a história do corpo feminino e masculino no ocidente medieval

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  • 8/8/2019 A histria do corpo feminino e masculino no ocidente medieval

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    cadernos pagu(33),julho-dezembro de 2009:405-414.

    A histria do corpo feminino emasculino no ocidente medieval*

    Diogo da Silva Roiz**

    O corpo est no centro de toda relaode poder. Mas o corpo das mulheres o centro, de maneira imediata eespecfica (Perrot, 2005:447).

    Deste modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava asrelaes de poder que mediavam estreitamente os debates sobregnero na Europa. Embora Jacques Le Goff apenascircunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Umahistria do corpo na Idade Mdia, escrito em parceria com NicolasTruong, os autores ofereceram uma bela contribuio para o

    entendimento desse tema na civilizao do ocidente medieval.No faz muito tempo, os estudos histricos se abriram paraum conjunto de temas e objetos mais amplos. A ampliao dasabordagens na pesquisa histrica tornou mais ntida a constataode que as grandes mudanas tericas e metodolgicas dahistria so provenientes da renovao e da ampliao dos temasinvestigados.

    No entanto, o problema, muitas vezes, est emoperacionalizar adequadamente um procedimento de pesquisa anlise de certos objetos. Cada vez mais tem se demonstrado que

    * Resenha de LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma histria do corpo na Idade Mdia.Rio de Janeiro, Editora Civilizao Brasileira, 2006, 207p. [traduo: MarcosFlamnio Pires; reviso tcnica: Marcos de Castro].Recebida para publicao agosto de 2009, aceita em outubro de 2009.** Professor do departamento de Histria da Universidade Estadual de Mato

    Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amamba (em afastamento integral paraestudos); doutorando em Histria pela UFPR (bolsa CNPq)[email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    certos problemas e certas abordagens so pertinentes para algunstemas, mas no para outros. Como tornar o assunto passvel deser inquirido e estudado pelo pesquisador , neste caso, o

    problema fundamental. A partir dessas questes, os autoresindicam a necessidade e justificam o propsito de estudarem ocorpo na Idade Mdia europia.

    Desde o incio, os autores estavam preocupados emdemonstrar que o corpo, enquanto objeto de pesquisa, constituiuma das grandes lacunas da histria,

    um grande esquecimento do historiador. A histriatradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se peloshomens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quasesempre sem corpo (9). [Seria] preciso (...) dar corpo histria. E dar uma histria ao corpo [por que] o corpo temuma histria [e a] concepo do corpo, seu lugar nasociedade, sua presena no imaginrio e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofrerammodificaes em todas as sociedades histricas (10).

    Por isso mesmo, a histria do corpo na Idade Mdia (...)uma parte essencial de sua histria global (11), inevitvel eindispensvel para se compreender adequadamente a sociedadecontempornea, na qual o corpo tem, progressivamente, ganhadocada vez mais destaque na mdia.

    Mas, tratando-se de um tema pouco estudado, embora

    justificvel, como deve ser estudado o corpo na histria dassociedades? Como o corpo foi pensado e visualizado na IdadeMdia? O que foi, portanto, o corpo para a sociedade doocidente medieval?

    Para os autores, primeiro, o corpo foi o resultado de umadas vrias tenses vividas no perodo, porque a dinmica dasociedade e da civilizao medievais resulta[va] de tenses (11).E uma das principais tenses no perodo aquela entre o corpo ea alma. De um lado, fruto da beno e da glorificao,

    principalmente religiosa (quando se trata do corpo de Cristo), de

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    outro, desprezado, condenado, humilhado. Isso porque Ocorpo cristo medieval de parte a parte atravessado por essatenso, esse vaivm, essa oscilao entre a represso e a

    exaltao, a humilhao e a venerao (13). Segundo, e comoconseqncia, as representaes dos homens sobre as mulheres esobre eles mesmos no perodo (que tinha na viso sua principalmedida de sentido da realidade), acabavam sendo mediadas portenses entre o material e o espiritual. Terceiro, para melhorcompreender o perodo, os autores pensaram a Idade Mdia nasua diviso clssica sculos V ao XV e XV ao XVIII , e acreditam

    que suas principais caractersticas ainda estejam incidindo.Portanto, o mais difcil para os autores foi como estudar ocorpo, objeto praticamente esquecido pela histria e pelos

    historiadores, segundo apontam ao longo da justificativa dotrabalho. Para eles, autores como Norbert Elias, Marc Bloch,Lucien Febvre, Michel Foucault e mesmo Jules Michelet, no sculoXIX, foram excees regra, abrindo caminhos, posteriormentetrilhados por Ernest H. Kantorowicz (1895-1968), Mikhail Bakhtin

    (1895-1975), Michel de Certeau (1925-1986), Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Peter Brown e Jean-Claude Schmitt. Osautores indicam ainda a importncia dos estudos sociolgicos(desde os produzidos por mile Durkheim) e antropolgicos(desde os pioneiros do sculo XIX). Ao demonstrarem sua dvidaintelectual para com estes autores pioneiros, eles apontam que,ainda assim, o corpo continuou um objeto pouco estudado. Desse

    modo, ser investigado na Idade Mdia era tambm oportuno, noapenas por ser escassamente estudado, mas por que naqueleperodo se concebeu muitos de nossos comportamentos. Com oCristianismo houve uma reestruturao nos conceitos e nasprticas corporais e comportamentais daquela sociedade. Foi omomento de formao do Estado e das cidades modernas,de que o corpo ser uma das mais prolficas metforas e cujas

    instituies o iro moldar. No plano cultural houve uma completa

    alterao no espao urbano, que acabou redefinindo as prpriasprticas religiosas, ao redimensionar o centro de poder do

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    campo para as cidades. Na Idade Mdia, o corpo o lugarcrucial de uma das tenses geradoras da dinmica do Ocidente(31), porque, at ento, era uma novidade. Por outro lado, pensar

    o corpo e a sua histria pertinente tambm para inquirir asociedade contempornea e sua revoluo comportamental,sexual, gestual e corporal, acelerada a partir dos anos de 1960.

    Para delimitarem melhor a pesquisa, os autores dividiram otrabalho em quatro captulos. Os dois primeiros, mais densos econsistentes, discutem as conseqncias do carnaval e daquaresma, e de viver e morrer na Idade Mdia. Os dois ltimos

    discutem como o corpo passou a ser sistematicamente civilizadoe utilizado como uma metfora para pensar outras questes elugares. Para eles:

    A humanidade crist repousa tanto sobre o pecado original quanto sobre a encarnao: Cristo se faz homem pararedimir os homens de seus pecados. Nas prticas populares,o corpo contido pela ideologia anticorporal do

    cristianismo institucionalizado, mas resiste sua represso(35).

    A tenso entre um corpo feminino diabolizado e umcorpo masculino endeusado ficaria latente no perodo, porque,de incio, o corpo na Idade Mdia foi renunciado. Controlar asexualidade feminina, seus gestos, suas prticas, sua conduta nasociedade passaria a ser uma questo mediada pela Igreja e aceita

    pela sociedade. Mesmo assim, o prprio corpo feminino, nodeixou de tambm ter tenses entre o bem procriao,

    virgindade de Maria, castidade e cuidado com a famlia e omal sexualidade, prostituio, luxuria e perverso da alma ,porque o culto do corpo da Antiguidade cede lugar, na IdadeMdia, a uma derrocada do corpo na vida social (37). Igualmenteimportante, foram os tabus construdos pela instituio religiosa

    sobre os fluidos corporais, como o esperma e o sangue. E

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    possvel afirmar que o corpo sexuado da Idade Mdia majoritariamente desvalorizado, as pulses e o desejocarnal, amplamente reprimidos (41) [principalmente, no

    discurso institucionalizado da Igreja].(...) a religio crist institucionalizada introduz uma grandenovidade no Ocidente: a transformao do pecado originalem pecado sexual. Uma mudana que uma novidadepara o prprio cristianismo, j que, em seus primrdios,no aparece trao algum de uma tal equivalncia, assimcomo nenhum termo dessa equao figura no AntigoTestamento da Bblia. O pecado original, que expulsa Ado

    e Eva do Paraso, um pecado de curiosidade e de orgulho(49).

    No entanto,

    A transformao do pecado original em pecado sexual tornada possvel por meio de um sistema medievaldominado pelo pensamento simblico. Os textos da Bblia,

    ricos e polivalentes, se prestam de bom grado ainterpretaes e deformaes de todos os gneros. Ainterpretao tradicional afirma que Ado e Eva quiseramencontrar na ma a substncia que lhes permitiria adquiriruma parte do saber divino. J que era mais fcil convencero bom povo de que a ingesto da ma decorria dacopulao mais que do conhecimento, a oscilaoideolgica e interpretativa instalou-se sem grandesdificuldades (51).

    Assim, no por acaso que a subordinao da mulherpossui uma raiz espiritual, mas tambm corporal. Sendo elafraca, conforme lhe ver a Igreja,

    a primeira verso da Criao presente na Bblia esquecidaem proveito da segunda, mais desfavorvel a mulher. [Com

    isso, da] criao dos corpos nasce, portanto, adesigualdade original da mulhe [e ela] ir pagar em suacarne o passe de mgica dos telogos, que transformaram o

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    corao ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnale a afeio pelo ser amado, mas o amor, sentimentomoderno, no era um fundamento da sociedade medieval

    (97).

    O desinteresse pela mulher na Idade Mdia aparece tambm noperodo de gestao, no qual a mulher grvida no objeto denenhuma ateno particular. Essa desateno perpassa todas ascamadas da sociedade. Na velhice, a mulher tambm no serbem quista, em muitas ocasies, por ser vista como bruxa. Demodo geral, a velhice feminina ter uma desateno semelhante ada mulher grvida.

    As doenas e o estado mental das pessoas durante esseperodo tambm sofrer altos e baixos, vindo a ser ora motivo deaverso, ora de cuidados e de arrependimento:

    (...) os homens da Idade Mdia podem recorrer a um outromdico alm de Cristo. Pouco a pouco, os mdicos da alma

    os padres se distinguem daqueles do corpo osmdicos , que vo se tornar ao mesmo tempo sbios eprofissionais, assim como uma corporao, um corpo deofcio. Surgem escolas de medicina, assim comouniversidades em que homens se formam em uma cinciaque considerada, sem dvida, um dom de Deus, mas,igualmente, um ofcio. Os mdicos trabalham, pois, comoprofissionais pagos... (113).

    Nesse sentido, as tenses da Idade Mdia no selimitavam apenas as questes corporais, mas estavaminevitavelmente ligadas a questes espirituais. O trato dos vivoscom os mortos um exemplo singular:

    Desde a Antiguidade, com efeito, os vivos se ocupavam doscorpos dos membros de suas famlias. As mulheres, em

    particular, eram encarregadas de lav-los, de prepar-lospara juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo acrena, retornavam s vezes para atormentar a alma dos

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    Nessa medida, a metfora corporal tambm ser igualmenteimportante na definio da organizao das cidades e da realeza,

    das funes do rei e de sua mediao entre a matria e o esprito.Portanto:

    A histria do corpo oferece ao historiador e ao interessadoem histria uma vantagem, um interesse suplementar. Ocorpo ilustra e alimenta uma histria lenta. A essa histrialenta, que , em profundidade, a das idias, dasmentalidades, das instituies e mesmo a das tcnicas e das

    economias, esse interesse d um corpo, o corpo (173).

    Nesse sentido, o corpo tem, portanto, uma histria, o

    corpo foi o tema desta histria escrita pelos autores. Resumido oenredo principal do livro, convm analisar alguns pontos.Primeiro, embora partam do suposto de que a abordagem cubra operodo do sculo V ao XVIII, a interpretao privilegia os sculos

    X ao XIV. Segundo, por ser uma obra de carter de sntese, e nomonogrfico, nem por isso deixa de ser oportuna a observaosobre as generalizaes dos comportamentos femininos emasculinos para o perodo, sobre a maneira de controlar as

    vontades humanas por intermdio de um sistema de regras deconduta (elaborado e organizado pela Igreja) e das formas derepresentao dos corpos para toda a sociedade europia naIdade Mdia. Destaque-se ainda que, mesmo pouco explorado

    pela historiografia ocidental, a histria do corpo mostra-se umtema rico e mais complexo do que supuseram os prprios autores,mesmo no que concerne ao perodo da Idade Mdia (Schmitt,2007; Corbin, 2008). Deixando de lado as reservas, no h comonegar os mritos e as contribuies desta obra, principalmente,por destacar as metamorfoses, positivas e negativas, sobre asrepresentaes do corpo feminino e masculino, e suas tenses

    entre o material e o espiritual, na Civilizao do OcidenteMedieval.

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    Referncias bibliogrficas

    CORBIN, A.; VIGARELLO, G.; COURTINE, J-J. (orgs.) Histria do corpo.

    Petrpolis-RJ, Vozes, 2008.PERROT, M. As mulheres ou os silncios da histria. Bauru-SP, Edusc,2005 [traduo: Viviane Ribeiro].

    SCHMITT, J-C. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual naIdade Mdia. Bauru-SP, Edusc, 2007.