a herança dos descobrimentos · 2017. 12. 5. · no globo entre terra e mar, etc. (5). a sabedoria...

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1 A Herança dos Descobrimentos Nau dos fins do séc. XV Portugal, bem como os restantes países de língua portuguesa, é possuidor dum imenso tesouro civilizacional, duma riqueza cultural planetária que denominamos por «A HERANÇA DOS DESCOBRIMENTOS». Os Descobrimentos são o fenómeno de expansão planetária dos povos cristãos-europeus dos séculos XV e XVI onde Portugal, seguido da Espanha, desempenha um papel vanguardista e fundamental. Nessa época, Portugal, foi o contaminador do Mundo, o mensageiro da Europa na África, Ásia, América e Oceânia (e vice- versa). O Portugal dos séculos XV e XVI realiza-se como os olhos e os ouvidos do mundo na Europa e da Europa no Mundo. Esta condição epocal de maior mensageiro planetário permite a Portugal a constituição duma CULTURA literária, científica, técnica, doutrinária, filosófica e artística orientada para o encontro e troca pluricivilizacional, centrada na realidade e ideia de humanidade planetária-universal. Hoje, nos finais do século XX, os Portugueses são os legítimos e primeiros herdeiros dessa imensa riqueza cultural. A pergunta que de imediato se coloca é que fazer com esta herança, isto é, que atitude adoptar frente aos traços emergentes e sobreviventes do fenómeno de expansão planetária dos Portugueses nos séculos XV e XVI? O primeiro e fundamental nível da resposta está no conhecer. Não podemos utilizar e aproveitar esta herança sem realizar um prévio e rigoroso inventário, isto é, sem investigar, profundamente, a morfologia e o sentido deste cosmos cultural. O conhecimento rigoroso é instrumento chave da correcta acção. Sem uma sistemática investigação descritiva e explicativa da Cultura dos Descobrimentos Portugueses estamos numa situação de ignorância quase total acerca dos caminhos a seguir na utilização presente do banco civilizacional de dados que herdámos. Assim, o nosso ensaio orienta-se, exclusivamente, para o objectivo de Luís Filipe Barreto * A Herança dos Descobrimentos Questões prévias * Assistente na Faculdade de Letras de Lisboa.

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A Herança dos Descobrimentos

Nau dos fins do séc. XV

Portugal, bem como os restantes países de língua portuguesa,é possuidor dum imenso tesouro civilizacional, duma riquezacultural planetária que denominamos por «A HERANÇA DOSDESCOBRIMENTOS».

Os Descobrimentos são o fenómeno de expansão planetáriados povos cristãos-europeus dos séculos XV e XVI onde Portugal,seguido da Espanha, desempenha um papel vanguardista efundamental.

Nessa época, Portugal, foi o contaminador do Mundo, omensageiro da Europa na África, Ásia, América e Oceânia (e vice-versa). O Portugal dos séculos XV e XVI realiza-se como os olhose os ouvidos do mundo na Europa e da Europa no Mundo. Estacondição epocal de maior mensageiro planetário permite a Portugala constituição duma CULTURA literária, científica, técnica,doutrinária, filosófica e artística orientada para o encontro e trocapluricivilizacional, centrada na realidade e ideia de humanidadeplanetária-universal.

Hoje, nos finais do século XX, os Portugueses são os legítimose primeiros herdeiros dessa imensa riqueza cultural. A perguntaque de imediato se coloca é que fazer com esta herança, isto é,que atitude adoptar frente aos traços emergentes e sobreviventesdo fenómeno de expansão planetária dos Portugueses nos séculosXV e XVI?

O primeiro e fundamental nível da resposta está no conhecer.Não podemos utilizar e aproveitar esta herança sem realizar umprévio e rigoroso inventário, isto é, sem investigar, profundamente,a morfologia e o sentido deste cosmos cultural. O conhecimentorigoroso é instrumento chave da correcta acção. Sem umasistemática investigação descritiva e explicativa da Cultura dosDescobrimentos Portugueses estamos numa situação deignorância quase total acerca dos caminhos a seguir na utilizaçãopresente do banco civilizacional de dados que herdámos. Assim,o nosso ensaio orienta-se, exclusivamente, para o objectivo de

Luís Filipe Barreto *

A Herança dos Descobrimentos

Questões prévias

* Assistente na Faculdade de Letras de Lisboa.

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A Herança dos Descobrimentos

conhecimento rigoroso da Cultura dos DescobrimentosPortugueses, apresentando, no essencial, um sintético modelogeral da sua estrutura e funcionamento, um panorama breve daslinhas de força desta tela cultural (1).

1. Do Significado Planetário dos Descobrimentos

Nos finais do século XIV e inícios do século XV, o conhecimentomáximo do planeta é de cerca de um quarto e encontra-se na mãoda Civilização Islâmica. Ao longo dos séculos XV e XVI oconhecimento planetário aproxima-se, em extensão, da sua própriae global realidade e encontra-se na posse da Europa-Cristandade.

Os Descobrimentos são, antes de mais, esta revolução,qualitativa e quantitativa, no campo do conhecimento e doacontecimento que leva, pela primeira vez, a uma ideia,relativamente aproximada, da realidade planetária física, o MUNDOe humana, a HUMANIDADE.

Esta revolução é também uma profunda alteração deacentuações civilizacionais com a passagem dos centros do poderdo saber e do fazer das civilizações Islâmica e Judaica para acivilização Cristã e, mais gradativamente, do espaço mediterrânicopara o espaço atlântico.

Pela primeira vez, ao longo do século XVI, vive-se à escalaplanetária (ao primeiro nível, como é evidente, dessa escala).

O mundo da vida à escala planetária implica a criação dumaeconomia-mundo em que os mercados e os preços, a agricultura,o comércio e a indústria da Europa e da Ásia, da África e daAmérica se correlacionam, influenciando-se mutuamente (emforma e graus diversos). Implica também o aparecimento dumapolítica colonial e planetária em que os conflitos locais em zonasdistantes passam a ter peso e função nas estratégias centraisde decisão.

O mundo da vida planetária cria uma cultura-mundo, um quadrointer e pluricivilizacional formador de novos horizontes tanto dacultura comportamental (formas de vida, modos de alimentação,vestuário, sensibilidade, etc.) como da cultura intelectual (formasde linguagem / pensamento, valores, ideias, conceitos, etc.).

É neste último quadro que se coloca a nossa atenção. Aqui, osignificado essencial dos Descobrimentos reside na constituiçãodum planetário banco de dados, na organização dum imensoquadro articulador e aproveitador da explosão informativa queacompanha a nova ordem de fronteiras e horizontes do Mundo.

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Caravela portuguesa do séc. XV

Pela primeira vez existe um polo civilizacional com umaimagem global e fundamentada do planeta. Pela primeira vezassistimos a uma acumulação de dados do mais variado tipo(económico, botânico, minerológico, político, etnológico,zoológico, etc.) sobre os mais diversos continentes, civilizaçõese sociedades. Pela primeira vez existem programas deconhecimento, sistematização e utilização desta acumulaçãoinformativa planetária.

O lugar e o peso de Portugal no aparecimento edesenvolvimento desta cultura-mundo é decisivo porque adispersão planetária dos Portugueses representa a máximaalimentação deste planetário banco de dados civilizacional: «ogrande papel dos povos ibéricos foi terem iniciado e levado acabo um movimento de contactos (desde então permanentes)entre as várias humanidades que estavam isoladas entre si» (2).

Os Portugueses realizam uma universal contaminação dosgostos e produtos construindo um sistemático regime de trocasentre a sensibilidade e os hábitos europeus-cristãos e os hábitose sensibilidades dos mundos africano, asiático, americano. Dacomida à bebida, do cheirar ao ver, do vestuário à música produz-se uma imensa e intensa troca que possibilita a criação de outrase novas formas de ser e estar na vida bem diferentes dastradicionais (mais ou menos diversas conforme os graus e ostipos de sincretizações ou sínteses realizadas entre os elementoscolhidos no diálogo civilizacional).

Portugal é vanguarda no campo desta cultura comportamental.A troca de plantas e alimentos (batata, banana, caju, etc.) debebidas, de gostos e prazeres (chá, vinho, tabaco, etc.), passa,fundamentalmente, pela disseminação planetária dosPortugueses. Portugal é também vanguarda a todos os níveis dacultura intelectual. Da ciência à tecnologia, da filosofia à ideologia-doutrina, a Cultura Discursiva dos Descobrimentos Portuguesesproduz um dos territórios e momentos (quantitativamente maisvastos e plurais e, qualitativamente, mais criativos) da CulturaRenascentista Europeia (com maior expressão em campos dosaber como a Antropologia, a Geografia, a Botânica Médica, aAstronomia, a Matemática, a Cartografia e a Hidrografia, asTécnicas de Construção Naval, as doutrinas do Esclavagismo edo Colonialismo, as doutrinas dominadas do Anti-Esclavagismoe denúncia moral do Colonialismo, etc.).

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A Herança dos Descobrimentos

2. A Estrutura Funcional da Cultura Discursivados Descobrimentos Portugueses

As formas e produtos da linguagem e do pensamento, isto é,a Cultura Discursiva (um dos polos condutores do campo simbólicodo humano a que chamamos Cultura e onde o outro grande polocondutor é desempenhado pelas formas de vida ou CulturaComportamental) dos Descobrimentos Portugueses apresentauma morfologia situada, mas não isolada ou sitiada. A CulturaDiscursiva dos Descobrimentos é uma autonomia parcial einterdependente, uma zona local em regime de trocas porosascom o todo global da Tela Cultural do Renascimento Português.

A Cultura dos Descobrimentos é o terceiro grande dinamismoda Cultura Renascentista Nacional. Dinamismo secundário que ébem mais influenciado que influenciador das hegemonias culturaisda época: a Escolástica e o Humanismo (3). A Cultura dosDescobrimentos vive mais em estreito contacto com oHumanismo, originando assim um regime sistemático deencontros-trocas e em apenas ocasional e fragmentário contactocom a Escolástica.

A Cultura dos Descobrimentos possui uma zona nuclear deproduções de conhecimento objectivo-verdadeiro e uma zonaperiférica de saber subjectivo valorativo. A periferia forma o lugarde cruzamento da Cultura dos Descobrimentos com formulaçõesculturais sobre os Descobrimentos, marcando, assim, o compassotransitivo da mesma com as hegemonias, em especial, aHumanista.

O nuclear da Cultura dos Descobrimentos apresentadiferentes graus e tipos de pureza e realização do conhecimentoobjectivo-verdadeiro desde um centro do núcleo até uma margemdistanciada do mesmo que se aproxima da periferia.

O centro da zona nuclear é um composto de formas deconhecimento técnico-prático. Este composto resulta do encontrode estudos de astronomia náutica (os Livros de Marinharia e,secundariamente os Roteiros) com estudos de cartografia e deconstrução naval. Este conjunto problemático classificável comoMarinharia (saber objectivo e útil directamente articulado com omar) encontra a sua característica máxima na dimensão prático-utilitária dos seus conhecimentos.

O campo técnico-prático cumpre e esgota a sua funçãocultural ao assumir o objectivo de resposta, o mais imediata eválida, aos obstáculos naturais e instrumentais encontrados narealização de navegações transoceânicas.

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Caravela portuguesa do séc. XV

Este espaço imediato de Marinharia técnico-prática da Culturados Descobrimentos apresenta duas grandes constantes: a primeiraé a capacidade de adaptação, utilização e transformação criativasdo saber tradicional (manifesta, sobretudo, nos instrumentosnáuticos de orientação como a bússula, o quadrante, a balestilha,e, também nos tipos de construção naval). A segunda é anormalização e tipificação desses conhecimentos aplicados edesenvolvidos através da acentuação da ideia de ordem de talmodo que «este surto da Marinharia corresponde a umaracionalização dum sem número de comportamentos empíricos,um disciplinar de procedimentos e instrumentos de modo atranscender o mundo do mais ou menos através dum universo daregra e precisão que descobre e limita o erro com uma nova emais verdade» (4).

A ordenação é uma regularização racional e necessária dosaber tradicional-empírico de modo a conseguir umaestandartização das soluções e respostas técnico-práticas. Estasregularidades gerais possibilitam uma ampla formação de quadrossem afectação do essencial operatório deste espaço do saber.Trata-se de ordenar o saber empírico de forma a potenciar eaproveitar, em todos os planos, as suas possibilidades e utilidadesdum modo mais vasto, rápido e preciso.

O segundo campo do núcleo da Cultura dos Descobrimentosé a Sabedoria do Mar. Este espaço teórico-crítico é formado poruma componente, essencial, da Sabedoria do Mar comoMarinharia e por uma componente secundária, quer em termosquantitativos quer em termos de função no todo do sistema cultural,de Sabedoria do Mar como Matéria Médica. Ambas as dimensõesda Sabedoria do Mar desempenham igual função cultural porquese afirmam como exploração teórica de problemas deixados emaberto (ou nem sequer abordados) ao nível imediato / empírico.

Esta função embora patente na Matéria Médica torna-serealidade e realização plenas na Sabedoria do Mar comoMarinharia que prolonga, sob uma perspectiva de investigaçãoteórico-crítica, o complexo problemático nuclear de AstronomiaNáutica, Cartografia e Construção Naval. São, então, teorizados,isto é, investigados crítica e sistematicamente, questões ouaspectos problemáticos silenciados ou imediatamentesimplificados no campo técnico-prático (casos da declinaçãomagnética da agulha de marear, da teoria das marés, da proporçãono Globo entre terra e mar, etc. (5).

A Sabedoria do Mar é uma interrogação crítica daspotencialidades problemáticas contidas, sob a forma latente, nocampo informativo imediato. Esta interrogação na Sabedoria do

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Mar / Marinharia apresenta uma luta secular entre dois tipos deprogramas de conhecimento: o empirismo sensorial eracionalismo experiencial. A controvérsia entre estes doisprogramas marca o combate pelo domínio teórico-científico detoda a problemática da Marinharia na Cultura dos Descobrimentose os seus resultados formam um dos elementos decisivos nomarcar, na mais longa duração, do estatuto e caminhos dacientificidade em Portugal (6).

A Sabedoria do Mar, para além de representar o ponto máximode encontro e actualidade entre os pensamentos científicos etécnicos produzidos em Portugal e na restante Europa vanguardista,apresenta ainda uma profunda dimensão de filosofia da ciênciaque através de interrogações em torno das vias e provas do saber,do estatuto de verdade e da articulação entre a tradição e a inovaçãoproduz assinaláveis contributos para os problemas da indução/dedução, teoria do erro e especialização problemático-disciplinar.

A utilização dos termos ciência, filosofia, técnica mesmo queem absoluto sistema de porosos vasos comunicantes correspondejá a uma tradução simplificante da morfologia discursiva em causa.

O termo sabedoria é propositadamente escolhido para dara dimensão sincrética, em tensão não resolvida de identidadee diferença, que encontramos na lógica discursiva da sabedoriado mar.

Trata-se dum pensamento científico renascentista, algo quena classificativa epocal se enuncia pelo termo «filosofia natural»e que corresponde a uma criação de cientificidade e deinstrumental técnico tanto quanto a uma interrogação críticasobre os fundamentos e limites dessa mesma racionalidade,uma inquietação metodológica sobre o ser e o fazer dacientificidade que hoje classificamos por filosofia da ciência masque, na ordem discursiva do saber verdadeiro renascentistaacompanha a par e passo o próprio ser interior da linguagem edo pensamento científicos.

A Sabedoria do Mar enquanto máxima realização teórico-científica do pensamento renascentista português tende,frequentemente, a ser usada como pretexto anacrónico, armaideológica de modernizações que falsificam o sentido dosenunciados quinhentistas. A Sabedoria do Mar é uma notávelcriação mas, um produto interno à prosa do mundo, à ontologia eepistemologia coordenadas, e muitas vezes, mesmo,determinadas, pelo paradigma orgânico-qualitativo da racionalidadevencida ao longo do século XVII quando for estabelecido umvitorioso paradigma mecânico-quantitativo. O Aristotelismorepresenta o centro referencial por excelência do pensamento

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Caravela redonda (séc. XVI)

verdadeiro da Cultura dos Descobrimentos. Trata-se dumaristotelismo naturalista que existe em condição sincrética nãoapenas com as outras grandes figuras fundadoras da ideia orgânicade mundo (casos de Ptolomeu e Galeno) como, mesmo, comoutras figuras concorrenciais externas (caso, sobretudo, noracionalismo da Sabedoria do Mar como Marinharia, deArquimedes que, no entanto, surge sempre numa posiçãodominada e integrada pelo Aristotelismo).

O peso coordenador do Aristotelismo no quadro dacientificidade Renascentista dos Descobrimentos Portugueses (e,com especial força potenciadora e limite criativo na Sabedoria doMar) nasce, antes de mais, da dimensão ontológica. A ideiafundadora de mundo tanto da Marinharia como da Matéria Médica(mas, também, da História Natural, da Antropologia-Geografia,etc.) vive da e na teoria organicista. A dominação da ideia orgânicaleva a uma física qualitativa à base das composições nascidas dojogo dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo), a uma qualitativaastronomia dividida entre o mundo elementar e o mundo celestialdo quinto elemento que é o éter, a uma medicina fundada nosquatro humores (sangue, bilis amarela, bilis negra e pituita) emtoda uma história natural e matéria médica que operam com asquatro qualidades e graus associadas ao elemento chave (calor,frio, humanidade e secura).

A ontologia do mundo orgânico-qualitativo com os seusgrandes pais referenciais (Aristóteles, Ptolomeu e Galeno) é agrande casa do saber habitada pela cientificidade dosDescobrimentos Renascentistas Portugueses.

Este quadro é o dinamismo potenciador da racionalidadeda Sabedoria do Mar, mas, constitui, ao mesmo tempo, o seuhorizonte limitador de invenção intelectual. A Sabedoria do Maré um conjunto crítico e criativo interno à ordem do aristotelismonaturalista do Renascimento, as suas conquistas e as suasaporias atestam a validade e o limite da última idade do mundoqualitativo.

O terceiro campo da zona nuclear da Cultura dosDescobrimentos é o da Antropologia-Geografia Colonial. Esteespaço é o de uma objectividade (votada, acentuadamente, paraa realidade humana) em regime de transição para aracionalidade subjectiva e valorativa. Isto implica que aAntropologia-Geografia Colonial seja o lugar onde acaba onúcleo e começa a periferia, onde se conjugam maisintensamente os encontros, as porosidades e as sincretizaçõesentre as racionalidades do tipo objectivo-verdadeiro e do tiposubjectivo-valorativo.

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Podemos apresentar o fenómeno de comunicaçãointercivilizacional dos Descobrimentos através do seguinte modelogenérico de comunicação:

Toda e qualquer civilização, sociedade, cultura, etc., emqualquer localização espacio-temporal é, ao mesmo tempo,emissor e receptor de infinitos e diversos sinais vitais humanos.Estes sinais tornam-se mensagem, processo comunicativo,quando um determinado emissor encontra um receptorcompetente, isto é, quando entre ambos se fabrica um códigocomum, ou seja, uma certa modalidade de tradução representativaque funda um ciclo de trocas (in)formativas da fonte ao destino.

A função cultural da Antropologia-Geografia Colonial encontra-se na fabricação deste código que possibilita a mensagem.Fabricação realizada na medida do epocalmente possível, noquadro dos instrumentos conceptuais então existentes e que sãoe serão regulados até ao século XVIII pela ideia e ideal religioso (areligião é o bilhete de identidade civilizacional do Renascimento).

O português dos séculos XV e XVI possui, como todos oscristãos da época, uma antropologia essencialmente apriorísticae filosófico-doutrinária. Este quadro operatório assente nasinformações e teorias herdadas da antiguidade clássica grego-latina e da medievalidade cristã possui uma representação degentio, bárbaro, homem, polícia, etc, que se vai mostrar bastantepouco válida frente á explosão planetária, porque informativamente

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A América do Sul, segundo a carta de Desceslliers (1546).

imprecisa e errada e explicativamente superficial. A Antropologia-Geografia Colonial dos Descobrimentos Portugueses é, acima detudo, a imensa explosão informativa sobre o homem todo e todosos homens. A cristandade europeia recebe, a partir dos nossosmissionários, colonos, funcionários, viajantes, etc, umpormenorizado, correcto e actualizado álbum de fotografias ereportagens sobre a identidade e a diferença civilizacionais emÁfrica, Ásia, América e Oceânia. A Antropologia-Geografia Colonialnão se reduz, contudo, a esta revolução informativa sobre ahumanidade, afirmando-se também, como inquietação formulativa-conceptual em torno das categorias antropológicas tradicionais.

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A racionalidade antropológica da Cultura dos DescobrimentosPortugueses, como a de todas as culturas renascentistas vivenuma ordem-prisão valorativa em que o Outro Civilizacional tendea ser mais uma falha ou falta do Mesmo que uma diferença abertae aceite (7). O esforço, pontual e parcial, para superar estas aporiastradicionais na intelegibilidade do humano é um dos problemasmais ricos na Cultura dos Descobrimentos Portugueses e umdos marcos de afirmação planetária da Cultura Europeia-Cristã.

O pensamento geográfico-antropológico do clima epocalrenascentista vive numa ordem prisão de qualitativas analogias evalorações centradas nos tópicos da religiosidade (cristão versusmouro, cristão frente ou contra gentilidade) e da hierarquia > / <desenvolvimento (polícia versus bárbaro) a todos os níveis da vidamaterial e espiritual.

A Cultura dos Descobrimentos aparece através deste imensocampo discursivo como um valioso contributo para o fazer (que éum constante e eterno refazer) da descrição, classificação eaceitação da diferença civilizacional. Trabalho objectivo e subjectivoda mais longa duração em que a expansão europeia-cristã é, aomesmo tempo, fundação e obstáculo do saber, fundação eobstáculo do saber antropológico.

O epocalmente dominante no perspectivar do outrocivilizacional e que constitui regra tanto para o cristão como parao islâmico ou chinês, é a atitude da centração. O outro sofre aredução pela integração (o gentio brasileiro é visto como aprimitividade do homem ou do cristianismo enquanto que o gentiochinês é visto como desenvolvido por ter sido aculturado peloimpério romano...) ou a radical expulsão-desvalorização (o mouroé o anti-mundo do cristão e vice-versa) sendo frequentes ascombinações destas duas modalidades que são base de realizaçãoda inteligibilidade antropológica do séc. XVI.

A dominância da centração funciona através dum quadroreferencial de valores próprios, tanto materiais como espirituais,que se utiliza como gramática da semelhança e diferença parasituar o homem outro e, assim, ensaiar a sua possível compreensãoe apreensão enquanto realidade humana, paradoxalmente, tãopróxima quanto distante, tão afim quanto diversa e contrária.

A construção fundamentada da centração e o caminhar dacentração para as primeiras categorias da descentração é ohorizonte de invenção e limite do campo geográfico-antropológicoda Cultura dos Descobrimentos Portugueses.

O quarto campo, espaço de periferia transitiva entre a Culturados e sobre os Descobrimentos, é o espaço doutrinário-ideológico.Este campo doutrinário-ideológico existe em estreita e directa

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Grande nau portuguesa do séc. XVI

correlação com a Antropologia-Geografia Colonial, fornecendo-lhebases seguras e úteis de representação e explicação da vidahumana ou, mais frequentemente, alicerçando as suas aporiastradicionais em sistemas valorativos de implicação política queformam obstáculos de peso ao desenvolvimento da objectiva enatural racionalidade humana.

A constante ideológica dominante, dum modo esmagador,apresenta uma leitura teológico-transcendental dosDescobrimentos. O fenómeno de expansão planetária é pensadocomo absoluta redução à Cidade de Deus, sendo os portugueseso instrumento de acção divina no Mundo.

A descoberta da pluralidade e diferença civilizacional érepresentada pela ideologia dominante como uma afirmaçãoradical da unidade e identidade. O máximo de humanidade é vistocomo o limite da unanimidade em que a Cidade de Deus cristãvence, finalmente, as figuras de anti-Deus.

Ligado, directa ou indirectamente, a este tópico que traduzuma espécie de contrato entre Deus e Portugal (regra geralcelebrado por um herói individual, sendo o caso mais famoso oInfante D. Henrique) encontra-se a constante, tambémdominante, do valor positivo dos Descobrimentos enquantodemonstração da força militar e política de Portugal e daCristandade.

É no tópico da novidade, a terceira grande constantedominante da ideologia da Cultura dos Descobrimentos, que surgeuma duplicidade valorativa. Enquanto as dimensões religiosa emilitar são quase indiscutíveis a novidade torna-se polo deinterrogação crítica e de divisão em pró e contra.

A novidade a nível intelectual é aceite como algo positivono fenómeno de expansão planetária enquanto que o centromotor da negatividade se instala na novidade a nível vital.

A ideologia dominante constrói uma paisagem denunciadorados males morais trazidos ou nascidos com os Descobrimentos.Essas denúncias vão desde o estremecer da estrutura senhorial(novos valores de riqueza e posição social) até ao trabalhotransferido e perdido no próprio Portugal passando peloscomportamentos vitais menos concordantes com a ordemtradicional (8). Tal como os restantes campos da Cultura dosDescobrimentos, o doutrinário-ideológico guarda um significadoda mais longa duração nos caminhos das ideias em Portugal.A representação do lugar de Portugal na Europa e no Mundocriado pela ideologia dominante da Cultura dos Descobrimentosvai marcar e abastecer, transsecularmente, a representaçãoideológica nacional.

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Os Descobrimentos, ao longo dos finais do século XV einícios do XVI, são ideologicamente pintados como um feito nãoapenas nacional, mas de toda a Europa-Cristandade. A partirdos anos de 1520-1530, a regra é já a de iluminar o vector nacionalem contraposição com a Europa. A pouco e pouco torna-sedominante a ideia de que a Europa é um caos dividido por conflitosreligiosos, políticos, etc. que apenas levam à indecisão e aoafastamento frente à marca essencial da sua unidade e identidadeque é a Cristandade.

Neste quadro ideológico Portugal é cada vez mais a excepçãoda Europa que verdadeiramente realiza os ideais fundamentaisda mesma, tanto no campo religioso como no político. Esta ideiadominante de separação, na representação do imaginárioideológico, entre os caminhos de Portugal e da restante Europacristã-ocidental, é legitimada até aos finais do século XVI por umcomplexo de superioridade e, a partir do XVII até aos nossosdias, por um complexo de inferioridade. O Portugal não confundidocom a Europa é um dos pontos chave da ideologia dosDescobrimentos e um dos elementos centrais na herança dosmesmos (elemento ideológico mais inconsciente que consciente,formador do centro problemático da superioridade ideal-imperialtanto quanto do da inferioridade decadentista).

Portugal no e com o Mundo é, na ideologia dominantenascida com os Descobrimentos, a face oposta ao Portugal sema Europa. Também este lado do quadro ideológico teve umaimensa exploração ideológica nos séculos posteriores àexpansão planetária.

A Cultura dos Descobrimentos que acabamos de inventariardum modo sintético nas suas figuras essenciais é a criação maisprofunda da vida portuguesa.

É, antes de mais, uma cultura de pluralidade planetária querealiza um diálogo e um encontro (em diferentes formas dedesigualdade e igualdade) entre os Mundos do Mundo. Estamissão de mensageiro planetário faz da Cultura dosDescobrimentos Portugueses a primeira forma cultural universale o primeiro instrumento de saber e de poder mundiais criadopela civilização europeia-cristã.

A dimensão pluricivilizacional é a primeira grandecaracterística da herança dos Descobrimentos. Esta condiçãode descentração espacial e de contaminação intercivilizacionalnascida dos Descobrimentos é um dos traços herdados com maispotencialidades de exploração cultural.

Em termos temporais, a Cultura dos Descobrimentos, atravésda sua herança, marcou e marca os destinos da realidade e da

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A Herança dos Descobrimentos

Caravela do séc. XVI

representação imaginária do tecido socio-cultural nacional (e, emmenor escala, internacional).

Hoje, nos finais do século XX, uma das prioridades culturaisque se colocam à investigação das Ciências do Homem emPortugal, encontra-se na Herança dos Descobrimentos. A imensariqueza cultural deste espaço já começou, rigorosamente, a serinvestigada, mas apenas, uma parte menor, dos campos técnicoe científico é devidamente conhecida, encontrando-se os terrenosfilosófico, doutrinário, antropológico, comportamental, etc., numquase grau zero de conhecimento válido.

A Herança dos Descobrimentos é o mais fértil e aberto humuspara as aventuras das ciências culturais. Oxalá o panorama dainvestigação em Portugal saiba compreender a importância doque está em jogo na questão do conhecimento verdadeiro esistemático da Cultura dos Descobrimentos.

Notas:

(1) Para uma visão global da Cultura dos Descobrimentos Portugueses,veja-se: Barreto, Luís Filipe – Os Descobrimentos e a Ordem do Saber,Lisboa, 1987; Dias, J. S. Silva – Os Descobrimentos e a Problemática Culturaldo séc. XVI, 2.ª ed., Lisboa, 1983 e Matos, Luís de – Os DescobrimentosPortugueses, O Começo da Cultura Moderna, Inovação e Mudança IN Vários,Reflexões sobre a História e Cultura Portuguesa, Lisboa, 1985, p. 75 a 134.

(2) A. Teixeira da Mota – Os Descobrimentos Portugueses: a Invençãoe a Representação IN Vários-Reflexões sobre História e Cultura Portuguesa,Lisboa, 1985, p. 51.

(3) Para uma imagem breve das linhas de força e situações chave daCultura Renascentista Portuguesa, veja-se Dias, J. S. Silva – Camões noPortugal de Quinhentos, Lisboa, 1981, p. 9 a 37.

(4) Luís Filipe Barreto – Caminhos do Saber no RenascimentoPortuguês: Estudos de História e Teoria da Cultura, Lisboa, 1986, p. 20.

(5) Veja-se, Albuquerque, Luís de – Ciência e Experiência nosDescobrimentos Portugueses, Lisboa, 1983; Barreto, Luís Filipe – Caminhosdo Saber no Renascimento Português, Lisboa, 1986 e Randles, W. G. L. – DeIa Terre Plate Au Globe Terrestre: Une Mutation Epistemologique Rápide1480-1520, Paris, 1980.

(6) Sobre a Lógica da Controvérsia na Sabedoria do Mar, veja-se,Barreto, Luís Filipe – Os Descobrimentos e a Ordem do Saber – Uma AnáliseSociocultural, Lisboa, 1987, p. 55 a 97 e Introdução à Sabedoria do Mar INCultura, História e Filosofia, vol. V, Lisboa, 1986, p. 401- 438.

(7) Sobre os caminhos da Antropologia Colonial nos DescobrimentosPortugueses, veja-se Barreto, Luís Filipe – Descobrimentos e Renascimento:Formas de Ser e Pensar nos Séculos XV e XVI, 2.ª ed. Lisboa, 1983, p. 51 a184 e Caminhos do Saber no Renascimento Português: Estudos de Históriae Teoria da Cultura, Lisboa, 1986, p. 24 a 26 e 192 a 201.

(8) Veja-se, Luís Filipe Barreto – Os Descobrimentos e a Ordem doSaber, Lisboa, 1987, p. 37 a 43.