguesa, ainda se poderiam invocar osfatores democrticos na formao de Portugal outrora defendidos,embora talvez sem suficiente base emprica, por Jaime Corteso asaber, a identidade martima das populaes costeiras, piscatriase embarcadias, vivendo j ento de costas mais ou menos viradaspara o macio continental ibrico: Aactividade martima est no snas razes da nacionalidade, donde sobe como a seiva para o tronco,mascomoalinhamedularquedvigoreunidadeatodaasuahist-ria (Corteso, 1930:93).

    Nessa mesma linha da argumentao martima e democrtica, en-

    troncaria, por exemplo, a conquista da Lisboa multitnica e multicul-tural, para no dizer cosmopolita, e o papel da capital no mnimo,coagulante primeiro, e liderante depois na construo do Estado e,conseqentemente, na nacionalizao do territrio e das suas varie-gadas etnias, para no falar do futuro papel de Lisboa como plata-forma da expanso ultramarina (Mattoso, 1991, II:187-190).

    Em suma, no creio que o debate geo-historiogrfico acerca das ori-gens da nacionalidade portuguesa permita decidir quanto a elas com

    qualquer segurana (ver por todos Ribeiro, 1987). O mesmo pode di-zer-se dos fatores determinantes da prematura consolidao do Esta-do medieval portugus, a no ser que se trate do processo de dupla

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    contingncia a que est sujeita qualquer evoluo societal, processoeste que Luhmann (1994:103-136) entende como uma sucesso de op-es contingentes isto , adotadas fora de qualquer determinismo,

    fosse ele o da identidade nacional dos atores relevantes que nodeixam,noentanto,decondicionarparcialmenteocampodasopesfuturas, abrindo uma e fechando outras simultaneamente.

    No caso, isso significaria apenas que o xito da formao do Estadoportugus, mesmo que s em muito remota medida motivado pelaeventual existncia de portugueses antes de Portugal, no poderia,quando consumado, deixar de fechar parcialmente o campo dos pos-sveis a opes futuras que exclussem do seu horizonte a existncia

    desse mesmo Estado e da correlativa formao de identidades sociaisepessoaisemtornodele.Poroutraspalavras,independentedomaiorou menor fundamento etno-cultural da identidade portuguesa, amera existncia do Estado nacional inviabiliza, por definio, quais-quer estratgias ou simples discursos negadores de uma identidadefundacional legitimadora de existncia desse mesmo Estado. Assim,um mero acidente histrico, como Llobera lhe chama, e talvez te-nha sido, ter-se- constitudo em uma espcie de necessidade de se-gundo grau.

    UMA IDIA DE PORTUGAL

    Em contrapartida, a prova dessa necessidade por assim dizer, su-perveniente, ou seja, que s comea a ser sentida depois de o fator desatisfao ter sido criado reside no avanado grau de elaborao jmanifestado pelo sentimento de identidade nacional portuguesa poralturadacrisesucessriade1580,paranorecuarscrnicasdacrise

    similar do final do sculo XIV (Ferno Lopes, circa1430). Com efeito,ao contrrio do que cr Llobera, basta pensar em Os Lusadas(1572) at por comparao com outras epopias estrangeiras suas contem-porneas para nos darmos conta desse elevado grau de elaboraodaideologianacional,queseapresentajcomcontornosmuitoprxi-mos da forma definitivamente codificada no sculo XIX, com recursoalis prpria celebrao de Cames iniciada com Garrett e consu-mada pelo nacionalismo republicano4.

    Embora restrita aos reduzidos crculos letrados da sociedade de en-to, o que no constitui de resto nada de anmalo, como Gellner de-monstrou, a elaborao da identidade portuguesa no se limitava j

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    s manifestaes literrias, ganhando a sua reproduo particularalento com a perda da independncia nacional para o rei de Espa-nha, Filipe II. A idia de Portugal que ento elaborada, por exem-

    plo, por um autor importante mas sem o relevo de Cames, como Fer-nando Oliveira, nos seus manuscritos inditos doLivro da Antiguida-de, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugale da Histria dePortugal,datadosde1579-1580,umindciosegurodamaturao,noseio da camada letrada da poca, de uma conscincia nacional cujassemelhanas com aquilo que hoje tomamos como a identidade por-tuguesa so flagrantes, tanto no plano da simbologia como no da ar-gumentao poltica propriamente dita (Franco, 1999).

    Naturalmente, desde a invocao da antiguidade imunidadede Portugal, a retrica identitria de Fernando Oliveira visa, antes demais, construo de uma etnogenealogia, para usar a expresso de

    Joo Leal, destinada a combater o argumento do pretendente Coroade Portugal, Felipe II de Espanha, segundo o qual a diferena entrePortugueseseCastelhanosnotemmaisserqueumnomevoefalso,pois os espanhis so uns como os outros e diferem to pouco na ln-gua, no trato e nos costumes (idem, I:300 e ss.)5.

    Ao mesmo tempo que faz recuar a existncia de portugueses a tem-pos imemoriais, o historiador quinhentista dessa comunidade ima-ginrianohesitaemafirmarque,nasuaHistria de Portugal:Aterrade Portugal digo que livre, e do povo natural dela, e os reis no sosenhores dela, nem a podem vender, nem trocar, nem obrigar semvontade do povo (OliveiraapudFranco, 1999). Assim, a reivindica-o de um rei natural da terra ultrapassa, com Fernando Oliveira, aquesto dinstica para fazer depender a eleio do rei da pertenadeste alegada cultura dos habitantes do territrio nacional e defe-sa dos seus interesses. Segundo Oliveira, j D. Afonso Henriques noteria assumido o trono portugus em virtude de uma herana obri-gatria, enquanto filho primognito do conde portucalense D. Hen-rique, seno por eleio do povo livre, isto , pelos portuguesesque, vendo o muito detrimento que padeciam em companhia dosCastelhanos, determinaram apartar-se deles (OliveiraapudFranco,1999, I:355,passim). Franco parece, pois, ter alguns bons motivos para

    escrever: Se, como refere Eduardo Loureno, a auto-conscincia na-cional surge em Joo de Barros e elevada sua potncia ltima porCames (Labirinto da Saudade), no ser demasiado afirmarmos que

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    ela transborda em Fernando Oliveira [...] que anuncia uma idia re-ligiosamente devota da nao portuguesa (Franco, 1999, I:311).

    Bastante mais sbria , em contrapartida, a viso que fornecem AnaCristina Nogueira da Silva e Antnio Manuel Hespanha no balanoque fazem da identidade portuguesa na poca da Restaurao, emmeados do sculo XVII: Tudo isto faz com que os discursos seiscen-tistas sobre a identidade portuguesa apenas indiciem imaginriossectoriais, no permitindo globalizaes vlidas para toda a socieda-de, nomeadamente a de um difuso sentimento patritico, que expli-caria, por exemplo, a Restaurao [de 1640]. Segundo os autores,predominaria ento um imaginrio social e poltico que realava a

    multiplicidadeeautonomiadasdistintasformasdesolidariedadeso-cial e que distinguia cuidadosamente os correspondentes sentimen-tos de identidade: no topo, uma identidade darepublica uchristiana;depois, ainda acima da identidade nacional ou reincola, existia aidentidade europeia e, muito mais forte, a identidade hispni-ca (Silva e Hespanha, 1993:19-37).

    Por outro lado,

    [...] se por cima a identidade portuguesa tinha de conviver e que secruzar com outras instncias superiores de classificao, o mesmoacontecia por baixo[, com] as identidades particulares [dos] parentes,patrcios e pares[; finalmente,] para alm de uma identidade local eregional mais ou menos vincada, os Portugueses acumulavam de-pois,comonaturalnumasociedadedeestados,umafortssimaiden-tidade estatutria (idem:20-29).

    Quanto identidade reincola, funcionava tambm segundo osautores o sentimento de uma identidade poltica, cuja manifes-tao mais directa e precoce constituda, negativamente, pelo an-ti-castelhanismo, sendo citado para o efeito Duarte Gomes de Solsem 1621 (idem:29), mas j vimos que essa identidade an-ti-castelhana recuava, pelo menos, crise sucessria de 1580. J nosculo XVIII, com o advento do universalismo iluminista, ao mesmotempo que a identidade portuguesa comea a ser objeto de um pri-meiro processo de desnaturalizao, o problema desdobra-se, por as-

    sim dizer, sob efeito do choque entrecastiose estrangeirados. bomno esquecer, contudo, que, segundo os autores que vimos acompa-nhando, pelo menos at finais do sculo XVIII, a esmagadora maio-

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    ria dos Portugueses no conhec[ia] uma representao grfica do ter-ritrio do Reino (idem:20).

    Sejacomofor,enquantoos castios crememumaidentidadetradicio-nal legtima e pugnam por um constante esforo de repristinao deuma identidade primeva (idem:19), os estrangeirados prolongamuma linha de reflexo de origem humanista sobre os vcios dos Por-tugueses, cujo resultado uma conscincia da identidade marcadapelo desencanto, o qual est, por seu turno, na origem do decaden-tismo que caracteriza as correntes dominantes da cultura portuguesadurante os sculos XIX e XX (idem:32-33)6. Em suma, um conflitoidentitrio por assim dizer, insupervel que comeou por ser pro-

    tagonizado porcastiose estrangeiradosno sculo XVIII e que aindahojetemecospoderososnasociedadeportuguesa,comasrespectivas

    bases regionais de apoio social e poltico, conforme referido h poucoa propsito das eleies presidenciais de 1986 e 1996.

    O CARTER NACIONAL PORTUGUS

    Em todo o caso, no ser certamente a busca de qualquer essncianacional portuguesa prosseguida sem descanso desde o adventodo nacionalismo romntico at o seu congelamento pelos idelogosdoEstadoNovo,culminandonosduvidososcarateresnacionaisdoetnlogoJorgeDiasquenosajudarmuitoasuperaracontrovrsia.Com efeito, no h nada que exponha mais a ideologia identitria auma crtica devastadora do que as tentativas para ancor-la em umpretenso carter nacional, com o seu drstico reducionismo e a suaparalela dimenso normativa: Um misto de sonhador e de homemde aco [...] o Portugus , sobretudo, profundamente humano, sen-

    svel, amoroso e bondoso, sem ser fraco (Dias, 1971:19).Previsivelmente, Jorge Dias, depois de reconhecer que a origem daNao se dev[e] tambm poltica, sente a necessidade de acrescen-tar imediatamente que a vontade do prncipe naturalmente se apro-veitou de certasaspiraes de independncia latentesnas populaes deEntreDouroeMinho(nfasesminhas),parasustentaraseguirqueacuriosa particularidade [da] unificao e permanncia da Naoportuguesa deve-se ao mar, conciliando assim todas as teses dispo-

    nveis tanto as empricas como as fundacionais sobre a formaodo chamado Estado-nao: A fora atractiva do Atlntico [...] foi aalma da Nao e foi com ele que se escreveu a Histria de Portugal.

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    Dessa sntese demasiado ecltica, que no dispensa a habitual alusoaos Lusitanos nem luta contra os mouros, brotar ento umaidia de cultura portuguesa, cujo maior interesse reside nas especi-

    ficaes que Jorge Dias tem o cuidado de fazer a respeito das cultu-ras regionais e, sobretudo, da dimenso restrita, para no dizer eli-tista, dessa cultura espartilhada entre o local e o superior(idem:12-17).

    Quanto ao carter nacional propriamente dito, o autor socorre-sede todos os esteretipos do repertrio nacionalista, desde a sauda-de at o manuelino, passando pela brandura de costumes e pelainclinao por mulheres de outras raas, para terminar com uma

    concluso banal e datada, mas nem por isso menos significativa nasua vcua circularidade: um povo paradoxal e difcil de governar.Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seusdefeitos, conforme a gide do momento (idem:33).

    Apesar dessa insustentvel vacuidade, Joo Leal mostrou recente-mentequeaforadoensaiodeJorgeDiasparecesertalqueadenn-cia das suas teses no impede autores atuais, como Boaventura Sou-sa Santos (notadamente nas suas Onze Teses includas em PelaMo de Alice de1994),semprequeentramemdilogocomele,embus-ca de uma fundao caracterial qualquer da identidade portuguesa,no s de incorrerem em uma proximidade genrica difcil de des-mentir como de deixarem o leitor atento perplexo (Leal,2000:101-104).

    Joo Leal havia dito o mesmo, alis, a respeito de Jos Mattoso, a pro-psito da suaIdentidade nacional, o que lhe permite concluir com umaponta de ironia: Volvido quase meio sculo, os elementos funda-mentais da cultura portuguesa [retomados emO Carcter Nacional...]continuam a projectar a sua sombra nas discusses contemporneasacerca do que ser portugus. E algo de semelhante se passa tam-

    bm, segundo o autor, com Eduardo Loureno e o tema da saudade. Epor a fora... com o grupo musical dos Madredeus (idem:103-104).

    CONTEDO E RELEVNCIA DO SENTIMENTO NACIONAL

    Pela minha parte, a inconsistncia intrnseca de todo e qualquer con-tedo que se pretenda atribuir ao chamado carcter nacional le-va-me, pois, a abandonar esse longo intrito em torno da genealogia

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    da identidade portuguesa para adotar, doravante, um ponto de vistaregressivo isto , de diante para trs a fim de examinar essa mesmaidentidade a partir do ngulo sincrnico da observao sociolgica

    emprica. Debruar-me-ei assim sobre algo que me preocupa mais doque as origens do sentimento nacional, a saber: qual a sua relevnciaparaoconhecimentoecompreensodasociedadeportuguesaatual.

    Com efeito, do ponto de vista do contedo, confesso no ver em quemedida a identidade portuguesa se distingue da impenetrvel mas

    banal circularidade dessa inevitvel tautologia que todo e qualquernacionalismo igual a todos os outros na reivindicao de uma dife-rena radical entre cada um deles, como creio que Gellner mostrou de

    uma vez por todas e como Llobera deixou entrever sem querer. Mo-vendo-se embora no espao e com a escala em que observador e ob-servadosesituemporexemplo,noBrasilsereiportugus;emPortu-gal aoriano; nos Aores micaelense; em S. Miguel serei da cidade[Ponta Delgada], e assim sucessivamente , a verdade que o conte-do identitrio no deixa de ser ontologicamente pobre, apetece mes-mo dizer ensimesmado. Essa espcie de replicao, por assim dizermimtica, do sentimento identitrio segundo a escala em que os indi-vduos se situam est documentada para os Aores, por exemplo, emestudos empricos com diversas sedes disciplinares (Leal,2000:227-244; Mendes, 1999).

    Isso no significa, como sabemos, que tal contedo no possa, apesarda sua pobreza ontolgica, tornar-se criticamente relevante quando oimaginrio nacional (ou regional: veja-se o caso aoriano) ativadodo exterior e, em especial, contra o exterior, mas pontualmente tam-

    bm contra o interior, o que aponta para um contedo fatalmentenoautnomo,paranodizernegativo,dachamadaidentidadenaci-onal.importantemencionaraquiadistino,ameuvermuitoperti-nente para essa reflexo, que osmaurrassianose os integralistas lusi-tanos faziam entre patriotismo isto , a ativao de toda a popula-odopascontrauminimigoexterno,comoteracontecidopelapri-meira vez, historicamente, durante a Revoluo Francesa, cunhandoa expressopatriote e o nacionalismo propriamente dito, isto , a ac-tivao de uma parte da populao contra os alegados inimigos in-ternos da Nao7. certo que a identificao de um ennemi de

    lintrieurremonta Revoluo Francesa, designando ento as forasinternas que alegadamente se opunham conduo da guerra peloComit de Salvao Pblica; porm, a partir do final do sculo XIX, a

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    expresso foi recuperada pela direita radical francesa a fim de desig-nar indiferenciadamente os seus adversrios polticos: liberais, de-mocratas, socialistas, comunistas e outros anarquistas (Sternhell,

    1978).

    Porm,antesdetentarcircunscreverarelevnciadosentimentoiden-titrio, vale a pena fornecer um dado emprico atual e refletir por ummomentoacercadele.Comefeito,todososinquritossociolgicosre -centes nos quais feita uma pergunta obviamente redutora e des-contextualizada a respeito do espao social com o qual os portugue-ses mais se identificam tm revelado, estranhamente ou no, um graulimitado de identificao com o espao nacional. Embora estejam em

    maioria relativa, os inquiridos que se identificam prioritariamentecom Portugal sobretudo habitantes de Lisboa e populaes do Sul no chegam, em geral, a metade da populao; os outros inquiridos sedistribuemsobretudopelassuasterrasaldeias,vilasoupequenascidades ou pelas suas regies, principalmente no Norte em volta doPorto; por fim, h um resduo de excntricos, no duplo sentido da pa-lavra, que dizem identificar-se prioritariamente com o espao euro-peu ou mesmo universal.

    Em um dos mais recentes desses inquritos, realizado em 1997 juntode uma amostra representativa da populao jovem portuguesa(15-29 anos de idade), os resultados foram os seguintes (Fernandes,1998:311, Tabela 1):

    Tabela 1

    %

    Lugar 16,6

    Regio 29,1Portugal 41,6

    Europa 4,7

    Mundo 4,4

    NS/NR 2,7

    Fonte: Inqurito aos Jovens, ICS, 1997.

    Por outras palavras, quando a identidade nacional no ativada do

    exterior e o sentimento de pertena referido experincia quotidia-na das pessoas, o que vem ao de cima uma clivagem pronunciada-mente classista, alis, sendo a distribuio aquela que os manuais de

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    sociologia prevem, segundo a qual a identidade nacional um atri-buto das elites entre mltiplos localismos e a identificao espont-nea com a Nao. S marginalmente poderei entrar aqui na questo

    da cidadania, mas bastar dizer que significativa, do ponto de vistaestatstico, a correlao inversa entre a fora dos sentimentos de per-tena local e um dficit, por vezes acentuado, do exerccio dos direi-tos da cidadania democrtica. Por outras palavras, quanto menor aidentificao com o espao nacional, menor tambm a propensopara o exerccio da cidadania poltica (Cabral, 1997; 2000).

    Em suma, por mais paradoxal que possa parecer em um pas to anti-go como Portugal, com uma coincidncia alegadamente perfeita en-

    tre Estado e Nao, a verdade que o processo de nacionalizao daspopulaestalvezdevidoaosprofundoscurtos-circuitosdacidada-nia, dependentes por seu turno dos atrasos da alfabetizao de mas-sas e do distanciamento entre estas e o poder poltico encontra-selonge de estar completado em Portugal (Cabral, 2003). Por motivoshistricos mal conhecidos e que no possvel aprofundar agora, ovelhoEstadoportugustemaindamuitoquefazernoplanodanaci-onalizao das massas, lembrando s vezes a situao da Frana an-tes da Guerra de 1914-18 identificada por Eugen Weber (1976).

    Com efeito, estudos clssicos, como o de Reinhard Bendix (1996:134 ess.), h muito que assinalaram o papel da instruo pblica bsica naconstruo da cidadania8,bemcomoocontributoespecficodosufr-gio universal e secreto, que Portugal apenas conheceu h um quartode sculo, para a transformao dos indivduos em cidados nacio-nais. Bendix chama a ateno, efetivamente, para a estreita associa-o histrica entre a formao das identidades sociais de carter naci-

    onal isto , a concepo da cidadania como nacionalidade e o de-senvolvimento de uma identidade poltica, ou seja, da cidadaniacomo pertena ativa a uma comunidade poltica nacional.

    Nesse sentido, tem cabimento pensar que, para poder se falar plena-mente de Estado-nao, isso implicaria a vivncia nacional de umafuso entre autoridade e solidariedade (Reis, 1996:21), segundo aqual o sentimento de pertena deixaria de ser passivo perante a auto-ridade do Estado para ser, tambm, ativo e solidrio, graas partici-

    pao cvica e aos benefcios partilhados pelos cidados nacionais. Se solidariedade quisermos acrescentar, como elemento da cidadania,conforme sugerido acima, a participao na cultura nacional atravs

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    da instruo de massas, vale a pena recordar o que escrevia o insus-peito Jorge Dias a este respeito ainda em 1971: Se existe uma cultura[portuguesa] com longa tradio, tambm certo que so poucos os

    que nela participam, pois, por razes de educao e instruo, amaior parte da populao recebe sobretudo a cultura tradicional dasuaregio(Dias,1971:13).Aserassim,lcitoargumentarqueaple-na assuno da identidade nacional, por parte de numerosos estra-tos da populao portuguesa, bem mais recente, muito provavel-mente, do que se poderia julgar primeira vista.

    O PAPEL DO NACIONALISMO POLTICO EM PORTUGAL

    Para terminar, algumas breves reflexes sobre a efetiva relevnciahistrica da chamada identidade nacional, no s no plano das polti-cas interna e externa, como tambm no plano dos interesses materiaisde alguns grupos sociais e, seguramente, no plano das identidadespessoais.

    Latente, se no mesmo adormecido durante a maior partedo tempo, o

    sentimento nacional constitui, pois, um recurso ao dispor dos mem-bros da comunidade, tanto para efeitos pessoais, como para a manu-teno da identidade individual perante a emigrao ou o exlio, porexemplo, experincias em que os portugueses so historicamente pe-ritos, mas tambm para efeitos coletivos, como, por exemplo, o esta-

    belecimento de redes grupais suscetveis de trazerem benefcios eco-nmicos, embora a populao portuguesa ainda hoje se caracterize,sociologicamente, pelo primado das redes familiares e/ou clientela-res (e s nesta medida portuguesas), na linha daquilo que alguns,como eu prprio, tm designado como o familismo amoral9. Algu-mas observaes etnogrficas pontuais de Jorge Dias a propsito dopretenso carcter portugus so, alis, integrveis na noo de fa-milismoamoral,como,porexemplo,acrenanasorteenoempe-nho ou pedido, bem como a dificuldade [do funcionrio pblico]em representar um papel impessoal; at a pretensa negao do es-prito capitalista que Jorge Dias atribui cultura portuguesa en-quadrvel nos termos do dito familismo amoral (idem:30-31). Em

    contrapartida, tais atitudes e comportamentos sociais no so maisportugueses do que italianos, por exemplo, nem so obviamentecomuns ao conjunto das respectivas populaes nacionais.

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    Mais gratuitas puramente simblicas, se tal coisa existe so, porexemplo, as comoes identitrias coletivas induzidas, como Hobs-

    bawm mostrou para o perodo da integrao poltica das massas

    nos sistemas demo-liberais oitocentistas, pelos rituais celebratriosda ptria comum e, porventura mais inocentes ainda, os confrontosdesportivosinternacionais.Nadadisso,porsis,politicamentein-cuo, como os promotores de tais eventos bem sabem e, hoje em dia,planeiam cuidadosamente, como quem refora um reflexo comporta-mental.

    Finalmente,maisrelevantedoquetodasessasmanifestaesdaiden-tidade nacional o fato de o sentimento nacional ter sido objeto, des-

    deoltimoquarteldosculoXIX(esemdvidaantes,masapenasdeforma incipiente e intermitente), de ativao poltica recorrente, sejapela oligarquia dominante contra alegados perigos externos ou, sim-plesmente, como fator de mobilizao nacional perante desafioscomo, por exemplo, aquele a que Portugal vem respondendo dianteda integrao europia; seja ainda por um segmento das elites contraoutros segmentos, como sucedeu com o movimento nacionalista au-toritrioquelevoutomadadopoderporSalazar,entre1928e1930,

    institucionalizao da ditadura do Estado Novo at Guerra Coloni-al(iniciadaem1961)e,porfim,prolongadaagoniadoregimeconsu-mada em 1974. Ao longo de todo esse penoso e conturbado percurso,amobilizaodosentimentodeidentidadenacionalconstituiu,semamenor dvida, uma das variveis mais independentes da evoluopoltica do pas, apenas comparvel ao papel das subidentidades dasdiversas camadas sociais que foram disputando Ditadura o mono-plio do interesse nacional.

    Assim se demonstra como algo de contedo afinal to imaginrio eto pobre pode, de fato, produzir efeitos to reais e to relevantespara uma comunidade cujas diferenas so tanto mais crticas quantotm de ser dirimidas, obrigatoriamente, no mesmo territrio com oqual toda essa comunidade se identifica. Daqui lcito concluir que,sendo indiscutvel a relevncia de algo to inefvel como a identida-de nacional, esta ltima no entanto menos parte da soluo, comopromete a ideologia nacionalista, do que parte dos problemas que aNao na realidade, a Sociedade e o Estado tem para resolver.

    (Recebido para publicao em julho de 2003)(Verso definitiva em outubro de 2003)

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    NOTAS

    1. Sobre esse sistema de clivagens, ver o estudo clssico de Lipset e Rokkan (1967).

    2. Ps-modernistasno sentido abrangente que lhes conferido pela sua aspirao co-mum ao retorno subjetividade contra os processos de objetivao caractersticosdas cincias sociais modernistas, conforme sugere Le Bras (2000).

    3. Prefiro a minha traduo de comunidades imaginadas, como vulgar traduzira expresso de Anderson.

    4. A esse propsito, ver Cabral (1988). Para uma anlise pormenorizada dos exer-cciosdeetno-genealogiaaquesededicou,empenhadamente,aetnografiaportu-guesa desde finais do sculo XIX, ver Leal (2000:maximecap. 2).

    5. Carta de Felipe II de 1579.

    6. A respeito da evoluo da ideologia portuguesa do decadentismo salvaonacional, ver Cabral (1993).

    7. Sobre essa questo do inimigo do interior, cujo uso aqui de inspirao tipica-mente maurrassiana, ver Lyttelton (1975); para Portugal, ver Cabral (1988; 1993).

    8. Seformos exigentes, de acordo porexemplo com as sugestes de Jack Goody (1987)em relao alfabetizao restrita, a sociedade portuguesa s teria atingido o li-miar da alfabetizao de massas digamos, mais de 50% da populao adulta de-poisda2GuerraMundial.Daqui,seguramente,muitodoanalfabetismofuncionalque ainda hoje se observa em Portugal (Benavente, 1996).

    9. Ver Cabral (2003), onde procuro reconstruir a noo original de familismo amo-

    ral, cunhada pelo politlogo norte-americano Edward Banfield (1958) para carac-terizar as atitudes e comportamentos de uma comunidade rural da Itlia meridio-nal; para o Brasil, ver Reis (1998).

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    ABSTRACTPortuguese National Identity: Content and Relevance

    This article discusses the relative merits of the instrumentalist andprimordialisttheses concerning the roles of the State and the nation in theproduction of contemporary national identities, as well as presenting a briefgenealogy of Portuguese national identity. However, the attempt to anchorthis identity in a purported national character reveals the reductionismand normative dimension of identitary ideology. The research is thusreorientedtowardstherelevanceofnationalsentimentincurrentPortuguesesociety, observing that this sentiment constitutes a relevant symbolicresource, particularly for purposes of political mobilization.

    Key words:identity; state; nation; Portugal

    RSUML'Identit Nationale Portugaise: Contenu et Importance

    Dans cet article, on discute les avantages relatifs des thses instrumentalistesetprimordialistes propos du rle de l'tat et de la Nation dans la productiondes identits nationales contemporaines tout en prsentant une rapidegnalogie de l'identit portugaise. Toutefois la tentative de rattacher celle-ci un suppos caractre national rvle le rductionisme et la dimensionnormative de l'idologie identitaire. La recherche est donc roriente parl'importance du sentiment national dans la socit portugaise actuelle,puisqu'on se rend compte que ce sentiment s'avre un recours symboliqueconsidrable, surtout lorsqu'il dbouche sur une mobilisation politique.

    Mots-cl:identit; tat; nation; Portugal

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