a hist da arte em carlo ginsburg

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 Fernanda Pitta Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro- fessora do Programa de Formação de Professores da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). Autora de Estranha esgrima: uma história da cultura em Walter Ben- jamin. Campinas: IFCH/Unicamp/Setor de Publicações, 2004. [email protected]    L    i   m    i    t   e   s  ,    i   m   p   a   s   s   e   s   e   p   a   s   s   a   g   e   n   s   :   a    h    i   s    t    ó   r    i   a    d   a   a   r    t   e   e   m     C   a   r    l   o    G    i   n   z    b   u   r   g    F    R    A    N    C    E    S    C    A  ,    P    i   e   r   o    d   e    l    l   a  .    B   a    t    i   s   m   o    d   e    J   e   s   u   s    (    d   e    t   a    l    h   e   c   o   m    o   s    t   r    ê   s   a   n    j   o   s    )  ,   s    é   c  .    X    V  .

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 Fernanda Pitta

Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro-

fessora do Programa de Formação de Professores da Universidade Cidade de São

Paulo (Unicid). Autora de Estranha esgrima: uma história da cultura em Walter Ben-

jamin. Campinas: IFCH/Unicamp/Setor de Publicações, 2004. [email protected]

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 ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 127-143, jul.-dez. 2007128

* Agradeço a Henrique Espa-da o convite para contribuirneste dossiê. Thomás A. S.Haddad e Paulo Fontes dis-cutiram comigo partes dos

argumentos expostos. Algu-mas das inquietações aquiapresentadas surgiram dasdiscussões no Programa dePós-graduação em HistóriaSocial no IFCH-Unicamp como professor Robert Slenes. Es-pero, com este texto, redimiruma antiga dívida para como professor e, quem sabe, ou-vir o seu condescendente “an-tes tarde do que nunca”

1 Lady Jane Grey era prima deEduardo VI, que, moribundo,tenta manter o legado pater-

no da Reforma, impedindosua irmã, Maria, católica, desubir ao trono. Eduardo fazde Lady Grey, protestante fer-vorosa, sua sucessora, mas amanobra não é bem-sucedida, Jane Grey acaba presa na Tor-re de Londres e executada amando da Rainha Maria I. Cf.ZARIN, Cynthia. Teen Queen.The New Yorker, 15 out. 2007.

2 Cf. ZARIN, Cynthia, op. cit.,p. 50 {tradução da autora}.

Limites, impasses e passagens:a história da arte em Carlo Ginzburg*

 Fernanda Pitta

Para o “preto velho”

A revista americana New Yorker trouxe recentemente um artigosobre a disputa acerca da autenticidade de um suposto retrato de Lady

 Jane Grey, uma espécie de Graal dos historiadores da arte do século XVI britânico, já que nenhuma imagem de época da Rainha Jovem haviasido descoberta até então, dadas as condições peculiares de seu reinado,

de apenas nove dias — o menor de toda história da Monarquia Britâni-ca1. Tratava-se de um retrato póstumo (talvez uma cópia de um retratoperdido), feito 40 anos após a sua morte, o mais contemporâneo locali-zado até o momento.

Encontrado pelo marchand Christopher Foley, o retrato foi com-prado pela National Portrait Gallery num leilão presidido por ele. O his-toriador David Starkey, que vinha se mantendo cético com relação àidentificação, pronunciou-se contrário à compra. Considerava que oquadro era ruim e que não existiam provas suficientes de sua conexãocom Lady Jane.2

RESUMO

O artigo faz um balanço das reflexões

do historiador italiano Carlo Ginzburg

sobre a história da arte, sua natureza,

características e limites. Procura anali-

sar a contribuição desse estudioso acer-

ca da discussão que envolve: 1) as pos-

sibilidades e limites do uso de docu-

mentos visuais pelo historiador (e pelo

historiador da arte em particular); 2)as relações entre os fenômenos artísti-

cos e extra-artísticos (demais fenôme-

nos econômicos, sociais, políticos e cul-

turais); 3) o significado da forma (e do

estilo) e a cientificidade de sua análise.

PALAVRAS-CHAVE: história da arte;

Carlo Ginzburg; metodologia.

ABSTRACT

This paper presents a balance of Italian

historian Carlo Ginzburg’s reflexions on

art history, its nature, characteristics and

limits. It focuses on the analysis of Ginz-

burg’s contributions to the issues of: 1)

the possibilities and limits of the use of vi-

sual documents by the historian (the art

historian in particular); 2 the relation bet-

ween artistic phenomena and extra-artisticones (economic, social, political and cultu-

ral phenomena) 3) the meaning of form (and

style) and the scientificity of its analysis.

 KEYWORDS: art history; Carlo Ginzburg;

methodology.

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Foley rebateu: “quem disse que todas as pinturas de monarcas de-vem ser obras-primas?”3. Ele considerou suficientes as evidências daautenticidade do retrato, baseadas no exame dendocronológico do pai-nel, na análise dos pigmentos e inscrição feita no verso, bem como davestimenta e das jóias da personagem retratada, condizentes com o esti-lo em voga na época e no círculo da família real. O especialista tambémse baseou na análise da iconografia, que indicava que a retratada eraneta de um soberano. Além disso, o dano existente no quadro — umapunhalada — foi datado de quando a pintura ainda estava relativamen-te fresca e, por fim, o fato de a pintura adequar-se à única descriçãofísica da jovem feita por um contemporâneo, o viajante genovês BatistaSpinola.

Starkey não se convenceu. Para ele não importava se o retrato eraverdadeiro ou não — “é uma pintura ruim”, afirmou; “por que ter talretrato? Para a National Portrait Gallery, é um troféu. Transformacuradoria em filatelia. É um retrato póstumo, desleixado, irreconhecívelde uma coisa qualquer. Não importa se a atribuição for correta”.4

O interesse da disputa, para além de seu delicioso aspecto detetivescoe sua larga ressonância na cultura em geral5, é que ela demonstra o quanto,

diferentemente de outros campos da História, a história da arte aindaestá longe de estabelecer um consenso em relação ao seu objeto, procedi-mentos e instrumentos. O episódio opunha, de um lado, o especialistaque coloca o valor documental da obra de arte, para iluminar um deter-minado contexto, acima de seu valor estético6. De outro, aquele que rei-vindica o entrelaçamento entre história e crítica de arte. Seguindo ospassos de Lionello Venturi, para quem “a história da arte precisa igual-mente de uma consciência da natureza da arte e de uma experiênciaconcreta da arte para distinguir se um quadro ou uma estátua são obrasde arte, criações artísticas ou apenas fatos racionais, econômicos, moraisou religiosos”7. Para esse historiador, “o juízo é o ponto de chegada da

história crítica da arte”8.Uma discussão nesses temos seria impossível entre historiadores

que se dedicassem a outros domínios da história. A idéia de, por exem-plo, desqualificar um conjunto de documentos quaisquer sobre a com-preensão da escravidão no Brasil pelo fato de terem sido mal-redigidos,seria inaceitável. Uma vez que sua autenticidade é verificada, esses do-cumentos ganham uma validade quase imediata, e são aceitos pela co-munidade de historiadores sem maiores empecilhos, mesmo que, natu-ralmente, possam vir a ser interpretados de maneiras muito diferentes.

Com um documento artístico, uma obra de arte, as coisas não sepassam com a mesma tranqüilidade. A aceitação desse tipo de docu-

mento é um campo em constante disputa. Seu núcleo de verdade estáintrinsecamente ligado ao seu núcleo de valor. Em história da arte, umdocumento deve ter valor histórico e valor artístico. Mas como se defineesse valor?9. Como se interpretam os nexos entre um valor e outro? Emais, como se combinam, na interpretação histórica de uma obra dearte, a análise de seu ‘estilo’ e a investigação de seu significado, amboscondicionantes do valor artístico e histórico da obra? Perseguir o interes-se do historiador italiano Carlo Ginzburg por esse e outros problemas dadisciplina pode nos servir de norte para essa reflexão.

3 Idem.

4 Idem.

5 O artigo menciona as maisdiversas manifestações quetiraram da figura de Jane suainspiração. De peças de tea-tro a bandas de folk-rock, aRainha Jovem serve de exem-plo de virtude, piedade eespiritualidade.

6 É claro que, no caso da Lady Jane, é preciso levar em contaos interesses mercadológicosem jogo.

7 VENTURI, Lionello.  Históriada crítica de arte. Lisboa: Edi-ções 70, 2002, p. 27.

8 Idem, ibidem, p. 28.

9 Para alguns, esse valor semede pela excepcionalidade,como no caso da noção deobra-prima. Para outros, nocaráter de exemplaridade, nacapacidade da arte de ser“modo perfeito e exemplar dofazer” (ARGAN, G. C. Salvez-za e caduta nell’arte moderna.Milão: Il Saggiatore, 1977, p.42 , apud NAVES, Rodrigo.Prefácio. In: ARGAN, GiulioCarlo. Arte moderna. São Pau-lo: Companhia das Letras,2001, p. XVIII). Ou ainda nopróprio valor de testemunhode uma Kunstwollen, comopara Alois Riegl, não obstantesua famosa frase: “o melhorhistoriador da arte é aqueleque não tem nenhum gosto

pessoal, pois o propósito dahistória da arte é descobrir cri-térios objetivos da evoluçãohistórica” (citada por DVO-RAK, Max.  Alois Riegl.  Mittei-lungen der K. K. Zentralkommis-sion für Erfoschung und Erhal-tung der Kunst — und historis-chen Denkmale, 3ª série, 4, Vie-na, 1905, col. 262, apud PÄ-CHT, Otto. The practice of art

 History: reflections on method.Londres: Harvey-Miller Publi-shers, 1999, nota 8, p. 138).

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10 Em São Paulo, exceção sejafeita ao Centro de Estudos deArte e Fotografia, coordena-do por Tadeu Chiarelli (ECA-USP) e das disciplinas minis-tradas por Sérgio Miceli e LiliaMoritz Schwarcz (FFLCH-USP) e por Claudia Valladãode Mattos (IA-Unicamp), quetêm buscado trazer a obra deGinzburg para o debate na

área.11 Ver GINZBURG, Carlo. In-dagações sobre Piero. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1989.

12 Ver MAGALHÃES, Ana.Carlo Ginzburg e a Históriada Arte: o objeto artístico to-mado como ponto de partidapara a interpretação historio-gráfica. In: RIBEIRO, MaríliaAndrés e RIBEIRO, MariaIzabel Branco.  Anais do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de

 História da Arte. São Paulo Ou-

tubro 2006, Belo Horizonte, C/Arte, 2007.

13 Ver LEHMKUHL, Luciene.O lugar da imagem na reins-talação warburguiana.  Art -Cultura, v. 7, n. 11, Uberlândia,Edufu, jul.-dez., 2005. O li-vro resenhado é: BURUCÚ A, José Emilio.  História, arte, cul-tura: de Aby Warburg a Car-lo Ginzburg. Buenos Aires:Fondo de Cultura Económica,2003.

14 Sobre isso e outros aspectosda trajetória de Ginzburg, verLIMA, Henrique Espada.  Amicro-história italiana: escalas,indícios e singularidades. Riode Janeiro: Civilização Brasi-leira, 2006, em especial a par-te 2, capítulo VI.

15 Conforme seu próprio tes-temunho em entrevista a Al-zira Alves de Abreu, Angelade Castro Gomes e LuciaLippi Oliveira. História e cul-tura: conversa com CarloGinzburg. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, 1990,p. 258 e 259.

Ginzburg e a história da arte

Ao contrário da ampla recepção no âmbito da História Social bra-sileira obtida pela obra de Ginzburg, em que não faltam exemplos dericas incorporações, sua produção em história da arte ainda não foiamplamente debatida entre os praticantes da disciplina no Brasil10. Em-

 bora vários de seus estudos na área sejam de grande circulação, acessí-veis ao público especializado e interessado, desde pelo menos a publica-ção de seu Indagações sobre Piero, em 198911, tais textos ainda são poucodebatidos e utilizados no meio. Duas intervenções recentes inaugura-ram o que se espera ser um movimento em direção a esses textos e deba-tes. A comunicação de Ana Magalhães no XXVI Colóquio do ComitêBrasileiro de História da Arte12 comenta a relativa surpresa de muitosquando Indagações sobre Piero veio a lume, embora lembre que Ginzburgse interessou imediatamente pela história da arte no momento em queinvestigava a documentação inquisitorial do Friuli, já na década de 1960.Seu texto traz pistas importantes para a compreensão da análise deGinzburg sobre a obra de arte como documento histórico.

Luciene Lehmkuhl, que resenhou o livro de José Emilio Burucúa

para a  ArtCultura13, ressaltou a influência, sobre os novos historiadores,da reflexão sobre os procedimentos historiográficos feita por Ginzburg.Embora no Brasil essa influência seja mais verificada entre os historiado-res da cultura e do social do que entre os historiadores da arte, é de seesperar que essas recentes contribuições animem a discussão em tornodas reflexões do historiador italiano sobre a disciplina. Os ensaios, estu-dos e análises produzidos por Ginzburg ao longo de sua trajetória inte-lectual demonstram a constante dedicação a problemáticas centrais àhistória da arte, que não deveriam passar despercebidas na discussãoacerca dessa área de conhecimento no campo acadêmico brasileiro, deresto, de formação tão fragmentária e esparsa.

A recepção à obra de Ginzburg, no Brasil como na Itália, foimarcada pela aproximação com os Annales, sem dúvida uma forte influ-ência em seus trabalhos, sobretudo na figura de Marc Bloch 14. Entretan-to, Ginzburg buscou ressaltar a importância e o impacto que teve a obrade Warburg e dos pesquisadores do instituto que leva esse nome em suatrajetória intelectual: uma influência mediada por Delio Cantimori, aleitura de Gombrich, bem como uma temporada no próprio WarburgInstitute.15

Tal influência pode ser diretamente documentada por um conjun-to de artigos e livros que são perpassados por questionamentos advindosda historiografia da arte de extração warburguiana ou em diálogo com

essa tradição multifacetada de historiadores. Uma influência que se fazpresente mesmo em livros tão distantes da história da arte, como Os an-darilhos do bem, O queijo e os vermes e  História noturna, todos escritos emque se pode aferir o peso epistemológico, metodológico e temático dospesquisadores e estudos desse instituto.

Concentrando-nos em textos mais especificamente relacionados àhistória da arte, podemos observar que a mediação warburguiana estápresente na discussão de ao menos três problemas que constituem, porsua vez, alguns dos pilares centrais da própria disciplina História daArte — de sua natureza, características e limites: 1) as possibilidades e os

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limites do uso de documentos visuais pelo historiador (e pelo historiadorda arte em particular); 2) as relações entre os fenômenos artísticos e extra-artísticos (demais fenômenos econômicos, sociais, políticos e culturais); e3) o significado da forma (e do estilo) e a cientificidade de sua análise.

O historiador italiano (que parece eleger alguns objetos de pesqui-sa pelo prazer de investir em certos ‘becos sem saída’ teóricos), de ma-neira discreta, mas de forma alguma inconseqüente, vem perseguindoesses problemas ao longo de sua obra. Partindo de textos como o livrodedicado ao pintor toscano do quattrocento, Piero della Francesca, Inda-

 gações sobre Piero, até o recente “Além do exotismo: Picasso e Warburg”16,passando por “De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um proble-ma de método” (1966), “Ticiano, Ovídio e os códigos de figuração eróti-ca no século XVI” (1978) e pelos ensaios teórico-metodológicos “Sinais:raízes de um paradigma indiciário” (1979)17 e “História da arte italiana”(escrito a quatro mãos com o historiador Enrico Castelnuovo e publica-do em 1979)18, pode-se acompanhar a montagem desses objetos de estu-do. Eles exploram aqueles três problemas ao mesmo tempo em que in-vestigam as relações entre cultura popular e erudita, a relação comitente-artista, a incorporação e elaboração da tradição clássica, entre outros

aspectos, todos relacionados direta ou indiretamente com os objetos depesquisa desenvolvidos pela tradição warburguiana.

Questões de método: os testemunhos figurativos19

e o problema das passagens20

A longa discussão de Ginzburg com essa tradição de estudos pre-nunciou o afluxo contemporâneo em direção aos trabalhos de Aby War-

 burg e dos historiadores da arte ligados à sua biblioteca21. Afluxo esseque, ao contrário do que se poderia esperar, deu-se primeiro na Itália, eapenas depois se estendeu para a Alemanha, a Inglaterra e os Estados

Unidos. A tradução das obras de Warburg para o italiano, em 1966,ocorreu no contexto de retomada do debate sobre o humanismo e oreexame crítico (e autocrítico) da modernidade que se seguiu à SegundaGuerra Mundial.22

Em “De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problemade método”, escrito em 1966, Ginzburg busca fazer uma reflexão e umaampliação do “método warburguiano”, com relação ao problema, “muitocircunscrito”, da “utilização dos testemunhos figurativos como fonteshistóricas”23. Nesse ensaio de fôlego surpreendente, Ginzburg faz um

 balanço da contribuição de Warburg aos estudos dos testemunhos figu-rativos, bem como de alguns de seus mais importantes “seguidores”.24

Seu primeiro movimento, apoiando-se em estudos como o deGertrud Bing, é o de precisar o caráter particular do interesse de Warburgcom relação às fontes visuais. Antes de centrar-se especificamente, comomuitas vezes se procurou ressaltar, no conteúdo desses testemunhos (emsua iconografia e seus significados), a relação de Warburg com o mundodas imagens e, por conseqüência, com a história da arte, passava pelavontade de desvendar, conforme Bing, a “função da criação figurativana vida da civilização”, perguntando-se do porquê das imitações na his-tória da tradição, além de investigar a “relação variável que existe entreexpressão figurativa e linguagem falada”.25

16 In GINZBURG, Carlo. Rela-ções de força: história, retórica,prova. São Paulo: Companhiadas Letras, 2002.17 Estes três últimos reunidosem idem, Mitos, emblemas e si-nais: morfologia e história. SãoPaulo: Companhia das Le-tras, 1989.18 GINZBURG, Carlo e CAS-TELNUOVO, Enrico. Storia dellarte italiana, v. I, Turim: Einau-di. Republicado em GINZBURG,Carlo.  Micro -his tória e outrosensaios. Lisboa: Difel, 1989.19 Optou-se por utilizar o ter-mo testemunhos figurativospor ser o adotado em geral porGinzburg (testimonianze figu-ra-te) quando se refere às imagens.20 Rodrigo Naves, na lapidarapresentação que faz a GiulioCarlo Argan, no prefácio à e-dição brasileira de sua  Arte

moderna, dá esse nome ao pro- blema da determinação dosnexos entre arte e sociedade.(NAVES, Rodrigo. Prefácio.In: ARGAN, Giulio Carlo. Artemoderna, op. cit., p. XII e XIII).Tal questão é central à mo-derna historiografia da arte.Ginzburg não devota o mes-mo apreço por Argan que Na-ves, mas certamente compar-tilha o objetivo de refletir so- bre esses nexos.21 Cf. WOOD, Christopher.Londres-New York-Los Ange-

les: Les errances posthumesd’Aby Warburg. In : WAS-CHEK, Matthias. Relire War-burg: cycle de conferences organisé au musée du Louvre par le serviceculturel. Paris: Musée du Lou-vre (no prelo).22 Idem, ibidem, p. 12.23 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 42.O ensaio, que vem a lume nomesmo ano que Os andarilhosdo bem, é o terceiro artigo pu- bl ic ado por Gi nzburg . Cf .Idem, ibidem, p. X-XX.24 Sobre a recepção desse en-saio no mundo anglófono, vera resenha de BURKE, Peter.Miti, emblemi, spie: morfolo-gia e storia, by Carlo Ginz- burg. The Journal of Modern History, v. 62, n. 1, mar. 1990.

25 BING, Gertrud. Prefácio aWARBURG, Aby. La rinascitadel paganesimo antico. Floren-ça, 1966, p. 5 e 6, apud GINZ-BURG, Carlo. Mitos, emblemas,sinais, op. cit., p. 47.

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26 Desse estudioso do Renas-cimento, Ginzburg cita espe-cialmente Warburgs Begriff derKulturwissenschaft und seineBedeutung fur die Aesthetik , de1931 (publicado em portuguêscom o título O conceito de War- burg de Kulturwissenchaft e suasignificação para a estética. In:WIND, Edgar. A eloqüência dossímbolos: estudos sobre a arte

humanista. São Paulo: Edusp,1997) e o prefácio a Kulturwis-senchaftliche Bibliografie zumNachleben der Antike. ErsterBand, 1931, publicado pelaBiblioteca Warburg.27 Para uma breve mas escla-recedora discussão das dife-renças entre Wölfflin e War- burg, ver FERNANDES, Cás-sio da S. Aby Warburg entre aarte florentina do Retrato e umretrato de Florença na época deLorenzo de Médici.  História:Questões & Debates, n. 41, Curi-

tiba, Editora da UFPR, 2004.28 Os KunstwissenschaflicheForschungen foram o órgão dachamada Nova Escola de Vi-ena, composta por Hans Sedl-mayr, Otto Pächt, Carl Linfert(este próximo a Benjamin), en-tre outros. A primeira e a se-gunda versão da resenha fo-ram publicadas numa ediçãointerpolada (BENJAMIN, Wal-ter, “Rigorous Study of Art”.October, v. 47, 1988), com apre-sentação de Thomas Y. Levin(LEVIN, Thomas Y. Walter Ben-

 jamin and the theory of art His-tory. October, v. 47, 1988). Paraa animosidade de Benjaminem relação a Wölfflin, ver aapresentação de Levin acimacitada. Para a relação de Ben- jamin com Warburg e com aEscola de Viena, ver KEMP,Wolfgang, Walter Benjamin ela scienza estetica. I rapportitra Benjamin e la scuola Vien-nese e Walter Benjamin e AbyWarburg. Aut Aut, n. 189-190,maio-ago., 1982.29 Há no primeiro texto de

Wind uma crítica à tentativadeliberada de Wölfflin e Rieglde analisar a arte apartada desua relação com a cultura:“Será que a imagem só repre-senta estados de espírito? Nãoserá que ao mesmo tempo elatambém os estimula?” (ver oartigo já citado, p. 78).30 SAXL, Fritz e PANOFSKY,Erwin. Metropolitan MuseumStudies, IV (1932-1933).31 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 50.

Segundo Ginzburg, a tradição posterior a Warburg explorou, porum lado, a sistematização de seus pressupostos teóricos e conceituais.Edgar Wind26, expoente dessa vertente, buscou definir a contribuição deWarburg, afastando-o tanto de uma história da arte dita formalista,infensa à história da cultura, identificada pelos estudos de Alois Riegl eHeinrich Wölfflin27, quanto da chamada “história do espírito” (Geis-tesgeschichte). Com relação a Riegl e Wölfflin, as objeções dirigiam-secontra a compreensão da história da arte como história das formas, oudos “impulsos formais”, de certa maneira independentes de condi-cionantes culturais, sociais ou econômicas. Com relação à “história doespírito”, associada à obra de Wilhelm Dilthey, a objeção se dirigia con-tra a noção de uma história da cultura como unidade a priori entre ma-nifestações do “espírito” (arte, literatura, filosofia e ciência), baseadanuma concepção idealista que postulava uma essência imutável do gê-nero humano, via de acesso para o conhecimento de suas manifestaçõeshistóricas. Uma objeção que, aliás, também havia sido anteriormenteformulada por Walter Benjamin sobre Wölfflin, em sua resenha do pri-meiro volume dos Kunstwissenschafliche Forschungen, em 1933.28

Para Wind, a novidade da contribuição de Warburg estaria na sua

concepção quase “antropológica” de cultura, que colocava no mesmopatamar de interesse manifestações da assim chamada “alta” cultura(artes, filosofia, ciência) e crenças, costumes, além das atividades huma-nas cotidianas, entre elas as artesanais29. O ensaio de Ginzburg procura-va avançar nessa sistematização dos pressupostos teóricos, mas, dife-rentemente de Wind, refletindo sobre o caminho tomado por outras ver-tentes da tradição warburguiana, com Fritz Saxl, Erwin Panofsky e ErnstGombrich. Sobre os dois primeiros, Ginzburg discute como buscaraminicialmente aprofundar as pesquisas concretas sobre as relações entre acultura do Renascimento e a Antiguidade. Entretanto, tal caminho ha-via aportado, a partir de outro percurso, em uma questão teórica: a rela-

ção entre história da arte e história em geral.Comentando o ensaio de 1933 de Saxl e Panofsky, “Classical my-

thology in medieval art”30, Ginzburg detecta um aprofundamento daspreocupações caras a Warburg com relação à ruptura realizada pelacultura do Renascimento em relação à arte e à mentalidade medievais,observando que os autores teriam identificado que “a redescoberta doantigo, e particularmente das formas da Antiguidade clássica [pelos ar-tistas e intelectuais do Renascimento], implica a consciência exata da‘distância cultural entre presente e passado’, isto é, em suma, a funda-ção da consciência histórica moderna”.31

Os dois herdeiros de Warburg teriam encontrado um problema

específico de história da arte, a redescoberta de formas da Antiguidadeclássica e sua releitura pela cultura renascentista, o que contribuía dire-tamente para a elaboração de um problema histórico mais geral, queinteressava Ginzburg diretamente naquele momento:

De um problema de história da arte — a redescoberta das formas da arte clássica,

reconstruída num campo de ação determinado, o das imagens dos deuses antigos —,

Panofsky e Saxl chegaram a formular o problema histórico geral do significado do

Renascimento, especificado na descoberta (ligada à nova relação, tão diferente da

medieval, que se instaura com a Antiguidade clássica) da dimensão histórica.32

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Delineia-se assim uma das questões teóricas que o ensaio deGinzburg investiga: a necessidade de definir e controlar a passagem deuma análise circunscrita a um terreno específico, a dos documentos vi-suais (testemunhos de um fenômeno artístico determinado), para umterreno mais geral, o da história tout court (bem entendido, a história deum determinado período ou de uma determinada sociedade). Tanto Saxlquanto Panofsky acertaram, na avaliação de Ginzburg, na formulaçãoda necessidade de se estabelecer essa ponte, mas, cada qual à sua manei-ra, na seqüência de seus estudos, falhou em determinar a natureza dessapassagem, bem como de formulá-la em termos “científicos”, ou seja, ra-cionalmente controlados.

Da parte de Saxl emergem dificuldades que, para Ginzburg, sãocausadas pela ambigüidade inerente a toda imagem, “aberta a diferen-tes interpretações” 33. Elas fazem com que, muitas vezes, aquilo que éapresentado como documentação auxiliar na análise de um testemunhovisual acabe tendo uma função central nas interpretações fornecidas pelohistoriador. Com base nisso, Ginzburg identifica uma insuficiência nouso “[d]os testemunhos figurativos como fontes históricas a partir daanálise do estilo”34. Tais problemas ocasionam o perigo de uma leitura

fisiognomônica35 dos documentos visuais, em que o historiador lê nosmesmos “aquilo que já sabe, ou crê saber, por outras vias, e pretende‘demonstrar’”.36

Da parte de Panofsky, Ginzburg aponta o perigo da circularidadede seu método iconológico, “irracional” em sua abordagem da passa-gem entre o universo propriamente artístico e seu contexto histórico-social. Ginzburg faz notar que Panofsky tentou demonstrar que “mesmona descrição mais elementar de uma pintura unem-se inextrincavelmenteos dados de conteúdo e os dados formais”, o que faz aflorar o problemada “ambigüidade de qualquer figuração”37, mas seu método seria inca-paz de superar essa dificuldade.38

Panofsky distinguiu uma seqüência de camadas a serem inves-tigadas em uma imagem: a) pré-inocográfica, b) iconográfica e c) icono-lógica. A camada pré-iconográfica corresponde à cena representada (noexemplo de Ginzburg, tomado da análise de Panofsky da Ressurreição deMathias Grünewald, “um homem que se eleva no ar, com mãos e pésperfurados”). A camada iconográfica estabelece uma relação entre ima-gem e texto (no caso, as passagens relativas à ressurreição nos Evange-lhos), e, por fim, a camada iconológica “a atitude de fundo em relaçãoao mundo”39 (a crença católica na ressurreição de Cristo). Entretanto,essa seqüência de camadas se entrelaça e, em cada uma delas, a descri-ção da imagem pressupõe a sua interpretação: “A possibilidade de des-

crever o Cristo de Grünewald como um ‘homem suspenso no ar’ pressu-põe o reconhecimento de determinadas coordenadas estilísticas (numaminiatura medieval, uma figura situada num espaço vazio também po-deria não evocar minimamente uma violação das leis naturais).”40

Para Panofsky, esse entrelaçamento de dados impede uma descri-ção meramente formal. Mas seu método, o iconológico, embora tenhaobtido resultados excelentes, mostra-se, para Ginzburg, insuficientementecontrolado. Ele depende de certa faculdade de diagnóstico “irracional”— pois não pode ser reproduzida (por qualquer um que queira aprendê-la) —, a que Panofsky nomeia “intuição sintética”. Esse tino, faro, ou

32 Idem. Essa mesma questãoseria, muito tempo depois,tema de um ensaio de Ginz- burg apresentado na conferên-cia magna do II SimpósioNacional de História Cultu-ral e do IX Simpósio de Histó-ria Antiga, em setembro de2002. Nesse ensaio, Ginzburgdiscute uma nova atribuiçãopara uma peça da coleção da

Schatzkammer Residenz, deMunique. Uma taça douradade motivos antigos que teriaservido de presente de Mar-garida da Áustria para Luísade Sabóia. O tema alegórico,uma batalha entre homens ekynokephaloi, foi interpreta-do por Ginzburg como umelogio à conquista espanhola,e seu apreço pelo distante exó-tico como uma estratégia deencobrimento da violência daConquista. Nesse exercício,Ginzburg mostra que o mes-

mo mecanismo de distancia-mento que permitiu o surgi-mento da consciência históri-ca dos humanistas foi utili-zado como forma de encobriro dado incômodo ou chocan-te do presente. A distância, nocaso dessa taça, não é escla-recedora, mas é aquela doexótico e do estrangeiro, quedesobriga moralmente. VerGINZBURG, Carlo, Mémoireet distance: autour d’unecoupe d’argent doré (Anvers,ca. 1530). Diogène, 201, jan.-mar., 2003. Sobre as implica-

ções morais da distância, verMatar um mandarim chinês.In: Idem. Olhos de madeira: no-ve reflexões sobre a distância.São Paulo: Companhia dasLetras, 2001.

33 Idem, ibidem, p. 59.

34 Trocou-se figurados, da tra-dução brasileira, por figura-tivos.

35 O termo fisiognomonia re-monta às análises de feiçõesem correspondência a deter-minados tipos de caráter,

aparecidas em tratados daAntiguidade e em Della Por-ta, Lavater, Lombroso, entreoutros. Ginzburg faz referên-cia ao uso feito por ErnstGombrich do termo (cf. GINZ-BURG, Carlo. Mitos, emblemas,sinais, op. cit., nota 84, p. 239).

36 Idem, ibidem, p 63.

37 Idem.

38 Panofsky faz essa discus-são em Il problema dello stile

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nelle arti figurative, incluídona edição italiana de La pros-

 pectiva como forma simbolica ealtri scritti. Milão: FeltrinelliEditore, 1961. A edição por-tuguesa não traz esse ensaio.Wood nota que essa descon-fiança com relação à ambigüi-dade das imagens já era pre-sente no pensamento de War- burg: Ver WOOD, Chistopher,op. cit., p. 8.39 PANOFSKY, Erwin. Il pro- blema dello stile nelle arti fi-gurative», apud GINZBURG,Carlo.  Mitos, emblemas, sinais,op. cit., p. 66.

40 GINZBURG, CARLO. Mitos,emblemas, sinais, op.cit., p. 66.

41 Idem.

42 O livro de Panofsky é: PA-NOFSKY, Erwin. “The neopla-tonic movement and Miche-langelo”. In : Studies in icono-

logy. Nova York: Oxford Uni-versity Press, 1939 (1ª ed). Pu- blicado em português sob otítulo Estudos de iconologia. Lis- boa: Estampa, 1995 . É de senotar que as reservas formu-ladas por Ginzburg com rela-ção ao insight em Panofskysão bastante semelhantes àcrítica feita por Meyer Shapiro,exatamente 30 anos antes, aométodo da “ciência da arte”,apresentado por Hans Sedl-mayr no primeiro volume dosKunstwissenschaftliche Fors-chungen, e que é retomada pe-lo historiador da arte lituanoem sua resenha ao II volumeda série de estudos. Ver SHA-PIRO, Meyer. Review: the newViennese School. The Art Bulle-tin, v. 18, n. 2, jun. 1936, e re-senha do volume II dos Kunst-wissenschaftliche Forschungen,editada por Otto Pätch. Ber-lim: Frankfurter, 1933. Certa-mente a animosidade de Sha-piro, judeu e homem de es-querda, com relação à Sedl-mayr deve ser também colo-cada no contexto político dos

anos 1930 e das simpatiasdeste último em relação aopartido nazista, ao qual ade-rira em 1932.

43 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 71.

44 Idem, ibidem, p. 72 e 73.

45 Idem.

46 Idem.

insight, para Ginzburg, é insuficiente como método. Panofsky propõeregulá-lo através de documentos que vão “iluminando” essa intuição,todavia Ginzburg não se satisfaz com esse controle tão tênue.41

A perspectiva de um uso racional do insight se esvai quando sepercebe que a interpretação acaba por forçar um sentido. Ela descartaaquilo que não encaixa, a fim de seguir a hipótese inicial. Nesse momen-to soam os alertas contra o impressionismo crítico. É o que Ginzburgidentifica no estudo de Panofsky sobre Michelangelo, estruturado a par-tir da contradição fundamental entre o ideal clássico e o ideal religioso,que, de tão totalizante, parece-lhe decididamente forçada.42

Ernst Gombrich seria, na avaliação de Ginzburg, o estudioso a es- boçar diretrizes convincentes para o enfrentamento do “problema daspassagens” e da ambigüidade das imagens, “oferecendo uma soluçãoradical da mencionada dificuldade [...] no âmbito de uma série de consi-derações sobre o problema do estilo, que o levaram a posições extrema-mente interessantes, ainda que, creio, não isentas de contradição”43. Emuma série de artigos, Gombrich daria as pistas para uma recusa segurados paralelismos perigosos feitos pela iconologia. Na resenha a “Classicalmythology in mediaeval art”, de Panofsky e Saxl, Gombrich alertara para

o fato que

em alguns casos surgia a dúvida sobre se os autores não haviam substituído conexões

 genéticas, isto é, filiações ou dependências filologicamente reconstituíveis, por sim-

 ples analogias ou ‘geistesgeschichliche Parallelen’... um desses paralelos de tipo

‘geistesgeschichtlich’ levantados por Gombrich era a analogia (caríssima, vimos, a

Panofsky) entre a descoberta da perspectiva linear e o nascimento da dimensão histó-

rica através da nova relação com a Antiguidade, instaurada pelo Renascimento.44

A crítica de Gombrich coloca, na visão de Ginzburg, uma exigên-cia metodológica justa. Porém, seria preciso cuidar para que, com ela,

não se negue a possibilidade de reconstrução dos nexos entre arte e soci-edade. No caso da perspectiva, argumenta Ginzburg, o que comprova-ria a conexão entre os dois fenômenos? Um testemunho que documen-tasse essa coincidência de consciências em uma pessoa? Restaria ainda oproblema de relacionar essa consciência individual, que sozinha poderiaser um acaso, com uma consciência social, tanto da perspectiva linearquando daquela noção de distância histórica característica do Renas-cimento, alcançando assim uma explicação histórica para a relação en-tre os dois fenômenos. Ginzburg lembra que o historiador “estabelececonexões, relações, paralelismos, que nem sempre são diretamente do-cumentados, isto é, são na medida em que se referem a fenômenos surgi-

dos num contexto econômico, social, político, cultural, mental etc. co-mum — contexto que funciona, por assim dizer, como termo médio darelação”.45

No caso analisado, o humanismo seria o termo médio dessa rela-ção, sem o qual ter-se-ia apenas uma “analogia formal, vazia de conteú-do”46. A pura semelhança “fisiognomônica” (formal, iconográfica ou de“espírito”), sem outra prova, seria enganosa e não poderia servir de ar-gumento para o historiador. O historiador da arte deve então recusaranalogias que não se sustentam sem algum “termo médio”?

Como demonstra Ginzburg, as objeções de Gombrich voltaram-se,

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primeiramente, contra uma noção de estilo como “expressão de uma‘personalidade coletiva hipostasiada’ — quase uma ‘superobra de arte’,executada por um ‘superartista’”47. Mesmo considerando-a pertinente,Ginzburg segue alertando para o risco que essa crítica tem de perder devista o próprio vínculo entre os fenômenos artísticos e a história. A no-ção de “espírito do tempo”48, que retornava “sob a soleira” de Panofskye Saxl, não era uma boa resposta, mas uma tentativa legítima de tratarde um problema real, “o das conexões existentes entre as várias faces darealidade histórica.”49

A segunda objeção de Gombrich apresentada por Ginzburg diri-ge-se contra a tendência de reagir imediatamente ao estilo em que asobras foram formuladas, ao invés de vê-las no contexto estilístico em queforam produzidas. Tal prática, que é objeto de crítica, consiste em tomara obra de arte como sintoma ou expressão da personalidade do artista,como pressupôs a estética de tipo “romântico”. Para Gombrich, nas pa-lavras de Ginzburg, “a obra de arte seria veículo de uma mensagem par-ticular, a qual pode ser entendida pelo espectador na medida em queeste conhece as alternativas possíveis”50.

Essa recusa dos principais pressupostos da iconologia panofskyana,

liga-se, segundo Ginzburg, a uma “desconfiança acentuadíssima em re-lação à tentativa [...] de servir-se das obras de arte, e em geral dos teste-munhos figurativos, considerados do ponto de vista do estilo, como fon-te para a reconstrução histórica geral”51. Para Gombrich, seria precisodesconfiar da idéia, tão tentadora e tão difundida, de que as obras dearte “oferecem o caminho mais curto para a mentalidade de civiliza-ções, que, de outro modo, permaneceriam inacessíveis a nós”52.

Mas qual seria a saída para desviar-se desses paralelismos, dessascorrespondências de tipo mais ou menos idealista e, poder-se-ia acres-centar, das afamadas teorias do espelhamento ou reflexo sem recusar arelação entre arte e sociedade? As pesquisas iconográficas seriam, ain-

da, a única forma de romper com esses círculos viciosos. A iconografiaseria o único dado capaz de fornecer um elemento de mediação objeti-vamente controlável para o historiador. Mas como essa pesquisa deveriaser levada?

Numa pequena digressão, analisando o livro sobre os mistériospagãos de Edgar Wind53, Ginzburg explicita o principal perigo da pes-quisa iconográfica — encontrar programas iconográficos em textos oucomentários que nunca foram acessíveis ao elaborador do programa.Tal descaminho, iminente sobretudo para aqueles que estudam períodosem que são abundantes as fontes literárias, desemboca muitas vezes eminterpretações absolutamente coerentes, porém completamente arbitrá-

rias. No caso de Wind, sua interpretação do afresco de Rafael na Stanzadella Signatura, baseada num mal-entendido sobre os versos de Dante,mostrava-se um belo castelo de areia.

Para se precaver desse perigo, é necessário, segundo Ginzburg, es-tar alerta para “o grau de coerência interna e correspondência entretextos e imagens necessário para que a interpretação iconográfica sejaverdadeiramente aceitável”54. Gombrich havia dito que se a iconologianão quer se tornar um instrumento inútil, ela deve voltar a propor “oproblema sempre aberto do estilo da obra de arte”.55 Seu livro  Arte e

ilusão56 avançaria alguns passos mais nessa problematização.

47 Idem, ibidem, p. 75. AquiGinzburg se refere ao ensaioWertprobleme und mittelal-terliche Kunst, em que Gom-

 brich debate o artigo de ErnstVon Garger, Uber Wertungss-chwierigkeiten bei mittelal-terliche Kunst, ambos publi-cados em Kritische Berichte,1937. Em português, GOM-BRICH, Ernst. Realização naarte medieval. In:  Meditaçõessobre um cavalinho de pau. SãoPaulo: Edusp, 1999.

48 De caráter mais diltheyanodo que hegeliano, segundoGinzburg.

49 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 75.

50 Idem, ibidem, p. 77. Ginzburgfaz menção aqui à noção dearte como comunicação de-senvolvida em GOMBRICH,Ernst. Expressão e comunica-ção. In: Meditações sobre um ca-valinho de pau, op . cit. {verespecialmente páginas 68 e69}.

51 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 77.

52 GOMBRICH, Ernst. AndréMaulraux and the crisis of expressionism. In:  Meditations

on a hobby horse and other essayson the theory of art. Londres:Phaidon Press, 1963, apudGINZBURG,  Mitos, emblemas,sinais, op. cit., p. 77. A tradu-ção brasileira da Edusp dife-re ligeiramente daquela feitapelo tradutor de Ginzburg.

53 WIND, Edgar. Pagan mys-teries in the renaissance. NewHaven: Yale University Press,1958.

54 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 82.

55 GOMBRICH, Ernst. Art andscholarship. In:  Meditations ona hobby horse, op. cit. , apudGINZBURG, Carlo. Mitos, em-blemas, sinais, op. cit ., p. 80.Ver. GOMBRICH, Ernst. Artee erudição. In: Meditações sobreum cavalinho de pau, op. cit., p.117.

56 Ver GOMBRICH, Ernst. Artee ilusão. São Paulo: MartinsFontes, 2007 (a primeira edi-ção é de 1956).

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Mas, pode-se perguntar, como entender precisamente o significa-do da palavra estilo, nesse debate? No referido livro, Gombrich apresen-tou uma definição de estilo como sistema de notação, ou mais simples-mente, esquema. O artista, em sua relação com a realidade, não a copia“assim como ela é ou como a vê”57, como explica Ginzburg. Ele a repre-senta a partir de um esquema58. Do mesmo modo, o espectador a “lê” apartir de um esquema, que não necessariamente coincide com o do artis-ta. Toda leitura de imagens é ambígua, pois o observador é forçado aescolher, entre vários esquemas, aquele que se encaixa àquela represen-tação. Mas é também limitada por um contexto de significação. ParaGombrich, quando alguém “lê” uma imagem mobiliza suas lembrançase experiências, “testando” essa imagem dentro desse quadro de referên-cias. Quando o artista “lê” a realidade, o faz mobilizando sua lembran-ça de obras já vistas, testando aquilo que vê a partir de projeções de suaslembranças e experiências. Gombrich, assim, formulava uma arma con-tra aquilo que considerava os excessos de uma visão expressiva oufisiognomônica da arte, já que postulava uma relação mediada entrearte e mundo, isto é, a idéia de que a arte não “expressa” o mundo, masum esquema de “apreensão” do mesmo ou de facetas dele. O estilo seria

o compartilhamento desse esquema.A argumentação de Gombrich explica bastante bem a importân-

cia, pelo menos na arte ocidental, da tradição. Fenômeno que ele compa-rou, em outra ocasião, a uma qualidade sinfônica da arte: “Cada temaque se levanta tem uma relação com o que aconteceu antes e é às vezesvisto como tendo uma relação com o que aconteceu depois; e o temaadquire seu significado, parcialmente, dessa relação no interior da histó-ria da arte. Pelo menos, isso é verdade para a Arte ocidental, não paratodas as outras artes.”59

Tal conceito de estilo certamente responde à indagação por suaestabilidade. Ginzburg nota, entretanto, que faltava ainda explicar jus-

tamente por que os estilos têm uma história. Ou dito de outra maneira, oque configura o “esquema”? Isto é, o porquê não só das permanênciasna história da arte e sim também das mudanças e a relação dessas mu-danças com outras operadas na história. Como é possível interpretá-lassem recair em argumentos circulares?60

Restava, portanto, a pergunta: “por que em determinados perío-dos históricos escolhem-se esquemas diferentes que comportam repre-sentações mais ou menos corretas da realidade”61? Entra em jogo nova-mente a relação da arte com o mundo, colocada em suspenso porGombrich. A noção de história da arte como história dos artistas (bemcomo a noção sinfônica proposta na entrevista a Diacritics), tomada de

empréstimo a Wölfflin por Gombrich, mostrava-se, mais uma vez, insu-ficiente para Ginzburg. A essa altura percebe-se que os caminhos datradição warburguiana seguiram rumos bastante diferentes, e não semconflitos ou contradições. Todavia, para enfrentar o problema da trans-formação dos estilos, Gombrich recorre a um conceito novo, estranho aessa, o de função.62

Para compreender o estilo, seria necessário investigar qual papel aarte tem dentro de uma determinada sociedade. A forma de uma repre-sentação não pode ser separada de sua função, das “exigências da soci-edade onde aquela determinada linguagem visual é válida”63. Toda

57 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 83.58 Ginzburg nota a imprecisãodo uso do termo por Gombri-ch. Ora o esquema parece serhistórico, ora transcendental.Cf. GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 84,nota 159. É importante lem- brar também que essa idéiaretoma, em certo sentido sub-

repticiamente, a noção deKunstwollen como um esque-ma próprio a cada obra de artee, em sentido geral, ao acon-tecimento da percepção doartista “with all its ‘interest’,tendencies, and predilecti-ons”. (para essa discussãosobre a noção de Kunstwollen,ver a introdução de WOOD,Christopher ao The ViennaSchool reader: politics and arthistorical method. Nova York:Zone Books, 2000).59 Entrevista de Ernst Gom- brich a Hayden White, AllenW. Wood, Theodore M. Bro-wn, David I. Grosswogel eRobert Matthews. Interview/Ernst Gombrich. Diacritics,1971, p. 48.60 Nesse ponto, Ginzburg seapóia num questionamentofeito por Rudolf Arheim ao li-vro de Gombrich, sem, no en-tanto concordar com tom ge-ral da resenha publicada noThe Art Bulletin, XLIV, 1962,que considera “superficial edesfocada”. Ver GINZBURG,Carlo.  Mitos, emblemas, sinais,

op. cit., p. 83 e 85.61 Idem, ibidem, p. 86.62 Ginzburg não comenta deonde Gombrich empresta esseconceito. Não é possível, noespaço deste ensaio, investi-gar sua origem, mas apenasapontar, numa primeira infe-rência, sua relação aparente-mente direta com a estéticamoderna, para a qual “a for-ma segue a função” (LouisSullivan). Contudo, seria ne-cessário lembrar o uso desseconceito na lingüística deCharles S. Pierce, bem comopela psicologia e antropologiafuncionalistas. Além de suaimportância para a história,como em um estudioso queGombrich cita alhures (em seuensaio sobre Arte e erudição, já citado), Marc Bloch. Em seuOs reis Taumaturgos, essa no-ção tem uma importânciacentral.63 GOMBRICH, Ernst.  Art andillusion , p. 78, apud GINZ-BURG, CARLO.  Mitos, emble-mas, sinais, op. cit., p. 90.

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mudança de função da arte ocasionaria, portanto, uma mudança deforma, e assim, de estilo. Por sua vez, essa mudança de função pressupo-ria o aparecimento de novas exigências e uma postura diferente por par-te do espectador.

Sendo assim, as transformações das exigências sociais (estéticas,mas também políticas, religiosas, econômicas etc.) de alguma maneira serelacionariam tanto às transformações nas atitudes e expectativas queinfluenciam a percepção das obras de arte (um mental set que nos dispõea “ver ou ouvir uma coisa em vez de outra”64, explica Gombrich), quan-to às próprias formas das obras de arte. Gombrich apresentava essa gamanova de conceitos dentro de um programa de pesquisa a ser ainda de-senvolvido, mas de fato não dá uma solução definitiva para o problema.“A história (as relações entre fenômenos artísticos e história política, re-ligiosa, social, das mentalidades etc.), expulsa silenciosamente pela por-ta, torna a entrar pela janela”65, concluía Ginzburg. Ao fim do ensaio,ele colocava a sua expectativa de que Gombrich pudesse oferecer umaresposta a esta indagação em seus estudos subseqüentes. O próprio his-toriador italiano, entretanto, voltaria a esse problema em outros momentosde sua reflexão.

Ligando algumas vias

Treze anos depois do ensaio sobre a tradição warburguiana, em“História da arte ialiana”66, Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo propu-seram uma interpretação que altera substancialmente a visão “sinfônica”da arte gombrichiana. Ao invés de uma sucessão melodiosa de emprésti-mos e transformações, a história da arte foi por eles definida como umahistória da sucessão de paradigmas, numa apropriação criativa da dis-cussão de Thomas Kuhn a respeito das mudanças na história da ciên-cia67: “utilizamos a expressão ‘novo paradigma’ [diziam Ginzburg e

Castelnuovo], adotando a acepção que tem na historiografia da ciênciapara indicar o aparecimento de uma linguagem que não só é nova, masque tem tal prestígio que se impõe como normativa e exerce uma açãoinibitória sobre aqueles que, por qualquer razão, dela são excluídos.”68

Tais paradigmas não se estabelecem a partir de um crescendo demaestria, na progressiva aproximação do artista com relação à nature-za, ao confrontar o esquema herdado pela tradição, “conseguindo assimromper a cadeia do estilo tradicional para alcançar uma unidade repre-sentativa maior ou diferente”69, como queria Gombrich. Carregando demaior carga semântica a idéia de rompimento, Ginzburg e Castelnuovofalam em conflito. É do conflito que se instaura constantemente no inte-

rior de qualquer tradição que surge a ruptura do paradigma tradicionale a construção de um novo paradigma.

O problema de fundo tratado pelo ensaio de 1979 é aquele da “do-minação simbólica, de suas formas, das possibilidades de lhe fazer fren-te”70. Dominação simbólica essa que, na história da arte italiana, instau-ra-se na relação conflituosa entre centro e periferia na geopolítica inter-na da Itália e na externa, quer dizer européia. Pensar essa relação naarte também significava refletir sobre a história da Itália, colocando ahistória dos estilos dentro de uma perspectiva histórico-geográfica, quetambém era política.

64 Idem. Expression and com-munication. In:  Art and illu-sion, p. 157, apud GINZBURG,Carlo.  Mitos, emblemas, sinais,op. cit., p. 91.

65 Idem, ibidem, p. 92.

66 CASTELNUOVO, Enrico eGINZBURG, Carlo. Históriada arte italiana. In : GINZ-BURG, Carlo.  Micro-história eoutros ensaios, op. cit.

67 No afortunado KUHN, Tho-mas.  A estrutura das revoluções

científicas. São Paulo: Perspec-tiva, 1975 {publicado pela pri-meira vez em 1962).

68 CASTELNUOVO, Enrico eGINZBURG, Carlo. Históriada arte italiana, op. cit., p. 60.

69 GOMBRICH, Ernst, apudGINZBURG, Carlo. Mitos, em-blemas, sinais, op. cit., p. 91.

70 CASTELNUOVO, Enrico eGINZBURG, Carlo. Históriada arte italiana, op. cit., p. 7.

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71 Idem.

72 Idem, ibidem, p. 33.

73 Idem, ibidem, p. 14.

74 Idem, ibidem, p. 37.

75 Idem, ibidem, p. 62.

76 Um tema retomado porCastelnuovo nos ensaios reu-nidos em CASTELNUOVO,

Enrico. Retrato e sociedade naarte italiana: ensaios de histó-ria social da arte. São Paulo:Companhia das Letras, 2006.

77 A referência a uma filiaçãomarxista é clara em outrosescritos de Castelnuovo. Sabe-mos que esse não é o caso deGinzburg, que se define comoum homem de esquerda não-marxista. Cf. CASTELNUO-VO, Enrico. Para uma histó-ria social da arte I. In: Retratoe sociedade na arte italiana, op.cit., especialmente a menção

a Walter Benjamin, p. 168 e169.

78 Para uma extensa análisedesse livro, ver LIMA, Hen-rique Espada.  A micro-históriaitaliana, op. cit., especialmentep. 345-359.

79 Ambos em GINZBURG,Carlo.  Mitos, emblemas, sinais,op. cit.

80 BURKE, Peter. Miti, emble-mi, spie: morfologia e storia, by Carlo Ginzburg, op. cit., p.110.

Claro, não se tratava de recompor a velha explicação de tipo geistgeschichtlich, já que a pesquisa histórica não confirmava a sincroniado paralelismo centro artístico/centro político ou periferia artística/ pe-riferia política. Ao contrário, ao oferecer um modelo de relação entrepolítica e arte, baseado na idéia de conflito para a interpretação da tra-dição artística italiana, Castelnuovo e Ginzburg enfatizaram a comple-xidade dos nexos entre fenômenos artísticos e extra-artísticos, “subtrain-do-se assim ao falso dilema entre criatividade em sentido idealista (espí-rito que sopra onde quer) e socialismo primário”71. É certo que afirma-ram: “só poderá ser centro artístico um centro de poder extra-artístico:político e/ou econômico e/ou religioso”72, mas também que “os dois cri-térios, o estilístico e político, muitas vezes coincidem, porque toda escolapressupõe um centro, que é cumulativamente um centro político. Às ve-zes, porém, divergem, por que existem centros artísticos que foram nopassado centros políticos e agora já não o são. Por outras palavras, ageografia pictórica e geografia política da Itália [...] nem sempre se po-dem sobrepor”73. O nexo centro/periferia, por sua vez, também não erainvariável (de um lado, inovação, de outro, atraso). Sua relação deveriaser considerada móvel, sujeita a “acelerações e tensões bruscas, ligada a

modificações políticas e sociais e não apenas artísticas.”74

O conflito encontrado na base de toda mudança de paradigmaartístico permitia ver que o paradigma “vitorioso” configura sempre um“sistema de formas e esquemas que recebe o apoio de um poderoso gru-po de consumidores e que assim acaba por determinar a procura e asexpectativas do público, os ‘diferentes’ devem curvar-se ou expatriar-separa situações culturais menos determinantes”75. Para compreender arelação conflituosa entre arte e sociedade, fazia-se necessário examinarconcomitantemente a dinâmica das obras, dos artistas e dos consumido-res de obras de arte76, em seu processo dialético de contradição.77

Essa espécie de travamento ou ancoragem (a metáfora da grade é

aludida várias vezes por Ginzburg e Castelnuovo) conflituosa (não maisfuncional, como em Gombrich) entre os três níveis de análise será a basepara o aquilo que se converteria num estudo de caso dessa metodologiade investigação dos nexos entre arte e sociedade — Indagações sobre Piero.78

Ginzburg já havia enfrentado a tarefa de ‘testar’ esse novo arranjointerpretativo em textos anteriores. Em “O alto e o baixo: o tema do co-nhecimento proibido nos séculos XVI e XVII” e “Ticiano, Ovídio e oscódigos da figuração erótica no século XVI”79, conforme atentou PeterBurke, é possível ver o autor trabalhando sobre os “problemas deiconografia e a sobrevivência da tradição clássica tão cara a Warburg,Panofksy e Gombrich, assim como seu interesse na relação entre a cultu-

ra letrada e a cultura popular na Itália do Renascimento”.80

Com o estudo sobre Piero della Francesca, Ginzburg entra numterreno de acirradíssima disputa. A obra e a figura do pintor florentino

 já contavam com inúmeros estudos e envolviam uma série de especialis-tas em história da arte que haviam se debruçado sobre esse fascinanteenigma. Entre eles, encontrava-se a interpretação dominante daqueleque é considerado (também por Ginzburg) um dos mais importantes his-toriadores da arte do século XX, Roberto Longhi.

O estudo de Ginzburg concentra-se na interdependência dos pro- blemas da datação em três obras capitais do pintor florentino, o chama-

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do Ciclo de Arezzo, a Flagelação e o Batismo de Cristo. Tratava-se de pen-sar um problema não pouco importante. A datação de uma obra pressu-põe refletir sobre o lugar dela na trajetória de um artista, a relação comsua produção anterior e posterior, a relação do artista com a tradição(anterior e posterior) e também com seu contexto. Questões fundamen-tais para a reflexão sobre o uso de uma obra de arte como fonte histórica.

O estudo da datação das obras de della Francesca é de notóriadificuldade devido à escassez de fontes. Roberto Longhi, em seu estudosobre o pintor81, havia se utilizado do recurso à análise estilística eiconográfica das próprias obras para tentar contornar esse problema. Aargumentação de Ginzburg pretendia demonstrar a fragilidade dessetipo de datação, baseada nos dados estilísticos e iconográficos. Se a aná-lise iconográfica necessita de dados extra-artísticos que a ancorem, tantomais para a análise estilística. Não que ele desqualificasse a datação ba-seada em dados estilísticos. O que fazia era demonstrar a dificuldadeexistente na tentativa de identificar um momento preciso na mudançade estilo. Essa mudança não se faz numa data, mas sim num processo,assim, esse era um dado que precisaria ser controlado por outros dadosextra-estilísticos. Nos casos examinados por Ginzburg, os dados ico-

nográficos, combinados à análise da clientela, deveriam responder àsdificuldades encontradas.

O livro suscitou intensa polêmica82, em que ficava evidente certocorporativismo, já antecipado no prefácio à segunda edição italiana: “nãofaltará, aposto,” dizia Ginzburg, “algum Apeles a convidar-me a voltaraos sapatos que me competem”83. No prefácio à terceira edição italiana,ele comentou algumas delas e retificou dados referentes à datação dacena representada na Flagelação, embora tenha continuado a sustentar aproposta de datação do painel, da identificação da comitência e da in-terpretação do seu programa.

Nesse livro, Ginzburg praticou o método historiográfico que se viu

montado até agora. Desenvolveu uma hipótese de pesquisa baseada natentativa de fazer convergir dados biográficos, estilísticos, iconográficose sobre a clientela, pesando a contribuição de cada um desses dados nofornecimento de pistas mais seguras para a interpretação histórica dasobras de arte.

A questão chave do livro era, portanto, refletir sobre os limites doestilo como fonte para oferecer indícios à interpretação. A saída ofereci-da por Ginzburg era promover a “reconstrução analítica da intrincadarede de relações microscópicas que cada produto artístico, mesmo o maiselementar, pressupõe [...] A meta [...] de uma história social da expres-são artística, só poderá ser atingida mediante a intensificação dessas

análises — não através de sumários paralelismos, mais ou menos força-dos, entre séries de fenômenos artísticos e séries de fenômenos econômi-co-sociais”. Um caminho que havia sido trilhado por Aby Warburg, paraalém da “decifração dos símbolos” e com uma atenção “ao contexto so-cial e cultural específico” que o havia salvado dos “excessos interpre-tativos” em que incorreriam alguns de seus seguidores.84

As indagações de Erich Gombrich, que tanto haviam fascinadoGinzburg, serviram para orientar corretamente as perguntas do livro,mas certamente não para delimitar os objetivos da análise nem suas con-clusões. No prefácio à segunda edição italiana, Ginzburg explicita a

81 LONGHI, Roberto. Piero dellaFrancesca. São Paulo: Cosac &

Naify, 2007 {com prefácio deCarlo Ginzburg).

82 Nos EUA, por exemplo,onde os ensaios metodoló-gicos acima citados ainda nãohaviam tido uma recepçãomais ampla, é recebido comreservas. Ver. BLACK, Robert.The uses and abuses of ico-nology: Piero della Francescasand Carlo Ginzburg. TheOxford Art Journal, 9:2, 1986,WILKINS, David G. Review.Renaissance Quarterly, v. 40, n.1, 1987, RIESS, Jonathan. Re-

view. The American HistoricalReview, v. 92, n. 1, 1987, CAR-RIER, David Review.  Ar t

 Journal, v. 46, n. 1 – Mysticismand occultism in modern art,1987; e Idem. Piero della Fran-cesca and his interpreters: isthere progress in art history?.

 History and Theory, v. 26, n.2,1987.

83 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 25.

84 Idem.

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filiação: “muito oportuna a proposta, formulada por Gombrich, de par-tir da análise das instituições ou dos gêneros, ao invés dos símbolos, paraevitar os escorregões daquela que poderíamos definir como a “iconologiaselvagem”85. Acatava-se a sugestão gombrichiana de retornar ao proble-ma do estilo, aliada à análise iconográfica, incluindo ainda o novo ele-mento da clientela, incorporado à metodologia de análise proposta em“História da arte italiana”.

O elemento da clientela, porém, deveria ser abordado não somenteno âmbito iconológico da análise. Não se deveria analisá-la a partir daidentificação iconográfica suposta, mas tratá-la de modo relativamenteindependente à iconografia (quer dizer, como uma dimensão própria,que deveria ser indagada segundo os instrumentos da história social).Isto é, o dado da clientela deveria servir de controle tanto do dado icono-gráfico quanto do dado estilístico, fazendo com que todos se “testassem”mutuamente. Partia-se de um “quebra-cabeças iconográfico” que deve-ria ser analisado segundo as regras já formuladas por Salvatore Settis,então completadas por Ginzburg: “a) todos os pedaços do ‘quebra-cabe-ças’ devem estar concatenados; b) esses pedaços devem compor um de-senho coerente [...] c) em condições iguais, a interpretação que implicar

um menor número de hipóteses deve ser considerada, em geral, a maisprovável (mas a verdade, não se pode esquecer, é às vezes improvável”.86

À decifração iconográfica deveriam ser acrescentados elementosde controle externo, como a clientela, “alargando a noção de contextoao contexto social.” Esse dado, longe de também ser unívoco, acrescen-tava um elemento a mais para o controle da hipótese, permitindo “res-tringir drasticamente o número das hipóteses iconográficas em discus-são”87. A pesquisa histórica deveria, portanto, seguir nessas três frentesque, por uma análise combinatória, deveriam se testar entre si88. Ao pers-crutar os limites de uma leitura estilística de Piero della Francesca,Ginzburg mostrava-se capaz de corrigir a irrestrita supremacia da mes-

ma, professada por Roberto Longhi. No entanto, não abdicava das per-guntas colocadas por ela. Sua metodologia enfrentara, nesse estudo es-pecífico, aquela dificuldade estudada em outro ensaio teórico, “Sinais:raízes de um paradigma indiciário”. Neste ensaio, destinado a uma for-tuna crítica de longo alcance (bem como a vários mal-entendidos),Ginzburg deteve-se ante a problemática do indício, que levava tambémà reflexão sobre as “possibilidades heurísticas”89 de certos tipos de dadoque têm a propriedade de não se repetir, de serem individuais.

Sigmund Freud, Sherlock Holmes, Charles Pierce compunham al-guns elos da cadeia de personagens que haviam se defrontado com essaproblemática, de alguma maneira influenciados pelo método de análise

desenvolvido por um perito em arte: Domenico Morelli. Esse método eraa morfologia, por sua vez, ancorado numa semiótica secular, a da medi-cina, a anamnese ou leitura de sintomas. Contrapondo esse “paradigmaindiciário” ao “paradigma galileano”, baseado na generalização dosdados e na idéia de causalidade, Ginzburg traçava a origem de discipli-nas como a história, “marcadas pela atenção ao individual, ao irrepetível,e por um procedimento de pesquisa que exigia uma interrogação indire-ta e fortemente conjectural.”90

Conjectural sim, mas não irracional. As conjecturas, aproximaçõese semelhanças feitas a partir do método indiciário certamente não pres-

85 Idem, ibidem, p. 23. Numartigo sobre Picasso, Ginzburgvolta à questão da “interpre-tação selvagem”, rebatendoalgumas análises influentes arespeito da relação de PabloPicasso com a arte africana(“Bois, que, justamente, repelea tendência difusa de consi-derar Picasso como um merotranscritor de eventos biográ-

ficos, faz dele, a seguir, umtranscritor de (inverificáveis)pulsões inconscientes. Inútilsegui-lo nesse caminho”).GINZBURG, Carlo. Além doexotismo: Picasso e Warburg.In: Relações de força, op. cit., p.130.

86 GINZBURG, Carlo. Indaga-ções sobre Piero, op. cit., p. 44.

87 Idem, ibidem, p. 45.

88 Esse modelo de análise estátambém presente na atribui-ção, datação e interpretaçãodo ritratto del Buffone Gonella,estudado por Ginzburg. Ver

 Jean Fouquet: ritratto del buffo-ne Gonella. Modena: CosimoFranco Panini, 1996.

89 A expressão é utilizada porLIMA, Henrique Espada.  Amicro-história italiana, op. cit.,p. 334.

90 Idem, ibidem, p. 337.

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cindiam daquilo que pode se chamar de “faro, golpe de vista, intuição”91,mas Ginzburg fez uma importante distinção entre aquela idéia de intui-ção baseada no modelo das intuições místicas, e outra, baseada nas for-mas de discernimento que, apoiando-se nos sentidos, passam a refletirsobre os dados por eles fornecidos.

Ora, a análise formal não é outra coisa senão uma análise baseadanos dados da percepção, que são histórica e biologicamente constituídose, portanto, verificáveis. Se o ensaio sobre a tradição warburguiana sus-citava a vontade de: “aproveitar-se das possibilidades cognitivas de ummétodo indiciário e ‘intuitivo’ (no sentido [...] de apreensão sintética,‘compreensiva’, de uma realidade não apreensível de outra forma) e, aomesmo tempo, construir instrumentos que permitissem controlar, isto é,testar, as hipóteses construídas”92, método esse ainda não elaborado emtodo seu alcance no artigo de 1966, “Sinais” fornecia uma reflexão maisalentada sobre ele. Aproximando a análise formal a outros tipos de aná-lise (como a psicanalítica, a médica, a filológica, a semiótica e a históricapropriamente dita), Ginzburg afirmava-a como um instrumento muitoeficaz para armar problemas e fazer conjecturas. A morfologia, maisuma vez, era encarada não como ponto de chegada, mas sim ponto de

partida, firmemente ancorado na racionalidade.93

Um exemplo, um perigo e uma certeza

Seguindo esse percurso (certamente incompleto) é possível perce- ber que, ao invés de fazer uma cruzada contra a análise formal, Ginzburgnunca abdicou dessa abordagem, procurando reforçar o seu caráter his-tórico, como forma de enfrentar o legado de Gombrich — “o problemasempre aberto do estilo da obra de arte”.

No tocante a esse aspecto, pode-se compreender o fascínio do au-tor pela figura de Roberto Longhi. Como todo fascínio, sua relação com

o mais importante historiador da arte italiano comporta uma dúbia pos-tura: considera-o um exemplo e um perigo. “Ele é a combinação de umfilólogo com um historiador, que conhece muito bem, sobretudo, as fon-tes primárias, os testemunhos figurativos e também as fontes secundári-as, as biografias, os catálogos.” Mas é o “elemento adivinhatório”94 dasanálises de Longhi que produziu um imenso impacto sobre Ginzburg,na medida em que apontava para uma relação que o intriga em toda suatrajetória intelectual, isto é, entre “morfologia e história”: “Longhi”, dizGinzburg, “analisa as formas, o aspecto formal de Piero della Francescaou de qualquer outro pintor e, a partir dessa leitura muito aprofundadae intuitiva dessas obras, consegue estabelecer nexos, conexões, que são

morfológicas, ou seja, que nascem da análise do traço e da feitura dasobras”.95

A análise formal, ou a morfologia, como prefere o autor, é conside-rada uma potente ferramenta para o historiador, com a qual, nãoobstante, deve operar com devida maestria, isto é, de maneira controla-da. Para Ginzburg, como se pretendeu demonstrar até agora, as desco-

 bertas formais são um instrumento de indagação. Elas auxiliam o histo-riador a ‘colocar os problemas’. Essa característica é que desperta seuinteresse pelas análises originais de Longhi, nas quais as “descobertasformais [...] antecipam as descobertas documentais. É a relação entre

91 GINZBURG, Carlo.  Mitos,emblemas, sinais, op. cit., p. 179.

92 LIMA, Henrique Espada.  A

micro-história italiana, op. cit.,p. 345.

93 Vê-se assim que Ginzburgestá muito distante daquele“irrational scholar”, como afir-mava Wilkins em sua resenhade Piero. WILKINS, David G.Review, op. cit., p. 114.

94 GINZBURG, Carlo. À luz deum mestre (entrevista). Folhade S. Paulo, 08 dez. 2007.

95 Idem.

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morfologia e história, entre aquilo que nos diz o estilo e o que nos diz apesquisa sobre a iconografia, o contexto”96.

Mas por que essas descobertas podem colocar problemas? Longhi,como mostrou Ginzburg no prefácio ao estudo sobre Piero della Francesca,elaborado pelo “mestre”, mascarava a estreita relação entre análise for-mal e análise histórica. No caso em questão, esta última, supostamente,estava estrategicamente confinada aos apêndices do livro.

A biografia de Piero della Francesca, a fortuna histórica de suasobras, os dados técnicos sobre seu estado de conservação são pressupos-tos empíricos indispensáveis, que sustentam a experiência crítica; “masa descrição os incendeia, fundindo-os e calcinando-os até não restar ne-nhum traço deles”97, explicava Ginzburg. A vivacidade da descriçãoverbal (a ekphrasis98) emulava, frise-se, a experiência da apreciação daobra de maneira tão perfeita que fazia com que ela (a crítica) parecessecom aquela visão mística dos iluminados. Quem já testemunhou um gran-de crítico discorrendo sobre uma obra há de recordar a emoção dessaexperiência e a sensação de que ela brota de um dom quase antediluviano,secreto e intransmissível. Porém, a apreciação, ou melhor dizendo, o juízo,é antes de tudo uma experiência que se estabelece com a obra, na qual

afluem todos aqueles dados que Longhi supunha (ou afirmava) deixarde lado, e a própria perspectiva histórica do autor desse juízo (conformedizia Lionello Venturi, citado no início desse artigo).

Em “Battling over Vasari: a tale of three countries”, Ginzburg ar-gumentou que a nossa visão, contemporânea, sobre a história da arte foimoldada pelo debate acerca das interpretações de Vasari no século XIX.Entre a tradição alemã, italiana e francesa dessa interpretação, conside-ra essa última mais próxima de nós. No que consiste essa aproximação?Num determinado tipo de perspectivismo e numa expectativa de traçarrelações entre o progresso artístico, político e social. Jeanron, pintor ecrítico da primeira metade do século XIX e representante dessa tradição,

teria sido o primeiro a refletir sobre as implicações dessa convergência.Homem de esquerda, Jeanron não deixou escapar a problemática

relação com a tradição que supunha essa idéia de progresso: “A recor-dação dos grandes homens pertence ao mundo e acompanha sua lei —uma lei que não parece envolver descanso ou permanência”. A aprecia-ção, de acordo com Jeanron, explicou Ginzburg, altera-se com o tempo,“assim, devemos nos resignar em fazer apenas julgamentos transitórios,sujeitos à revisão a qualquer instante. Mas, daquilo que parece ser umaposição humilhante, brota na realidade o direito de levantar-se contra

 julgamentos anteriores e registrá-los apenas como documentos, colocan-do acima de toda a autoridade nossa própria avaliação e nossa própria

consciência.”99. Seu relativismo não é um ceticismo, alertou o historia-dor italiano. Jeanron produziu julgamentos críticos acerca da tradiçãoda história da arte baseados numa forte relação com a arte contemporâ-nea e, mais amplamente, com a realidade do mundo em que vivia. Essemodelo de análise, explícito ou não, é o que caracteriza até a história daarte na modernidade, bem como a história da arte moderna. Nela, pode-se identificar uma certa crença do caráter prospectivo da arte, na suacapacidade de, como força social, antecipar novos arranjos histórico-sociais, provisórios e incertos, sem dúvida, mas plenos de potenciali-dade.100

96 Idem.

97 GINZBURG, Carlo. Intro-dução. In : LONGHI, Rober-to. Piero della Francesca, op. cit.,p. 8.

98 Questão que, não por aca-so, vem também preocupan-do nosso autor ao longo desua trajetória. Sobre as rela-ções entre ekphrasis (descriçãoverbal) e enargeia (vividez), verespecialmente GINZBURG,Carlo. Descrição e citação. In:O fio e os rastros: verdadeiro,falso, fictício. São Paulo:Companhia das Letras, 2007.

99 GINZBURG, Carlo. Battlingover Vasari: a tale of three co-untries. In: ZIMMERMANN,Michael. The art historian:national traditions and ins-titutional practices. Londres eNew Haven: Yale UniversityPress, 2003.

100

Sobre essa questão, reme-to novamente ao prefácio deNaves, que identifica aqui omodo como Argan estabeleceos nexos entre arte e socieda-de: NAVES, Rodrigo, op.cit. p.XII e XIII. Para Naves, é no“movimento que conduz dasobras analisadas a questõeséticas, prático-cognoscitivas eexistenciais — isto é, a ques-tões histórico-sociais — queestá a grandeza e boa partedo interesse dos estudos deArgan. E, precisamente porserem realizadas de formaum tanto abrupta, essas pas-sagens não surgem como sim-ples expressão de um conteú-do espiritual anterior às obras,a se particularizar em momen-tos sensíveis. Ao contrário,essas passagens revelam o es-

 forço de significação contidonesses objetos, a tentativa deestabelecer uma relação espe-cífica e diferenciada — dondeuma certa descontinuidade— com o conjunto de ativida-des humanas. (grifos do au-tor)”. Ver também o ensaio de

Naves em homenagem a Ro- berto Schwarz, De relógios, bússolas e sextantes. Pergun-tas a Roberto Schwarz. In :CEVASCO, Maria Elisa eOHATA, Milton. Um crítico na

 peri feria do capitali smo : refle-xões sobre a obra de RobertoSchwarz. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2007.

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Formula-se o juízo de uma obra de arte a partir da análise do esti-lo, da forma. Essa análise, não obstante, longe de ser uma relaçãohipostasiada com o objeto artístico, é histórica101. O juízo crítico não re-tira o objeto de sua história, mas, sim, tira da historicidade que é imanenteà sua forma os elementos de análise que deverão ser contrastados, com-parados, controlados, a partir de outros dados, sejam eles advindos datradição artística, da iconografia, da clientela ou do público. A históriada arte trata de analisar as obras de arte, formulando interpretações e

 juízos que são, por sua vez, também historicamente condicionados e,portanto, abertos à prova dos nove do próprio processo histórico. Sãointerpretações e juízos transitórios, mas nem por isso irracionais.

Contra Ernst Gombrich e Roberto Longhi, mas com eles e, em certamedida, com Warburg, numa relação que certamente traz a dose de con-flito inerente a todo processo de transformação de uma disciplina, Ginz-

 burg vem contribuindo para a reflexão e o aprimoramento dos instru-mentos para uma história social da arte, como queria Enrico Castelnuovo.Este, no entanto, lembrou: “História social, história econômica [históriacultural, história da arte, poder-se-ia acrescentar]: Lucien Febvre costu-mava dizer que para ele estas distinções não existiam, e que só conhecia

a história”102. Não é diferente a posição do autor em questão.

 Artigo recebido em outubro de 2007. Aprovado em dezembro de 2007.

101 Sobre o assunto, ver tam- bém GINZBURG, Carlo. Esti-lo: inclusão e exclusão. In :Olhos de madeira, op. cit.. Pre-ciso assinalar, entretanto, adiscordância com a afirma-ção, incluída nesse texto, deque Theodor Adorno susten-ta a necessidade de “nos apro-ximarmos das obras de artecomo entidades absolutas”.Não há espaço aqui para de-

 bater essa idéia, apenas indi-co o texto em que creio que oautor tenha demonstrado ainsustentabilidade dessa pers-pectiva isolada: ADORNO,Theodor. Museu Valery Pro-ust. Prismas: crítica cultural esociedade. São Paulo: Ática,1998.

102 CASTELNUOVO, Enrico.Para uma história social daarte II. In: Retrato e sociedadena arte ialiana, op. cit., p. 189.