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A Hermenutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrtico de Direito Menelick de Carvalho Netto*

So pocas difceis para o constitucionalista essas em que o sentimento de Constituio, para empregar a expresso divulgada por Pablo Lucas Verd, aniquilado no s pela continuidade e prevalncia de prticas constitucionais tpicas da ordem autocrtica anterior, mas igualmente pela tentativa recorrente de alterao formal da Constituio. Tentativas essas que, alcancem ou no o fim menor e especfico a que visam diretamente, terminam sempre por ferir a aura de supremacia de que se deve revestir a Constituio para que seja capaz de legitimar e de articular tanto o Estado quanto todo o demais Direito que nela se assentam. Instaura-se, assim, uma situao que tende a desvelar dois paradoxos bsicos da modernidade. Torna-se cada vez mais visvel que, na modernidade, tanto o Direito funda a si mesmo, bem como que igualmente a poltica, o Estado, o prprio fundamento de si mesma. Esses paradoxos do fundamento de ambos os sistemas so velados, como demonstra Niklas Luhmann, pela aquisio evolutiva que representou a inveno da Constituio formal nos finais do sculo XVIII. a diferenciao entre um Direito superior, a Constituio, e o demais Direito, que acopla estruturalmente Direito e poltica, possibilitando o fechamento operacional, a um s tempo, do Direito e da Poltica. Em outros termos, por intermdio da Constituio que o sistema da poltica ganha legitimidade operacional e tambm por meio dela que a observncia ao Direito pode ser imposta de forma coercitiva. Nessa situao os prprios rgos legitimados pela Constituio voltamse contra a sua base de legitimidade para devor-la, tal como Cronos fizera com os seus prprios filhos. Revela-se a face brutal da privatizao do pblico, do poder estatal instrumentalizado, reduzido a mero prmio do eleito, visto como as batatas a que faz jus o vencedor, no dizer de Machado. o sentimento de anomia que passa a campear solto, vigoroso, alimentando-se a fartar das dificuldades que encontramos em recuperar as sementes de liberdade presentes em nossa Constituio, mergulhadas em nossas tradies. E as tradies de qualquer comunidade poltico-jurdica so sempre plurais, por mais autoritrias que possam ser as eventualmente vitoriosas ao longo de sua histria. A fora normativa da Constituio, como uma homenagem formal a Konrad Hesse, reduzida a um mero ideal loewensteineano o que s vem, em ltimo termo, reforar a fora normativa, a idealidade, da facticidade que se revela na continuidade das velhas prticas polticas e jurdicas que a Constituio veio abolir, na medida em que se a eleva condio de realidade. Ora, se, superando os supostos de uma filosofia da conscincia, tematizarmos a condio humana como uma condio lingstica, discursiva, hermenutica, veremos que a nossa prpria realidade cotidiana e inafastvel permeada de idealidades, de pretenses idealizantes, constitutivas da capacidade lingstica como tal. Por isso mesmo a oposio entre a constituio formal tomada como constituio ideal e a efetiva pragmtica poltico-jurdica vista como constituio real , ela prpria, uma construo idealizada, uma armadilha conceitual que eterniza o que pretendera denunciar, pois, por um lado, incapaz de revelar a natureza de idealidade normativa das terrveis pretenses idealizantes que ganham curso sob a capa do que denomina realidade, e. por outro, absolutiza o poder de regulamentao de condutas da Constituio e do Direito em geral. Cumpre salientar, portanto, que, por um lado, contra a primeira deficincia da viso da Teoria da Constituio clssica, o Direito moderno um Direito que se volta para a regulamentao de condutas futuras, sendo-lhe inerente a assuno do risco do eventual descumprimento de suas normas. Alis, o Direito regula apenas as condutas possveis, refoge a ele a regulamentao de condutas necessrias ou impossveis. E, contra a segunda falha apontada, recordamos o prprio Hans Kelsen, o mais formalista dos juristas, que requer, uma vez que o objeto da*

Professor de Teoria da Constituio, Teoria Geral do Direito Pblico e Direito Constitucional Comparado dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao em Direito da UFMG. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

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norma jurdica no uma determinada conduta humana e sim a internalizao de um certo padro de conduta, ou seja, uma outra norma de carter sociolgico, para a prpria existncia formal de uma norma um mnimo de internalizao social. Ao nosso ver, para que a colocao do problema deixe de ser ela prpria um seu reforo, preciso que busquemos postul-lo de outro modo. Esse outro modo, acreditamos, deve vincular-se ao reconhecimento de que as prticas sociais, ou melhor, as posturas e supostos assumidos pelos distintos atores em sua ao, a gramtica dessas prtica sociais, atribuidora de sentido, de significao. Assim, acreditamos que o Judicirio ocupe um papel central na rdua tarefa de promover no somente a segurana jurdica, mas a crena no prprio Direito, na justia. Outra caracterstica essencial do Direito moderno o seu carter textual. O fato de que s temos acesso s suas normas mediante textos discursivamente construdos e reconstrudos. Portanto, os supostos da atividade de interpretao de todos os operadores jurdicos, do legislador ao destinatrio da norma, so da maior relevncia para a implementao de um ordenamento, o que nos remete para a tematizao das gramticas subjacentes s prticas sociais instauradas. Uma delas a que revela a crena de que todos os problemas e virtudes de nossa vida jurdica dependeriam da qualidade literal de nossos textos legislativos. Esquece-se que os textos so o objeto da atividade de interpretao e no o seu sujeito. Que o anseado aprimoramento de nossas instituies pode requerer algo muito mais complexo do que a simples reforma de textos constitucionais e legislativos. Tudo est a indicar que a reforma, para ser produtiva, deveria dar-se precisamente no mbito das posturas e das prticas sociais, ou seja, das gramticas mediante as quais implementamos nossa vida cotidiana. E, nesse aspecto, a atividade jurisdicional, na medida em que lhe atribuda um papel central na arquitetura constitucional para o assentamento das expectativas jurdicas prevalentes na sociedade, sempre o plo em torno do qual se desenvolveu e se desenvolve a discusso teortica e terica sobre a leitura e a aplicao dos textos legislativos, ou seja, sobre a atividade de interpretao. Contudo, o que interpretao? Ser que interpretamos apenas textos? Nesse passo, temos que nos referir, ainda que rapidamente a Hans Georg Gadamer e denominada virada hermenutica que empreendeu. Gadamer vincula-se tradio teortica da hermenutica filosfica, uma corrente de pensamento na histria da filosofia que se dedica ao estudo do estatuto das denominadas cincias do esprito, das cincias humanas e sociais. A sua importncia para ns reside no impacto que sua obra produzir sobre o conceito de cincia em geral, encontrando-se na raiz da conceito de paradigma de Thomas Kuhn, a informar toda a atual filosofia da cincia. Para resgatarmos os exigentes pressupostos que informam a postura do juiz em uma tutela jurisdicional constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrtico de Direito, tomaremos os supostos iniciais de Ronald Dworkin, enquanto um autor que tem por tema de sua predileo precisamente a reforma judicial que pretendemos tematizar. Para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos histricos, ou seja, tambm qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercleo esforo no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a nica deciso correta para este caso especfico, irrepetvel por definio. Em outros termos, todo e qualquer caso deve ser tratado pelo julgador como um caso difcil, como um hard case (DWORKIN, R. Taking Rights seriously. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1978, p. 81 a 130. _______ A Matter of Principle. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1985, p. 119 a 145). Mas, comecemos do comeo. Afinal de contas o que um paradigma? E ainda mais precisamente, o que e quais so os paradigmas constitucionais? Em que eles afetam a questo da interpretao em geral e da interpretao constitucional em particular? De incio, portanto, cabe-nos introduzir a noo de paradigma e o seu emprego na Teoria Geral do Direito e no Direito Constitucional. O conceito de paradigma, como j tivemos ocasio de afirmar, vem da filosofia da cincia de Thomas Kuhn ( KUHN, T. S. A Estrutura das Revolues Cientficas.

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So Paulo: Editora Perspectiva, 1994, sobretudo da p. 218 232.). Tal noo apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento cientfico como um processo que se verifica mediante rupturas, atravs da tematizao e explicitao de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pr-compreenses e vises-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silncio assentado na gramtica das prticas sociais, que a um s tempo torna possvel a linguagem, a comunicao, e limita ou condiciona o nosso agir e a nossa percepo de ns mesmos e do mundo. Por outro, tambm padece de bvias simplificaes, que s so vlidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas vises de mundo prevalentes e tendencialmente hegemnicas em determinadas sociedades por certos perodos de tempo e em contextos determinados. claro que a histria como tal irrecupervel e incomensuravelmente mais rica do que os esquemas que aqui sero apresentados, bem como se reconhece as infinitas possibilidades de reconstruo e releitura dos eventos histricos. Assim, o nvel de detalhamento e preciosismo na reconstruo desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivos da pesquisa que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzirmos rapidamente a aplicao do conceito no Direito Constitucional, sobretudo com vistas aos supostos da hermenutica constitucional, reconstruiremos um nico grande paradigma de Direito e de organizao poltica para toda a antigidade e idade mdia, como contraponto modernidade que, por sua vez, ser apresentada em trs grandes paradigmas (o do Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrtico de Direito) que tendencialmente se sucedem, em um processo de superao e subsuno (aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigidade, ainda possam encontrar, no nvel ftico, curso dentre ns, a condicionar leituras inadequadas dos textos constitucionais e legais. Da mesmo a razo e a necessidade de tambm apresentarmos os paradigmas anteriores pois, mediante essa contraposio, melhor poderemos compreender o novo paradigma positivado e suposto pela Constituio da Repblica de 1988. Examinemos, primeiramente, o primeiro paradigma constitucional em contraponto com o prmoderno. O Direito e a organizao poltica pr-modernos encontravam traduo, em ltima anlise, em um amlgama normativo indiferenciado de religio, direito, moral, tradio e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente no se discerniam. O Direito visto como a coisa devida a algum, em razo de seu local de nascimento na hierarquia social tida como absoluta e divinizada nas sociedades de castas, e a justia se realiza sobretudo pela sabedoria e sensibilidade do aplicador em bem observar o princpio da eqidade tomado como a harmonia requerida pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e reproduzir as diferenas, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social (a phronesis aristotlica, a servir de modelo para a postura do hermeneuta). O Direito, portanto, enquanto um nico ordenamento de normas gerais e abstratas vlido para toda a sociedade, no existia, mas to somente ordenamentos sucessivos e excludentes entre si, consagradores dos privilgios de cada casta e faco de casta, consubstanciados em normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, nas tradies, nos usos e costumes locais, aplicados casuisticamente como normas concretas e individuais, e no como um nico ordenamento jurdico integrado por normas gerais e abstratas vlidas para todos.

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Verifica-se a dissoluo desse paradigma ao longo de pelo menos trs sculos, por um sem nmero de fatores que vo desde a ao dissolvente do capital, a diluir os laos e entraves feudais e a fazer com que cada vez mais indivduos livres e possessivos participem do crescente mercado como proprietrios, no mnimo, do prprio corpo, ou seja, da fora de trabalho que lhes possibilita o comparecimento cotidiano ao mercado enquanto proprietrios de uma mercadoria a ser vendida (Marx); passando pelo desenvolvimento das prticas de investigao policial (Foucault, Umberto Eco); pela destruio da cosmologia feudal fechada e hierarquizada, substituda pela isonmica estrutura matemtica de tomos que constitui o universo infinito da fsica de Galileu (Koyr); pelas lutas por liberdade de confisso religiosa e pela conseqente distino e separao das esferas normativas da religio, da moral, da tica social e do Direito (Weber), etc. Seja como for, o relevante que todos esses processos de mudana se integram em uma profunda alterao de paradigma. As intuies da moral individual racionalista, vistas como verdades matemticas inquestionveis, colocam em xeque a tradio, agora reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da poca, s pode ser explicada como o resultado da corrupo histrica e que, assim, deveria ser alterada pela imposio de normas racionalmente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua histria, inaugurando ou remodelando um tipo recente de organizao poltica, os Estados nacionais. Os Estados nacionais so construdos como espaos laicos de definio e imposio dessas regras racionais que deveriam reger impositivamente a organizao e a reproduo social, a normatividade propriamente jurdica. O Direito, enquanto essa normatividade especfica, diferenciada e decorrente de idias abstratas consideradas verdadeiras por evidncia, como analisa Marcuse, s poderia ser compreendido agora como um ordenamento de leis racionalmente elaboradas e impostas observao de todos por um aparato de organizao poltica laicizado. O que se produz mediante um processo de reduo, em que o direito deixa de ser a coisa devida transcendentalmente assentada na rgida e imutvel hierarquia social da sociedade de castas, para se transformar no Direito, ou seja, em um ordenamento constitucional e legal que impe, toda uma afluente sociedade de classes, a observncia daquelas idias abstratas tomadas como Direito Natural pelo jusracionalismo. Idias abstratas tais como a da liberdade individual de se "fazer tudo aquilo que as leis no probam (Locke/Montesquieu) ou da "liberdade de ter" dos modernos em oposio "liberdade de ser" dos antigos (Hegel, Benjamin Constant); tais como a da igualdade de todos que, conquanto muito diferentes em outros aspectos, so iguais diante da lei. Ou, como explica Pashukanis, so iguais no sentido de todos se apresentarem agora como proprietrios, no mnimo, de si prprios, e, assim, formalmente, todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietrios, sujeitos de direito, devendo-se pr fim aos odiosos privilgios de nascimento. Pela primeira vez na histria ps-tribal, todos os membros da sociedade so, ou devem ser, proprietrios, homens livres e, assim, igualmente sujeitos de direito, capazes, at mesmo o mais humilde trabalhador braal, de realizar atos jurdicos contratuais como o da compra e venda da fora de trabalho. Com o movimento constitucionalista implantam-se Estados de Direito que resultam da conformao da organizao poltica necessidade de que essas idias, tidas como direito natural de cunho racional, verdades matemticas absolutas e inquestionveis (caracterizadoras do indivduo - essa outra inveno da modernidade) pudessem encontrar livre curso e se impor. O Direito visto, assim, como um sistema normativo de regras gerais e abstratas, vlidas universalmente para todos os membros da sociedade. O Direito Pblico, no entanto, deveria assegurar, mesmo que por intermdio de formas e sistemas de governo variados, o no retorno ao absolutismo, precisamente para que aquelas idias abstratas pudessem ter livre curso na sociedade, mediante a limitao do Estado lei e a adoo do princpio da separao dos poderes que, ainda que lido de distintos modos, sempre deveria requerer, no mnimo, tambm a aprovao da representao censitria da melhor sociedade no processo de elaborao dessas mesmas leis. E, assim, s leis deveria ser reservado o tratamento de toda a matria relativa vida, liberdade e propriedade dos sditos. Contudo, em face do Direito Privado, reino por excelncia daquelas verdades evidentes, o Direito Pblico, ao variar, em seus detalhes, de pas para pas, visto como mera conveno, pois da sociedade poltica deveria participar apenas a "melhor

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sociedade", convencionalmente estabelecida pelo requisito de renda mnima para o exerccio do voto, bem assim pelos critrios mnimos crescentes de renda censitariamente escalonados para que algum pudesse se candidatar a cargos pblicos locais, regionais e nacionais. O Direito Privado, por sua vez, corresponderia quelas verdades matemticas inerentes a todo e qualquer indivduo: os direitos vida, liberdade, igualdade e propriedade privada. Assim, sociedade poltica e sociedade civil so separadas por um profundo fosso. Na primeira, os interesses gerais deveriam prevalecer mediante a atribuio de sua identificao e guarda aos membros dessa sociedade poltica, dessa melhor sociedade, queles cultural e economicamente bem aquinhoados. E a "razo prtica" apontava para o estabelecimento do mnimo de leis gerais e abstratas, pois j que liberdade fazer tudo aquilo que as leis no probam, quanto menos leis, mais livres seriam as pessoas para desenvolver as suas propriedades (aqui o termo empregado na acepo da poca, como tambm abrangente dos dotes fsicos e mentais de uma pessoa). A segunda, a sociedade civil, o espao naturalizado em que as propriedades devem ser desenvolvidas o mais livremente possvel mediante a garantia da igualdade formal de todos perante a lei, no importando quo desiguais possam ser em termos materiais. O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer limites universais preponderantemente negativos (no furtar, no matar, etc., como traduzido, por exemplo, por Fichte) , ento, visto como o conjunto de regras que delimitam os espaos de liberdade dos indivduos - as linhas demarcatrias da fronteiras em que termina a liberdade de um indivduo e em que se inicia a liberdade de outro. Assim, o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da "melhor sociedade" autorize a atuao de um Estado mnimo, restrito ao policiamento para assegurar a manuteno do respeito quelas fronteiras que asseguravam o mais pleno exerccio s liberdades individuais anteriormente referidas e, assim, garantia-se o livre jogo da vontade dos atores sociais individualizados, vedada a organizao corporativo-coletiva, configurando, aos olhos dos homens de ento, um ordenamento jurdico de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1 gerao, uma ordem jurdica liberal clssica. claro que sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, a questo da atividade hermenutica do juiz s poderia ser vista como uma atividade mecnica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretao algo a ser evitado at mesmo pela consulta ao legislador na hiptese de dvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz reservado o papel de mera bouche de la loi. A vivncia daquelas idias abstratas que conformavam o paradigma inicial do constitucionalismo logo conduz negao prtica das mesmas na histria. A liberdade e igualdade abstratas, bem como a propriedade privada terminam por fundamentar as prticas sociais do perodo de maior explorao do homem pelo homem de que se tem notcia na histria, possibilitando um acmulo de capital jamais visto, as revolues industriais e uma disseminao da misria tambm sem precedentes. Idias socialistas, comunistas e anarquistas comeam a colocar agora em xeque a ordem liberal e a um s tempo animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles se reforam com a luta pelo direito de voto, pelos direitos coletivos e sociais, como o de greve e de livre organizao sindical e partidria, como a pretenso a um salrio mnimo, a uma jornada mxima de trabalho, seguridade e previdncia sociais, ao acesso sade, educao e ao lazer. Mudanas profundas tambm de toda ordem conformam a nova sociedade de massas que surge aps a 1 Guerra Mundial e, com ela o novo paradigma constitucional do Estado Social. No que toca diretamente ao nosso tema, desde o socialismo implantado na Rssia Sovitica em 1918, passando pelas sociais democracias como as da Alemanha de 1919 e da ustria de 1920, at o nazismo e o fascismo em ascenso, todas essas formas de organizao poltica configuraram um novo paradigma, o do Estado Social, que, por sua vez, pressupe a materializao dos direitos anteriormente formais. No se trata apenas do acrscimo dos chamados direitos de segunda gerao (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinio dos de 1 (os individuais); a liberdade no mais pode ser considerada como o

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direito de se fazer tudo o que no seja proibido por um mnimo de leis, mas agora pressupe precisamente toda uma pliade de leis sociais e coletivas que possibilitem, minimamente, o reconhecimento das diferenas materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relao, ou seja, a internalizao na legislao de uma igualdade no mais apenas formal, mas tendencialmente material, eqitativa. No mais se acredita na verdade absoluta de cunho matemtico dos direitos individuais. O direito privado, assim como o pblico, apresentam-se agora como meras convenes e a distino entre eles meramente didtica e no mais ontolgica. A propriedade privada, quando admitida, o como um mecanismo de incentivo produtividade e operosidade sociais, no mais em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, sua funo social. Assim, todo o Direito pblico, imposio de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente de acesso sade ou educao, massa pronta a ser moldada pelo Leviat onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado continua a subsumir toda a dimenso do pblico, agora imensamente alargada e positivamente valorada, e tem que prover os servios inerentes aos direitos de 2 gerao sociedade, como sade, educao, previdncia, mediante os quais alicia clientelas, para que os direitos de 1 gerao possam ganhar densidade no novo sentido tendencialmente materializado que passa a revesti-los. Com essa crescente complexificao da estrutura da sociedade, verificada aps a Primeira Guerra Mundial, no sculo XX tem curso, portanto, uma remodelao do Estado e do Direito, aqui designada passagem do paradigma do Estado de Direito para o do Estado Social ou de Bem-Estar Social, em que o Direito materializado e, precisamente em razo dessas exigncias de materializao do Direito, no somente o Estado tem a sua seara de atuao extraordinariamente ampliada para abranger tarefas vinculadas a essas novas finalidades econmicas e sociais que, agora, lhe so atribudas, como o prprio ordenamento ganha um novo grau de complexidade. O juiz agora no pode ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecnica de aplicao silogstica da lei tomada como a premissa maior sob a qual se subsume automaticamente o fato. A hermenutica jurdica reclama mtodos mais sofisticados como as anlises teleolgica, sistmica e histrica capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direo da vontade objetiva da prpria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materializao do Direito que a mesma prefigura, mergulhada na dinmica das necessidades dos programas e tarefas sociais. Aqui o trabalho do juiz j tem que ser visto como algo mais complexo a garantir as dinmicas e amplas finalidades sociais que recaem sobre os ombros do Estado. Explica-se assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen de limitar a interpretao da lei atravs de uma cincia do Direito encarregada de delinear o quadro das leituras possveis para a escolha discricionria da autoridade aplicadora, quanto o decisionismo em que o mesmo recai quando da segunda edio de sua Teoria Pura do Direito. Com o final da 2 Guerra Mundial, o modelo do Estado Social j comea a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentrao e com a exploso das bombas atmicas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelo movimento hippie na dcada de sessenta. No entanto, no incio da dcada de setenta que a crise do paradigma do Estado Social manifesta-se em toda a sua dimenso. A prpria crise econmica no bojo da qual ainda nos encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econmico, bem como a oposio antittica entre a tcnica e a poltica. O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras

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empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informao ou ps-industrial comportam relaes extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos da 3 gerao, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor e da criana, dentre outros. So direitos cujos titulares, na hiptese de dano, no podem ser clara e nitidamente determinados. O Estado, quando no diretamente responsvel pelo dano verificado foi, no mnimo, negligente no seu dever de fiscalizao ou de atuao criando uma situao difusa de risco para a sociedade. A relao entre o pblico e o privado novamente colocada em xeque. Associaes da sociedade civil passam a representar o interesse pblico contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1 e 2 gerao ganham novo significado. Os de 1 so retomados como direitos (agora revestidos de uma conotao sobretudo processual) de participao no debate pblico que informa e conforma a soberania democrtica de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrtico de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto. Ora, claro que uma concepo distinta e respectivamente adequada acerca da atividade hermenutica ou interpretativa do juiz integra cada um desses paradigmas, a configurar distintos entendimentos, por exemplo, do princpio da separao dos poderes, o que nos permite detectar, tambm aqui, uma grande e significativa transformao na viso dessa atividade, bem como um incremento correspondente de exigncias quanto postura do juiz no somente em face dos textos jurdicos dos quais este hauriria a norma, mas inclusive diante do caso concreto, dos elementos fticos que so igualmente interpretados e que, na realidade, integram necessariamante o processo de densificao normativa ou de aplicao do Direito, tal como ressaltado na atual doutrina constitucional e na teoria geral do Direito por seus tericos centrais como Konrad Hesse, Robert Alexy, Friedrich Mller, Klaus Gnther, Laurence Tribe, Ronald Dworkin, Gomes Canotilho, Paulo Bonavides e Oliveira Baracho dentre tantos outros. Assim, a partir deste rpido escoro, podemos ver como se verificou um incremento das exigncias relativas postura do aplicador da lei e do responsvel pela tutela jurisdicional que se assenta em uma crescente capacidade de sofisticao da doutrina e da jurisprudncia para fazer face aos desafios decorrentes do processo de contnuo aumento da complexidade da sociedade moderna. Podemos verificar a profundidade das exigncias pressupostas sob o paradigma do Estado Democrtico de Direito se tomarmos, com Habermas, a teoria do Direito de Dworkin como nosso fio condutor, pois, lidamos inicialmente com o problema da racionalidade, tal como posto por uma prestao jurisdicional (Rechtsprechung) cujas decises devem cumprir simultaneamente os critrios da certeza jurdica e da aceitabilidade racional. (HABERMAS, Jrgen. Faktizitt und Geltung. Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt sobre o Reno, Suhrkamp, 1994, p. 292.) Desse modo, no paradigma do Estado Democrtico de Direito, de se requerer do Judicirio que tome decises que, ao retrabalharem construtivamente os princpios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaam, a um s tempo, a exigncia de dar curso e reforar a crena tanto na legalidade, entendida como segurana jurdica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justia realizada, que deflui da adequabilidade da deciso s particularidades do caso concreto.

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Para tanto, fundamental que o decisor saiba que a prpria composio estrutural do ordenamento jurdico mais complexa que a de um mero conjunto hierarquizado de regras, em que acreditava o positivismo jurdico: ordenamento de regras, ou seja, de normas aplicveis maneira do tudo ou nada, porque capazes de regular as suas prprias condies de aplicao na medida em que portadoras daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da norma jurdica: Se A, deve ser B. Ora, os princpios so tambm normas jurdicas, muito embora no apresentem essa estrutura. Operam ativamente no ordenamento ao condicionarem a leitura das regras, suas contextualizaes e interrelaes, e ao possibilitarem a integrao construtiva da deciso adequada de um hard case. Os princpios, ao contrrio das regras, como demonstra Dworkin, podem ser contrrios sem ser contraditrios, sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no ordenamento princpios contrrios que esto sempre em concorrncia entre si para reger uma determinada situao. A sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir justia naquela situao especfica. precisamente a diferena entre os discursos legislativos de justificao, regidos pelas exigncias de universalidade e abstrao, e os discursos judiciais e executivos de aplicao, regidos pelas exigncias de respeito s especificidades e concretude de cada caso, ao densificarem as normas gerais e abstratas na produo das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Gnther denomina senso de adequabilidade, que, no Estado Democrtico de Direito, de se exigir do concretizador do ordenamento ao tomar suas decises (GNTHER, KLAUS. The sense of appropriateness. Trad. John Farrel. New York: State University of New York Press, 1993). desse modo que Dworkin, tambm crtico literrio e profundo conhecedor da teoria da linguagem, pode afirmar que h uma nica deciso correta para um caso concreto (the right answer). Dworkin, claro, sabe to bem quanto Kelsen que qualquer texto possibilita vrias leituras, o problema da deciso judicial, no entanto, que a mesma se d como soluo de um litgio concreto e envolve igualmente a interpretao dos fatos que configuram uma situao de aplicao nica e irrepetvel. Esses fatos, como revelam a prpria cincia e sua teoria, por exemplo, atravs do conceito de paradigma em Thomas Kunh, so, na verdade, equivalentes a texto, ou seja, somente apreensveis por meio da atividade de interpretao, mediante uma atividade de reconstruo da situao ftica profundamente marcada pelo ponto de vista de cada um dos envolvidos. Por isso mesmo, aqui, no domnio dos discursos de aplicao normativa, faz-se justia no somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma deciso consistente com o Direito vigente, mas para isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos, de buscar ver a questo de todos os ngulos possveis e, assim, proceder racional ou fundamentadamente escolha da nica norma plenamente adequada complexidade e unicidade da situao de aplicao que se apresenta. Com essa abertura para a complexidade de toda situao de aplicao, o aplicador deve exigir ento que o ordenamento jurdico apresente-se diante dele, no atravs de uma nica regra integrante de um todo passivo, harmnico e predeterminado que j teria de antemo regulado de modo

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absoluto a aplicao de suas regras, mas em sua integralidade, como um mar revolto de normas em permanente tenso concorrendo entre si para regerem situaes. A imparcialidade aqui, ressalta Gnther, se traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstruo ftica de todos os afetados pelo provimento e, desse modo, fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto pluralidade de normas que concorrem entre si para reger situaes, se faa presente, buscando ento qual a norma que mais se adequa situao; qual a norma que, em face das peculiaridades especficas daquele caso visto como um hard case, promove justia para as partes, sem deixar resduos de injustias decorrentes da cegueira situao de aplicao. Cegueira esta que at bem pouco tempo atrs poderia ser confundida com a prpria imparciliadade por haver sido elevada condio de suposto implcito do conceito mesmo de ordenamento jurdico dos dois primeiros paradigmas constitucionais na modernidade. Reduo conceitual que visualizava o Direito ou como um ordenamento de per si racional, harmnico e sistemtico de regras claras e distintas ou como um ordenamento de regras previamente racionalizado, harmonizado, sistematizado e integralizado pelos juristas em sua doutrina e em seu operar. De toda sorte, pressupunha-se sempre a reduo da estrutura da norma jurdica estrutura das regras, ou seja, das normas que, estruturalmente, buscam regular suas prprias condies de aplicao. Por isso mesmo, a prpria natureza jurdica dos princpios gerais do Direito era sempre objeto de discusso. Nesse contexto, claro que os princpios s poderiam ser considerados relevantes enquanto meios de integrao das possveis lacunas legislativas. Ao criticar o modo de aplicao normativa prevalente na modernidade, Gnther toma um dos exemplos de Kant, autor paradigmtico do perodo do Estado liberal, mas que neste aspecto, o da insensibilidade para com a situao de aplicao, continua a s-lo tambm para o Estado social. Para entendermos o exemplo dado por Kant como modelo para a atuao da razo prtica, necessrio procedermos a uma drstica sntese das duas crticas centrais de Kant. Assim, podemos dizer em uma s frase que se, para Kant, no domnio da razo pura, devemos agir de modo a nos submetermos aos dados da experincia, no domnio da razo prtica, por outro lado, no podemos nos deixar guiar pelas conseqncias prticas de nossos atos, mas somente pelo imperativo categrico da generalidade: devemos agir de tal modo que a mxima de nossa ao possa sempre ser uma lei universal. neste contexto, que Kant prolata o seguinte exemplo. Um dia, estava ele a lecionar em Koenningsberg, quando um aluno entra esbaforido e diz estar sendo perseguido pela polcia poltica do Kaiser, solicitando a Kant que lhe permitisse esconder-se em sua sala de aula. O professor lhe indica a sua mesa para que ele sob ela se oculte. Chegando, a polcia poltica revista em vo a sala e, ao sair, um de seus membros resolve indagar a Kant se este vira o aluno que estavam perseguindo. Kant sabe muito bem que essa polcia poltica tortura e mata os que apreende. No entanto, Kant tambm reconhece a bondade universal do princpio moral no mentir. Assim, Kant, tal como investigado na sua crtica da razo prtica, no hesita e responde ao policial que o aluno se encontra debaixo de sua mesa, dando curso ao que supe ser o seu dever moral, de validade universal, no mentir. Este exemplo dado por Kant ilustra muito bem a crtica que Gnther, seguindo Dworkin, pretende fazer ao modo de aplicao do Direito nsito aos paradigmas constitucionais anteriores. A crena na bondade da

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universalidade da regra fazia com que os homens cometessem tremendas injustias por se fazerem cegos s distintas situaes de aplicao. E essas injustias decorriam do fato de eles serem, efetivamente, incapazes de ver que os princpios, distintamente das regras, requerem aplicao concorrente, balizada por outros princpios, sobretudo os de sentido contrrio. No caso em exame, se outra fosse a postura de Kant, para ele teria se tornado claro que o princpio moralmente adequado para reger aquela situao especfica no seria de modo algum o do no mentir, mas sim princpio de igual validade universal, mas de sentido contrrio, do no delatar. O princpio mais adequado situao de aplicao afasta, naquele caso, a aplicao do imprprio porque aqui este produziria injustia, sem afetar-lhe a validade universal. Alis, suposto da validade universal de um princpio precisamente uma reserva de aplicao segundo as especificidades das distintas situaes. Ora, o Direito, tal como a moral, tambm integrado por princpios, sobretudo no domnio constitucional, o que requer uma aplicao das normas sensvel s distintas situaes de aplicao. As propostas de Dworkin para uma interpretao construtiva teoricamente dirigida do Direito vigente podem, assim, ser defendidas nos termos de uma leitura procedimentalista que altera as exigncias idealizadas da construo de uma teoria sobre o contedo idealista dos pressupostos pragmticos necessrios ao discurso jurdico, a operar no interior dos limites requeridos pelo princpio da separao de poderes, sem que o judicirio invada as competncias legislativas e subverta os estritos limites legais da Administrao (Gesetzesbindung der Verwaltung). claro que aqui o princpio da separao de poderes ganha o contedo da distino entre o domnio das atividades legislativas ou discursos de justificao, ou seja, daqueles discursos que tm por critrio de imparcialidade a universalidade, e o domnio da atividade de aplicao de normas, ou seja, dos discursos que, por sua vez, tm por critrio de imparcialidade a sensibilidade para com as especificidades de cada situao de aplicao consoante a tica de todos os afetados. Apenas assim a concepo do Juiz Hrcules, de Dworkin, pode ganhar solidez, buscando-se compreender a prestao jurisdicional em seu aspecto funcional especfico referente implantao, consolidao, desenvolvimento e reproduo no somente da certeza do Direito, bem como, a um s tempo, do sentimento de Constituio e de Justia. nico sentimento capaz de adequadamente assegurar solidez ordem jurdica de um Estado Democrtico de Direito. Como afirma Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira a legitimidade da ordem jurdico-democrtica requer decises consistentes no apenas com o tratamento anterior de casos anlogos e com o sistema de normas vigentes, mas pressupe igualmente que sejam racionalmente fundadas nos fatos da questo, de tal modo que os cidados possam aceit-las como decises racionais (OLIVEIRA, Marcelo A. C. de. Tutela jurisdicional e Estado Democrtico de Direito. Belo Horizonte: Del Rey. 1997, p. 131). relevante ressaltarmos mais uma vez, com Ronald Dworkin, que o custo, inclusive funcional, da insensibilidade simplificadora da situao de aplicao, tpica dos paradigmas anteriores, alto. No levar a srio os direitos, ou seja, simplificar uma situao de aplicao de modo a simplesmente desconhecer direitos dos envolvidos por se enfocar a questo do ngulo de um nico princpio aplicado

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ao modo do tudo ou nada, tpico das regras, termina por subverter o prprio valor da segurana jurdica que se pretendera assegurar. Por isso mesmo, afirmamos a mera aparncia de consistncia de uma deciso deste tipo, ainda que com apenas um nico princpio jurdico. Os princpios no podem, em nenhum caso, ganharem aplicao de regra, ao preo de produzirem injustias que subvertem a crena na prpria juridicidade, na Constituio e no ordenamento. tempo de nos conscientizarmos da importncia no somente do que Pablo Lucas Verd denomina sentimento de Constituio para a efetividade da prpria ordem constitucional, mas que precisamente para se cultivar esse sentimento em um Estado Democrtico de Direito, das decises judiciais deve-se requerer que apresentem um nvel de racionalidade discursiva compatvel com o atual conceito processual de cidadania, com o conceito de Hberle da comunidade aberta de intrpretes da Constituio. Ou para dizer em outros termos, ao nosso poder judicirio em geral, ao Supremo Tribunal Federal em particular, compete assumir a guarda da Constituio de modo a densificar o princpio da moralidade constitucionalmente acolhido que, no mbito da prestao jurisidicional, encontra traduo na satisfao da exigncia segundo a qual a deciso tomada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto luz do Direito vigente quanto dos fatos especficos do caso concreto em questo de modo a se assegurar a um s tempo a certeza do Direito e a correo, a justia, da deciso tomada. Assim, podemos concluir que, sob as exigncias da hermenutica constitucional nsita ao paradigma do Estado Democrtico de Direito, requer-se do aplicador do Direito que tenha claro a complexidade de sua tarefa de intrprete de textos e equivalentes a texto, que jamais a veja como algo mecnico, sob pena de se dar curso a uma insensibilidade, a uma cegueira, j no mais compatvel com a Constituio que temos e com a doutrina e jurisprudncia constitucionais que a histria nos incumbe hoje de produzir.