a historia da formação da galáxia

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123 Capítulo 6 A historia da formação da Galáxia A parte mais empolgante do estudo da Galáxia é a tentativa de descobrir os passos de sua formação. Como veremos, trata-se de uma reconstituição repleta de caminhos alternativos que está longe de ser concluída; no entanto algumas linhas gerais podem ser traçadas. Desde que a teoria do Big-Bang se estabeleceu com toda força, na década de 60, ficou claro que a formação de galáxias deveria ser o resultado da expansão e do esfriamento do universo, que favoreceu a ampliação de flutuações de densidade no gás primordial. As flutuações deram origem a condensação cada vez mais acentuada das regiões que foram no início apenas um pouco mais densas que as vizinhanças. Mas como exatamente se deu a formação da Galáxia? Nesta tarefa de detetive, uma das principais ferramentas de trabalho é a abundância química dos elementos, que dá indicação sobre a idade das populações estelares. Como exemplo destes indícios disponíveis, uma das diferenças entre as estrelas do halo e as do disco reside em sua “metalicidade”. Antes de prosseguir, é importante esclarecer um pouco mais este conceito. Metalicidade de estrelas É bom lembrar que as estrelas são constituídas principalmente de hidrogênio e hélio. A proporção dos outros elementos é muito menor, sendo da ordem de 1 átomo de oxigênio para 10 000 átomos de hidrogênio. Os astrônomos chamam de metais todos os elementos químicos, com exceção do hidrogênio e do hélio. Diz-se que uma estrela tem metalicidade alta se for “rica” em elementos como C, O, que não são metais no vocabulário da Química. Mas, claro, os verdadeiros metais como Ca, Fe, Ni, etc, também contribuem para a metalicidade. Qual a importância da metalicidade, se estamos falando de uma fração tão pequena da massa das estrelas? A teoria cosmológica de evolução do Universo a partir da explosão inicial ou “Big Bang” mostra que apenas o hidrogênio e o hélio, e um pouco de lítio, foram sintetizados nas primeiras horas, quando o universo era bem mais denso e quente do que hoje. Os elementos mais pesados, ou “metais”, só foram sintetizados depois, no interior de estrelas massivas; o material enriquecido em metais foi restituído ao meio interestelar seja por meio da explosão das estrelas (supernovas) ou da expulsão de suas camadas externas na forma de um vento estelar, dois processos que ocorrem no final da vida das estrelas. Ou seja, a metalicidade do meio interestelar foi crescendo lentamente, alimentada pela morte de estrelas massivas. A Terra, tão rica em ferro, não poderia ter a composição que tem, se não tivesse havido essa evolução química. E o leitor, que é constituído em grande parte de átomos de carbono e de oxigênio, é basicamente um condensado de restos de supernovas. Um aspecto da evolução da composição química estelar que merece atenção, é que os metais sintetizados pelas reações nucleares no interior das estrelas, no caso de estrelas de baixa massa (como o Sol), não são levados à superfície das mesmas, enquanto elas se encontram na seqüência principal (SP). Não existem movimentos de convecção transportando o gás das camadas externas da estrela para as regiões centrais e vice-versa. Por este motivo, a metalicidade que observamos por meio de espectros das estrelas da SP

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Introdução ao estudo de galáxias

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Capítulo 6

A historia da formação da Galáxia

A parte mais empolgante do estudo da Galáxia é a tentativa de descobrir os passos de sua formação. Como veremos, trata-se de uma reconstituição repleta de caminhos alternativos que está longe de ser concluída; no entanto algumas linhas gerais podem ser traçadas. Desde que a teoria do Big-Bang se estabeleceu com toda força, na década de 60, ficou claro que a formação de galáxias deveria ser o resultado da expansão e do esfriamento do universo, que favoreceu a ampliação de flutuações de densidade no gás primordial. As flutuações deram origem a condensação cada vez mais acentuada das regiões que foram no início apenas um pouco mais densas que as vizinhanças. Mas como exatamente se deu a formação da Galáxia? Nesta tarefa de detetive, uma das principais ferramentas de trabalho é a abundância química dos elementos, que dá indicação sobre a idade das populações estelares. Como exemplo destes indícios disponíveis, uma das diferenças entre as estrelas do halo e as do disco reside em sua “metalicidade”. Antes de prosseguir, é importante esclarecer um pouco mais este conceito. Metalicidade de estrelas

É bom lembrar que as estrelas são constituídas principalmente de hidrogênio e hélio. A proporção dos outros elementos é muito menor, sendo da ordem de 1 átomo de oxigênio para 10 000 átomos de hidrogênio. Os astrônomos chamam de metais todos os elementos químicos, com exceção do hidrogênio e do hélio. Diz-se que uma estrela tem metalicidade alta se for “rica” em elementos como C, O, que não são metais no vocabulário da Química. Mas, claro, os verdadeiros metais como Ca, Fe, Ni, etc, também contribuem para a metalicidade.

Qual a importância da metalicidade, se estamos falando de uma fração tão pequena da massa das estrelas? A teoria cosmológica de evolução do Universo a partir da explosão inicial ou “Big Bang” mostra que apenas o hidrogênio e o hélio, e um pouco de lítio, foram sintetizados nas primeiras horas, quando o universo era bem mais denso e quente do que hoje. Os elementos mais pesados, ou “metais”, só foram sintetizados depois, no interior de estrelas massivas; o material enriquecido em metais foi restituído ao meio interestelar seja por meio da explosão das estrelas (supernovas) ou da expulsão de suas camadas externas na forma de um vento estelar, dois processos que ocorrem no final da vida das estrelas. Ou seja, a metalicidade do meio interestelar foi crescendo lentamente, alimentada pela morte de estrelas massivas. A Terra, tão rica em ferro, não poderia ter a composição que tem, se não tivesse havido essa evolução química. E o leitor, que é constituído em grande parte de átomos de carbono e de oxigênio, é basicamente um condensado de restos de supernovas.

Um aspecto da evolução da composição química estelar que merece atenção, é que os metais sintetizados pelas reações nucleares no interior das estrelas, no caso de estrelas de baixa massa (como o Sol), não são levados à superfície das mesmas, enquanto elas se encontram na seqüência principal (SP). Não existem movimentos de convecção transportando o gás das camadas externas da estrela para as regiões centrais e vice-versa. Por este motivo, a metalicidade que observamos por meio de espectros das estrelas da SP

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reflete apenas a metalicidade do gás a partir do qual a estrela se formou, isto é, a metalicidade ambiente na época e no local em que a estrela nasceu. É como se a estrela não fosse informada do que acontece em seu interior. Então ocorre uma situação paradoxal, em que as estrelas guardam a memória da composição química de um passado remoto, enquanto que o meio interestelar que as circunda pode ter evoluído em termos químicos. É paradoxal porque, afinal, é nas estrelas que os metais são produzidos. Isto acontece porque só nos estágios finais de evolução os metais produzidos dentro da estrela são levados à superfície ou expelidos. Para sermos mais precisos, alguns elementos como Fe e elementos mais pesados não são trazidos à superfície em nenhum estágio da evolução, sendo apenas expelidos em explosões de supernovas. Elementos como C, N, e O não são trazidos à superfície enquanto as estrelas se encontram na SP, no caso de estrelas pequena massa. Mas, para as estrelas de grande massa, há um enriquecimento destes elementos na superfície já na SP.

Os elementos químicos são responsáveis por um grande número de linhas de absorção, nos espectros observados das estrelas. São tantas linhas que muitas são difíceis de identificar, no sentido de se afirmar que tal linha é devida a tal elemento químico, sendo produzida pela transição entre tal e tal nível de energia do átomo. Deduzir das linhas observadas qual é a abundância de um elemento é uma tarefa complexa, porque a intensidade da linha não depende apenas da abundância, mas também de caraterísticas intrínsecas da transição atômica e de fatores ambientais como temperatura e pressão na atmosfera estelar. Já comentamos no capítulo 2 que esta tarefa é auxiliada por programas de computador que visam efetuar a “síntese espectral” (ver exemplo na figura 6-1), reproduzindo teoricamente os espectros observados. No IAG, Beatriz Barbuy é especialista nesta área, e tem usado a síntese espectral para estudar populações estelares.

Figura 6-1: Espectros observados(linha pontilhada) e obtidos por síntese (linhas cheia) para o Sol e para a gigante vermelha Arcturus, de um trabalho de Paula Coelho e colaboradores, do grupo de B. Barbuy. As 3 linhas mais intensas são de Mg (magnésio) neutro.

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Embora a síntese espectral seja a maneira mais precisa de se obter a abundância dos elementos, os astrônomos se contentam muitas vezes com “indicadores fotométricos”. As linhas espectrais são tantas, em algumas bandas, que chegam a afetar a quantidade de radiação emitida pela estrela. Por exemplo, as estrelas de baixa metalicidade apresentam um excesso de cor U-B, com relação às de mesmo tipo espectral mas com metalicidade “normal”. Isto porque estrelas com menos metais têm menos linhas de absorção na banda U, e por isso tem “excesso” aparente de radiação nesta banda, em relação a uma estrela como o Sol que é nosso padrão habitual de comparação.

As abundâncias de elementos químicos costumam ser expressas em escala logarítmica, e normalizadas à abundância solar. Por exemplo [Fe/H] = -1 significa uma abundância de ferro, relativa ao de hidrogênio, 10 vezes menor do que a do Sol, e [O/H] = 0 uma abundância de oxigênio, relativa ao hidrogênio, igual à do Sol. Com esta convenção, os números passam a ser mais fáceis de entender.

Modelos de colapso

Um dos primeiros modelos de formação da Galáxia, a partir do colapso de uma nuvem inicial de gás, foi formulado em 1962 por Eggen, Lynden-Bell e Sandage (por isso, às vezes chamado de modelo ELS). Estes autores observaram as órbitas das estrelas na vizinhança solar, e também estimaram a metalicidade das mesmas, usando um índice fotométrico. Fizeram uso da hipótese de que as estrelas com baixa metalicidade são as mais antigas (pois, como dissemos a metalicidade deve ter aumentado lentamente). Verificaram que as estrelas mais antigas da Galáxia tem órbitas altamente alongadas, quase linhas retas passando pelo centro da Galáxia, com pouco momento angular (baixa velocidade de rotação em torno do centro). Entre os trabalhos que reforçaram esta constatação, Oort mostrou em 1965 que o momento angular por unidade de massa, em relação ao centro da Galáxia, é um fator 8 menor para as estrelas RR Lyrae, altamente deficientes em metais, do que para estrelas do disco observadas na vizinhança solar, ricas em metais. O momento angular de uma estrela, num dado momento, é o produto da velocidade na direção de rotação (direção perpendicular à linha que a une ao centro da galáxia) pela distância ao centro. Estrelas com órbitas muito alongadas tem velocidade pequena na direção de rotação.

As órbitas muito excêntricas de estrelas antigas não apresentam concentração no

plano galáctico, mas parecem estar distribuídas igualmente em todas as direções, sempre radialmente, como os espinhos de um ouriço do mar. Estas órbitas sugerem um colapso inicial direcionado para o centro da Galáxia, ou eventualmente, ao contrário, uma ejeção radial a partir do centro. ELS formularam a hipótese de que houve um colapso radial muito rápido, num tempo inferior a um bilhão de anos.

No modelo de ELS, primeiro se formaram as partes esféricas da Galáxia, que são o halo e o bojo. As estrelas destes componentes parecem um enxame de abelhas, com movimentos não coordenados entre si. Como a população estelar do disco, que apresenta

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movimento de rotação bem comportado em torno do centro galáctico, poderia ter sido formada a partir da mesma matéria que formou o halo, que não apresenta rotação global? O modelo ELS supõe que à medida que o material mais externo continuou a cair em direção às regiões centrais, o momento angular começou a se manifestar. Por menor que seja a rotação da nuvem que deu origem à Galáxia, a velocidade de rotação aumentou quando a matéria distante foi trazida para o centro. Isto se deve à conservação do momento angular, uma quantidade proporcional ao produto da velocidade de rotação pelo raio de rotação. Diminuindo o raio, a velocidade tem que aumentar; é a mesma lei que faz com que uma dançarina que encolhe os braços passe a girar mais depressa. A velocidade de rotação finalmente atingiu um valor tal que a força centrífuga passou a equilibrar a atração gravitacional das regiões centrais, e obteve-se um disco estável em rotação. É possível imaginar que se o momento angular do material proto-galático fosse desprezível, não teria havido formação de disco, e todo o material teria continuado a cair em direção ao centro, resultando numa galáxia elíptica. A decisão entre as opções para uma galáxia a ser formada, de se tornar espiral ou elíptica, estaria então relacionada com pequenas variações no momento angular inicial.

Porque as galáxias teriam alguma rotação inicial? Quando o universo estava repleto de proto-galáxias, estas não eram tão distantes entre si, e exerciam força de maré uma sobre a outra. Força de maré não é nada mais que força gravitacional, na interação entre dois objetos extensos que passam na proximidade um do outro. Neste caso a força é exercida de forma desigual, agindo mais sobre as regiões de um objeto que estão mais próximas do outro objeto, causando deformação. Nestes encontros, facilmente as proto-galáxias adquirem uma pequena quantidade de rotação sobre si mesmas. A figura 6-2 dá uma idéia do que poderia ser esta interação entre galáxias.

6 Figura 6-2: Conjunto de galáxias inter-atuantes conhecidas como o Quinteto de

Stephan. A galáxia espiral maior na parte inferior não faz parte do grupo, estando mais próxima de nós.Duas galáxias estão claramente interagindo.

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O que a figura mostra é uma interação atual entre galáxias, e não da época das proto-galáxias, que não seriam observadas. A explicação dada acima sobre a formação de galáxias elípticas ou espirais, não é a única. Constata-se que existem mais galáxias elípticas em aglomerados de galáxias do que entre as galáxias isoladas. Como os aglomerados estelares, os aglomerados de galáxias são constituídos de um grande número de galáxias próximas umas das outras. As galáxias isoladas (não pertencentes a aglomerados) são principalmente espirais. A diferença entre os dois ambientes, um longe dos aglomerados e outro no interior de um aglomerado, é a freqüência de colisões. As colisões de galáxias freqüentemente resultam na incorporação de uma galáxia na outra (merge em inglês; usa-se também a expressão de “canibalismo” galáctico), processo que pode ser observado ocorrendo em muitos casos. Simulações numéricas mostram que o merge de duas galáxias espirais geralmente resulta numa galáxia elíptica, porque as órbitas estelares bem comportadas de rotação circular, típicas de um disco de espiral, são totalmente perturbadas numa colisão. Como as colisões de galáxias são mais freqüentes em aglomerados, é normal que ali existam mais galáxias elípticas.

Por outro lado, existem também simulações numéricas mostrando que quando uma galáxia elíptica passa próxima de uma outra, a força de maré resultante pode produzir estruturas alongadas e eventualmente algo parecido com um disco.

Outra questão a ser considerada é a matéria escura. ELS não se preocuparam com a possível existência de matéria escura, já que esta ainda não tinha sido aventada. Na década de 80, passou-se a uma crença praticamente generalizada de que as galáxias possuem um halo massivo não visível, de matéria escura fria (CDM, cold dark matter). A noção de matéria escura surgiu da cosmologia, a ciência que estuda a origem e evolução do universo como um todo. Por uma questão de elegância da teoria, é necessário igualar a densidade de matéria do universo à densidade “crítica”, aquela para a qual o universo estaria no limite entre um universo aberto (em expansão para sempre) e fechado (que voltaria a se contrair, no futuro). A densidade de matéria visível está longe da densidade crítica, e por isto supõe-se que existe uma grande quantidade de matéria não visível, embora sua natureza não esteja estabelecida. De acordo com esta visão, a maior parte da massa de uma galáxia se encontra na forma de CDM; a parte visível da matéria é uma pequena parcela, que acaba ficando no fundo do poço de potencial produzido pela matéria escura, como um líquido que se acumula no fundo de uma depressão. Neste caso, as flutuações de densidade que teriam dado origem às galáxias seriam flutuações na CDM. As simulações numéricas de colisões de galáxias, levando em conta a CDM, aumentam a variedade de resultados que podem ser obtidos.

Embora ninguém conteste que a formação da Galáxia seja o resultado de um processo de colapso gravitacional, é difícil desenvolver simulações numéricas tão completas que, partindo de um modelo cosmológico, consigam descrever os detalhes desta formação, até chegar numa galáxia espiral. O que nos resta a fazer, então, é ficar atento aos mínimos detalhes da estrutura galáctica que possam nos revelar a cronologia dos eventos de sua formação.

As determinações de idades dos aglomerados globulares por meio dos diagramas HR (ver o capítulo 2) indicam que eles têm da ordem de 12 bilhões de anos, mas com um espalhamento real (não devido a incertezas de avaliação) em idades de cerca de 2 bilhões

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de anos. Isto significa que o processo de colapso inicial do halo da Galáxia não foi tão rápido; ele ocupou uma proporção razoável da idade total da Galáxia. Consideramos aqui que a idade da Galáxia coincide com a idade dos aglomerados mais velhos existentes, de pouco menos de 14 bilhões de anos. Durante este intervalo de tempo, houve um aumento gradual de metalicidade, sendo que os aglomerados mais antigos têm metalicidade menor que os menos antigos. As metalicidades dos aglomerados são da ordem de [Fe/H] =-2 (cem vezes menos ferro, em relação ao hidrogênio, do que no Sol) a -0.4 ( 2,5 vezes menos que no Sol). Note-se que os aglomerados situados no bojo são mais ricos em metais do que os mais distantes, do halo.

Uma hipótese relativamente bem aceita é a de que as estrelas não se formaram

individualmente, mas em aglomerados. Assim, o halo seria constituído em grande parte de estrelas que teriam escapado de aglomerados globulares; eventualmente, muitos aglomerados existentes no início teriam se desfeito completamente. Em conseqüência, considera-se que a faixa de idades das estrelas do halo coincide com a dos aglomerados globulares.

Há, no entanto, um fato um pouco surpreendente com respeito à metalicidade das estrelas que compõem o halo. Em princípio, as primeiras estrelas que se formaram deveriam ter metalicidade praticamente zero, pelo simples fato de serem as primeiras. Aquelas com menor massa deveriam ter sobrevivido até hoje, tendo duração de vida (prevista pela teoria de evolução estelar) maior que a idade da Galáxia. No entanto, os esforços de se encontrar estrelas de metalicidade zero não deram resultado. A estrela de mais baixa metalicidade conhecida até o momento foi descoberta em 2002 num trabalho do grupo de T. Beers que teve a participação de uma pesquisadora do IAG, Sílvia Rossi. A estrela tem [Fe/H] = -5.3, cerca de 200000 vezes menos Fe do que no Sol. Foi sugerido, como possível explicação para a inexistência de estrelas com metalicidade nula, que nas condições de metalicidade muito baixa existentes nos estágios iniciais da Galáxia, apenas estrelas de grande massa poderiam se formar. Estas, tendo vida curta, não estariam mais presentes. Programas sérios de procura foram desenvolvidos, como este de Beers, selecionando estrelas candidatas por meio de fotometria e depois obtendo-se espectro das mesmas. A impressão que se tem é que se estrelas de metalicidade nula existissem, teriam sido detectadas.

A formação do disco galáctico, ao que tudo indica, só ocorreu depois do final do colapso do halo, já que todos os objetos do disco têm metalicidade mais alta do que os do halo. Inclusive, foi possível fazer uma datação direta e precisa da idade do disco na vizinhança solar, por meio de observações das estrelas anãs brancas. O método foi proposto pela primeira vez por D.E. Winget e colaboradores (entre os quais Kepler de Oliveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em 1987. As anãs brancas estão no último estágio da evolução estelar; são estrelas que não abrigam mais reações nucleares, estando apenas esfriando. A teoria prevê que a distribuição de luminosidade destas estrelas deve apresentar um corte abrupto, relacionado com a idade do disco (as estrelas não tiveram tempo de esfriar além de um certo ponto). Segundo o artigo desses pesquisadores, esta idade seria de 9,3 bilhões de anos, com erro possível de 2 bilhões de anos. Um trabalho mais recente (2002) do mesmo grupo, tendo B. Hansen como primeiro autor, utilizou o mesmo método, mas com uma nova calibração, tanto para o disco como para um aglomerado globular, M4, que é um legítimo representante do halo. As idades

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foram 12,7 ± 0,7 bilhões de anos para M4 e 7,3 ± 1,5 bilhões de anos para o disco. A diferença de idade entre as duas populações é considerável.

Segundo o modelo de ELS, a formação do disco representaria a fase final do colapso da matéria que constituía a proto-galáxia. Como já mencionamos, a rotação seria o resultado da concentração do material que estava inicialmente mais distante. A formação do disco poderia ser representada como uma seqüência de discos cada vez mais achatados, girando cada vez mais depressa, e com metalicidade cada vez mais alta. Veremos a seguir que esta seqüência para a formação do disco não é mais uma hipótese geralmente aceita; existindo modelos que pregam praticamente o contrário, em que partem do disco mais achatado para a geração do disco mais espesso. Além disto, a hipótese de formação do disco como uma continuidade da formação do halo é incerta, já que existem evidências de que tenha decorrido um certo intervalo de tempo entre o final do colapso da componente esférica de população estelar e o início do aparecimento do disco.

Porque o disco tem duas (ou mais) espessuras

Voltemos a uma questão discutida no capítulo 4, que é o fato da espessura do disco ser diferente, dependendo do tipo de estrela que se considera. Este fato leva a várias interpretações, nem sempre colocadas de forma clara. Vimos que o modelo ELS prediz uma variação contínua de espessura com a idade das estrelas. No entanto, há quase um consenso de que existem dois discos, o fino e o espesso, ou o jovem e o velho. Eles têm o mesmo plano de simetria, estão intimamente misturados, mas parecem ter histórias diferentes. O disco fino contém estrelas de todos os tipos espectrais, de O até M. Lembremos que todas as estrelas O e B são jovens, já que elas têm vida curta; estrelas de baixa massa como as de tipo espectral K e M da seqüência principal podem ser tanto jovens quanto velhas. Já as gigantes K e M são estrelas que esgotaram sua vida na seqüência principal, portanto são velhas. O disco espesso (velho) só contém estrelas de tipo G, K e M; supõe-se que as de vida mais curta já morreram. Se tomarmos uma amostra de estrelas B para avaliar a espessura do disco, vamos encontrar a espessura do disco fino, já que estas só existem no disco fino. Se tomarmos uma amostra de estrelas K, teremos uma mistura de estrelas pertencentes aos dois discos. Mas, como a quantidade de estrelas K do disco espesso é maior, estas dominam, e no momento de medir a espessura do disco, vamos estar observando principalmente o disco espesso.

Apresentamos na figura 6-3 a escala de altura do disco em função da magnitude absoluta das estrelas, segundo um trabalho de J.N. Bahcall e R.M. Soneira, de 1980. Embora estes autores tenham optado pelo uso de magnitude absoluta no eixo horizontal, o gráfico seria praticamente o mesmo se fossem usados tipos espectrais. Lembremos (capítulo 2) que as estrelas de magnitudes absolutas negativas ou próximas de zero são as mais luminosas e as que têm vida mais curta. Este gráfico ilustra bem o conceito de dois discos.

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Figura 6-3: Escala de altura do disco galáctico em função da magnitude absoluta das estrelas, segundo J.N. Bahcall e R.M. Soneira (1980). Estes autores coletaram dados da literatura (as várias séries de pontos), e traçaram uma curva média representativa (linha continua).

Porque as estrelas jovens se concentram num disco fino? A resposta a esta pergunta exige uma discussão do mecanismo de formação estelar e em menor grau, dos mecanismos que impedem as estrelas de se afastarem demais do plano do disco. Um ponto importante é que estrelas praticamente nunca colidem entre si, nem passam tão perto uma das outras ao ponto de suas trajetórias serem alteradas; as trajetórias obedecem apenas à atração gravitacional média da Galáxia. Para entender o disco fino, podemos traçar um paralelo com os planetas do sistema solar, cujas órbitas estão praticamente todas num mesmo plano. O motivo disto é que os planetas nasceram num plano; trata-se do plano do disco de gás e poeira que circundava o Sol e deu origem aos planetas, há 4,5 bilhões de anos. Pelas leis de Newton, num potencial central como o do Sol, o plano das órbitas não é alterado; ele continua sendo o mesmo até hoje. A comparação com o sistema solar nos mostra que o essencial, para termos um disco fino, é que as estrelas nasçam dentro de um mesmo plano. Depois, não será difícil manter o plano das órbitas. De fato, observamos que o gás no qual ocorre formação estelar na Galáxia, hoje em dia, se encontra num disco muito fino, como queremos para essa teoria. Para explicar porque o disco constituído de estrelas jovens é fino, basta então explicar porque o gás se encontra na forma um disco fino. O gás, por sua vez, é muito concentrado no plano galáctico devido ao efeito do disco estelar....

Está parecendo que estamos diante de um círculo vicioso que não vai nos trazer

nenhuma explicação. Mas não é bem assim: veremos que um disco espesso de estrelas é capaz de produzir um disco fino de gás, que irá produzir um disco fino de estrelas. Portanto, basta termos um disco estelar espesso no início, para no final termos um disco fino e um espesso. Antes de aprofundar esta explicação, notaremos que um disco estelar

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de qualquer espessura, por si próprio, sem a criação de novas estrelas, tende a ficar com a espessura que tem. É fácil verificar, através do estudo das orbitas estelares, que a espessura de um disco de estrelas se mantém por um longo tempo. O próprio disco produz uma força gravitacional que atua sobre suas estrelas, que pode ser considerada como a soma de duas componentes, sendo uma dirigida para o centro galáctico e outra em direção ao plano central do disco. A força devida ao disco dirigida para o centro se soma às forças produzidas pelas populações esféricas de estrelas (halo e bojo), resultando na força central, responsável pela curva de rotação e pelas órbitas que discutimos no capítulo anterior. A força na direção perpendicular ao disco estelar (chamada de direção Z), apesar de apontar para o plano central do disco, não é capaz de fazer com que o mesmo se torne mais fino com o tempo. Ao mesmo tempo que giram em torno do centro galáctico, as estrelas oscilam em torno do plano de simetria do disco. Os dois movimentos são independentes. Na direção perpendicular ao plano, o movimento de uma estrela é parecido com o de um pêndulo: a estrela atinge uma distância máxima, reverte seu movimento, atravessa o plano e se desloca até a distância máxima do outro lado.

Podemos fazer uma comparação entre a força gravitacional na superfície da Terra e

a força gravitacional Z do disco galáctico. Da mesma forma que, ao lançarmos uma pedra para cima, quanto maior a velocidade do lançamento, maior a altura que a pedra irá atingir, no disco galáctico, quanto maior a velocidade de uma estrela na direção Z ao atravessar o plano de simetria, maior a distância ao plano que ela irá alcançar. Essa comparação nos mostra que existe uma relação entre a amplitude do movimento de oscilação de uma estrela em torno do plano e sua velocidade máxima na direção Z. Estendendo a noção para um dado tipo de estrelas, fica claro que a escala de altura do disco e a dispersão de velocidades na direção Z, para estas estrelas, são grandezas diretamente relacionadas.

Como são muitas as estrelas, e como num dado momento parte delas se encontra “acima” do plano do disco e parte “abaixo”, a espessura do disco se mantém por longo tempo. Mas, ao contrário das estrelas, o gás interestelar concentrado no disco é submetido a outras forças, como pressão e viscosidade, além da gravidade. Ao contrário das estrelas, as nuvens de gás colidem entre si. Qualquer oscilação do gás em torno do plano de simetria do disco é logo amortecida; por isto, o gás se assenta no plano, concentrando-se numa camada fina, com escala de altura da ordem de 50 pc, sustentada pelo equilíbrio de pressão. A espessura da camada de gás pode ser extimada a partir dos surveys de CO, como o ilustrado na figura 5-24. Da mesma forma que o gás praticamente não oscila em torno do plano galático, ele também não oscila em distância radial ao centro galáctico. O gás logo se assenta em uma trajetória próxima da circular, com a velocidade igual à da curva de rotação galáctica, para aquele raio. As estrelas que se formam a partir desta fina camada de gás iniciam sua vida com as mesmas características de velocidades do que ela; elas têm órbitas circulares bem comportadas em torno do centro, e praticamente têm velocidade nula na direção perpendicular ao plano, portanto têm escala de altura pequena.

Surgem então outros cenários possíveis de formação do disco, muito distinto do modelo de ELS que discutimos anteriormente. Trata-se de uma questão polêmica, cada cenário tendo partidários e detratores. Num modelo, o disco teria iniciado sua existência na forma gasosa; as estrelas do disco teriam todas nascido próximo do plano galáctico, onde se encontrava o gás. Com o tempo, as estrelas foram sofrendo pequenas perturbações

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ou colisões com nuvens moleculares, que são objetos de massa muito elevada, e estas colisões produziram desvios com relação às órbitas estelares iniciais, que eram praticamente circulares e situadas dentro do plano do disco. Este processo de “aquecimento” progressivo (aumento das dispersões de velocidades das estrelas) do disco fino foi proposto por L. Spitzer e M. Schwarzschild em 1953. A real eficiência deste mecanismo depende de parâmetros não muito bem determinados, que são ajustados para se obter o resultado que se deseja. Mas, supondo que ele seja eficiente, as estrelas teriam aumentado aos poucos sua escala de altura (a espessura do disco, medida com estas estrelas, aumentou). A lentidão do processo explicaria o fato de somente estrelas velhas terem grandes escalas de altura. Devido às mesmas perturbações, as estrelas se desviaram também das órbitas inicialmente circulares, que passaram a ser mais alongadas. Trata-se, em suma, de um modelo de formação gradual do disco espesso a partir de um disco fino. O processo ainda estaria em operação, no sentido de que o disco fino continua formando estrelas que serão submetidas ao “aquecimento”.

Existem ainda outras possibilidades. O disco espesso pode ser o resultado do colapso inicial, de uma colisão com uma outra galáxia ou outra causa; de qualquer forma ele teria se formado há mais tempo, e sua espessura, relativamente grande, seria o resultado das circunstâncias da formação. O disco fino teria se originado a partir do gás interestelar que se assentou no plano de simetria do disco antigo. Nesta interpretação, as escalas de altura dos dois discos teriam explicações distintas, e praticamente não teria havido alteração dessas escalas com o tempo. O disco espesso teria baixa metalicidade por ter-se formado há muito tempo, e grande dispersão de velocidades estelares, devido à formação um pouco violenta; o disco fino teria uma história mais recente e suas estrelas, nascidas do gás bem assentado, teriam baixa dispersão de velocidades. Finalmente, é razoável considerar uma variante deste último cenário, no qual teria havido a formação de um disco espesso estelar por uma causa externa, e em seguida teria começado a operar o mecanismo de formação estelar na camada fina de gás, mas levando em conta desta vez o lento aumento da escala de altura das estrelas produzidas no disco fino. Este proposta conciliadora apresenta a vantagem de escapar dos mecanismos graduais e de direção única, tanto do modelo ELS quanto do modelo oposto de “aquecimento” do disco fino descrito acima; ele supõe a existência de dois discos com histórias diferentes, mas considera alguma variação na espessura do disco fino com o tempo.

Em princípio, uma análise cuidadosa das escalas de altura em função do tipo espectral das estrelas ou, se possível, da idade das estrelas, deveria ajudar a distinguir entre estes cenários. A figura 6-1 mostra claramente uma descontinuidade na escala de altura, separando o disco jovem do disco velho. No entanto, uma análise mais cautelosa é necessária, e voltaremos à discussão da formação do disco depois de dominar um pouco melhor nossa ferramenta de datação de estrelas, que é a composição química. Modelos de evolução química

Descrevemos acima como a metalicidade do meio interestelar e das estrelas cresceu com o tempo, e pode até ser usada como um indicador de idade de estrelas. No entanto, a velocidade do enriquecimento químico depende do elemento considerado, e da posição na Galáxia. A evolução química da Galáxia constitui um problema complexo, que tem consumido esforços de muitos astrônomos na ultima década, e tem sido um dos focos

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de pesquisa no IAG. Por este motivo, achamos interessante apresentar uma breve descrição das questões envolvidas. Cristina Chiappini, ex-estudante do IAG, tem se distinguido no desenvolvimento de modelos de evolução química do disco galáctico.

Num modelo simples de evolução química do disco, podemos imaginar que este era constituído inicialmente de gás com composição primordial, com 76% da massa na forma de H, 24% na forma de He4, e traços de deutério, He3, e Lítio. O gás é progressivamente transformado em estrelas, de acordo com uma taxa de formação estelar ψ(t). A letra grega “psi” tem sido usada para designar a taxa de formação estelar, uma tradição que vamos manter aqui. Basicamente, num dado instante t da história do disco, a quantidade de estrelas que se formava, por unidade de área do disco, e por unidade de tempo, era um certo valor que designamos por ψ. Lembramos que o disco é tão fino em relação a sua extensão que podemos considerá-lo plano. Para sermos mais corretos, deveríamos escrever ψ(r,t), porque a taxa de formação estelar não variou apenas com o tempo, mas certamente dependeu da distância r ao centro galáctico. E, para sermos precisos, em vez de “quantidade” de estrelas formadas, é preferível dizer que ψ(t) representa a massa de gás transformada em estrelas, por unidade de área do disco e por unidade de tempo. Isto, porque nosso objetivo é avaliar o quanto o meio insterestelar é afetado pela formação estelar e pela formação de elementos nas estrelas.

Não sabemos, a princípio, qual o comportamento de ψ(t) com o tempo, mas

podemos, para construir modelos simples, substituir esta função por exemplo por uma constante (equivale a dizer que a taxa de formação estelar sempre foi a mesma), ou por uma exponencial decrescente, e verificar as conseqüências destas aproximações.

As estrelas recém-nascidas apresentam uma distribuição de massa de acordo com uma função de massa, ϕ(M). Já comentamos esta função no capítulo 2; basicamente, ela descreve o fato de que quando uma certa quantidade de estrelas nasce, são criadas muito mais estrelas de pequena massa do que de alta massa (lei de Salpeter). É bastante aceita a idéia de que esta função é “universal” (sempre foi a mesma e não depende do local considerado). Talvez apenas para uma primeira geração de estrelas, como já mencionamos, esta lei não tenha sido válida. Finalmente, sabemos que a cada massa inicial M de uma estrela, corresponde um tempo de vida τ(M); estrelas mais massivas vivem menos. Ao final do tempo τ(M) as estrelas terminam sua evolução e restituem ao meio interestelar parte de sua massa, por meio de vento estelar ou de explosão de supernova. A parcela restituída é a diferença M - RM, onde M é a massa inicial da estrela e RM a massa do resíduo, que é a matéria que fica presa para sempre na forma de um objeto compacto (anã branca, estrela de neutrons, buraco negro). A matéria restituída ao meio interestelar é enriquecida em elementos pesados ou metais, que foram sintetizados pelas reações nucleares no interior da estrela.

É interessante notar que as estrelas de pequena massa, digamos massas menores que 0,9 massa solar, têm um tempo de vida previsto maior que a idade da Galáxia (determinada por exemplo pela idade dos aglomerados globulares). Portanto, nenhuma destas estrelas teve oportunidade de completar sua vida e restituir material enriquecido. Para efeitos de evolução química, é como se o material que constitui estas estrelas tivesse sido perdido, e podemos acrescentar sua massa aos resíduos mencionados acima. Para estas estrelas, o resíduo tem a própria massa da estrela.

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Um parâmetro importante no estudo da evolução química é Yi(M), a massa de um

determinado elemento químico, ou de um dos isótopos desse elemento, que é ejetada por uma estrela de massa M, no final de sua evolução. O uso da letra Y vem do termo inglês yield (rendimento), e não deve ser confundido com a abundância de hélio, designada pela mesma letra. O índice i se refere ao elemento químico considerado; cada elemento tem um valor diferente de Y. Em principio, com um bom conhecimento de todas as reações nucleares que ocorrem no interior das estrelas, podemos calcular a quantidade de cada elemento químico que estará disponível no final de suas vidas; ou seja, Yi(M) é fornecido pela teoria. O leitor pode imaginar que as incertezas são muitas.

Daremos exemplos de como elementos químicos distintos têm histórias de formação diferentes. Vimos que o hidrogênio e o hélio são “primordiais”, produtos do Big Bang. O hélio, além de primordial, é também produto da síntese estelar, e sua abundância deve apresentar um ligeiro aumento com o tempo. Em termos relativos, como a quantidade de hélio já era grande, o efeito da síntese estelar é pequeno. O oxigênio é fornecido pelas estrelas de maior massa, que vivem muito pouco tempo (um ou poucos milhões de anos) e explodem na forma de supernovas de tipo II (ver a seção sobre supernovas no capítulo 2). O mesmo vale para outros elementos químicos chamados de “elementos alfa”, como neônio, magnésio, silício, que podem ser obtidos somando à massa atômica do oxigênio números inteiros de massa de uma partícula alfa (núcleo de hélio, com massa atômica 4). Já o ferro é produzido pelas supernovas de tipo I, com escala de tempo muito diferente1; tipicamente o tempo necessário para se chegar à explosão destas estrelas é da ordem de 4 bilhões de anos.

Construir um modelo de evolução química consiste em supor valores razoáveis para as funções ψ(r,t) e ϕ (M), utilizar resultados dos cálculos existentes de evolução estelar para os valores de τ(M) e Yi(M), e deduzir como a abundância de determinado elemento no meio interestelar evolui com o tempo. Uma hipótese simplificadora freqüentemente utilizada é o da “reciclagem instantânea”. Supõe-se que a matéria enriquecida é ejetada imediatamente pelas estrelas, assim que elas se formam. Esta aproximação é boa para os elementos que são produzidos em estrelas massivas, já que o tempo de vida destas estrelas é desprezível com relação à idade da Galáxia. Podemos dizer que estas estrelas explodem assim que se formam. Além disto, normalmente, se supõe que a matéria ejetada pelas estrelas é completamente misturada ao meio interestelar num tempo muito curto, de tal forma que não existem inhomogeneidades químicas locais, ou seja, o gás pode ser descrito por uma metalicidade que só depende do tempo e do raio galáctico.

Num sistema fechado ou isolado em que não há suprimento de gás externo (modelo closed box ou “caixa fechada”), devido à formação estelar, a fração de matéria inicialmente disponível na forma de gás interestelar convertida para sempre em resíduos (como definidos mais acima) aumenta com o tempo e, no final, a taxa de formação estelar

1 As supernovas de tipo I são o resultado da evolução de um sistema binário de estrelas, em que uma já tinha se transformado numa anã branca, e a outra, na fase de gigante vermelha, passou a transferir material para a primeira, até que esta atinja uma massa tal que o equilíbrio deixa de ser possível, resultando na explosão.

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decai por falta de gás. O modelo closed box é uma aproximação teórica interessante, que prevê que as estrelas produzidas no final do processo têm metalicidade elevada. Isto ocorre porque a metalicidade é um conceito relativo, não uma quantidade absoluta. Como no final do surto de formação estelar resta pouco gás, se algumas estrelas massivas explodem e enriquecem o meio interestelar, a quantidade de elementos pesados liberados em relação à quantidade de hidrogênio que ainda restava pode ser apreciável. Um tal modelo pode ser útil para entender a distribuição de metalicidade do bojo, pois supõe-se que o bojo foi formado num tempo relativamente curto, num processo que terminou com o esgotamento do gás.

Para o disco da Galáxia, os modelos atuais de maior sucesso não consideram um sistema fechado. O disco é aparentemente alimentado por gás externo de baixa metalicidade, que chega na forma de nuvens que caem sobre ele, processo ao qual se dá o nome de infall. Um mapa de direções onde são observadas as nuvens de alta velocidade caindo no disco galáctico é apresentado na figura 6-4. Este mecanismo de renovação do meio interestelar foi introduzido no modelo de R.B. Larson, mencionado mais adiante. O termo inflow é as vezes usado no mesmo sentido, mas é principalmente usado para designar o lento fluxo radial de gás do disco em direção ao centro, produzido pelos braços espirais. O inflow também deveria ser levado em conta, num modelo completo. Como vemos, são muitos os parâmetros que devem ser estimados, para se proceder a um cálculo de evolução de metalicidade no disco.

figura 6-4: mapa em coordenadas galácticas de direções nas quais são detectadas nuvens de HI de alta velocidade (|V | > 100 km/s ) segundo F. Lockman e colaboradores

(2002). Os símbolos abertos representam nuvens que aparentemente são ligadas a nuvens de baixa velocidade. Os símbolos cheios são nuvens sem conexão com as nuvens galácticas. A maioria tem velocidades negativas (gás se aproximando de nós, ou caindo

em direção ao disco).

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Apresentamos na figura 6-5 ados observacionais da abundância de ferro de uma amostra de estrelas da vizinhança solar, em função da idade das mesmas. A amostra foi estudada por H.J. Rocha Pinto (Observatório do Valongo, Rio de Janeiro), em seu trabalho de doutoramento no IAG, sob orientação de W. Maciel. A tendência de decréscimo da metalicidade das estrelas com a idade (ou aumento da metalicidade com o tempo), que já mencionamos, é esperada de qualquer modelo simples. Ela é evidenciada de forma mais clara neste gráfico do que em trabalhos semelhantes anteriores, devido ao cuidado na seleção das estrelas da amostra e correções efetuadas. As estrelas são de seqüência principal, e estão situadas num raio de apenas 25 pc do Sol. Lembremos que é muito difícil saber a idade de uma estrela individual da seqüência principal, já que suas características quase não mudam em bilhões de anos, para as estrelas de baixa massa. Na presente amostra, as idades foram inferidas a partir de uma calibração da relação atividade cromosférica versus idade. A noção que existe por trás desta calibração é que as estrelas recém-formadas possuem uma forte atividade cromosférica, parecida com a do Sol (campos magnéticos intensos, manchas, fulgurações), que pode ser quantificada através de linhas estreitas de emissão do cálcio. Com o tempo, esta atividade vai se tornando mais fraca. Voltando à relação idade-metalicidade, a relação evidenciada na figura 6-5 extremamente útil. No entanto, é importante frisar que ela não é universal; é de se esperar, por exemplo, que numa região do disco onde a taxa de formação estelar tenha sido maior, a metalicidade tenha aumentado mais rapidamente.

Figura 6-5: Abundância relativa de Ferro em função da idade das estrelas, para estrelas da vizinhança solar, segundo H.J. Rocha-Pinto. Este gráfico mostra que a abundância do ferro pode ser considerada como um marcador de idade.

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A questão das anãs G

Uma anã G é uma estrela igual ao Sol (lembramos que estas estrelas são chamadas de anãs por estarem na seqüência principal). As anãs G situadas no disco, na vizinhança solar, são facilmente observáveis. O interesse destas estrelas é que seu tempo de vida na seqüência principal é da ordem de 10 bilhões de anos, praticamente a idade do disco galático. Ou seja, espera-se que uma fração importante das estrelas G sejam antigas, formadas numa época em que a metalicidade era muito menor do que a atual. Já em 1962 foi identificado por Sydney van den Berg o “problema das anãs G”, que deu origem a especulações e tentativas de explicações, e tem interesse histórico. Foi verificado que havia menos estrelas anãs G de baixa metalicidade do que predizia qualquer modelo simples de evolução química do disco, num sistema fechado, (ver figura 6-6).

Figura 6-6: Lado esquerdo: número observado de anãs G por intervalo de metalicidade (histograma); número esperado de uma teoria de evolução química em sistema fechado (tracejado), que prediz mais estrelas de baixa metalicidade do que o observado, e número esperado de um modelo com “ infall” (curva cheia). Lado direito: distribuição de metalicidade de estrelas do halo (histograma) e de aglomerados globulares (histograma pontilhado), e a previsão de modelo de evolução em sistema fechado (curva cheia). Os dados são de J.E. Norris e S. G. Ryan (1991) e as figuras inspiradas de um texto de N. Prantzos.

Entre as hipóteses avançadas, duas parecem ser as mais interessantes. Uma delas proposta por J.W. Truran e A.G.W. Cameron em 1971, diz que a metalicidade inicial, na época da formação do disco, já era relativamente alta, da ordem de [Fe/H] = -1. Isto porque, por ocasião da formação muito rápida do halo e do bojo, houve enriquecimento rápido em metais. Assim se explicaria porque não existem, no disco, estrelas de baixa metalicidade.

Outra explicação, proposta inicialmente por R.B. Larson em 1972, é a do infall que já mencionamos. A evolução não se deu em sistema fechado, por causa do aporte

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constante de material de baixa metalicidade, que talvez seja gás residual da época da formação das galáxias. A explicação para o problema das anãs G, neste caso, é que no inicio da evolução do disco, numa época em que a metalicidade era baixa, a taxa de formação estelar era muito pequena, porque havia pouco gás. Logo, quase não se formaram estrelas de baixa metalicidade. À medida em que o disco foi alimentado em gás, a taxa de formação estelar teria aumentado.

A hipótese de Larson teve o mérito de atrair a atenção para a questão do infall, que até hoje constitui um dos ingrediente dos modelos de evolução química do disco. Mas ela é difícil de ser conciliada com um dos cenários que mencionamos acima, segundo a qual o disco teria sido inicialmente gasoso. Temos que supor que havia pouco gás no início, para não formar estrelas de baixa metalicidade. Entretanto, podemos imaginar cenários em que o gás estava presente no início, sem que houvesse formação estelar intensa. Existem regiões na periferia de galáxias espirais, onde existe gás mas não há estrelas. Talvez não baste existir gás para haver formação de estrelas; por exemplo, os braços espirais podem ser indispensáveis como mecanismo para dar início à compressão do gás. Quem sabe, a formação de estrelas no disco teve início nas partes internas do disco, e demorou para alcançar a vizinhança solar, onde as amostras de estrelas anãs G foram observadas. Mesmo sem ter respostas definitivas, vemos que uma questão como esta das anãs G é importante na escolha do melhor modelo de formação do disco.

A hipótese de que o disco teria iniciado sua existência com uma metalicidade razoável parece ser confirmada pela combinação de dados cinemáticos e de metalicidade como por exemplo o resultado de T.C. Beers, mostrado na figura 6-7, que discutiremos a seguir.

Figura 6-7: Velocidades radiais de uma amostra de estrelas da vizinhança solar, selecionadas por serem de baixa metalicidade ( T. C. Beers , 1999), em função da metalicidade.

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Beers e seus colaboradores selecionaram uma amostra de estrelas da vizinhança solar, com base na metalicidade, usando como indicador as linhas do cálcio ionizado (CaII), observadas com um equipamento que permite obter espectros de muito baixa resolução para um grande número de estrelas simultaneamente. Na figura é apresentada a velocidade radial das estrelas em função da metalicidade. O termo radial significa aqui a velocidade com a qual uma estrela se aproxima ou afasta do Sol, medida através do deslocamento das linhas espectrais, como explicado no capítulo 2. A figura é parecida com a 4-8, que focalizava as velocidades numa dada direção. As estrelas da vizinhança solar pertencentes ao disco giram em torno do centro galáctico com aproximadamente a mesma velocidade que o Sol, logo não apresentam velocidades importantes com relação a nós. Ao contrário, as estrelas do halo não giram de forma organizada em torno do centro galáctico. O Sol pode estar se afastando ou se aproximando delas, dependendo da direção em que se encontram. É uma situação parecida com a de alguém andando de automóvel que considera que os postes situados à frente estão se aproximando e os situados atrás estão se afastando. As velocidades podem ultrapassar 190 km/s, que é aproximadamente a velocidade de rotação do Sol em torno da Galáxia.

Na figura, podemos distinguir duas populações de estrelas, aquelas com grande dispersão de velocidade e baixa metalicidade (entre -1,5 e -3,0 aproximadamente), que são as do halo, e as com uma dispersão menor, que são as do disco. Assim, podemos ver que o disco possui metalicidades que se estendem desde -1,3 até 0 aproximadamente, enquanto que o halo apresenta metalicidades menores. Esta figura, portanto, está de acordo com a idéia de que quando o disco passou a existir, já havia uma metalicidade da ordem de -1.3. Façamos inicialmente, a título de exercício, uma análise da evolução do disco baseada na relação idade-metalicidade. Fazendo uma associação entre a figura 6-4 e a relação idade-metalicidade apresentada na figura 6-2, onde a metalicidade varia de forma praticamente linear com o tempo, poderíamos concluir que o eixo horizontal da figura 6-4, que representa a metalicidade, é também um eixo de tempo. É verdade que as escalas de metalicidade não coincidem perfeitamente, provavelmente porque as amostras foram selecionadas de forma diferente; Beers procurou especialmente por estrelas de baixa metalicidade. Poderíamos ainda concluir, da extensão da faixa de metalicidade na qual observamos o disco na figura 6-7, que a formação do disco se estendeu por um longo período de tempo, digamos cerca de 10 bilhões de anos. Notemos que na figura 6-7, o grupo de pontos que representa as estrelas do disco tem uma distribuição com uma certa “espessura” na direção vertical, que representa a dispersão de velocidades. Como já discutimos, a dispersão de velocidades está relacionada com a espessura do disco, portanto de alguma forma, a espessura da distribuição de pontos na figura 6-7 é proporcional à espessura física do disco. A figura sugere que a espessura do disco não variou de forma importante com o tempo, ou seja, a dispersão de velocidades para as estrelas mais antigas e para as mais recentes é aproximadamente a mesma.

As afirmações feitas acima trazem algumas contradições. O único lugar onde se formam estrelas hoje é no disco fino, onde está concentrado o gás. O disco que visualizamos na figura 6-7, com estrelas com velocidades radiais situadas entre -100 km/s e + 100 km/s, é o disco espesso (as dispersões de velocidades no disco fino são da ordem de 10 km/s). Se, como dissemos, o disco espesso teve uma formação que se estendeu ao longo de cerca de 10 bilhões de anos, deveria ter existido um mecanismo capaz de levar as estrelas do disco fino para o disco espesso, para que novas estrelas tenham feito sua

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aparição neste último durante todo este tempo,. No entanto, este mecanismo de aquecimento do disco fino não chegou a afetar a espessura do disco espesso, que se manteve constante (continuando a interpretar a dispersão de velocidade na figura 6-4 como sendo um indicador da espessura do disco).

Por outro lado, não podemos descartar a possibilidade do disco espesso ter uma origem distinta. Se ele foi formado por um mecanismo para o qual a aproximação closed-box é válida, a grande faixa de metalicidades não representa uma evolução com o tempo; um processo de formação rápida poderia ter gerado a dispersão de metalicidades. Neste caso, seria natural que a espessura do disco não apresente variação com a metalicidade, pois não estaríamos diante de uma escala de tempo. Lembremos que a relação idade-metalicidade da figura 6-5 foi determinada com estrelas da vizinhança solar e tem validade só para esta região. Voltamos, então, ao nosso dilema sobre a formação do disco espesso: foi gradual ou rápida? Em princípio, um gráfico parecido com o da figura 6-3, que desse a escala de altura em função da idade das estrelas, poderia mostrar se a transição entre o disco fino e o espesso é gradual. No entanto, as escalas de altura sempre foram determinadas com barras de erro relativamente grandes, o que dificulta este tipo de análise.

Numa seção anterior, mencionamos o mecanismo de espalhamento de estrelas por colisões com nuvens moleculares como possível explicação para o aquecimento do disco fino. Embora esta questão não tenha sido estudada na literatura, um tal mecanismo naturalmente tenderia a “saturar”, ou deixar de ser eficiente, depois de atingida uma certa escala de altura. Estrelas que passam a maior parte de seu tempo afastadas do plano galáctico, onde se encontram as nuvens moleculares, têm pouca probabilidade de colidir com estas, e de continuar aumentando a escala de altura. É exatamente o que é necessário: um processo de aquecimento que seja eficiente para o disco fino, mas que deixe de funcionar para o disco espesso. Apesar deste mecanismo parecer promissor, vamos fazer uma pequena ressalva. Consideramos que a expressão “colisão com nuvens moleculares” é um pouco superficial e enganosa. Quem calcula o efeito de colisões sobre órbitas estelares sabe que quanto mais lenta uma colisão, maior o desvio produzido. As nuvens moleculares são altamente concentradas nos braços espirais, como mostraram os mapeamentos da molécula CO. Lembramos aqui a figura 5-23, que mostra as nuvens escuras concentradas na parte interna dos braços da galáxia M51. O gás não permanece na forma de nuvens moleculares gigantes, nas regiões inter-braços. A verdadeira colisão que ocorre é das estrelas com os braços espirais. A velocidade das estrelas com relação aos braços é o parâmetro importante a ser considerado. Neste caso, a ressonância que ocorre no raio de co-rotação, discutida no capítulo anterior, é que atua fortemente no sentido de alterar as órbitas estelares, por ser uma região onde as colisões são lentas. Pode-se ter a impressão de que a co-rotação é algo muito localizado, que não afeta o disco como um todo. No entanto, como estamos muito próximos do raio desta ressonância, a dispersão de velocidades ou a de escala de altura do disco que observamos em nossa vizinhança estão fortemente afetadas pela co-rotação.

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O gradiente de metalicidade

A variação de metalicidade no disco em função do raio galático, também chamada de “gradiente” de metalicidade, vem sendo estudada pelo menos desde a década de 70 quando constatou-se que a metalicidade é maior nas regiões mais internas do disco. Vários autores, entre os quais W. Maciel, do IAG, procuraram ajustar funções matemáticas lisas, como uma lei de potência, para descrever a metalicidade em função do raio galáctico. Uma das dificuldades destes estudos é que a metalicidade do meio interestelar, como vimos, aumentou em função do tempo, e provavelmente o gradiente também mudou. Então temos que tomar o cuidado de selecionar objetos com idades homogêneas, para poder visualizar a variação de metalicidade em função do raio para uma dada época. Se tomarmos uma amostra de objetos muito jovens, estaremos medindo o valor atual da metalicidade do meio interestelar. Este cuidado foi tomado por S. Andrievsky (professor visitante no IAG) e colaboradores, em 2001 e 2002, que utilizou estrelas do tipo Cefeidas. São estrelas que já evoluíram e saíram da seqüência principal, mas como são massivas, o tempo total de evolução até o estágio atual de Cefeida é muito pequeno com relação à idade do disco. As Cefeidas têm a vantagem de ter a distância muito bem determinada, porque elas são variáveis pulsantes, e têm sido usadas como padrão de distâncias.

Apresentamos na figura 6-5 a metalicidade das Cefeídas em função do raio galáctico. Como a medida da abundância de cada elemento apresenta um certo erro, devido a dificuldade de medir a intensidade de linhas, foi feita a média da abundância de vários elementos, como forma de diminuir o erro; por isso o eixo vertical é notado [m/H] onde m se refere à um conjunto de metais.

Podemos ver que a variação é mais forte para regiões internas do disco (R menor que 5 kpc) e mais plana para fora, na região de 6 a 10 kpc, além de apresentar um degrau em 10 kpc. Este degrau, com variação de metalicidade da ordem de 0,15, é surpreendente, e sua existência não é geralmente aceita pela comunidade astronômica, apesar do degrau ter sido observado também por B.A. Twarog e colaboradores em 1997, usando uma amostra de objetos totalmente independente, que são os aglomerados abertos.

Figura 6-5: Metalicidade das Cefeidas em função do raio galáctico, resultados de S. Andrievsky e colaboradores (2004).

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Alguns autores ignoraram os detalhes que estamos discutindo e preferem ajustar uma linha reta aos dados, de um extremo ao outro. J. Lépine, Yu. Mishurov e I. Acharova propõem uma interpretação do plateau entre 6 e 10 kpc como sendo resultado da co-rotação, próxima de 8 kpc (ver capítulo 5). Segundo este modelo, a taxa de formação estelar nos braços espirais é comandada pelo fornecimento de gás à região formadora de estrelas: quanto mais alta a velocidade com que o gás penetra nos braços, maior será a taxa de formação estelar. No raio de co-rotação, onde os braços espirais têm a mesma velocidade que o gás do disco, o gás não alimenta os braços, e temos um mínimo de formação estelar. Um local que abriga por muito tempo um mínimo de taxa de formação estelar terá também um mínimo de enriquecimento em metais. Mas, devido a um certo grau de mistura de composição química de regiões galácticas vizinhas, o local do mínimo tende a ficar imperceptível e virar um plateau. Note-se que em varias galáxias espirais se observa um decréscimo de metalicidade até um certo raio, seguido de um aumento para as regiões mais externas, que poderia ser explicado pelo mínimo da co-rotação. É o caso por exemplo de NGC3359, estudada por P. Martin e J.-R. Roy (1995), cujos resultados são mostrados na figura 6-6. A mesma galáxia foi também observada por Marcus Copetti, da Universidade Federal de Santa Maria. Na nossa Galáxia existem outras evidências do mínimo de metalicidade na vizinhança solar, como o trabalho de doutoramento de Simone Daflon, do Observatório Nacional, que observou a metalicidade de estrelas B.

A descontinuidade da metalicidade em 10 kpc em nossa Galáxia, caracterizada por um decréscimo repentino, se for real, provavelmente também deve estar relacionada com a estrutura espiral. Vamos sugerir uma aqui uma explicação, a título de especulação, na falta de outras hipóteses razoáveis. A descontinuidade poderia coincidir com a ressonância externa de Lindblad para 4 braços. O significado destas ressonâncias foi explicado no capítulo anterior. Pelo que conhecemos da estrutura espiral, esta ressonância deveria estar em 10 kpc. Nossa Galáxia tem uma forte componente espiral de 4 braços, como mostram

Figura 6-6: Abundância do Oxigênio em função do raio da Galáxia NGC3359, segundo P. Martin e J._R. Roy. As duas opções de ajustes, de gradiente único ou de gradiente “bimodal” são comparadas.

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os mapas de braços traçados por Georgelin e Georgelin (figura 5-13, lembrando que ela está na escala antiga de dimensões do disco). Segundo a teoria clássica dos braços, o modo 4 braços só pode existir entre Ω - κ/4 e Ω + κ/4 (veja figura 5-7), o que o situa entra 4 e 10 kpc. Para raios maiores do que 10 kpc, este modo de ondas espirais deixa de existir. Em princípio, além deste raio, só poderia continuar existindo o modo com 2 braços. Supondo que a formação estelar é causada pelos braços espirais, a passagem de uma região onde existem 4 braços para uma onde existem apenas dois priva o disco de um dos motores de formação estelar, e portanto de enriquecimento em metais. Alertamos mais uma vez o leitor que este raciocínio é especulativo; Twarog propôs outra explicação para o degrau enquanto outros autores sequer aceitam sua existência.

É importante salientar que Cefeidas e aglomerados abertos, que aparentemente mostram a descontinuidade da metalicidade, são objetos jovens. Sua composição química reflete a do meio interestelar do qual acabaram de se formar, que é o meio interestelar de hoje. A composição do meio interestelar é consequência sobretudo do histórico de matéria ejetada por estrelas massivas. Com outros traçadores mais antigos, como por exemplo as nebulosas planetárias, que representam um estágio final de evolução, podemos inferir como era a metalicidade do meio interestelar alguns bilhões de anos atrás, certamente diferente de hoje. Resultados interessantes têm sido obtidos por W. Maciel e colaboradores, selecionando amostras de nebulosas planetárias com diferentes faixas de idade (figura 6-7). Na figura, a abundância de oxigênio está sendo representada em função do raio galáctico, separadamente para três grupos de idade das nebulosas. Este estudo deixa claro que a metalicidade tem aumentado em função do tempo em todo o disco, e também que o gradiente (a inclinação da reta que ajusta os dados de metalicidade em função do raio galáctico) tem diminuído. Inclusive, para as nebulosas planetárias mais jovens, observa-se um platô ou mesmo uma inversão de gradiente nas regiões externas. Para as nebulosas mais jovens, se fosse feito um ajuste “bimodal” em vez de uma linha única, veríamos que o gradiente praticamente não mudou nas regiões internas (apenas o nível de metalicidade mudou), enquanto que nas partes externas houve uma notável variação do gradiente.

Lembremos aqui um efeito que pode dificultar a interpretação dos gradientes de

metalicidade, quando estudados através de estrelas relativamente antigas. Existem motivos para acreditarmos que em determinadas condições, as estrelas migram, ou variam de raio galáctico. Um exemplo é o espalhamento das estrelas por efeito ressonante, na vizinhança da co-rotação, mencionado na seção anterior. Uma estrela pode nascer num raio galáctico onde a metalicidade é alta e ser levada para uma região de menor metalicidade. Portanto, as estrelas evoluídas e as nebulosas planetárias não refletem perfeitamente a metalicidade no passado do local onde se encontram hoje. O efeito da migração é de aumentar a dispersão de metalicidade em cada raio, alisar os “gradientes” e atenuar as descontinuidades.

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Figura 6-7: Variação da abundância de oxigênio com o raio galáctico, para nebulosas planetárias divididas em três grupos de idades distintas, segundo Maciel e colaboradores (2003). As retas indicam as inclinações (gradientes) obtidas para cada grupo. A historia de formação estelar na vizinhança solar

Outro resultado de grande interesse obtido por Rocha Pinto, que mostra que a história do disco não é tão simples, é uma estatística do número de estrelas, em função de sua idade. A amostra que ele utilizou é de estrelas muito próximas ao Sol (25 pc), e as idades foram inferidas de sua atividade cromosférica, como já mencionamos acima. O resultado é mostrado na figura 6-8. A taxa de formação estelar apresentada foi dividida por seu valor médio, de forma que o valor médio final é 1. Podemos ver que a taxa de formação estelar variou de forma irregular com o tempo. Estamos atualmente (idade zero) num máximo relativo de formação estelar, e o máximo anterior foi há cerca de 2,5 bilhões de anos, com um mínimo entre os dois há 1,5 bilhões de anos. A taxa de formação estelar há mais de 10 bilhões de anos era muito pequena, o que está de acordo com o fato do disco ter iniciado sua existência de fato naquela época.

Rocha Pinto sugere que os surtos de formação estelar estejam relacionados com

colisões da Grande Nuvem de Magalhães (uma pequena galáxia satélite da nossa) com o disco galáctico. Apresentamos a seguir uma outra interpretação, que faz apelo à estrutura espiral, e consegue um razoável acordo com as observações, pelo menos para as variações mais recentes,. Como já dissemos, é fácil constatar, olhando para as galáxias espirais, que os braços são os locais onde as estrelas se formam com alta eficiência. Então vamos verificar em que época o grupo de estrelas que constitui nossa vizinhança atravessou um

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Figura 6-8: História da taxa de formação estelar da vizinhança solar, segundo H.J. Rocha Pinto. A idade 0 se refere à época atual. A taxa de formação foi normalizada com relação ao valor médio da mesma. braço, pela última vez. Quando isto aconteceu, o conjunto de estrelas que estavam nascendo naquele momento passou a nos acompanhar, numa viagem quase circular em torno da Galáxia. Como a amostra estudada por Rocha Pinto é muito próxima ao Sol, todas as estrelas praticamente têm o mesmo período de rotação galáctica. É importante lembrar que os braços não estão parados; eles também estão girando, com velocidade próxima da nossa, já que estamos na vizinhança do ponto de co-rotação. Existe um braço muito próximo de nós, como comentamos no capítulo anterior. Estamos praticamente atravessando este braço, o que explica o pico atual de formação estelar. A distância do braço anterior ao atual, ou ponto A na figura 6-9, é da ordem de 5,2 kpc, percorridos em 0,8 bilhões de anos na velocidade relativa de 6,5 km/s. A passagem pelo ponto B ocorreu há cerca de 2,5 bilhões de anos, e em C há 4,5 bilhões de anos. Cada passagem por um braço corresponde a um pico na figura 6-8. A velocidade relativa de 6,5 km/s foi escolhida para que a interpretação dê certo, mas não é nada fora do razoável, se estivermos um pouco para dentro do raio exato de co-rotação. A especulação é interessante porque estimula a procura de caminhos de pesquisa que ajudem a comprovar uma ou outra interpretação.

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Conclusões Desvendar a formação da Galáxia, ou mesmo apenas a do disco galático, é uma

tarefa complexa, e ainda incompleta. Neste capítulo, mais do que nos anteriores, presenciamos a co-existência de pontos de vistas incompatíveis entre si, de hipóteses em fase preliminar e de modelos aceitos, mas que eventualmente estão errados. Discrepâncias aparecem nas idades ou metalicidades determinadas por autores distintos. O leitor pôde penetrar no cerne de algumas discussões atuais e visualizar o que é a ciência em andamento. Idéias novas têm surgido; por exemplo, para nós, está clara a necessidade de dar atenção às questões ligadas à estrutura espiral, para explicar alguns aspectos da evolução do disco, como as variações na taxa de formação estelar e os gradientes de metalicidade. Certamente não fomos imparciais neste capítulo; isto nem seria possível, porque não há o recuo necessário para termos uma perspectiva histórica do momento atual, e também não era este o objetivo. O fato de existirem hipóteses em confronto é que torna interessante o desafio e nos dá a sensação de estarmos caminhando na fronteira da ciência.

Figura 6-9: Percurso aparente das estrelas da vizinhança solar com relação aos braços espirais (círculo pontilhado). A estrutura espiral discutida no capítulo 5 é mostrada. O Sol e suas companheiras teriam atravessado um braço no ponto A há cerca de 0,8 bilhòes de anos, em B há 2,5 bilhões de anos e em C há , 5 bilhões de anos, onde o Sol nasceu.