a harpia q salta da folha em branco- angústia de escrever

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a respeito da angústia de escrever e as possíveis saídas para umsujeito poder superá-la. Para tal fim, trilharemos o percurso de primeiramente delinear o conceito de angústiapara a psicanálise de orientação lacaniana e, tomando como referência a nossa experiência, tecer algumasconsiderações a respeito do tema.

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  • A Harpia que salta da folha em branco: angstia de escrever. Como enfrentar a angstia frente necessidade e a impossibilidade de dizer?

    Emari Andrade Mariana Ribeiro

    No presente trabalho, desejamos discorrer a respeito da angstia de escrever e as possveis sadas para um sujeito poder super-la. Para tal fim, trilharemos o percurso de primeiramente delinear o conceito de angstia para a psicanlise de orientao lacaniana e, tomando como referncia a nossa experincia, tecer algumas consideraes a respeito do tema.

    importante salientar que no daremos solues cmodas para a angstia, que nos levem a deitar em verdes pastos, muito ao contrrio, neste livro que toma como tema O inferno da escrita, nosso objetivo muito mais acentuar essa angstia de escrever do que trazer algum conforto, pois, se assim o fosse, estaramos escrevendo falaciosamente.

    Para intitular nosso artigo como A Harpia que salta da folha em branco: angstia de escrever, recorremos figura mtica da Harpia, resgatando a passagem de Dante Alighieri, no segundo recinto, do crculo stimo do Inferno, onde so punidos aqueles que cometeram violncia contra si. Nesta passagem, Virglio e o prprio Dante passam pela floresta das Harpias, onde os suicidas so transformados em rvores. Estes ficam neste estgio intermedirio para sempre, enquanto as Harpias os atordoam com seus terrveis gritos e os ferem constantemente.

    Transcrevemos, no que se segue, a passagem que descreve a floresta das harpias, para que se tenha uma noo desse cenrio tenebroso e angustiante:

    Nesso ainda no chegara outra margem quando adentramos uma floresta de tal modo

    espessa que por trilha alguma era cortada. Sua fronde no era verde, mas escura; no eram lisos seus ramos, e sim nodosos, e deles pendiam, em lugar de frutos, farpas venenosas

    (...). Das Harpias o bando aqui pousava, que expeliram de Estrfade os troianos, vaticiando o mal, que os aguardava. Asas tm largas, colo e rosto humanos, garras nos ps, plumoso o

    ventre enorme, soam na selva os uivos insanos. (ALIGIERI, Dante. Canto XIII).

    Assim como Dante e Virglio tiveram de atravessar a floresta das Harpias, assim tambm todos ns que escrevemos temos de atravessar a floresta da angstia, enfrentando aquilo que salta da pgina em branco, o medo, insegurana de no ser entendido, a nossa ignorncia, enfim, qualquer coisa que nos incomoda e nos paralisa frente necessidade de dizer. Mas, no que consiste a angstia?

  • No seminrio 10 (1962-1963), dedicado especificamente ao tema, Lacan define a angstia como um afeto, no sentido de algo que afeta o sujeito, perturba-o na dimenso do movimento, transtorna-o, assusta-o. Isso porque a angstia introduz em ns a funo da falta. Quando ocorre algo que no somos capazes de entender, quando ficamos boquiabertos diante de algo, quando o que se chama na psicanlise de objeto a aparece, que seria a dimenso do significante que se perdeu na constituio do sujeito e que nunca mais teremos como recuper-lo, a angstia aparece. Portanto, ela aparece justamente quando ficamos expostos a uma falta, que constitutiva a todo o ser humano.

    Mas se, como disse, a angstia algo que todos ns passamos, podemos nos perguntar: angustiar-se do bem ou do mal? A resposta para a pergunta vai depender da nossa prpria resposta frente aquilo que nos angustia. Por exemplo, quando estamos muito angustiados, tendemos a pegar a primeira soluo pronta que aparece na frente para nos livrarmos dela. No processo de escrita, quando estamos frente necessidade de escrever, alguns podem plagiar, pagar para outros escreverem seus textos, ou copiar e colar vrios excertos e forjar um texto.

    Outros podem chorar, desenvolver doenas, dor de cabea, perder arquivos do computar, enfim, a lista grande de desculpas que podemos arrumar para no enfrentar a travessia da floresta da angstia. Contudo, quanto mais queremos tamponar a angstia, mais ela fica maior, aumenta e gera outras dores. Por exemplo, quando esquecemos de gravar um arquivo de um texto, pior ficaremos, e cada vez mais nos sentiremos pior que uma lagartixa. que o que acontece quando algum tenta se livrar da angstia por meio da bebida, momentaneamente pode esquecer dos seus problemas, mas, logo voltaro... E mais bebida, desencadeando assim um crculo vicioso.

    Mas por que escrever angustia? Dizemos que escrever angustia porque, em qualquer processo criativo que eu

    queira fazer, se deve levar em conta suportar a prpria angstia, o que significa suportar a prpria ignorncia, no somente para si mesmo como tambm diante dos outros, porque a gente supe que quando escrevemos o nosso texto vai circular socialmente, os outros vo ler e o que ser que vo pensar?

    Suportar as Harpias que gritam a todo o momento e que saltam da pgina em branco sempre que voc tem uma idia legal e tenta simboliz-la um inferno! Mas preciso para que uma produo se concretize. Ento, a angstia do bem quando essa falta aparece e a gente no tenta tampon-la, mas, reconhecendo sua existncia, trabalhamos para dar uma resposta criativa para essa angstia.

    Quanto mais nos aproximamos de nossa ignorncia, daquilo que no sabemos, mais trabalharemos para superar essa ignorncia, mesmo sabendo que nunca poderemos preench-la. Por isso, que escrevemos um artigo, depois estudamos mais um pouco, mudamos de idia, escrevemos outro, e assim por diante.

    Portanto, a angstia a mola propulsora para a criao. Sem ela, ficaramos na inrcia, no haveria ato criativo. Pois se essa falta no aparecesse, ficaramos sempre no mesmo lugar, j que tudo se sabe, tudo j foi escrito...

  • Ento, possvel dizer que s pode haver produo de algo novo quando este precedido pela superao da angstia inerente ao ato de criar. Fazer a travessia daquilo que Lacan nomeia como a floresta da angstia demanda poder suportar a possibilidade do prprio sucesso. Se, em um primeiro momento, pode soar estranho a frase algum no gostar do sucesso, ao voltar ao ensinamento de Freud (1920) a respeito da inexorabilidade da pulso de morte, pode-se entender que no fcil para um sujeito sair da lgica do automatismo da repetio, lgica esta que o mantm na inrcia.

    Em um estudo intitulado dio ao Sucesso, o psicanalista Jorge Forbes (2005) discorre a respeito das dificuldades (imaginrias) que um sujeito deve superar para autorizar-se a fazer sucesso. Trata-se de duas ordens de fenmenos. No pblico de quem faz sucesso gera-se um incmodo advindo da percepo da possibilidade de sair do lugar comum, da mesmice de cada dia.

    J para quem faz sucesso, o desconforto se d porque o sucesso gera uma crise de identidade, originada quando ele se destaca das demais pessoas do seu grupo, da sua comunidade. Assim sendo, paradoxalmente, um sujeito entra em crise ao ser bem sucedido. Tal fato ocorre porque a identidade humana se estrutura na relao com o outro, o que leva muitas pessoas a criarem mscaras para disfarar o sucesso.

    Para concluir seu estudo, o psicanalista afirma que, ao contrrio do que se pensa, chegar ao sucesso um problema. Suport-lo um problema muito maior, pois exige que a pessoa passe a estruturar sua identidade independente do olhar do outro. Este o nico caminho possvel de ser trilhado por todo aquele que ambiciona sustentar uma produo em nome prprio.

    Trata-se de, ao mesmo tempo, incluir o semelhante (todo artista precisa de um pblico) e inventar um modo para driblar suas expectativas. Quem continua estruturando sua identidade a partir do olhar do outro enfrenta a conseqncia de passar pela vida, mas sem nunca ter deixado nela uma marca qualquer de seu desejo e, o pior, arca com a frustrao de nunca ter agradado a todo mundo.

    De fato, angustiante. Com relao ao momento de deciso de realizar um ato criativo, que nos leve a sair de uma posio confortvel, cito Pommier (1992: 183), pois creio que suas palavras expressam exatamente o que todos ns sentimos:

    O ato quebra a rotina, conhecimento mortal. Quem inverte de uma ou de outra maneira o curso de sua existncia, ou estabelece as condies de uma nova escolha, sem dvida o faz na esperana de dar uma nova base a sua fantasia. Entretanto, no breve instante que precede essa nova disposio, conhece a angstia, um des-ser mortal que o sinal de seu ato, a prova incomunicvel de sua existncia.

  • Especificamente no meu caso, agora comeo meu relato de experincia, o perodo mais angustiante (e est sendo) ao longo da lida com os dados da minha pesquisa. Em especial, na tentativa de sistematizar os dados de Bridget Jones, pseudnimo que eu adotei para chamar uma das duas informantes da minha pesquisa, em que eu analiso a tessitura do texto acadmico.

    Chegar a tal concluso no foi fcil, reconhec-la foi um passo ainda mais demorado. Este passo tornou-se possvel somente depois de conversas e mais conversas com minha orientadora. Interrogar o sentimento de angstia que me paralisava frente aos dados desta informante tornou-se um passo importante para a realizao da pesquisa em si. A partir deste exerccio, posso dizer que, para mim, foi e extremamente desconfortvel lidar com pilhas e pilhas de papel que Bridget me entregava sem, contudo, conseguir dar um pouco que seja de organizao a esse mundo desordenado das idias.

    Lidar com uma rede de significantes relativamente organizada no coloca dificuldades acentuadas ao pesquisador. J empreender um esforo analtico em um material que parece transcender a qualquer ordem demanda outro tipo de esforo. Esse horror advinha principalmente porque no meio desses rascunhos, possvel encontrar de tudo: receitas mdicas, papis de po com anotaes diversas, passagens de nibus, desde contas mensais quanto letras de msicas e, na minha opinio, o mais assustador: vrios e vrios bilhetes que a informante escrevia para si mesma tentando organizar a sua prpria baguna, como: texto no enumerao, um encadeamento de enunciados..., ou nunca mais deixar bilhetes nos captulos, etc.

    Com relao aos arquivos digitalizados, eram vrios e vrios disquetes e cds que me entregava. Dentro de cada um desses materiais, encontram-se vrios arquivos dos mesmos captulos, vrias pastas como Captulo 02 final, Final captulo 02, ltimo Captulo 02, enfim, o seu destrambelhamento era tal que me assustava e assusta muito. Concluso: tudo aquilo me causava horror e eu me angustiava por no conseguir tocar e olhar bem de perto para aquele amontoado de papel.

    Pensando nos motivos de minha angstia, descobri que ela se dava porque no conseguia expressar em palavras aquilo que parecia ter lgica, ou seja, os textos de Bridget. Isso porque, nos dados que recolhi desta informante, a rede significante se desfaz a cada instante para se refazer mais a frente. Por esta razo, um prximo passo para a pesquisa foi enfrentar aqueles dados e encontrar um modo por meio do qual eu como pesquisadora conseguisse superar a angstia e encontrar um modo de lidar com o corpus que tinha em mos.

    Assim sendo, o passo necessrio para sair dessa angstia foi mudar minha posio frente aos dados desta informante em questo e convencer-me profundamente de que no poderia e no poderei reconstruir toda uma rede significante num lugar onde ela no se constituiu, ou se constituiu de modo to tnue que se desfaz facilmente.

  • Tratou-se, portanto, por parte do pesquisador, do exerccio imprescindvel de lidar com a prpria castrao. Desde ao modo, ao invs de querer reconstruir totalmente o percurso de Bridget, decidi por mostrar como a informante foi, paulatinamente, aprendendo a escrever a partir do momento em que escrevia sua dissertao.

    Portanto, o que eu creio que essencial para algum superar a angstia de escrever , admitindo sua prpria ignorncia, no d-la ao outro, mas reconhecendo que, como diz na Bblia, tu s p e ao p voltars, cada um construir uma forma criativa para lidar com essa angstia.

    Para terminar, leio as palavras de Pommier (traduo de Marie Tedeschi Conforti), pois creio que expressam bem o sentimento de todos ns ao tentar pela floresta angustiante da pgina em branco.

    Na maior parte das vezes, minha mo me obedece. No obstante, a mestria sobre as formas que trao usualmente me escapa quando escrevo. Relendo minhas notas, e pensando no que queria exprimir, me descubro freqentemente em falta, se no de ortografia, pelo menos de estilo ou legibilidade. Teria eu verdadeiramente escrito para ser lido? A quem se endeream os rabiscos feitos na margem de um pedao de papel, rabiscados quando as idias se apressam e devem ser anotadas antes de desaparecer? Desse modo, o lugar de onde vem a minha escrita o que primeiramente me escapa no momento de interrogar sobre a origem da escrita. A aprendizagem escolar no caracteriza essa provenincia, e, quando me acontece no poder escrever, no graas a uma tcnica ensinada que consigo superar a angstia da folha em branco. Aquele que acabou de escrever capaz de dizer de onde procede aquilo que, na forma de suas letras, pertence exclusivamente a ele mesmo? Ele poder explicar facilmente o contedo, os pensamentos, as fices, as informaes comunicadas por seu texto, mas no dir nada sobre a origem de sua escrita, independentemente do que ela significa.

    Escrever , a CADA VEZ, reconhecer essa falta. a cada novo texto, passar novamente por essa angstia. Por ela existir estamos aqui neste dia, sabendo que a nica soluo possvel , se responsabilizando por aquilo que a gente no sabe, trabalhar muito para que nossas idias minimamente atinjam ao maior nmero de pessoas possveis, sabendo que, em se tratando da linguagem, nunca conseguiremos recobrir totalmente a rede significante.

    Referncias Bibliogrficas

    FORBES, Jorge. (2005) dio ao Sucesso. In: http://www.psicanaliselacaniana.com/ estudos/odio_ao_sucesso.html, capturado em 11/06/2007

  • LACAN, Jacques. (1962-63). O Seminrio. Livro 10: A Angstia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

    JONAS, Hans. (1979). O princpio responsabilidade: ensaio de uma tica para a civilizao tecnolgica. Traduo do original alemo Marijane Lisboa. Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006.

    POMMIER, Grard. O Desenlace de uma anlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.