a história do comunismo contada aos doentes mentais

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Moscou, 1953. Algumas semanas antes da morte de Stálin, o diretor do hospital onde a peça é encenada convida um escritor a passar uma temporada ali e pede-lhe para reescrever, de maneira acessível ao entendimento dos deficientes mentais leves, médios e graves, a história do comunismo e da Revolução de Outubro. Ele é convencido de que essa "terapia" poderá curar vários internos... Esta peça nos faz mergulhar no universo sórdido desses hospitais psiquiátricos em que se acotovelavam doentes reais e oponentes internados pelo regime. Demonstra-nos uma vez mais que, quaisquer que sejam as circunstâncias, o homem não pode viver sem utopias... Mesmo com o risco de abismar-se no horror ao tentar colocá-las em prática.

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MA

TÉI

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IECCo leção Dramaturg ia

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Impresso no Brasil, julho de 2012

Título original: L’Histoire du Communisme Racontée aux Malades MentauxCopyright © Lansman Editeur

Os direitos desta edição pertencem aÉ Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SPTelefax: (5511) 5572 [email protected] · www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho

Gerente editorial Gabriela Trevisan

Preparação de texto Maria Alexandra Orsi

Revisão Danielle Mendes Sales e Liliana Cruz

Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É

Diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É

Pré-impressão e impressão Gráfica Vida & Consciência

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela ele-trônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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TRADUÇÃO: ROBERTO MALLET

A História do Comunismo C o n t a d aa o s DOENTES M E N T A I S

MATÉI Visniec

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A Daniil Harms e a todos os escritores assassinados nos

cárceres do poder

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IURI PETROVSKI, escritor

GRIGORI DEKANOZOV, diretor do hospital

STEPAN ROZANOV, diretor associado

KATIA EZOVA, assistente médica

OUTROS MEMBROS DO CORPO MÉDICO

Os “doentes”:

TIMOFEI, doente mental médio

DOENTE 1, Piotr

DOENTE 2, Ivan

DOENTE 3, Sacha

DOENTE 4, Emelian

DOENTE 5, Boris

DOENTE 6, Slivinski

DOENTE 7, Salomon

UM DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN

UM SEGUNDO DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN

O ESTRANGEIRO

KUHKIN

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI

OUTROS DOENTES

O LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN

O CRUPIÊ

A MULHER JOVEM

A MULHER VELHA

A TERCEIRA MULHER

A QUARTA MULHER

A QUINTA MULHER

O PROFESSOR

STÁLIN

AS P

ERSO

NAGE

NS

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Os papéis nesta peça são intercambiáveis. Alguns pa-péis de “doentes” podem ser representados por mane-quins ou marionetes.

A ação transcorre no Hospital Central de Doentes Mentais em Moscou, em 1953, algumas semanas antes da morte de Stálin. Eventual cenário único: um gigan-tesco retrato de Stálin.

*

Esta peça foi escrita originalmente em francês em 1998, durante uma permanência do autor na Chartreuse de Villeneuve-lez-Avignon;1 sua primeira leitura ocorreu em julho de 1999 dentro da programação do festival de teatro de Avignon.

Foi montada simultaneamente na primavera de 2000 em língua romena no Teatro Eugène Ionesco de Chisinau (Moldávia), com encenação de Charles Lee, e em lín-gua inglesa em Hollywood por The Open First Theatre Company, com encenação de Florinel Fatulescu.

Um apoio à sua criação foi concedido pelo Ministério da Cultura francês em janeiro de 2000.

1 A Chartreuse de Villeneuve-lez-Avignon abriga o Centre National

des Écritures du Spectacle (www.chartreuse.org), oferecendo, entre

outros projetos, residência para dramaturgos. (N. T.)

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O coro dos doentes mentais, dirigido por Katia Ezova, apresenta-se para o diretor e Iuri Petrovski. Alguns doentes estão em camisas de força. Timofei avança alguns passos e

dirige-se aos espectadores.

TIMOFEI: O coro de câmara do Hospital Central de Doentes Mentais de Moscou vai interpretar a canção “O Canto dos Partidários”. Regente do coro: camara-da Katia Ezova. Viva o camarada Stálin!

(Katia Ezova faz vibrar um diapasão, murmura uma frase musical, dá o tom e o coro põe-se a cantar. Timofei enxuga uma lágrima. Outro doente chora en-quanto canta, mas está numa camisa de força e não pode enxugar as lágrimas. Termina a canção. Timofei enxuga as lágrimas de alguns doentes com camisas de força. Katia Ezova inclina-se diante do diretor e de Iuri Petrovski. Longo silêncio. Escuridão.)

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Iuri Petrovski no escritório do diretor Grigori Dekanozov.

O DIRETOR: Sabe, Iuri Petrovski, hoje em dia ninguém deve ficar sem as luzes da arte e da literatura. Nossa concepção científica da sociedade afirma que o ho-mem está no centro da atenção do partido. Nossa nova concepção humanista, tal como nos foi ensina-da pelo Grande Lênin e pelo Grande Stálin, afirma que o socialismo não é possível sem a transformação do homem. E a arte, a literatura têm um papel enor-me na transformação do homem... É por isso que me pergunto: e os doentes mentais? Eles também não são seres humanos? Não devem ser transformados, eles também? Não deveriam beneficiar-se, também eles, das vantagens da arte, da literatura? Na medida do possível, é claro... Eu creio que os doentes mentais de nossa sociedade socialista não têm nada a ver com os doentes mentais dos países capitalistas e impe-rialistas. Nós não abandonamos os nossos doentes mentais... Achamos que podem ser curados. Nossos cientistas trabalham dia e noite para encontrar novos tratamentos capazes de curar as doenças mentais... E a arte, a literatura desempenham talvez um papel nessa batalha.

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Grigori Dekanozov apresenta Iuri Petrovski ao corpo médico do estabelecimento.

O DIRETOR: Caros colegas, apresento-lhes o camarada Iuri Petrovski, que a União dos Escritores enviou para nos ajudar. Iuri Petrovski escreveu novelas no estilo de nosso grande autor Máximo Gorki. Iuri Petrovski escreveu novelas e narrativas sobre a construção do socialismo, e recebeu por suas maravilhosas novelas e suas maravilhosas narrativas o Grande Prêmio do Estado, que lhe foi entregue pelo Grande Camarada Stálin em pessoa. É meu dever, aqui, agradecer à União dos Escritores por nos ter enviado o camarada Iuri Petrovski. É justamente de um escritor como Iuri Petrovski que precisamos, pois ele sabe descrever como ninguém as coisas simples, as coisas da vida. (Volta-se para Iuri Petrovski.) Camarada Iuri Petrovski, sua ta-refa é escrever histórias curtas para narrar aos nossos doentes mentais a história do comunismo. É para isso que está aqui, é para isso que a União dos Escritores enviou-o para cá. Consideramos que os doentes men-tais têm o direito e o dever de conhecer a história do comunismo e da Grande Revolução Socialista de Outubro. O único problema é que a história do co-munismo e a história da Grande Revolução Socialista de Outubro devem ser narradas de forma que estejam

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ao alcance deles. É por isso que todos nós, a equipe médica do Hospital Central de Doentes Mentais, bem como os doentes que estão em tratamento em nos-so estabelecimento, pedimos-lhe, caro camarada Iuri Petrovski, que utilize seu talento para narrar-nos em palavras simples a história do comunismo e da Grande Revolução Socialista de Outubro. Use o seu talento para que nossos doentes possam também eles ter aces-so à luz do movimento trabalhador. Use o seu talento e o seu patriotismo para que os doentes mentais possam alimentar-se da esperança que a Grande Revolução Socialista de Outubro trouxe a todos os trabalhado-res de todos os países. Tenho certeza, camarada Iuri Petrovski, que encontrará as palavras que irão tocar o coração de nossos doentes mentais. Nossas sessões de iniciação à beleza da arte, da literatura, acontecerão duas vezes por semana. Todos os doentes mentais de nosso estabelecimento, sejam eles débeis mentais leves, médios ou graves, esquizofrênicos, autistas, depressi-vos ou neuróticos, todos serão convidados a escutá--lo, duas vezes por semana. Todos, exceto talvez os doentes da seção de segurança máxima, para os quais vamos imaginar outra solução... Quer dizer, talvez or-ganizemos sessões especiais para eles.

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Grigori Dekanozov mostra a Iuri Petrovski o quarto que lhe fora reservado. Katia Ezova permanece respeitosamente

junto à porta.

O DIRETOR: Este, meu caro Iuri Petrovski, é o seu quar-to. Terá aqui tudo de que precisar. Escolhemos para você o quarto que tem a mais bela vista do jardim, pois sabemos que os escritores amam a natureza. Vocês necessitam ver árvores, ver o céu, ver os pás-saros que cantam nas árvores... Nós sabemos, meu caro Iuri Petrovski... sabemos de que é feita a alma de um escritor, nós sabemos tudo. Seja bem-vindo neste quarto, em nossa casa. Nossa cara assistente médica Katia Ezova trará o seu desjejum no quarto todas as manhãs. Ao meio-dia e à noite, poderá comer conos-co, no salão do refeitório... (Através de um jogo de luz surge, atrás de uma parede que se tornou transpa-rente, o salão do refeitório. Os doentes vão começar sua refeição, rodeados pelos membros do corpo mé-dico. O conjunto tem algo de uma cena de tortura.) Pois nós, meu caro Iuri Petrovski, nós, os médicos do corpo médico, comemos com os nossos doentes, quer dizer, com aqueles que podem se deslocar sem proble-mas até o refeitório. E é com orgulho que lhe digo, meu caro camarada, que sessenta por cento dos nossos doentes mentais PODEM se deslocar, e deslocam-se

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VERDADEIRAMENTE duas vezes por dia, ao meio--dia e à noite, até o refeitório, para comer em compa-nhia de seus médicos. Mas você, Iuri Petrovski, faça como bem quiser. Sabemos que o escritor pode às ve-zes ser tomado pela inspiração, e então ele não sai do lugar, não come, não vê mais ninguém, não ouve mais nada, e escreve, eh, eh... É um grande mistério, a escri-ta, eu sei.

IURI PETROVSKI: Camarada Grigori Dekanozov, que-ro muito entrar em contato direto com os pacientes. Gostaria de visitar todas as dependências. Poderia eventualmente falar com alguns doentes. É possível?

O DIRETOR: Camarada Iuri Petrovski, não só você tem o direito de fazê-lo, mas insistimos que o faça. Está residindo aqui, é portanto natural que conheça nossa casa. Katia Ezova, que cuidará de você, vai lhe mostrar tudo: as alas, as salas de tratamento, os banheiros, o jardim, tudo, tudo, tudo. E toda vez que quiser falar com um doente, peça a Katia Ezova a ficha dele. Certo? Então, vou deixá-lo, Iuri Petrovski. Bom trabalho, Iuri Petrovski. Quando terminar o primeiro capítulo, orga-nizaremos a primeira sessão. Estou convencido, cama-rada, de que narrar de forma adequada a história do comunismo pode curar certos problemas mentais. Até logo, camarada. Viva o Grande Stálin!

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Noite. Quarto de Iuri Petrovski. Iuri Petrovski dorme. Katia Ezova entra. O quarto está iluminado pela luz que vem do

jardim. Katia Ezova aproxima-se da cama de Iuri Petrovski. Longo silêncio. Iuri Petrovski tem um sobressalto, abre os

olhos, depara-se com Katia.

KATIA: Psiu...

IURI: Quem é?

KATIA: Sou eu, Katia.

IURI: Mas o que você está fazendo aqui?

KATIA: Psiu...

IURI: Mas como é que você entrou?

KATIA: Psiu...

IURI: Mas...

KATIA: Por acaso quer um chá?

IURI: Não!

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KATIA: Um chá com um pouco de rum?

IURI: Não.

KATIA: Ou só um pouco de rum?

IURI: Não, não quero nada.

KATIA: Iuri Petrovski, preciso lhe fazer uma pergunta.

IURI: O quê?!

KATIA: Você viu ele de perto?

IURI: Como é?

KATIA: Você sabe, é muito importante pra mim...

IURI: O quê?

KATIA: Psiu... Há muitos que mentem, que apenas fin-gem que estiveram com ele. Esses me fazem vomitar... Dizer que estiveram com ele quando nunca estiveram...

IURI: Com quem?

KATIA: Stálin... Você realmente esteve com ele? O di-retor disse que foi o próprio Stálin que lhe entregou o Prêmio. É verdade? Foi mesmo Stálin? Foi ele em pessoa quem entregou?

IURI: Foi...

KATIA: Quando?

IURI: Ah, faz muito tempo. Foi antes da guerra...

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KATIA: E você o viu de perto?

IURI: Vi... Mas por que todas essas perguntas?

KATIA: Porque... Porque eu queria saber se ele é alto.

IURI: Não é... muito alto.

KATIA: Ele é... mais alto do que você?

IURI: Não, acho que não.

KATIA: Mas você o viu de perto, bem de perto.

IURI: Vi, pode-se dizer... Estava com outros jovens ca-maradas escritores reunidos para um congresso. E ele, ele passou, apertou-nos a mão...

KATIA: Ele apertou sua mão!

IURI: Apertou.

(Katia pega a mão de Iuri e aperta-a contra o próprio peito.)

KATIA: Ah, Iuri Petrovski, como sou feliz por tê-lo aqui... Nunca conheci alguém que tenha de fato co-nhecido Stálin.

IURI: Katia Ezova, tenha calma. Eu nunca o conheci pessoalmente. Apenas apertei sua mão, é tudo.

KATIA: E seus olhos, como eram?

IURI: Seu olhos...?

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KATIA: Seus olhos. Você olhou diretamente em seus olhos?

IURI: Não, acho que não...

KATIA: Mas como? Você não se lembra? Como pode não se lembrar?

(Iuri retira sua mão das mãos de Katia.)

IURI: Camarada Katia Ezova, por que todas essas per-guntas?

(Katia assoa o nariz e muda bruscamente de atitude.)

KATIA: Sabe, Iuri Petrovski, eu escrevo também.

IURI: Você escreve o quê, Katia Ezova?

KATIA: Escrevo poemas.

IURI: Muito bem, Katia.

KATIA: Mas eu nunca os mostrei a ninguém, Iuri Petrovski.

IURI: Muito bem, Katia.

KATIA: Mas eu preciso mostrá-los a você, Iuri Petrovski.

IURI: Depois, Katia.

KATIA: Não, Iuri Petrovski, eu preciso mostrar meus poemas agora.

IURI: Mas são quase três horas da manhã!

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KATIA: Pelo menos um, Iuri Petrovski.

IURI: Está bem, Katia. Vamos lá.

KATIA: Vou recitá-lo, Iuri Petrovski.

IURI: Prefiro eu mesmo ler.

KATIA: Não, Iuri Petrovski. Não. Meus poemas estão todos na minha cabeça... Aqui... Na verdade, eu nunca os escrevi no papel, guardo-os sempre aqui... Aqui...

IURI: E quantos você tem aí?

KATIA: Milhares, Iuri Petrovski, milhares...

IURI: Está certo, Katia. Escolha um e recite-o para mim.

(Mudando novamente de atitude. Katia quase entra em transe.)

KATIA: Stálin, tu és nossa luz

Na noite sem fim,

Stálin, acaricias nossa mente

Pois és o amante da Revolução...

Stálin, és nossa razão de viver,

Stálin, tu vives em nós eternamente...

Não temos nada, devemos-te tudo,

Fica conosco, fica conosco...

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