a guerra e a paz - proudhon

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Capítulo VIIIGuerra e paz, expressões correlativas

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  • verve

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    A guerra e a paz

    a guerra e a paz1

    pierre-joseph proudhon

    Captulo VIII

    Guerra e paz, expresses correlativas

    Por que os homens deixariam de fazer a guerra, quando seu pensamento est repleto dela? Quando seu entendi-mento, sua imaginao, sua dialtica, sua indstria, sua reli-gio, suas artes, relacionam-se com ela, quando tudo, neles e em torno deles, oposio, contradio, antagonismo?

    Mas eis que, diante da guerra, ergue-se uma divindade no menos misteriosa, no menos venerada pelos mortais, a PAZ.

    A ideia de uma paz universal to velha na conscincia das naes, to categrica quanto a da guerra. Dessa con-cepo nasceu, em primeiro lugar, a fbula de Astreia,2 a virgem celeste, que voltou para os cus no 0m do reinado de Saturno, mas que um dia dever retornar. Ento, reina-r uma paz sem 0m, serena e pura, como a luz que ilumina os campos Elseos. a poca fatdica, em direo qual nos levam nossas aspiraes, e para a qual somos condu-

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    zidos, segundo alguns vaticinadores do progresso, pela natural inclinao dos acontecimentos. medida que o tempo corre, que a guerra grassa mais furiosamente e que se multiplica o horror do sculo de ferro, armorumque ingruit horror, como diz o poeta,3 a Paz torna-se a deusa preferida, enquanto passamos a detestar a Guerra, monstro infernal. em parte tendncia dos espritos para a paz, a essa antiga esperana de uma compresso das discrdias, que se deve o movimento messinico do qual Augusto foi o ator principal; Virglio, o cantor; o Evangelho, o cdigo; e Jesus Cristo, o Deus.

    O que existe de verdadeiro na intuio que, em cada grande crise da humanidade, os prognosticadores se orgu-lham de ver realizada?

    A guerra e a paz, que o vulgo imagina como dois es-tados de coisas excludentes, so as condies alternativas da vida dos povos. Eles evocam um ao outro, de0nem-se reciprocamente, completam-se e sustentam-se, como os termos universais mais adequados e inseparveis de uma antinomia. A paz demonstra e con0rma a guerra; a guerra, por sua vez, uma reivindicao da paz. o que a lenda messinica a0rma: o Paci!cador um conquistador, cujo reino se estabelece pelo triunfo. Mas no h vitria ltima nem paz de0nitiva at que aparea o Anti-Messias, cuja derrota, consumindo os tempos, servir de sinal ao mesmo tempo para o 0m das guerras e para o 0m do mundo.

    por essa razo que na histria vemos a guerra renascer incessantemente da prpria ideia que havia levado paz. Aps a batalha de Actium, proclama-se, acreditando-se acabar com ele, o imprio nico e universal. Augusto fe-cha o templo de Jano: o sinal das revoltas, das guerras

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    A guerra e a paz

    civis e das incurses dos brbaros, que assolam o imprio, esgotando-o e fazendo-o decair durante mais de 300 anos.

    Diocleciano, com uma grandeza de alma digna dos tempos antigos, busca novamente a paz na partilha: e durante a sua vida, os imperadores associados guerreiam para voltar unidade.

    Constantino tenta refundar essa unidade abraando o cristianismo: mas comeam ento as guerras entre a antiga e a nova religio, entre a ortodoxia e a heresia. E tudo isso perdura, e a guerra agrava-se at que o imprio, declarado inimigo de gnero humano, abolido, e a unidade dissolvida.

    Ento as nacionalidades, sacri0cadas por tanto tempo, so reformadas, rejuvenescidas pela f crist e pelo sangue brbaro, mas apenas para que logo recomece a carni0cina e o trabalho pelo extermnio mtuo.

    Cansados de guerra, voltam-se ideia de um imprio cristo: sela-se um pacto entre o papa e Carlos Magno. E, durante 500 anos, h combates pela interpretao desse pacto.4 Coisa terrvel!!! Foi depois do soberano ter sido declarado prncipe da paz que vimos os bispos, os abades, os religiosos serem tomados por um fervor guerreiro, en-dossarem a couraa e cingirem a espada, como se a paz, levada excessivamente a srio, tivesse sido um atentado religio, uma blasfmia contra o Cristo.

    Para salvar a f, comprometida na hostilidade universal, e reabrir uma porta para a paz, o que a sabedoria das na-es imaginou, ento? Separar os poderes, unidos de modo to infeliz. Mas isso s serve para tornar a tragdia ainda mais cruel. Mais que nunca, o cristianismo dilacera-se: Pio II, Aeneas Silvius, o mais prudente, o mais sbio, o mais

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    venerado dos pont0ces, no conseguiu reunir os prncipes cristos contra os Otomanos, isto o fez morrer de tristeza.5

    Todos proclamam: no so os turcos que dividem os povos, mas a Igreja. Nada de salvao, nada de paz para o mundo sem uma reforma! E, com o pretexto da reforma, as guerras de religio recomeam, logo seguidas das guerras po-lticas. Os sculos XVI, XVII e XVIII reverberam o ru-mor das armas. No tumulto, Grotius escreve seu tratado Sobre o Direito da Guerra e da Paz.6 Mas os acontecimen-tos transbordam: vem a Revoluo e o horrvel concerto eleva-se a um diapaso at ento desconhecido.

    Aqui, vamos parar um instante. O que foi, ou o que deveria ter sido a Revoluo?

    Como o cristianismo, o pacto de Carlos Magno e a Re-forma, a Revoluo deveria ser o 0m das guerras, a frater-nidade das naes, preparada por trs sculos de 0loso0a, literatura e arte. A Revoluo deveria signi0car a insurrei-o da razo contra a fora, do direito contra a conquista, dos trabalhos da paz contra as brutalidades da guerra. Mas, mal a Revoluo foi nomeada, a guerra retomou seu im-pulso. Nunca o mundo assistira a funerais como esses. Em menos de 25 anos, dez milhes de hstias humanas foram imoladas nessas lutas de gigantes.

    Finalmente, o mundo respira. Jurou-se uma paz sole-ne, um tratado de garantia mtua assinado entre os sobe-ranos. O gnio da guerra foi pregado num rochedo pela Santa Aliana. o sculo das instituies representativas e parlamentares: atravs de uma hbil combinao, a to-cha apagada da guerra custodiada pelos interesses que a execram. As maravilhas da indstria, o desenvolvimento do comrcio, o estudo de uma nova cincia, cincia pa-

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    A guerra e a paz

    c0ca, caso haja uma, a economia poltica, tudo entra em acordo para conduzir os espritos aos costumes da paz, para inspirar o horror pela carni0cina, para atacar a guerra em seu ideal. Organizaes pelo desarmamento formam-se simultaneamente na Inglaterra e na Amrica.

    A propaganda ganha o Velho Mundo. Realizam-se co-mcios, reunies em congressos, peties so endereadas a todos os governos. Catlicos, protestantes, quakers, destas, materialistas, competem em zlo para declarar que a guerra mpia, imoral:

    A guerra o assassinato; a guerra o roubo.

    o assassinato e o roubo ensinados e ordenados aos povos por seus governos.

    o assassinato, o roubo, aclamados, condecorados, digni0cados, coroados.

    o assassinato, o roubo, menos o castigo e a vergo-nha, mais a impunidade e a glria.

    o assassinato, o roubo, salvos da forca pelo arco do triunfo.

    a inconsequncia legal, pois a sociedade ordenando o que ela probe, e proibindo o que ordena; recompensan-do o que pune e punindo o que recompensa; glori0cando o que esmaga e esmagando o que glori0ca; o fato perma-nece o mesmo, s o nome diferente.7

    Como no tempo do nascimento de Cristo, um morno z0ro corre sobre a humanidade, pax hominibus. No Con-gresso da Paz realizado em Paris, em 1849, o Sr. Abade Deguerry e o pastor A. Coquerel do-se as mos, smbolo das duas Igrejas, a catlica e a reformada, operando sua

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    reconciliao num concordante antema guerra.8 Uma vida de riqueza e felicidade sem 0m parece estar se abrin-do; por qual fatal inKuncia ela se tornou uma era de dis-trbios e discrdia?

    O que comprometeu a paz de Viena foi a prpria paz, ou seja, as ideias que ela expressava e que podem ser todas reduzidas a um termo nico, o estabelecimento das monar-quias constitucionais.9 Como elementos e como sintomas de uma conKagrao futura, j se observam nos 45 anos desde os tratados de Viena, o carbonarismo italiano, o li-beralismo dos 15 anos,10 o doutrinarismo,11 o socialismo resultante da Revoluo de Julho, a guerra da Espanha, a guerra da Grcia, a insurreio da Polnia, a separa-o da Blgica, a ocupao de Ancona, o abalo de 1840 por ocasio das questes do Oriente, o Sonderbund, os massacres da Galcia, a Revoluo de 1848, o movimento unitrio, na ustria e na Alemanha, contrariado pela in-surreio hngara e a resistncia da Dinamarca, a guerra de Novara, a expedio de Roma, as duas campanhas da Crimeia e da Lombardia, o fracasso do papado, a unida-de da Itlia, a emancipao dos camponeses na Rssia, sem contar as pequenas guerras da Arglia, da Cabilia, do Marrocos, do Cucaso, da China e da ndia.

    Toda a Europa, h 14 anos, encontra-se sob as armas: mas em vez do fervor guerreiro esfriar, a bravura aumentou nos exrcitos. O entusiasmo das populaes encontra-se no auge. No entanto, nunca existiu tanta gentileza nos costumes, um maior desprezo pela glria, menos sede de conquista. Nunca os militares se mostraram to humanos, animados pelos sentimentos mais cavalheirescos. Por qual inconce-bvel frenesi as naes que se estimam, que se honram, foram levadas a combater entre si?

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    A guerra e a paz

    Talvez se objete que, se os interesses tivessem sido con-sultados, as resolues pac0cas teriam levado a melhor. A experincia desmente tal suposio. Os tericos do regime constitucional orgulhavam-se de que o meio de afastar a guerra era submet-la s deliberaes dos representantes. Pois bem, o que vemos pouco depois da Revoluo de fe-vereiro? Enquanto a Bolsa entra em pnico, o Parlamento, cada vez mais conservador e pac0co, vota com unanimi-dade os subsdios e sempre fazendo votos para a paz. Uma das causas que levou queda da ltima monarquia foi que ela resistiu demais ao instinto belicoso do pas. Luiz Felipe ainda no foi perdoado por sua poltica de paz a qualquer preo. Mas o que o pas teria ganho com a guerra? Nada, alm talvez de saciar o ardor marcial de uma gerao hiperexcitada; nada, eu digo, como se viu pelos resultados das duas guerras da Crimeia e da Lombardia; nada, nada.

    Assim, a guerra e a paz, uma correlativa outra, a0r-mando igualmente sua realidade e sua necessidade, so duas funes mestras do gnero humano. Elas se alternam na histria como, na vida do indivduo, a viglia e o sono. Como no trabalhador, o dispndio de foras e sua renova-o; como na economia poltica, a produo e o consumo. Portanto, a paz ainda a guerra, e a guerra a paz; pueril imaginar que elas se excluam.

    Existem pessoas, a0rma o Sr. De Ficquelmont, que parecem conceber o curso do mundo como um drama di-vidido em atos. Elas imaginam que durante os entreatos podem se entregar, sem medo de serem perturbadas, a seus prazeres e seus negcios particulares. Elas no enxergam que esses intervalos, durante os quais os acontecimentos parecem interrompidos, so o momento interessante do drama. durante essa calma aparente que se preparam

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    as causas do rudo que ser feito mais tarde. So as ideias que formam a corrente dos tempos. Aqueles que s veem as coisas grandes, que s escutam as detonaes, no com-preendem nada da histria.12

    Rea0rmemos portanto aqui, como forma de concluso sobre a paz, o que dissemos no incio deste livro falando da guerra.

    A paz um fato divino; pois para ns ela permaneceu um mito. Vimos apenas a sua sombra, sem conhecer sua substncia ou leis. Ningum sabe quando, como e porque ela vem; quando, como e porque ela vai embora. Como a guerra, ela tem seu lugar em todos os nossos pensamentos; ela forma, como esta ltima, a primeira e maior categoria de nosso entendimento.

    Com certeza, a paz deve ser uma realidade positiva, pois a consideramos como o maior dos bens. Ento, por que a ideia que fazemos dela puramente negativa, como se correspondesse apenas ausncia de luta, de coliso e de destruio? A paz deve ter sua ao prpria, sua expresso, sua vida, seu movimento, suas criaes particulares; ento, por que ela continua sempre sendo, em nossas sociedades modernas, aquilo que ela foi nas sociedades antigas, e at nas utopias polticas dos 0lsofos: o sonho da guerra?

    H 45 anos, a Europa encontra-se no regime dos exr-citos permanentes; e cabe aos economistas declamar contra esta enorme e intil despesa.13 Assim faziam os antigos: durante a paz eles se preparavam para a guerra. Foi isso o que recomendaram em todas as pocas, desde Plato at Fenelon, aqueles que se ocuparam em ensinar os po-vos e os reis. Enquanto a paz dura, ns nos exercitamos no manejo das armas, fazemos a pequena guerra.14 H 40

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    A guerra e a paz

    sculos, desde que a humanidade faz teologia, metafsica, poesia, comdias, romances, cincia poltica e agricultura, ela nunca imaginou, para seus momentos de pausa, ne-nhuma outra distrao, um relaxamento mais agradvel, um exerccio mais nobre. Homem de paz, que nos apregoa o livre comrcio e a concrdia, imagina voc que aquilo que est propondo para nossa razo acreditar e para nossa von-tade praticar seja um mistrio?

    Captulo II

    A guerra produzida como um julgamento realizado em nome e em virtude da fora

    Esse julgamento declarado regular pela conscincia universal; recusado pela jurisprudncia dos autores

    A segunda proposio sobre a qual se manifesta a di-vergncia entre o sentimento universal e a opinio doutri-nria a seguinte: A guerra um julgamento.

    Ccero de0ne a guerra, segundo a opinio comum, como uma maneira de esvaziar conKitos pelas vias da fora. E ele acrescenta, com tristeza, que somos obrigados a lan-ar mo dela quando qualquer outro modo de soluo tor-nou-se impraticvel. A discusso prpria ao homem; a violncia prpria aos animais. Nam, cum sint duo genera decertandi, unum per disceptationem, alterum per vim; cumque illud proprium sit hominis, hoc belluarum, confugiendum est ad posterius, si ut non licet superiore.15

    Vemos por essa citao que o grande orador s admitia com reservas a de0nio tradicional da guerra, segundo a

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    qual ela uma forma de julgamento. J em seu tempo, a pura noo do direito da guerra j se tornara obscura: o belicoso romano tinha permitido tantas injustias! Antes de Ccero, Aristteles escrevera16 que a guerra mais na-tural aquela feita contra os animais ferozes e contra os homens que se assemelham a eles. Seguindo o exemplo do 0lsofo grego, ao quali0car a utilizao das armas de procedimento animalesco, Ccero recusa positivamente guerra qualquer valor jurdico e lana sobre esse modo primitivo de se lidar com os conKitos internacionais um desprestgio do qual, aos olhos das doutrinas 0los0cas, ele nunca mais se livraria. Entretanto, suas palavras teriam levantado protestos dos velhos Quiritas,17 adoradores da lana, quir, religiosos observadores do direito da guerra que, para dar mais autenticidade a seus julgamentos, abs-tinham-se em suas expedies de empregar contra seus inimigos a surpresa e a astcia, prezando apenas a bravura, e considerando qualquer vitria obtida num combate des-leal como uma impiedade.

    Assim, a cada passo explode a divergncia entre o tes-temunho universal e as ideias da tradio 0los0ca dou-trinria. Segundo o primeiro, existe um direito de guerra, de acordo com as segundas, esse direito no passa de uma 0co. A guerra um julgamento, diz o consentimento das naes; a guerra no tem nada em comum com os tribunais, replica a 0loso0a; ela um triste e funesto extre-mo. Desde Ccero a jurisprudncia tem permanecido a.

    Grotius tem a mesma viso que Ccero. A ideia de uma deciso exercida pelas armas lembra-lhe o combate judici-rio, empregado na Idade Mdia e que ele trata como supers-tio. Longe de considerar a guerra como um julgamento, ao contrrio, ele v nela o efeito da ausncia de qualquer

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    A guerra e a paz

    justia, a negao de qualquer autoridade judiciria. ba-seado nesse pensamento que ele comps seu livro. Que as naes, ele diz, como os cidados, aprendam a determi-nar seus direitos mtuos; que elas prprias se constituam como tribunais arbitrais, e no mais existir guerra.18 Em suma, Grotius, como Ccero, suporta a guerra como um extremo doloroso, desprovido de qualquer valor jurdico, e cuja responsabilidade incumbe quele que a realiza ou provoca injustamente.

    Pufendorf19 declara no mesmo sentido: A paz o que distingue o homem dos animais.20

    Vattel21 da mesma opinio: A guerra, ele diz, esse estado no qual se persegue o prprio direito pela fora.22 Por-tanto, no um julgamento. No direito civil, como se per-segue o prprio direito? Diante dos tribunais; e depois de se obter a sentena do juiz que se lana mo, se for necessrio, dos meios de rigor, o con0sco, a expropriao forada, a visita domiciliar, leiles, deteno domiciliar, o mandato de priso, etc. A guerra, ao contrrio, segundo a de0nio de Vattel, reduzindo-se unicamente aos meios de rigor, sem julgamento prvio, tudo que h de mais oposto justia. , como dizamos h pouco, um efei-to da ausncia de justia e de autoridade internacional. Alis, Vattel, assim como Grotius, admite o princpio de que, se para um dos lados a guerra justa, para o outro ela necessariamente injusta e termina lanando sobre o agressor ou o defensor injusto a responsabilidade pelo mal cometido, independentemente do lado para o qual se volte a fortuna das armas.

    O comentador de Vattel, Pinheiro-Ferreira, aceitando, no fundo, o sentimento de seu mentor, mas ligando-se

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    mais ao carter da perseguio, de0ne a guerra como a arte de paralisar as foras do inimigo.23 Antes dele, outros a0r-maram que a guerra a arte de DESTRUIR as foras do inimigo. Ora, quer se trate de destruir as foras do inimigo, ou simplesmente de paralis-las, o que menos desumano, evidente que estamos sempre num estado extrajudicirio. Tanto para Pinheiro como para Vattel e Grotius, trata-se em todo caso de obrigar, sem julgamen-to prvio, um devedor de m f, ou de se defender contra uma agresso injusta. Em ambos os casos, a ideia de um tribunal guerreiro, de um julgamento pela via das armas, de uma legalidade inerente ao combate, em suma, de um direito da guerra, desapareceu totalmente.

    Intil continuar com as citaes: todos os autores se copiam.

    Assim, quanto mais avanamos neste exame, mais ve-mos aumentar a separao entre a jurisprudncia da 0lo-so0a e a f universal.

    De acordo com a primeira, o direito da guerra uma palavra vazia, no mximo uma 0co legal. No existe di-reito das batalhas; a vitria no prova nada; a conquista, seu fruto, s se torna legtima pelo consentimento, formal ou tcito, mas livre, dos vencidos, pela prescrio do tempo, pela fuso das raas, pela absoro dos Estados; fatos todos subsequentes guerra, e cujo resultado fazer desaparecer os vestgios da antiga discrdia, amenizando suas causas e evitando seu retorno. Considerar a guerra como uma forma de judicatura seria ultrajar a justia.

    Diante da razo das massas, ao contrrio, a guerra assume um carter diferente. Na incerteza do direito internacio-nal ou, o que d na mesma, na impossibilidade de aplicar suas frmulas a instncias passveis de julgamento como

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    A guerra e a paz

    os Estados, as partes beligerantes invocam, por necessi-dade ou conveno tcita, a deciso das armas. A guerra uma espcie de ordlia24 ou, como se dizia na Idade M-dia, um julgamento de Deus. Isso explica porque duas na-es em conKito, antes de entrarem em combate, implo-ram, cada uma de seu lado, a assistncia do cu. como se a Justia humana, confessando sua impotncia, suplicasse que a Justia divina desse a conhecer, atravs da batalha, de que lado est ou estar o direito; numa linguagem um pouco mais 0los0ca, como se os dois povos, igualmente convencidos de que a razo do mais forte aqui a melhor, quisessem, por um ato prvio de religio, despertar em si a fora moral, to necessria ao triunfo da fora fsica. As preces feitas por ambas as partes para obter a vit-ria, e que escandalizam nossa sociedade to ignorante de suas origens quanto ignbil em sua incredibilidade, so to razoveis quanto as splicas contraditrias lanadas pelos advogados para preparar as sentenas dos tribunais. Mas, enquanto aqui o julgamento simplesmente enun-ciativo do direito, pode-se dizer, sempre a partir do ponto de vista das massas, que a vitria PRODUTORA DO DIREITO, pois o resultado da guerra justamente fazer com que o vencedor obtenha o que ele pedia, no somente porque, antes do combate, ele tinha direito de obt-lo, em razo de sua fora presumida, mas porque a vitria provou que ele era realmente digno disso. Retirem essa ideia de julgamento que a opinio inexoravelmente liga guerra e ela ir se reduzir, segundo a expresso de Ccero, a um combate de animais: o que a moralidade de nossa espcie, moralidade que em lugar algum brilha tanto quanto na guerra, no permite admitir.

    De fato, os atos que em todas as naes precedem, acompanham e seguem as hostilidades, demonstram que

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    existe aqui algo diferente do que enxergaram os legisla-dores. Em primeiro lugar, o que signi0caria a expresso to velha quanto o gnero humano, comum a todas as lnguas, repetida por todos os autores, para quem ela constitui o tormento DIREITO da guerra? Ser que o povo que cria as lnguas nomeia algo alm de realida-des? Ser que ele no fala da abundncia tanto de seus sentimentos quanto de suas sensaes? ele que inventa as 0ces legais? ele que imagina reis constitucionais, que respondem pelas costas de seus ministros? Ele adora divindades nominais ou metafsicas?

    A seguir, como explicar essa multiplicidade de formali-dades de que as naes consideram uma to grande honra rodear-se em suas atividades guerreiras: signi0caes, de-claraes, proposio de rbitros, mediaes, intervenes, ultimatos, invocaes aos deuses, expulso de embaixado-res, inviolabilidade dos parlamentares, troca de refns e de prisioneiros, direito dos neutros, direito dos refugiados, dos suplicantes, dos feridos, respeito pelos cadveres, direito do vencedor, direito do vencido, direito de postliminie,25 de-limitao da conquista, etc.; todo um cdigo, toda uma ju-risprudncia. Seria possvel admitir que todo esse aparelho jurdico recobre um puro nada? Somente essa ideia de uma guerra nas formas; apenas este fato, admitido pela polcia das naes, de que os homens que se respeitam no se tratam na guerra como bandidos e animais ferozes, prova que, no pensamento geral, a guerra um ato de jurisdio solene, em suma, um julgamento.

    Mas eis aqui algo bem diferente.

    Em nome de que autoridade, em virtude de qual prin-cpio esse julgamento da guerra realizado? A resposta

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    A guerra e a paz

    pareceria uma blasfmia se no fosse o grito da humani-dade: Em nome e em virtude da FORA.

    a terceira proposio sobre a qual constataremos a mais absoluta contradio entre o judicirio das massas e a maneira de ver da 0loso0a.

    Desta vez, de to aturdidos, nossos autores no conse-guem mais se conter.

    Ccero exclama, conforme j o citamos uma vez:

    A fora a razo dos animais, hoc belluarum.

    Grotius retoma:

    A fora no faz o direito, embora ela sirva para mant-lo e exerc-lo.26

    Vattel acrescenta:

    O direito reivindicado pelos ttulos, por testemu-nhos, por provas; ele perseguido pela fora.

    Ancillon:

    A fora e o direito so ideias que se repelem: uma nunca poderia fundar a outra.27

    Kant, o incomparvel metafsico, que soube descrever as leis do pensamento, que foi o primeiro a conceber uma fe-nomenologia do esprito, no conhece nada sobre a guerra:

    Os elementos do direito das gentes so: 1. que os Estados, considerados em suas relaes mtuas externas (como selvagens sem leis), encontram-se naturalmente num estado no-jurdico; 2. que esse estado um estado de guerra (do direito do mais forte) embora na realidade no haja sempre guerra e sempre hostilidade. Esta posio respectiva nela mesma muito injusta e todo o esforo do

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    direito de sair disso. Alis, As naes tm o direito de fazer a guerra, como um meio lcito de perseguir seu direito pela fora, quando elas podem ter sido lesadas, e porque essa reivindicao no pode ter lugar por um processo.28

    Martens e seu editor francs, o Sr. Verg, raciocinam exatamente da mesma maneira. O primeiro condena a guerra de modo absoluto:

    A guerra um estado permanente de violncias inde-terminadas entre os homens.29

    O Sr. Verg faz algumas ressalvas em favor do Estado instaurado por um injusto agressor no caso de legtima de-fesa. Ele diz:

    Sem dvida, no se pode considerar a guerra, como a0rma o conde de Maistre, como uma grande lei do mundo espiritual ou, com Spinoza, como o estado normal da cria-tura.30 um extremo nocivo, o nico meio de se obrigar uma pessoa coletiva e soberana a cumprir seus compro-missos e a respeitar os usos internacionais.31 A guerra sempre injusta em si, no sentido de que a fora decide sobre o direito ou, para ser mais preciso, em que no h outro direito alm da fora.32

    O Sr. Hautefeuille, o ltimo na Frana a ter escrito sobre essa matria escabrosa, a0rma por sua vez, copiando Hobbes:

    da ordem da natureza que o reino da fora preceda o do direito.33

    E uma multiplicidade de comentadores, tradutores, editores, anotadores, repetem em unssono: No, a fora nunca pode fazer o direito. Se por vezes ela intervm nas obras da justia, como meio de suplcio ou de constrio,

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    A guerra e a paz

    como a algema do policial e o machado do carrasco. Seria monstruoso ver a a base ou a expresso de um direito.

    Demos voz 0loso0a; interroguemos agora o testemu-nho universal e vejamos como se estabelece, na conscin-cia dos povos, um sentimento completamente contrrio.

    Na origem, nesse estado da humanidade chamado, jus-tamente ou no, de estado selvagem, o homem, antes de ter aprendido o uso de suas faculdades intelectuais, s conhece, s admira, a fora corporal. Nesse momento, fora, razo e direito so, para ele, sinnimos. pela fora que se avalia o mrito, e consequentemente o direito, na medida em que caiba falar de direitos e deveres entre criaturas to recen-temente Korescidas, unidas por relaes to raras e frgeis.

    A sociedade forma-se e o respeito pela fora aumenta com ela: ao mesmo tempo, destaca-se pouco a pouco da ideia de fora, a do direito. A fora glori0cada, consagra-da, divinizada sob nomes e imagens humanas: Hrcules, wor, Sanso. A populao divide-se em duas categorias, aristo, optimates, literalmente, os mais fortes, e por exten-so, os mais corajosos, os mais virtuosos, os melhores; e a plebe, composta dos fracos, escravos, de tudo o que no possui a fora, ignavi. Os primeiros constituem o pas le-gal, os homens do direito, ou seja, aqueles que possuem direitos; os outros esto fora do direito, exleges; eles no tm direitos; so indivduos com face humana, anthrpo, mas no so homens, andrs.

    Essa sociedade de homens fortes, aristocratas, forma uma soberania, um poder, dois termos que, tomando-se um pelo outro, lembram ainda a identidade das duas noes: o direito e a fora.

    At esse momento, os litgios, originando-se da prer-

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    rogativa das foras, resolvem-se, e as injrias reparam-se, pelo duelo ou combate judicirio, julgamento da fora. Mas logo esse combate substitudo pelo prncipe, representan-te da soberania ou fora coletiva, contra o qual no h nada su0cientemente forte para combat-lo, e que no queren-do que os homens lutem, encarrega-se pessoalmente de dizer o direito, de fazer justia. Mas de onde provm essa substituio do julgamento do prncipe pelo combate das partes? Simplesmente do princpio, a0rmando quem tem a fora tem a razo, e, diante do julgamento expresso pelo prncipe, ningum tem direito de a0rmar um sentimento contrrio. O verme poderia insurgir-se contra o leo, ou o hissopo34 contra o cedro? Seria igualmente absurdo.

    Mas quem ser o depositrio dessa fora ou poder p-blico do qual o direito um dos principais atributos? O mais forte.

    Notemos que tudo isso no signi0ca, como os juristas parecem dizer, que a fora faa todo o direito, que no haja outro direito alm da fora: isso quer dizer simplesmente que a fora constitui o primeiro e mais incontestvel dos direitos; que se, posteriormente, outros so criados, em lti-ma anlise eles sempre se originaro desse primeiro; assim, enquanto entre indivduos da mesma cidade o combate ju-dicirio substitudo pelo julgamento do prncipe, entre ci-dades independentes, o nico direito reconhecido, o nico julgamento vlido, ser sempre o da fora.

    Por isso, na opinio de todos os povos, a conquista, ao preo da fora e da coragem, considerada legtima, a mais legtima das posses, por ser fundada num direito superior a todas as convenes civis, ao usucapio, sucesso patri-monial, venda, etc., no direito da fora. Da a admirao dos povos pelos conquistadores, a inviolabilidade que eles

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    se arrogam, a submisso que exigem, o silncio que se faz diante deles: siluit terra in conspectu ejus.35

    O respeito pela fora, a f em sua potncia jurdica, se assim ouso dizer, sugeriu a expresso de guerra santa e justa, justa e pia bella; o que a meu ver no tem tanta relao com a ptria que deve ser defendida quanto com as prprias condies da guerra a quem, como pensavam os velhos romanos, repugna toda astcia, indstria e es-tratagema, como um sacrilgio, como uma so0sticao do combate, uma corrupo da justia, s admitindo meios de viva fora.

    E ainda por isso que nas pocas revolucionrias, quando os sentimentos cvicos, religiosos e morais esfria-ram, a guerra que por um misterioso pacto continua a unir a fora e o direito ocupa o lugar de princpio para aqueles que no possuem nenhum; por isso que uma nao, por mais corrompida que seja, no ir perecer, nem mesmo decair, enquanto conservar no corao a Ka-ma justiceira e regeneradora do direito da guerra. Pois a guerra, que a bancocracia e o comrcio 0ngem considerar pirataria, o mesmo que o direito e a fora indissoluvel-mente unidos. Retirem esta sinonmia de uma nao que enterrou todas suas crenas e ela estar perdida.

    Exponho esses fatos, ou melhor, essas opinies, pelo que elas valem, ou seja, como testemunhos cujo sentido que, sobre a natureza e a moralidade da guerra, sobre a vir-tualidade jurdica da fora, o sentimento do gnero huma-no diametralmente oposto ao dos homens de lei. Logo deveremos buscar de qual lado est a verdade. Por enquanto limitemo-nos a constatar o resultado a que chegamos:

    A guerra, segundo o testemunho universal, um jul-gamento da fora. Direito da guerra e direito da fora so

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    assim um nico e mesmo direito. E esse direito no uma 0co vazia do legislador; , segundo a multiplicidade dos que o a0rmam, um direito real, positivo, primitivo, his-trico, capaz, em consequncia, de servir de princpio, de motivo e de base para uma deciso judiciria: coisas que a jurisprudncia da 0loso0a nega formalmente.

    Tudo isso no seria nada se o mal entendido dissesse respeito a apenas uma palavra; se, ultrapassada essa pri-meira etapa, seja no direito, seja na histria, os sbios e os ignorantes estivessem de acordo sobre o resto. Mas a divergncia no para a. Ela abarca todas as categorias do direito: direito das gentes, direito pblico, direito civil, di-reito econmico. De modo que, dependendo se o teste-munho universal for declarado falso ou a jurisprudncia da 0loso0a errnea, a sociedade repousar sobre um fun-damento ruinoso ou o ensino do direito dever ser refeito. isso que importa esclarecer plenamente.

    Captulo VIII

    Aplicao do direito da fora

    1. De)nio e objeto do direito da guerra

    Uma coisa agora certa: que o direito faz sua entrada no mundo atravs da fora; que o direito do mais forte, durante tanto tempo caluniado, o mais antigo de todos, o mais elementar e o mais indestrutvel. Vamos segui-lo em algumas de suas aplicaes.

    O direito um e idntico; ele prprio de nossa es-pcie. Mas ele assume diferentes nomes de acordo com o objeto ao qual se aplica: direito da fora, direito do trabalho,

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    direito intelectual, direito de propriedade, direito de amor, direito da famlia, direito penal, direito de cidade, etc.

    O que foi durante muito tempo chamado de direito de natureza deve, a partir de agora, ser eliminado da ter-minologia do direito. Se entendemos por essa palavra o direito em seu primeiro momento e em sua manifestao mais concreta, ele no nada alm do direito de fora. Se 0zermos dele uma anttese do direito divino ou revela-do, convm que ele se abstenha, pois o direito divino que supomos ser anterior e superior ao homem , no fundo, absolutamente o mesmo que o direito ordinrio, tal como a conscincia o coloca e como a prtica e a razo o ex-pem. Mesmo do ponto de vista sobrenatural, a distino tornou-se intil.

    O direito cannico o direito divino redigido pela Igreja; consequentemente, cabe menos ainda que nos ocupemos dele.

    Portanto, como o direito da fora , na ordem do de-senvolvimento histrico, o tronco de onde partem todos os outros, aquele que naturalmente vem depois dele e que forma sua primeira rami0cao o direito da guerra, aps o qual iro se apresentar, uns aps os outros, os direitos das gentes ou internacional, o direito poltico, o direito civil, etc.

    Essa genealogia, conforme a histria, inversa daquela geralmente adotada. Procedendo pela via psicolgica ou metafsica, os autores, aps as consideraes preliminares sobre o direito, colocam em primeiro lugar o direito pes-soal que, logo se tornando direito real, d lugar ao direito civil. Em seguida e sucessivamente vm o direito poltico, aplicao do direito civil; o direito das gentes, aplicao do direito poltico; e 0nalmente o direito da guerra, seo

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    particular do direito das gentes. Nada teramos a obje-tar contra esse mtodo, pois no fundo importa pouco por onde comear o estudo do direito, se ele no resultasse, como 0zemos ver, na negao do direito da guerra, e com ele o direito da fora, aps fazer do direito das gentes um direito desprovido de base e de sano, o que provoca a runa de todos os outros direitos.

    Assim, seguimos um percurso oposto e depois de pos-tular o direito da fora, deduziremos dele, segundo a his-tria e a lgica, o direito da guerra.

    uma lei da natureza que a fraqueza se coloque sob a proteo da fora: esse o princpio da preeminncia con-cedido ao pai de famlia, ao chefe da tribo, ao guerreiro. A ele repugna, quando se trata da salvao comum, que o mais fraco comande e que o mais valente obedea; nesse sentido, ningum nunca sonhou em contestar seriamente o direito da fora.

    Admitido tal princpio, todo o resto decorre dele. A fa-mlia multiplica-se pela gerao, principalmente quando a poligamia aceita. Se o chefe forte, a famlia aumenta pela reunio de vrias outras famlias, que de bom grado demandam a fuso, e prometem ao patriarca 0delidade e obedincia. Assim, a tribo formada. Em caso de guerra, ela reforada com prisioneiros de ambos os sexos, cujo trabalho aumenta sua riqueza e desenvolve da mesma for-ma seu valor guerreiro. A riqueza ainda da fora.

    Mas como a guerra acontece?

    Duas tribos se encontram. Para no se incomodarem mutuamente e para no correrem o risco de um combate, seu primeiro movimento de afastamento. No entanto, pode acontecer que uma das duas, enfraquecida pela mi-

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    sria, pelas doenas ou qualquer outro motivo, demande a incorporao. Nesse caso, a mais fraca entrega-se s mos da mais forte, cujo chefe passa a reunir em sua pessoa as duas soberanias. assim que, nos negcios, o empreen-dedor dotado de capitais raramente busca um scio. Ele aceita auxiliares, empregados, representantes, operrios, contramestres, mas no um igual. Se lhe for proposta uma fuso, ele ter o cuidado, aps detidas anlises, de se reser-var a direo geral, condio sine qua non para sua aceitao. No examino, nesse caso, se da reunio dos trabalhadores poderia resultar uma fora de coletividade dominando a do patro; o direito da fora nada perderia com isso. Limito-me a constatar que, nos costumes atuais da indstria, o mais for-te o patro, que isso justo e que ningum o contesta.

    Ora, notem o seguinte: o direito da fora por sua na-tureza, como todos os outros direitos, pac0co. Ele no implica necessariamente na guerra; ele no a busca. Ao contrrio, protesta contra essa situao extrema, qual at mesmo os mais valentes temem chegar.

    Vamos abstrair pequenos incidentes e liguemo-nos apenas marcha lgica das coisas. As tribos, inicialmen-te isoladas, devido a seu crescimento, logo se encontram. Relaes, no ainda direitos nem convenes, simples relaes de vizinhana so estabelecidas: realizam-se tro-cas; depois, pela mesma razo que fazia com que, apro-ximando-se, houvesse benefcios mtuos, acontece que uma comea a incomodar a outra, e logo 0ca claro que a independncia primeira torna-se cada dia mais difcil, e 0nalmente que ela impossvel. Uma fuso, ou uma eli-minao, inevitvel.

    O que ir acontecer? O homem preza sua liberdade pelo menos tanto quanto se inclina associao. Esse sentimen-

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    to de independncia ainda mais forte nas massas, nas tribos, nas cidades, nas naes. Qualquer vizinhana lhes suspeita; elas instintivamente rejeitam tudo que as com-promete e limita. O que dizer, ento, de uma incorporao que ameaa engolir sua individualidade, sua autonomia, ou em uma palavra, o seu ser? Pois o ser de uma nao a independncia, a soberania. No entanto, as causas que lan-am uma tribo em direo a outra no cessam; a situao torna-se urgente; os dois rios se aproximam, est prximo o momento em que suas guas iro se confundir.

    Aqui, impossvel dizer que algum esteja errado. O direito evidentemente igual. A reunio poderia se reali-zar amigavelmente; mas esse caso raro, j que a reunio provoca, para pelo menos uma das cidades, e s vezes para as duas, uma perda de originalidade. Os burgos da tica, reunindo-se sob a proteo comum de Minerva, adotam um nome plural, coletivo: Athenae. No passavam de al-deias habitadas por uma populao de mesmo sangue, de mesma lngua, com o mesmo interesse, separadas no mximo pelas pretenses de seus conselheiros municipais. Entretanto, no foi simples reuni-los; a distino per-sistiu e se reKetiu no governo. Os atenienses nomeavam 10 generais que se revezavam a cada dia no comando do mesmo exrcito; a democracia ateniense sempre foi uma rivalidade de quartis.

    Mas o que era a formao em uma mesma cidade dos 12 burgos de Minerva, comparada com a centralizao da Itlia? A Itlia, no tempo de Rmulo, continha uma cen-tena de pequenos povos, todos independentes, cujo desen-volvimento simultneo logo foraria a se unirem. Roma foi o centro dessa absoro que durou quase seis sculos. Ora, basta nos permitirmos, por um momento, conceder

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    nossa ateno s di0culdades de tal fuso, da qual no se encontram exemplos nos sculos modernos e iremos compreender o que a guerra.

    A primeira guerra que os romanos tiveram que susten-tar foi contra os sabinos. O rapto das mulheres, apresen-tado por Tito Lvio como a causa ou pretexto para essa guerra, sugere claramente que entre essas duas cidades a distino havia se tornado impossvel. Ento, era pre-ciso regulamentar as condies da reunio, determinar a constituio; se os dois Estados fossem monarquias no momento da fuso, qual dinastia seria eliminada; no caso em que apenas um deles fosse monrquico, o outro repu-blicano, tratava-se seja de criar um governo misto, seja de mudar as tradies e os costumes polticos de um dos dois povos. Depois, era preciso fazer com que legislaes dife-rentes entrassem em acordo, conciliassem os usos, criassem tolerncia, etc. Roma, desde suas primeiras guerras, ofe-recia s naes vizinhas a isonomia, isto , a participao nos direitos civis e polticos de seus prprios cidados; e essa hbil moderao do governo da velha Roma foi, com razo, admirada. Mas o que era a isonomia para uma ci-dade soberana, para reis, prncipes, patrcios, acostumados a reinar em sua casa como soberanos? Sempre o suicdio. De fato, claro que mesmo concedendo s cidades incor-poradas a igualdade de direitos e honras, Roma, a capital, conservava a preponderncia; as cidades s tinham a espe-rana de exercer, atravs de seu aporte eleitoral, uma parte de inKuncia no governo; e as coisas estavam longe de se passar dessa maneira. Servir partidos e intrigas para, por sua vez, servir-se deles: que bela parte numa repblica! Que bela compensao para a perda da soberania!

    Assim, Roma teve raras ocasies de se felicitar por uma

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    rendio voluntria. Tito Livio, no livro VII,36 relata o caso de Cpua e dos povos da Campnia: Itaque populum Campanum, urbemque Capuam, agros, delubra Dem, divina humanaque omnia, in vestram, patres conscripti, populique Romani ditionem dedimus. E ainda aqui, no se trata de uma submisso pura e simples. Vattel, que cita a passagem, parece no se dar conta de sua importncia e signi0cao. Essa signi0cao a de que nenhum povo pode acreditar ser obrigado a renunciar, abdicar de sua soberania e sua independncia; e, no entanto, certo que a necessidade, a razo superior das coisas leva a isso, o prprio progresso da civilizao o exige.

    Vimos, na Idade Mdia, naes, como a Hungria e a Bomia, atradas pelo prestgio imperial, a superioridade da civilizao, inKuncia religiosa e, sem dvida, tambm impulsionadas pelo sentimento de sua enfermidade, des-cartarem suas dinastias37 e entregarem-se voluntariamen-te, sem serem foradas, ao imperador. Mas os costumes polticos da poca serviam de desculpa: na Idade Mdia, qualquer principado dependia da autoridade do impera-dor; isso levava suas populaes a se considerarem mais honradas, com mais vantagens, por se encontrarem sob a proteo imediata do imperador e no sob o domnio de seus prncipes. Alis, sabemos que, ao se entregarem, essas naes tinham o cuidado de preservar sua nacionalidade, seus usos e privilgios. Elas entravam no imprio mais na qualidade de federadas que na de sditos; e o eterno ar-gumento dos magiares contra as invases do despotismo austraco consistia em dizer que eles no tinham sido nem vencidos nem conquistados, mas que haviam se aliado volun-tariamente, em condies que no permitiam confundi-los com os servos do imperador. Eles no fazem parte de seu

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    domnio patrimonial; a seus olhos, ele no passa do suces-sor de seus reis.

    Vamos aos fatos. Tais problemas no podem ser resol-vidos seno de duas maneiras: pela execuo voluntria, como 0zeram aqueles de Cpua, ou pela deciso das ar-mas. A primeira seria com mais frequncia vergonhosa: portanto, restaria a segunda.

    Aqui se coloca a questo: a deciso das armas seria de direito? Ela pode constituir o direito? A0rmo que sim, com exceo daquilo que relativo maneira de se fazer a guerra e de utilizar-se da vitria, e que deveremos pesqui-sar posteriormente.

    Em princpio, qualquer guerra indica uma revoluo. Nos tempos primitivos, o ato pelo qual dois povos, le-vados fuso pela proximidade e os interesses, tendem a realizar, cada um em seu proveito particular, sua absor-o mtua. Suponham que, no momento em que a bata-lha desencadeada, o Direito pudesse repentinamente se manifestar, como um deus, e falar aos exrcitos. O que o direito diria? Que a revoluo devendo mudar a condio dos dois povos inevitvel, legtima, providencial, sagra-da e que, consequentemente, cabvel lanar mo dela, reservando-se a cada nao seus direitos e prerrogativas, e distribuindo-se entre elas a soberania do novo Estado, PROPORCIONALMENTE A SUAS FORAS. Aqui, o decreto divino apenas aplicaria o direito da fora.

    Mas, no silncio dos deuses, os homens no aceitam revolues que contrariem seus interesses; chegam a acre-ditar que as revolues injuriam a Divindade. No silncio dos deuses, eles no consideram que uma soberania pro-porcional seja uma compensao su0ciente para uma so-

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    berania por inteiro, e recusam qualquer arranjo. No silncio dos deuses, 0nalmente, eles no admitem a superioridade do inimigo; acreditam carem em desonra caso cedam, sem combate, a uma fora menor. Todos preferem o ca-minho das armas, cada qual esperando, vangloriando-se, que a fortuna das armas estar do seu lado.

    Portanto, o duelo inevitvel. Ele legtimo, pois o agente de uma revoluo necessria; sua deciso ser justa, pois a vitria no ter outra 0nalidade seno mostrar de qual lado se encontra a fora maior, pois no esqueamos que o direito da fora que, em ltima anlise, decide sobre a oportunidade da revoluo e sobre a situao dos dois povos no novo Estado, preexiste guerra; e por preexistir guerra que, em seguida, ele pode se atestar em nome da vitria.

    essa a origem, ao mesmo tempo terica e histrica, abstraindo-se os incidentes particulares e as vitrias il-citas, do direito da guerra. Esse direito deriva do direito da fora e o pressupe, mas ele no a mesma coisa que o direito da fora. Ele est para o direito da fora como o cdigo de procedimento civil est para o cdigo civil, ou o cdigo de instruo criminal para o cdigo penal. O direito da guerra o cdigo de procedimento da fora; por isso que de0niremos a guerra como a reivindicao e a demonstrao pelas armas do direito da fora.

    Esse princpio preenchia a alma dos antigos; ele pai-ra por sobre toda sua histria, verdade que misturado a terrveis abusos, sujeito a falsas interpretaes, e tornado odioso pela barbrie com a qual era aplicado. Mas quando que a nvoa foi considerada como um argumento contra a luz, e a superstio chamada em testemunho contra a

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    ideia? dever da imparcial histria distinguir, tanto nos pensamentos quanto nos gestos das naes, o verdadeiro do falso, e o justo do injusto.

    Em 416 a.C., durante a Guerra do Peloponeso, os ate-nienses sitiaram a ilha de Melos. A conferncia acontecida por essa ocasio entre os atenienses e os melianos, conser-vada por Tucdides, um dois mais notveis monumentos sobre o direito das gentes daquela poca, assim como um dos menos compreendidos pelos crticos.

    preciso, diziam os atenienses, partir de um princpio universalmente admitido: as contas so regradas entre os homens pelas leis da justia, quando uma necessidade igual leva-os a isso; mas aqueles que os superam em fora fazem tudo que podem fazer e so os fracos que devem ceder.

    Os melianos confessam que para eles difcil resistir potncia de Atenas; mas esperam que, justamente por resistirem a homens injustos, os deuses iro proteg-los.

    Em sua rplica, os atenienses tornam os deuses cm-plices de sua poltica. Eles dizem:

    O que demandamos, o que fazemos, encontra-se em harmonia com a opinio que os homens tm da Divinda-de. Os deuses, por uma necessidade da natureza, domi-nam, pois eles so os mais fortes; o mesmo ocorre com os homens. No fomos ns que estabelecemos essa lei; no fomos ns que a aplicamos em primeiro lugar; mas a re-cebemos j completa, por inteiro, e a transmitiremos para sempre aos tempos vindouros. Tambm s agiremos de acordo com essa lei, sabendo que vocs mesmos e todos os outros povos, se tivessem a mesma potncia que ns, teriam a mesma conduta.38

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    Segui a traduo de F. Laurent39 porque esse escritor, um dos mais eruditos da Blgica, ao mesmo tempo um dos adversrios mais enrgicos do princpio que defen-do, o direito da fora. Mas o grego de Tucdides mais explcito: ele signi0ca que o direito de fora ao mesmo tempo uma inspirao da conscincia, pela ideia que to-dos os homens fazem da Divindade, e uma lei da nature-za, a0rmando que onde se encontra a fora tambm deve estar o comando. essa a pro0sso do direito de fora, que revoltou a maioria dos historiadores, e que Denis de Halicarnasso,40 que escreveria quatro sculos mais tarde, entendia to pouco quanto Ccero, considerando-a digna de bandidos e piratas. Entretanto, observa F. Laurent, o mesmo Denis prestava homenagem a esse direito, quando proclamava o direito romano ao governo das naes, por eles serem os mais fortes.

    Aps a batalha de Egos-Ptamos, onde a potncia dos atenienses foi aniquilada, Lisandro reuniu os aliados para deliberar sobre a sorte dos prisioneiros. Ele chamou Filocles, um dos generais atenienses, e perguntou-lhe a qual pena condenava a si prprio por ter lanado um decreto de morte contra os prisioneiros gregos. Ele respondeu: No acuse ho-mens que no tm juzes; vencedor, trata os vencidos como voc mesmo seria tratado, caso estivesse em nosso lugar.

    F. Laurent, que tambm relata esse fato, no percebeu sua alta moralidade. O que deve ser admirado aqui no a ferocidade de Filocles, mas seu esprito de justia. Lisandro e os aliados pretendiam imputar como crime aos atenien-ses as execues dos prisioneiros de guerra que eles tinham realizado: consequentemente, convidava o prprio Filocles a dizer a qual castigo se condenava. contra esse avilta-mento que o general ateniense protesta: no temos juzes,

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    ele exclama, apenas usamos, verdade que com muito ri-gor, mas legitimamente, do direito da guerra. Vejam, por sua vez, o que vocs devem fazer. Sem dvida, a verdadeira jurisprudncia da fora contrria ao massacre dos pri-sioneiros; mas notemos que o erro dos antigos refere-se apenas interpretao da lei, ao passo que o de nossos es-critores modernos refere-se ao prprio princpio.41

    Com certeza, o direito da fora terrvel em seu exer-ccio, quando se trata de submeter uma populao recalci-trante, que mereceria precisamente ainda mais apreo por resistir com maior energia. Mas os excessos que acom-panham a guerra no devem nos fazer perder de vista o princpio do direito a implicado; tampouco os erros ju-dicirios, a venalidade dos magistrados, a obscuridade da lei, a astcia dos advogados, no devem nos fazer ignorar a justia que presidiu a organizao dos tribunais; da mes-ma forma, o adultrio no constitui um argumento contra o casamento, ou o dolo,42 ou a falta de palavra um argu-mento contra a utilidade e a moralidade dos contratos.

    esse sentimento invencvel de um direito implicado na guerra, que em primeiro lugar fez com que ela fosse envolvida com numerosas formalidades, que colocou suas condies e regrou suas consequncias, como se se tratasse de um debate judicirio. Por exemplo, um fato universal que a condio concedida ao vencido seja pior do que a que ele teria obtido por uma submisso voluntria, e isso ainda totalmente justo. Aqui, o derrotado, como o reque-rente que fracassa, encarrega-se dos custos; o agravamento de sua sorte a compensao dos danos que causou, por sua resistncia, ao vencedor.

    Conseguimos compreender, e bom que eu repita para no dar ensejo a calnias, que no se trata aqui de justi0-

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    car qualquer espcie de guerra e tampouco desculpar ou aprovar tudo o que se faz na guerra. Ocorre com relao a esse direito o mesmo que acontece com todos os outros, cujo reconhecimento de forma alguma legitima os abu-sos. O corao humano cheio de paixes; suas obras so impuras; mas o direito santo, tanto na guerra quanto no trabalho e a propriedade.

    As circunstncias nas quais o direito da fora torna-se aplicvel e, em consequncia a guerra legtima, como ao reivindicando esse direito, e como soluo de um litgio internacional, so de vrios tipos; notaremos as quatro principais:

    1) Incorporao de uma nao em uma outra nao, de um Estado em um outro Estado; absoro ou fuso de duas socieda-des polticas. o caso que nos serviu de exemplo, o pri-meiro que se apresenta, e o mais importante, seno o mais frequente de todos. Todos os Estados modernos, quando sua populao atinge um ou dois milhes de almas, so o produto, mais ou menos legtimo, da guerra, do direito da fora. Assim, formou-se pouco a pouco o antigo rei-no da Frana, inicialmente atravs da conquista romana, que reduziu sob o mesmo jugo todas as nacionalidades que compunham a primitiva Glia; depois, pela conquis-ta franca que, por ocasio da dissoluo do imprio, as-sistida pelo episcopado, preservou a unidade; 0nalmente, pela reunio ao domnio real de todas as provncias que o regime feudal separara do centro. Fica evidente, pela sim-ples inspeo do mapa, que as necessidades de vizinhana, bem mais que as semelhanas mais ou menos marcantes dos idiomas, da religio, dos usos e costumes, que levou a multiplicidade de pequenos Estados compreendidos entre os dois mares, os Pirineus, o Reno e os Alpes, a se fundi-

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    rem em um Estado nico; Estado que naturalmente assu-miu o nome, o ttulo e a lei daquele cuja posio central e fora superior designavam de antemo como ncleo de atrao. Sob os romanos conquistadores vindos de fora, o centro encontra-se um pouco por toda parte; mas com os reis Francos ele se 0xa em Paris; e para aquele que estuda a disposio das diversas bacias que dividem o solo francs, 0ca claro que a escolha dessa capital no de modo algum um feito do homem, mas um feito da prpria natureza.

    Aqui se mostra pela primeira vez na origem da guerra e da conquista, na origem das prprias sociedades, um princpio que encontraremos a partir de ento em perptua contradio com o direito da fora: o direito de nacionali-dade. Desde Hobbes j foi exaustivamente dito e repetido: uma nao, um Estado, uma pessoa coletiva, dotada, como o indivduo, de uma vida prpria; possuindo sua liberda-de, seu carter, seu gnio, sua conscincia e, em conse-quncia, seus direitos, cujo primeiro e mais essencial a manuteno de sua originalidade, de sua independncia e de sua autonomia. Mas assim como j observamos, todos esses direitos devem se apagar diante da necessidade que, multiplicando os homens, desenvolvendo as populaes e os Estados, fora-os a se juntarem, a se penetrarem, se fundirem: da a guerra, da as prerrogativas da fora. O que ocorre ento no nada diferente do que acontece em qualquer sociedade civilizada quando dois direitos dife-rentes encontram-se em oposio: o interesse do menos importante que cede ao superior, e cujo direito, conse-quentemente, absorvido naquele do segundo. Assim, no caso de utilidade pblica, h desapropriao do simples particular, mas salvo ressarcimento prvio. Aqui, a expro-priao no passa do exerccio do direito da fora; a inde-

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    nizao, que sua condio, representa o direito privado, que o direito geral vem absorver.

    Assim, a guerra, o exerccio do direito da fora, de nao a nao, e a conquista que se segue, o sacrifcio de uma ou mais dessas pessoas morais, nomeadas naes ou Estados, a uma necessidade superior, que nesse caso contempla o res-peito devido a essa pessoa moral e seu direito existncia.

    2) Reconstituio das nacionalidades. Este motivo o inverso do precedente. Ele tem lugar todas as vezes que, pela dissoluo de um grande Estado, as partes que o compem, e que at ento se encontravam fundidas num Estado comum, tendem a se desagregar, obedecendo no mais atrao do centro, mas a suas atraes e repulses particulares. Assim, do antigo imprio dos Persas, fun-dado por Ciro, formaram-se, aps a morte de Alexandre, todos os pequenos reinos que foram o apangio dos gene-rais macednios e subsistiram at a chegada dos romanos. Assim, da dissoluo romana, favorecida pela invaso dos brbaros, renasceram todas as nacionalidades que Roma engolira; a prpria Itlia obedeceu a esse movimento de reao, e vimos como todas as cidades destacaram-se da metrpole com um ardor juvenil, que foi para a Itlia preciso certamente reconhecer o ponto de partida de uma vida de esplendor, de inKuncia universal e de glria. Em um dia, o trabalho de seis sculos foi destrudo, e o que a Itlia havia representado para o mundo pela uni-dade, agora ela se tornara pela federao. Assim se ex-plica a agitao que sob nossos olhos trabalha o imprio da ustria, aglomerao ao mesmo tempo monrquica e federativa de naes reunidas metade pela guerra, metade pelos tratados. justamente no momento em que o go-verno imperial ia completar sua obra de centralizao que

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    vemos essas nacionalidades, submetidas durante muito tempo, protestar contra sua fuso mtua, reivindicar seus privilgios, suas velhas cartas, sua autonomia: o que, caso a fora centrfuga superasse a fora centrpeta, levaria dissoluo do imprio.

    No ponto de condensao a que chegaram, o agrupa-mento por grandes massas continua sendo, at nova or-dem, a lei dos povos da Europa. Sua segurana comum, os interesses de seu comrcio, de sua indstria, de seu desenvolvimento intelectual e moral, o interesse superior da civilizao universal, fazem dessas grandes associaes uma necessidade.43 Foi sob essas condies que se formou o imprio austraco, fragmento mais considervel do im-prio apostlico fundado por Carlos Magno, ilustrado por Oto, o Grande (912-973), Barbarossa (Frederico I, 1122-1190) e Carlos V (1500-1558). Agora, novas ideias, novos interesses agindo sobre as populaes. Enquanto o governo de Viena, pressionado pela incurso do exterior, busca sua salvao na concentrao das foras do imprio, os povos que o compem temem que uma maior coeso s signi0que para eles um agravamento de sua servido, e na hora mais crtica, reivindicam o benefcio de sua nacionalidade. Questo de guerra, consequentemente, a menos que uma transao, que nesse caso no teria nada de desonroso para ningum, evite o conKito. Talvez, para trazer a coeso nessa divergncia, seria preciso apenas o sacrifcio de uma dinastia: o sacrifcio das dinastias, assim como o das nacionalidades, tambm uma lei da histria, Videbit Deus. A vida moral, a conscincia, a fora, est em Viena, em Budapeste, em Praga ou em Agram? Toda a questo encontra-se a.

    3) Incompatibilidade religiosa. No de forma alguma

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    como juiz da doutrina que por vezes a guerra intervm nas questes de religio; evidente que a teologia no tem nada em comum com o exerccio da fora. A guerra tampouco tem a pretenso de decidir, entre duas crenas, qual seria a verdadeira; entre duas opinies teolgicas, de qual lado se encontraria a ortodoxia e de qual a heresia. Para ela, trata-se simplesmente de decidir, entre duas fra-es de um mesmo povo dividido em sua religio e para quem a tolerncia impraticvel, qual das duas fraes dever abraar a religio da outra, como a criana segue a religio de seu pai para no se ver excluda da comunho paterna. Teu povo ser meu povo e teu Deus ser meu Deus, dizia Ruth, viva e desolada, sua sogra Noemi, que lhe propunha que voltasse para o pas de Moab.44 essa, pre-cisamente, em matria de religio, a mxima que a guerra impe fraqueza.

    Nas primeiras sociedades, onde a religio se confunde com a legislao, o sacerdcio com o poder, o culto com a justia e a moral, a tolerncia, fundada unicamente sobre a separao entre a Igreja e o Estado, impossvel; a unidade da religio necessria. A religio, identi0cada com a jus-tia, a poltica e os costumes, a prpria vida da sociedade. Ela representa para a alma aquilo que o alimento signi0ca para o corpo. O homem realmente religioso no consegue suportar o dissidente ou o mpio mais do que o homem fsico aguentaria que um vizinho malvado corrompesse o ar que ele respira, a gua que ele bebe, o po de que se nutre; ou que ele envenenasse seu rebanho, destrusse suas rvores, devastasse suas colheitas ou ameaasse seu domiclio. possvel que dentre as duas religies em con-Kito nenhuma seja a boa, possvel que ambas tenham o mesmo valor, possvel que a religio do mais fraco seja

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    melhor que a do mais forte. No com isso que a guerra se preocupa; como j disse, ela no conhece dogmas. A nica coisa que lhe compete j que as duas seitas no se suportam, uma delas devendo ser aniquilada decidir, pelas vias da fora, a quem incumbir o sacrifcio, fato que no permite a0rmar que a guerra seja injusta. No ela que excomunga; longe disso, a deciso que ela chamada a tomar implica que a seus olhos todas as religies se equi-valham, enquanto so uma apresentao da pura justia; nesse sentido, pode-se dizer que a razo da guerra est de acordo com a do 0lsofo. Em matria de religio, a guerra a prpria tolerncia.

    A histria est cheia de execues sangrentas, que nunca repugnaram qualquer Igreja, qualquer sinagoga, qualquer sacerdote. A guerra dos albigenses um belo exemplo dis-so. Que sejam oportunamente acusadas a loucura humana, a superstio, o preconceito, o fanatismo, a hipocrisia. Isso no difcil para ns que vivemos sem religio, e para a maioria dos quais, ao se perder o sentimento religioso, foi perdido at o sentido moral. Mas, se belo morrer por seu pas, no o menos morrer por sua f: no 0nal das contas, um no diferente do outro. Quanto guerra, aqui ela irrepreensvel. No dia em que o furor das seitas forou-a a intervir, ela fez a nica coisa que devia ser feita, sacri0-cando, com o mnimo derramamento de sangue (estou ra-ciocinando com a hiptese de uma guerra formal) o mais fraco ao mais forte. Sem dvida, triste para um crente perder sua religio e seu Deus num combate de espada. Mas atualmente, essas imensas dores no nos tocam mais do que se ocorressem na pera. No fundo, o que a civi-lizao perderia passando de Osris ou Baal a Mitra, de Mitra a Jeov, deste a Jpiter, de Jpiter a Cristo, do Papa

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    a Lutero? atravs dessas variaes e dessas apostasias45

    que aprendemos a separar a f da razo, o culto da justia, a Igreja do Estado. Nunca, ouso dizer, um julgamento rea-lizado pela fora foi mais bem motivado, ou uma execuo mais fecunda ou legtima.

    4) Equilbrio internacional, delimitao dos Estados. Esse princpio de litgio, da delimitao do territrio e o mximo de extenso de um Estado, cuja presena pode ser facilmente constatada na maioria das guerras antigas e modernas, tornou-se, desde o Congresso de Viena, em 1814-1815, o prprio objeto do direito europeu das gen-tes. As aplicaes da lei de equilbrio so frequentes na histria, assim como provou Ancillon em seu Quadro das revolues do sistema poltico na Europa.46 energia dessa lei que a Prssia deve, no sculo XVIII, o fato de ter se tornado repentinamente uma grande potncia, formando simultaneamente um contrapeso para a Rssia, a us-tria, a Frana e para os Estados Escandinavos.47 Tal como foi colocado pelos tratados de 1814 e 1815, o princpio de equilbrio internacional no pode ser considerado como a ltima frmula do direito das gentes, assim como iremos demonstrar no volume seguinte. Mas tampouco podera-mos nos recusar a ver a uma preparao para uma ordem superior das coisas e como o incio de uma paz de0nitiva.48

    O equilbrio poltico, diz Eugne Ortolan,49 consiste em organizar entre as naes que fazem parte de um mes-mo sistema, uma distribuio e uma oposio de foras tal que nenhum Estado seja capaz, sozinho ou reunido a outros, de impor sua vontade, nem de oprimir a indepen-dncia de nenhum outro Estado; e se exato dizer que o equilbrio de foras diversas obtido pela combinao desses dois dados, a intensidade e a direo, reconhecere-

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    mos que entre naes a intensidade composta de todos os elementos quaisquer, materiais ou imateriais, que so de natureza a constituir a potncia, o meio e0caz de ao; quanto direo, ela determinada pelo interesse. Portan-to, preciso combinar a distribuio dos diversos elemen-tos de poder e as aproximaes ou oposies de interesses para criar, num dado momento e num grupo de naes, um estado de equilbrio, no se perdendo de vista a extrema mobilidade dos elementos de poder, e principalmente dos interesses. A cada dia eles podem se modi0car e o equilbrio correr o risco de alterar-se por algo que aumentar ou di-minuir alguns e vir unir ou dividir outros.50

    Essas consideraes do Sr. Ortolan implicam toda uma teoria do direito de fora, toda uma 0loso0a da guerra, quatro palavras que parecem urrar ao serem acopladas, mas que no deixam de exprimir, por sua reunio, uma rigorosa verdade. Elas levam seguinte consequncia, que tomo a liberdade de recomendar s meditaes do sbio ju-risconsulto: que, se desde h um sculo, graas ao princpio de equilbrio, ou como dizia Ancillon, das contraforas, o di-reito das gentes fez algum progresso, ele deve esse progresso no negao do direito da fora, mas sua a0rmao, diria quase que sua restaurao, no sentido literal e ma-terial que os antigos lhe atribuem.

    So esses, em geral, os poderosos motivos, os interesses sagrados, da alada da fora, que antigamente enchiam de entusiasmo a alma do guerreiro. Bem mais que o sujeito perdido em nossos grandes Estados como a gota dgua no oceano, bem mais que o campons de nossos campos, o burgus e o operrio de nossas cidades, o homem da cidade antiga sentia em si a ptria e a soberania. Ele s era homem atravs disso: fora disso, perdia tudo, riqueza, dig-

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    nidade, liberdade. Eis o que dava sentido grande palavra de Tirteu, traduzida por Horcio: Dulce et decorum est pro patria mori, doce, glorioso morrer pela ptria; palavra que a plebe romana do tempo de Augusto comeava a no mais compreender e que as naes modernas tampouco compreendem melhor. Que diferena faz, por exemplo, para o campons da Lombardia, viver sob o protetorado do Piemonte ou da ustria, se a renda que ele paga ao burgus sempre a mesma; se, como o colono antigo, ele tem que permanecer para sempre um pobre diabo?51

    Nessa luta da fora, tudo belo, generoso, sublime. as-sim que a honra da vida eleva-se para o cidado, em pro-poro a seus sacrifcios. Pode-se dizer que atravs dessa magnanimidade da guerra que o vencido que caiu em servi-do mais honorvel do que aquele que, sem combate, aceita a incorporao de seu pas e a ab-rogao de sua soberania.

    Se a justia nossa alta prerrogativa e seu culto coti-diano a condio de nossa felicidade, os dias de batalha e falo aqui de batalhas legtimas devem ser para os combatentes dias de santa alegria. A hora, marcada pelo destino, soou. Duas naes se defrontam: trata-se de saber qual dever dar seu nome outra e absorvendo-a, duplicar sua prpria soberania. Quem as impele a esse duelo? A fora das coisas, a ordem da Providncia, diz o cristo; a lei das esferas, diria Maquiavel.52 Pois bem, exclamam to-dos juntos, morramos ou salvemos a honra de nossos pais e a imortalidade de nossa raa!

    A guerra, sem dio ou injria, entre duas naes ge-nerosas, por uma questo de Estado inevitvel e de qual-quer outra forma insolvel; a guerra, como reivindicao do direito da fora, da soberania que pertence fora:

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    isso, eu no escondo o que me parece ser o ideal da virtude humana e o cmulo do encantamento. Quem ousaria aqui falar de ladres e assassinos?

    Vocs desejam ter um brilhante testemunho da reali-dade do direito da guerra, de sua necessria interveno na sociedade? Olhem o que acontece, nesse momento, com o chefe da Igreja crist. Na queda do imprio, sob os repetidos golpes da barbrie, a Itlia cai em dissoluo. As cidades, devolvidas a suas naturais atraes, trabalham, cada qual de seu lado, para reconstituir sua independncia. O cristianismo era a lei universal, a Igreja, tendo o papado como centro, a nica potncia. Seria fcil para a Roma crist refazer uma Itlia compacta, armada contra qual-quer inKuncia de fora, se o chefe da Igreja tivesse sido, como o cnsul antigo, como o imperador pago, ao mes-mo tempo pont0ce, magistrado e general. Mas o Cristo tinha declarado que seu reino no era desse mundo; ele prprio tivera o cuidado de separar o espiritual do tempo-ral; passagens formais da lei probem o sacerdote de sacar o gldio. Para realizar a recomposio do Estado italiano, o Papa s possui o raio do santurio, a excomunho. Seu poder de opinio enorme: tudo se prostra quando ele espalha a beno ou quando fulmina o antema; tudo se ergue e lhe resiste, desde que ele queira governar, con-quistar ou combater. A Itlia, graas a essa impotncia do pont0ce de paz, permanece profundamente dividida. Por si prprio, o Papa incapaz de se constituir um domnio: ele dever esperar, da lana do rei franco53 ou da muni0-cncia de uma condessa,54 o pobre dote de que ele prprio quase nunca desfrutar. No podendo se tornar conquis-tador, ele servir para impedir qualquer outra conquista: ir paralisar o el imperial, minar o rei, ou dissolver as

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    repblicas. E veremos a Itlia da Idade Mdia, depois de ter renovado durante mais de mil anos as cenas hericas e todas as magni0cncias da antiga Grcia, aps ter iniciado a Europa na poltica, nas cincias e artes, tombar exausta, tornando-se presa do estrangeiro. A Itlia caiu porque o Papa, no qual residia a maior autoridade da Itlia, era um soberano apenas de ordem moral; porque, vicrio de Jesus Cristo, no lhe permitido, pelo testamento de seu divino autor, tornar-se nem conquistador, nem rei, nem impera-dor; em uma palavra, porque a constituio de sua Igreja probe-lhe o exerccio do primeiro e mais essencial dos direitos do Estado, o direito da fora.

    Foi em vo que, desde Carlos V e a Reforma, os prnci-pes do temporal entraram pouco a pouco em acordo para reconhecer e garantir um Estado prprio para o chefe do espiritual; foi em vo que os tratados de 1815 consagraram esse arranjo e garantiram ao pont0ce romano o apoio dos exrcitos aliados, catlicos, gregos e protestantes: a con-tradio de uma potncia no-guerreira cada vez mais explosiva. Com certeza o sculo XIX um sculo da di-plomacia, caso isso exista. Mais do que em qualquer outra poca, as questes procedem da razo pblica e tendem a ser regradas pela via das transaes e dos Congressos. Que vantagem para um governo que declara dever tudo reli-gio, piedade dos povos, s mais respeitveis tradies, solidariedade do altar e do trono! No verdade que, se a paz fosse o princpio, a condio e o objetivo dos Estados, ento o maior dos Estados, o mais poderoso, seria aquele com o maior poder de absoro, a Igreja?

    Mas a diplomacia, quando detm a palavra, no passa do rgo o0cial da guerra; a poltica entre as naes , no fun-do, apenas a razo das armas, o direito da fora. Eis porque,

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    nos Congressos das potncias, o soberano pont0ce no as-sume a palavra,55 a no ser para entoar o Te Deum e invocar o Esprito Santo. Eis porque, no contando para nada, nem nos campos de batalha, nem nas conferncias dos soberanos, a sua poltica prpria, sua poltica de sacerdote, dissolver as foras que ele no consegue dominar. No podendo con-quistar a Itlia, o Papa s trabalha para imobiliz-la, ora por suas prprias divises, ora pelas armas estrangeiras. Foi o que vimos em 1848, quando Pio IX recusou-se a seguir o povo na guerra contra a ustria:56 Eu sigo, ele diz, o pai comum dos 0eis; no me permitido fazer a guerra contra uma frao de meu rebanho. Como assim, Santo Pai, nem mesmo para a libertao da ptria italiana? No, nem mesmo para a libertao da ptria italiana. A ptria uma questo de Estado, e o reino de Cristo no deste mundo. Pois bem, ento no sejais o chefe do Estado italiano, noli ergo imperare, pois a vida da Itlia, convosco, o suic-dio. A Itlia no pode permanecer ponti0cal e viver.

    Hoje, a Itlia parece estar despertando. Ela expulsou, ou quase, o estrangeiro; e os sditos do Papa o abando-nam. A partir de agora, a Igreja foi colocada fora da po-ltica, fora do temporal, na Itlia e nos Estados ditos da Igreja, assim, como na Frana, na ustria e nos Estados catlicos. Vocs conseguem conceber um ideal relegado para fora da vida universal e da realidade das coisas? Uma palavra, uma s palavra, determinou essa grande runa: O reino do Cristo no deste mundo. Seu vigrio segura o ca-jado, no o gldio. Como esse pastor pode reinar sobre os homens, se ele no pode combater? No difcil perceber: se existe algo que condena irremissivelmente a soberania temporal dos papas, exatamente isso. O Papa no um califa; est proibido de comandar seus exrcitos. E cuida-

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    do, caso lhe seja concedido um general, para que cedo ou tarde ele no seja suplantado por seu general.

    Traduo de Martha Gambini.

    Seleo e reviso tcnica de wiago Rodrigues.

    Notas1 Traduo a partir da edio: Pierre-Joseph Proudhon. La guerre et la paix. Tome Premier. dition tabli par Herv Triquier et Henri Moysset. Antony,

    ditions Tops/H. Trinquier, 1998.

    2 Astreia, deusa da Justia que viveu entre os homens durante a idade de ouro.

    3 Proudhon se refere a Virglio (70 a.C- 19 a.C.) e ao verso de seu poema Eneida. (N.E. francs)

    4 A batalha de Actium ocorreu em 31 a.C. Diocleciano dividiu o Imprio em 286, e substituiu a diarquia, que durou sete anos, pela tetrarquia, ou go-verno de quatro imperadores, em 293. Constantino restabeleceu a unidade do Imprio aps uma luta de 18 anos (306-324). Ao pacto entre o Papa e Carlos Magno, selado no ano de 800, seguiu-se a querela das investiduras que s teve 0m em 1268, com a morte de Conradino.

    5 Aeneas Silvius Piccolomini (1405-1464), Papa sob o nome de Pio II, ten-do apelado em vo a todos os prncipes de Europa, encabeou ele prprio uma expedio contra os Turcos, tendo morrido em Ancona. (N.E. francs)

    6 Esse Tratado, traduzido para o francs em 1724 por Jean de Barbeyrac, foi composto durante as convulses da Holanda que levaram Grotius, condena-do priso perptua, a refugiar-se em Paris. (N.E. francs)

    7 Emile de Girardin. Le Dsarmement europen. Paris, 1859.

    8 O abade Deguerry, cura de Santo Eustquio em 1849, era proco da Ma-dalena, quando foi fuzilado em 1871. O pastor Athanase Coquerel foi re-presentante do povo em 1848. Cf. Discours (1850). Sobre o congresso da paz em 1849, cf. Congrs des amis de la paix (1850). (N.E. francs)

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    9 O tratado de Viena (1815) teve por objeto a reorganizao da Europa, con vulsionada por 20 anos de guerras. Ele levantou vivas crticas, como ter sido elaborado segundo os interesses dos soberanos, sem levar em conta as popula-es. Apesar disso, permitiu cerca de 40 anos sem guerra. Ver livro II, captulo VIII; livro III, cap. X e o livro de Proudhon: Si les traits de 1815 ont cess dxistir [Se os tratados de 1815 deixarem de existir] (1863). (N.E. francs)

    10 Sob a Restaurao (de 1815 a 1830).

    11 Partido do meio termo (parti du juste milieu), animado sob a Restaurao por Royer-Collard e Guizot.

    12 Penses e r7exions morales et politiques, pelo Sr. De Ficquelmont, Ed. de Barante, in 8, 1859, p. 120. O conde de Ficquelmont (1777-1857), diplo-O conde de Ficquelmont (1777-1857), diplo-mata e homem de Estado austraco, autor de vrias obras polticas, espe-cialmente sobre a questo do Oriente e sobre a Inglaterra.

    13 As declamaes dos economistas e dos reformadores de 1848, formam um estoque considervel de livros e de brochuras, tanto sobre os meios de redu-zir as despesas militares, quanto sobre os projetos de utilizao do exrcito em trabalhos produtivos. De acordo com Fourier, opem-se aos exrcitos destrutivos que assolam periodicamente a terra, os exrcitos industriais que, em vez de devastar trinta provncias num campo, iro construir 30 pontes sobre os rios, etc. (8orie des Quatre Mouvements). Da vm os projetos de reforma do exrcito e planos de colonizao. (N.E. francs)

    14 Pequena guerra: simulacro de combates.

    15 Ccero. De o9cis, livro I, cap. XI. A passagem mencionada por Proudhon fora citada por Hugo Grotius em seu livro O direito da guerra e da paz, pu-blicado em 1625. (N.E.)

    16 Poltica, livro IV, cap. II.

    17 Cidado romano.

    18 Grotius, op. cit., Livro II, cap. I, 15; II, 23, 8 e 10; III, 20, 43-46 e 53. (N.E. francs)

    19 Samuel von Pufendorf (1632-1694) foi jurista nascido na Saxnia, per-tencente hoje Alemanha, e produziu reKexes inKuentes sobre o direito das gentes incio da codi0cao que seria conhecida, a partir do sculo XVIII como direito internacional impactado pelos acontecimentos da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), concluda com a celebrao dos Tra-

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    tados de Westflia, considerados o primeiro conjunto de regras a registrar a emergncia do sistema internacional moderno. Proudhon consultou e citou o livro O Direito Natural e das Gentes, publicado em 1672. (N.E.)

    20 Samuel von Pufendorf, traduo de Barbeyrac, op. cit, livro VIII, cap. VI.

    21 Emerich de Vattel (1714-1767) foi um jurista e diplomata suo conside- rado dos mais inKuentes autores do nascente direito das gentes, posteri-ormente, direito internacional. Proudhon utiliza seu livro mais conhecido O direito das gentes, publicado em 1758. Disponvel no Brasil: Emerich de Vattel. O direito das gentes. Traduo de prefcio de Vicente M. Rangel. Braslia, Ed. UnB/IPRI, Col. Clssicos IPRI, 2004. (N.E.)

    22 Vattel, traduo de Royer-Collard, (1837), livro III, cap. I, tomo II, p. 75. (N.E. francs)

    23 Vattel, Le droit des gens, Notes et table gnrale, por S. Pinheiro-Ferreira, 1839, t. III, p. 358. (N.E. francs)

    24 Ordlia: tortura provando a culpabilidade do criminoso caso Deus no viesse intervir.

    25 Direito de postliminie: anulao de tudo que deriva do poder de fato exer-cido por um inimigo durante uma ocupao. (N.T.)

    26 Proudhon resume aqui em uma frmula o XIX dos Prolegmenos do Tratado de Grotius. (N.E. francs)

    27 Friedrich Ancillon, op. cit., t. I, discurso preliminar.

    28 Principes mtaphysiques du droit, traduo de Tissot (1853).

    29 Op. cit., t. II.

    30 Op. cit., t. II., p. 230, nota.

    31 Schutzenberger, tudes sur le droit public (1841).

    32 Kant, traduo de Barni. Cf. Jules Barni. Histoire des ides morales et poli-tiques au XVIIIe. sicle, t. I, pp. 87 e seg; t. II, p. 217 e seg.

    33 Hautefeuille, Droits et devoirs des nations neutres en temps de guerre mari-time, 2 ed., 1858.

    34 Hissopo: pequena planta. Em lembrana da linguagem bblica, usamos seu nome, opondo-o ao cedro, para designar algo pequeno, sem importncia.

    35 Macabeus, Livro I, cap. I, B.

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    36 Tito Lvio, l. VII, cap. 31.

    37 A dinastia um dos dados da sociologia da fora esboada em A Guerra e a paz; ela serve para se compreender a atitude de Proudhon com relao ao movimento das nacionalidades, em 1860, e para explicar sua concepo da geopoltica da Europa. Ver abaixo, livro II, cap. X e cap. XI; livro III, cap. II. (N.E. francs)

    38 Histoire du droit des gens, por F. Laurent, t.II, p. 205.

    39 Franois Laurent (1810-1887), professor de direito civil na Universidade de Gand; ardente protagonista do Partido Liberal Belga.

    40 Proudhon se refere a Denis ou Dionsio de Halicarnasso (60 a.C.- 07 a.C.), historiador e 0lsofo grego do perodo da dominao romana que produziu, entre outros escritos, Uma Histria de Roma, que se propunha a narrar os feitos romanos desde a fundao mtica at as Guerras Pnicas, contra Cartago. Denis teria procurado compatibilizar e justi0car o fato da dominao romana sobre os gregos propondo que os primeiros descendiam dos segundos. (N.E.)

    41 A obra de F. Laurent, 5 vol., in 8 resume-se a um longo protesto, em forma de repertrio histrico, contra o direito da fora. inoportuno que o autor no tenha percebido que esse direito, que ele reprova, constitui toda a subs-tncia e a alma da histria e que, negando-o, ele tenha privado a si prprio da ideia, e consequentemente da glria de uma obra magn0ca. (A obra de Lau-rent, completada a seguir, compreende 18 volumes in 8, 1859 e seguintes).

    42 Dolo: fraude na concluso de um ato jurdico.

    43 Aqui, Proudhon toma o contrap de Rousseau. Ver tambm Montesquieu. R7exions sur la monarchie universselle en Europe: En Asie on a toujours vu des grands empires; en Europe, ils nont jamais pu subsister e Esprit des lois, livro IX. (N.E. francs)

    44 Bblia, Livro de Ruth.

    45 Apostasia: renncia pblica a uma con0sso por interesse pessoal.

    46 Friedrich Ancillon (1767-1837) foi um historiador militar prussiano de ascendncia francesa que chegou a ocupar o cargo de professor na Acade-mia Militar de Berlim, sendo, tambm, tutor do prncipe Frederico, futuro Frederico Guilherme IV da Prssia. O livro citado por Proudhon foi um famoso ensaio sobre as causas da guerra publicado em 1803. (N.E.)

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    47 Entre 1640 e 1786, a Prssia ir se tornar uma das grandes potncias europeias.

    48 Proudhon desenvolve essa reKexo no livro V, cap. III e IV. (N.E. francs)

    49 Eugne Ortolan (1824-1891), jurisconsulto e compositor.

    50 Des moyens dacqurir le domaine international. Tomei esta citao do Sr. Verg, editor de Martens (t. II, p. 317), j que no tinha em mos a obra do Sr. Ortolan (In- 8, 1851).

    51 Em O Princpio Federativo (1863), pp. 39-40, ed. Tops, Proudhon escreve: Mas posso dizer por enquanto, a respeito da Itlia... que esta unidade... no nada diferente no pensamento dos hbeis do que um negcio, um gran-de negcio, metade dinstico e metade bancocrtico. Note-se, entretanto, que Proudhon simpli0ca excessivamente a realidade e ignora fatos como o papel dos clrigos no movimento das nacionalidades. Ele era, na Itlia de 1860, anlogo ao que ser mais tarde na Polnia, na Crocia, na Transilv-nia. (N.E. francs)

    52 Maquiavel (1469-1527) professava uma espcie de astrologismo cujo pri-meiro princpio era o movimento das esferas: o curso das estaes, a organi-zao das sociedades e dos Estados, a passagem da monarquia aristocracia, da aristocracia democracia e retorno monarquia, as pestes, as carestias, a vida e a morte do homem so determinadas pelo movimento circular do universo. De acordo com um segundo princpio, todos os grandes aconteci-mentos eram anunciados por profecias ou prodgios. (N.E. francs)

    53 Pepino, o Breve, doou a Repblica dos Romanos (ou seja, o exarcado de Ravena) ao Papa Estevo II, em 754, e constituiu assim para o papado um domnio territorial que ele con0rmou aps sua segunda expedio na Itlia, em 756. (N.E. francs)

    54 A condessa Matilda, 0lha e nica herdeira de Bonifcio, marqus da Tos-cana, conde de Modena, Mntua e Rgio. Foi em seu castelo de Canos-sa que o imperador germnico Henrique IV (1056-1156) veio prestar sua con0sso de culpa a Gregrio VII. Ao morrer (1113), legou todos os seus domnios Santa S.

    55 A maioria dos publicistas no admitem a qualidade do Papa como pessoa do direito internacional, suas relaes com os diversos Estados sendo regra-das pelo direito pblico interno de cada Estado.

    56 Em uma alocuo proferida em 29 de abril de 1848. (N.E. francs)

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    A guerra e a paz

    Resumo

    Quando publicado pela primeira vez, em 1861, o livro A guerra e a paz, de Pierre-Joseph Proudhon, foi duramente atacado tanto por conservadores quanto por libertrios. Ele foi visto como uma elegia guerra e destruio por ela causada. Apesar da polmica em torno do livro, A guerra e a paz um dos menos lidos e comentados livros de Proudhon. Essa seleo de captulos em traduo indita ao portugus tem como objetivo apresentar uma anlise nica da guerra como a fora que pauta a vida humana e molda as relaes polticas, tanto dentro quanto fora dos Estados.

    palavras-chave: guerra, direito da fora, libertarismo.

    Abstract

    When the Pierre-Joseph Proudhons book War and Peace was !rst published, in 1861, it was toughly attacked both by conservatives and libertarians. It was seen as an elegy to the war and to the destruction caused by it. Despite the controversy around it, War and Peace is one of the less read and commented of Proudhons books. 8is selection of chapters for the !rst time published in Portuguese aims to present Proudhons unique analyses of war as the force that paces human lives and shapes the political relations both inside and outside the states.

    keywords: war, right of force, libertarianism.

    Recebido para publicao em 05 de agosto de 2010. Con!rma-do em 08 de novembro de 2010.