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A grafia psíquica da verdade no Diálogo Fedro The psichic speeling of truth in dialog Phaedrus Michelle Belatto 1 Resumo: No começo do Diálogo Fedro, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”. Entretanto, o “remédio” descoberto pelo menino Fedro, capaz de tirar o filósofo da cidade, de onde este não costuma sair, é um discurso escrito. Vista, inicialmente, como atividade reprovável em relação à fala, a escrita passa a ser compreendida, também, como um meio eficaz à grafia psíquica da verdade. Neste artigo, temos o objetivo de analisar qual o discurso mais adequado a ser escritor do verdadeiro na alma: o falado ou o escrito? Palavras-chave: Discurso. Escritura. Verdade. Alma. Abstract: In the beginning of the dialog Phaedrus, Socrates proclaims himself a “sick for to listen discourses”. However, the remedydiscovered by the boy Phaedrus, able to take the philosopher out from the city, from where Socrates do not usually go out, is a written discourse. Considered initially as reprehensible activity in relation to speech, the writting is understood also as an effective means to psychic speeling of truth. In this article, we aim analyse which is the discourse more adequate to be the writer of truth in the soul: the spoken or the written? Keywords: Discourse. Writting. Truth. Soul. * * * Em nossos dias, deparamo-nos com as mais diversas formas de discursos: impressos em jornais, revistas, livros; em áudio, veiculados pelas emissoras de rádio; audiovisuais, transmitidos pelas televisões e em circulação nos cinemas; eletrônicos, que misturam todos de maneiras bem peculiares, de acordo com as redes às quais pertencem; sem nos esquecermos daqueles face a face, que nos acompanham desde que nascemos e são a origem dos demais. Mas esses discursos sabem o que dizem e como dizer o que dizem? Sabem a quem falam e estão adequados a seus destinatários? Essas questões parecem-nos bastante significativas, se pensarmos na abrangência de uma sociedade globalizada sociedade da informação em que o tempo e o espaço, de modo geral, deixaram de ser limitadores comunicacionais. 1 Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, sob orientação da Profª Dra. Cláudia Drucker. E-mail: [email protected]

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A grafia psíquica da verdade no Diálogo Fedro

The psichic speeling of truth in dialog Phaedrus

Michelle Belatto1

Resumo: No começo do Diálogo Fedro, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”.

Entretanto, o “remédio” descoberto pelo menino Fedro, capaz de tirar o filósofo da cidade, de

onde este não costuma sair, é um discurso escrito. Vista, inicialmente, como atividade

reprovável em relação à fala, a escrita passa a ser compreendida, também, como um meio eficaz

à grafia psíquica da verdade. Neste artigo, temos o objetivo de analisar qual o discurso mais

adequado a ser escritor do verdadeiro na alma: o falado ou o escrito?

Palavras-chave: Discurso. Escritura. Verdade. Alma.

Abstract: In the beginning of the dialog Phaedrus, Socrates proclaims himself a “sick for to

listen discourses”. However, the “remedy” discovered by the boy Phaedrus, able to take the

philosopher out from the city, from where Socrates do not usually go out, is a written discourse.

Considered initially as reprehensible activity in relation to speech, the writting is understood

also as an effective means to psychic speeling of truth. In this article, we aim analyse which is

the discourse more adequate to be the writer of truth in the soul: the spoken or the written?

Keywords: Discourse. Writting. Truth. Soul.

* * *

Em nossos dias, deparamo-nos com as mais diversas formas de discursos:

impressos em jornais, revistas, livros; em áudio, veiculados pelas emissoras de rádio;

audiovisuais, transmitidos pelas televisões e em circulação nos cinemas; eletrônicos,

que misturam todos de maneiras bem peculiares, de acordo com as redes às quais

pertencem; sem nos esquecermos daqueles face a face, que nos acompanham desde que

nascemos e são a origem dos demais. Mas esses discursos sabem o que dizem e como

dizer o que dizem? Sabem a quem falam e estão adequados a seus destinatários? Essas

questões parecem-nos bastante significativas, se pensarmos na abrangência de uma

sociedade globalizada – sociedade da informação – em que o tempo e o espaço, de

modo geral, deixaram de ser limitadores comunicacionais.

1 Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, sob orientação da Profª

Dra. Cláudia Drucker. E-mail: [email protected]

A grafia psíquica da verdade no diálogo Fedro

Vol. 8, 2015.

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Em 370 a.C., Platão já manifestava a relevância de tais questionamentos, em seu

Diálogo Fedro, ao analisar discursos produzidos em sua época. Preocupado com a

constituição do conteúdo discursivo e seu direcionamento, o filósofo refere-se a um tipo

diferente daquela escrita dos livros e por que não dizer, hoje em dia, daquela diferente

da dos órgãos impressos, do divulgado nos meios audiovisuais, daquilo que percorre as

redes de comunicação e do que se passa em determinadas interações pessoais, caso

esses sistemas demonstrem, genericamente, descompromisso com os assuntos tratados e

com seus interlocutores: uma grafia psíquica da verdade, efetivada por meio de

discursos filosóficos.

No início do Diálogo platônico, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”

(PLATÃO, 2009, 228b), mas atentemo-nos para que o “remédio” (phármakon), o qual

Fedro descobre, capaz de tirar o filósofo da cidade, de onde este não costuma sair, é um

discurso escrito (PLATÃO, 2009, 230d). Com isso, notamos que a questão sobre a qual

proporemos refletir, neste artigo, já se anuncia, de algum modo, nas primeiras cenas do

Diálogo, embora nos pareça que Sócrates a apresenta a Fedro bem mais tarde, após a

exposição das exigências do que respeita à arte e sua ausência nos discursos, quando lhe

pergunta qual o melhor meio de agradar os deuses nessa matéria (PLATÃO, 2009,

274b). Tomemos, então, a indagação de Sócrates como base, a fim de analisarmos qual

o discurso mais adequado à escritura da verdade na alma: o falado ou o escrito?

Em A farmácia de Platão, Derrida (2005, p. 15), em quem nos ampararemos

nesta análise, afirma que um discurso pronunciado em pessoa não produziria o mesmo

efeito em Sócrates que um escrito. Somente as letras ocultadas em um objeto poderiam

fazer o filósofo desviar-se de seu caminho. Se as palavras fossem desveladas, não o

seduziriam. Que poder de sedução teria esse “remédio”, mencionando o termo que ele

próprio utiliza para referir-se ao texto – motivo pelo qual aceita passear para fora dos

muros com Fedro – a ponto de afastar-se de seu lugar de aprendizagem? (PLATÃO,

2009, 230d). Talvez, encontremos uma resposta no Mito de Theuth, uma tradição que o

filósofo ouviu dos antigos e a narra para tornar declarado o tema da conveniência ou da

inconveniência da escrita (PLATÃO, 2009, 274c).

Theuth – divindade responsável pela invenção da ciência do número e do

cálculo, da geometria, da astronomia, do jogo de damas e, sobretudo, da escrita – vai até

o palácio do rei egípcio, Tamos, e apresenta-lhe seus inventos, dizendo que precisam ser

distribuídos à população. O rei questiona a utilidade de cada um e, de acordo com as

explicações do deus, conforme lhe pareçam bem ou mal formuladas, censura-as ou

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louva-as. Ao chegar a vez da escrita, Theuth argumenta ser este um ramo do

conhecimento que tornará os egípcios mais sábios e com melhor memória. No entanto,

Tamos o adverte de que a descoberta provocará, nas almas, o esquecimento de quanto

aprendem, devido, justamente, à falta de exercício da memória: confiadas na escrita, não

obterão as recordações por si mesmas, mas por meio de algo externo. Desse modo,

seguidores de Theuth considerar-se-ão grandes sabedores sendo, na realidade,

ignorantes, tornando-se aparentemente sábios, sem o serem efetivamente e, por isso, de

trato difícil (PLATÃO, 2009, 274c-275b).

Assim como Sócrates diz que Fedro descobre o remédio que o arrasta ao

inabitual (PLATÃO, 2009, 230d), é como remédio – pois sendo tal, só pode ser

benéfico – à memória que Theuth – o deus da escritura – apresenta a escrita a Tamos – o

pai da fala (PLATÃO, 2009, 274e; DERRIDA, 2005, p. 50). Retomemos a lembrança

de Fedro enquanto Sócrates e ele procuram um lugar agradável para que o menino lhe

leia o manuscrito de Lísias: a história do rapto de Orítia por Bóreas, a qual morre

enquanto brinca com Farmaceia (PLATÃO, 2009, 229b-c). O termo “farmaceia”

significa administração do phármakon, da droga, remédio ou veneno (DERRIDA, 2005,

p. 14). Se Orítia morre ao brincar com Farmaceia – e este termo quer dizer, também,

administração do veneno – a escrita pode ser entendida como um veneno fatal que leva

a ninfa à morte.

Theuth mostra o contrário da perspicácia da escrita, ignorando sua ambivalência

por ingenuidade, como Orítia que – supomos – não sabia que brincar com Farmaceia

poderia acarretar-lhe seu fim, ou por astúcia, já que é, também, o deus da morte, do

exterior ao vivo, da aparência (DERRIDA, 2005, p. 36). Inventada pelo deus da

aparência, a escrita aparenta o que não é. Isto a torna semelhante à pintura, segundo

Sócrates: ambas parecem vivas estando mortas, sempre caladas e imóveis com seus

interagentes.

Quanto aos discursos escritos, especificamente, parece que o pensamento anima

o que dizem, no entanto se forem interrogados por quem pretende aprender sobre o que

falam, revelam sempre o mesmo: aquilo que neles já está impresso (PLATÃO, 2009,

275d). Nesse sentido, Sócrates afirma que, aquele que julga transmitir uma arte por

meio da escrita e aquele que a recebe, como se dela pudesse derivar algo de certo e

seguro, demonstram muita ingenuidade por acreditarem que os discursos escritos são

algo mais do que um meio de fazer recordar, a quem já sabe, as matérias ali tratadas

(PLATÃO, 2009, 275c-275d).

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1. Memória e recordação, fala e escrita

O Mito de Theuth (PLATÃO, 2009, 274c-275b) nos traz indicações do que

Platão entende por recordação e memória: ele faz uma distinção entre as duas,

caracterizando a recordação como a ação de trazer à tona certas memórias. A memória é

a própria compreensão viva dentro da alma; nela, guarda-se o conhecimento. Apenas é

possível a recordação de algo que já se sabe e quando o assunto é o saber, é impossível

apoiar-se em caracteres exteriores a si mesmo, pois o único lugar onde há clareza e

segurança quanto a isso é no interior da própria alma.

De acordo com essa distinção, parece-nos que a memória está mais relacionada

com a verdade que a recordação, pois o movimento da verdade é um desdobramento de

memória viva, como vida psíquica na medida em que apresenta-se a si mesma, na

reminiscência de alguma realidade supraceleste despertada por um objeto sensível que a

imite – sempre imperfeitamente. A recordação, por estar ligada à escrita, já que esta é

um meio de fazer recordar, aumenta o domínio da não-verdade, do não-saber, uma vez

que torna as almas esquecidas por confiarem no que lhes está fora.

A memória é viva e, como todo o ser vivo, limitada e finita. Ela tem necessidade

de algo para lembrar-se do que não está presente a si, deixando contaminar-se por um

suplente sensível: a escrita. Nas palavras de Derrida (2005, p. 56-58), há um limite

quase imperceptível entre a memória e seu suplemento: ambos os casos se tratam de

“repetição”. A memória viva repete a presença das realidades inteligíveis e a verdade é

“a possibilidade da repetição na lembrança”. Na repetição, no movimento reminiscente

da verdade, o repetido deve apresentar-se como o que ele é em sua inteligibilidade,

quando presenciado, pela alma, no supraceleste. A escritura é a possibilidade de algo

repetir-se sozinho, sem alma viva para mantê-lo e assisti-lo em sua repetição, sem ter

em si a apresentação da verdade.

O escrito, ao repetir-se e permanecer idêntico a si no seu formato, não se dobra

às diferenças entre os presentes e as necessidades de suas almas. O falante, ao contrário,

não se submete a esquemas preestabelecidos: conduz melhor seu discurso, acentuando-

o, retendo-o ou liberando-o, segundo os requisitos da ocasião oferecida pelo

interlocutor. Assistindo sua fala em sua operação, aquele que age pela voz penetra mais

facilmente na alma do ouvinte para produzir nela efeitos sempre singulares,

conduzindo-a, como se nela habitasse, aonde bem entender (DERRIDA, 2005, p. 60). É

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como age Sócrates que, conhecendo a alma de Fedro, adapta-lhe seus proferimentos,

ainda que, inicialmente, considere necessário ofender o deus Amor para isso (PLATÃO,

2009, 237b-241d).

Esse comprometimento, característico do discurso oral, solicita a constante

participação dos interlocutores no diálogo, fazendo com que concordem, contestem,

complementem o assunto para que a discussão siga. Assim, há um envolvimento direto

com a questão proposta, tornando qualquer ação intelectual de distanciamento mais

difícil, no sentido em que a atenção dos participantes é requerida. Entretanto, a

possibilidade de discutir passagens de um texto lido restringe-se aos limites da

memória. Um escrito, à mão, permite a quantidade de revisões necessárias a sua suposta

compreensão por seus leitores.

Observamos um exemplo quando Sócrates pede a Fedro que leia o começo do

manuscrito de Lísias novamente, ao falarem sobre o que é um discurso composto com

arte (PLATÃO, 2009, 263d). A releitura do texto lhes traz as palavras exatas que a

memória, por si só, dificilmente lhes traria, mas não podemos afirmar ou negar – de

imediato – que esse fato prejudica ou beneficia a análise do discurso em questão: isso

depende da finalidade e do desempenho dos interlocutores no exercício analítico.

Sócrates solicita que o manuscrito seja relido, porque sabe que este está presente, se não

estivesse, a análise do discurso seria feita do mesmo jeito – imaginamos – como são

feitas as análises dos proferimentos socráticos, que não são escritos.

Retornemos ao Mito de Theuth (PLATÃO, 2009, 274c-275b), personagem que

atribui à escrita a virtude de aumentar a possibilidade de armazenagem de conhecimento

para além da capacidade da memória convencional, ao prover o ser humano de um

aparato de registros da fala e do pensamento. A fala vincula-se à situação concreta na

qual é enunciada. Sua existência é ocasional na medida em que a mensagem não

sobrevive às circunstâncias de sua origem. Ela é breve, nunca se repete da mesma

maneira, submetendo-se à instabilidade da memória – falível por natureza. Mesmo um

texto decorado sofre alterações, dependendo da forma e do contexto em que é expresso

pelo locutor.

A excelência que a escrita possui, então, em relação à fala é o caráter,

aparentemente, permanente que o conhecimento adquire ao ser salvo de uma existência

passageira e particular. Porém, para Tamos, a atenção despendida com a escrita causará

desatenção com a memória verdadeira e dará aparência de sábio a quem não o é de fato

– pensamos que isso serve tanto para escritores, quanto para leitores: “Enquanto o sábio

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socrático sabe que nada sabe, aquele tolo não sabe que já sabe o que acredita aprender

da escritura, e que não faz mais que se repor em memória pelos tipos” (DERRIDA,

2005, p. 85). Não se trata de rememorar-se, por reminiscência, da realidade

contemplada antes da queda da alma no corpo, mas de lembrar-se, com o auxílio de um

acessório que não está dentro de si, de algo cujo saber já se possui (PLATÃO, 2009,

275d).

Apresentadas vantagens e desvantagens da escrita, interroguemo-nos, aqui, sobre

sua “decência” ou “indecência” – usando os termos de Derrida (2005, p. 12). É decente

escrever?

Ao ser compreendida como instrumento de persuasão do ouvinte, a fim de que

seus autores possam, por meio dela, serem enaltecidos, a escrita aparece como uma

atividade reprovável, conforme percebemos na seguinte frase socrática, ao referir-se aos

discursos dos políticos vaidosos da época: “[...] acaso te parece que semelhante

composição é outra coisa que não seja um discurso escrito?” (PLATÃO, 2009, 258a).

Sua conveniência - ou inconveniência - apesar de ainda não declarada no Diálogo,

começa a ser discutida quando Fedro lembra que Lísias, o qual podemos dizer que está

entre os tais políticos vaidosos, é acusado de logógrafo (PLATÃO, 2009, 257c). O

logógrafo é aquele que redige discursos que ele próprio não pronuncia, que não assiste

pessoalmente, cujos efeitos são produzidos em sua ausência. Ele ocupa a posição do

sofista: “o homem da não-presença e da não-verdade” (DERRIDA, 2005, p. 12).

Lísias exemplifica esse homem, pois emprestando seu manuscrito a Fedro, ele

substitui “a reanimação ativa do saber, sua reprodução presente, pelo ‘de cor’ mecânico

e passivo” (DERRIDA, 2005, p. 55). O garoto deseja saber o texto de cor para recitá-lo

a Sócrates e tentaria fazê-lo, se o filósofo não percebesse que ele o traz escondido

(PLATÃO, 2009, 228a-e). Podemos dizer, com isso, que o espaço aberto pela

substituição à qual nos referimos - da “reprodução presente do saber” pelo “de cor

mecânico” - marca a diferença entre memória e recordação, tendo em mente nossas

considerações anteriores a tal respeito. A escrita funciona somente como um

“recordatório” e não como um remédio à memória, não podendo ser confundida com o

processo de reminiscência interno à alma, detendo-a em seu estágio atual de

aprendizagem.

A propriedade que o discurso ganha, ao ser escrito e circular indistintamente

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entre as pessoas, contraria a necessidade retórico-psicagógica2 de que ele deve

direcionar-se a cada gênero de alma, de acordo com seu grau de esquecimento. Ele é um

sinal exterior que, talvez, ajude a atividade da reminiscência a realizar-se (PLATÃO,

2009, 270a-272b). Admitirmos a possibilidade de a escrita auxiliar na reminiscência da

alma significa admitirmos, a ela, um caráter reminiscente, levando em conta, também,

as posições atribuídas a Theuth e a Tamos, as quais mencionamos anteriormente.

Pensemos a respeito de sua ambivalência ou – se quisermos – ambiguidade,

ignorada por Theuth, mas, de determinada maneira, confirmada por Tamos ao opor-se a

seu criador. A escrita pode atuar em dois papeis no que se refere à reminiscência:

obstruí-la ou promovê-la, já que, sendo um phármacon, não podemos deduzir,

antecipadamente, o efeito de sua aplicação nos corpos ou – neste caso – nas almas em

geral. Sua eficácia ou ineficácia depende do estado de instrução da alma à qual é

aplicada e não pode ser avaliada abstratamente.

Desse modo, parece-nos que a conveniência da escrita é construída de acordo

com o gênero de alma com o qual ela estabelece relação, conforme o previsto pela

retórica filosófica. Existem tipos de discursos escritos, segundo a possibilidade que cada

um possui de remeter a alma ao que presenciou no suprassensível. Seu critério definidor

é a aproximação que cada discurso desenvolve com os tipos de alma aos quais se dirige.

Vemos que não é o caso do manuscrito de Lísias (PLATÃO, 2009, 231a-234c). Ele o

constrói pensando no propósito exclusivo de satisfazer seu desejo por Fedro, ignorando

as condições da alma do menino, impondo a este a realidade conveniente a sua meta. O

orador usa a retórica com o único objetivo de persuadi-lo, dissimulando o conhecimento

da verdade, ao insultar o Amor que, sendo um deus, não pode ser mau.

A construção de uma conveniência da escrita, e podemos dizer também da fala,

pressupõe o conhecimento da verdade na mente do autor (PLATÃO, 2009, 259d). A

verdade, a dialética3, a filosofia são os outros nomes do phármakon necessários à

oposição do phármakon dos sofistas: os homens da ”não-verdade”. A filosofia opõe à

sofística uma mudança do veneno que a escritura tem em sua potência em contraveneno.

Essa operação somente é possível, porque o phármakom abriga, nele mesmo, uma

cumplicidade dos valores contrários: dando-se como remédio, que pode corromper-se

2 Psicagogia é a condução da alma por palavras (PLATÃO, 2009, 271c). 3 A dialética é o método socrático a partir do qual os discursos devem ser elaborados, começando com a

definição do objeto a ser tratado, separando-o em sua multiplicidade sensível (objetos terrenos), até

chegar à sua unidade inteligível (verdades suprassensíveis). Porém, esse método não é suficiente a uma

grafia psíquica da verdade, já que não leva em conta o invisível de cada um: as particularidades de cada

alma.

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em veneno ou como veneno, que pode verificar-se remédio, conforme constatamos no

Mito de Theuth (DERRIDA, 2005, p. 72-73). Sócrates chega a tempo de evitar que a

contaminação causada pelo escrito de Lísias atinja fatalmente Fedro. O filósofo não

permite que o garoto se prenda à estagnação do texto, invertendo seu sentido

dissimulador com o antídoto encontrado em seu segundo proferimento, proclamando os

benefícios do Amor e encaminhando seu ouvinte da falsidade à verdade, com uma

intervenção retórico-dialético-psicagógica (PLATÃO, 2009, 245c-257a).

Nessa potencialidade de um remédio tornar-se veneno e vice-versa, a fala – o

“phármakon socrático” – também pode atuar como uma poção venenosa que invade a

alma. “O que se passa com esta analogia que [...] relaciona o phármakon socrático com

o phármakon sofístico e, proporcionando-os mutuamente, nos faz voltar de um a outro

indefinidamente?” (DERRIDA, 2005, p. 66-67). As relações entre suplemento de

escritura e fala consistem em “[...] letras instalando-se no interior de um organismo vivo

para lhe tomar seu alimento e confundir a pura audibilidade de uma voz”. A fim de

curar esse organismo, é preciso “expulsar seu parasita” e reconduzi-lo ao seu lugar,

fazendo com que ele – a escritura – torne-se, novamente, o que nunca deveria ter

deixado de ser: “um acessório, um acidente, um excedente” fora da alma (DERRIDA,

2005, p. 77).

No papel de um acessório, a escritura não pode ser independente da fala: é uma

fala enfraquecida, uma imagem do discurso vivo (PLATÃO, 2009, 276a), que não sabe

aonde ir nem sua identidade e a de seu pai. Quem é seu pai? (DERRIDA, 2005, p. 96).

2. Parentesco e frutificação

A escrita é rejeitada ao ser apresentada ao rei egípcio, que poderia ser seu pai, se

a tivesse acolhido (PLATÃO, 2009, 275a). Seu inventor, Theuth, não pode assumir sua

paternidade, pois sendo deus da aparência (DERRIDA, 2005, p. 36), ele apenas pode

causar uma falsa impressão paterna. Supostamente, o filho não sobrevive sem os

cuidados de um pai. Sócrates sabe-o bem: depois de escrito, cada discurso rola por

todos os lugares, apresentando-se sempre do mesmo modo, tanto a quem o deseja ouvir,

quanto a quem não lhe demonstra interesse, tanto aos competentes para entendê-lo,

quanto aos incompetentes, já que não consegue distinguir a quem deve falar e a quem

não. Além disso, sempre necessita do auxílio de seu autor por ser incapaz de defender-

se sozinho (PLATÃO, 2009, 275e).

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O fato de algo estar escrito não indica que pode ser compreendido por aqueles

que o leiam a qualquer instante. Isso quer dizer que o texto não pode alcançar a

profundidade da alma de qualquer um que se proponha a lê-lo, porque há a necessidade

de uma instrução, que já deve estar no leitor – senão, as tentativas de compreendê-lo

fracassam – para que haja a escritura psíquica do verdadeiro. Por ter apenas aparência

de vivo, o texto precisa de seu autor – seu pai – para poder ser vivificado, para reagir e

explicar-se, apresentando outros lados de si mesmo, com o fim de ser entendido

corretamente – da maneira correspondente à proposta do escritor.

Diante da insuficiência da escrita para sustentar a si mesma, Sócrates propõe um

outro tipo de discurso: aquele que se escreve, com conhecimento, na alma do aprendiz.

Um discurso feito por quem sabe do que trata, vivo e animado, capaz de socorrer-se,

saber falar e calar a quem convém. Ele é o modelo a partir do qual a escrita é uma cópia

– como os objetos sensíveis são cópias imperfeitas das realidades inteligíveis – uma

imagem. O possuidor do conhecimento é capaz de perceber o momento adequado e a

alma adequada à transmissão de seu discurso vivo e, para tanto, há de escolher a melhor

maneira de fazê-lo, servindo-se da dialética e de recursos retóricos que lhe auxiliem nas

adaptações psicagógicas pertinentes (PLATÃO, 2009, 276a).

Sócrates compara o detentor do conhecimento ao agricultor inteligente que usa

as técnicas de plantio, para fazer frutificar suas melhores sementes. Esse agricultor não

as sacrifica em “jardins de Adônis”, feitos para durarem apenas alguns dias durante a

festa em homenagem a esse deus. Nessa festa, as sementes são plantadas em vasos

expostos ao calor do sol, para florescerem e morrerem rapidamente, simbolizando a

morte prematura de Adônis. Contrariamente, o agricultor inteligente escolhe a melhor

terra e empenha o tempo necessário, ainda que longo, para cultivá-las. Tal qual esse

agricultor, o conhecedor da ciência do justo, do belo e do bom não escreve seu

conhecimento na areia ou na água, em discursos que não possuem a capacidade de

ensinar a verdade adequadamente (PLATÃO, 2009, 276b-c).

O discurso daquele que detém o saber é o dialético: feito com arte, que escolhe

uma alma apta e nela planta e semeia discursos com entendimento, dispostos a atuar em

sua própria defesa e na de quem os cultiva. Ele é produtor de gérmen; dele nascem

outros em outras almas e pode tornar essa semente – o conhecimento da verdade –

imortal: aquela presenciada pela alma, na inteligibilidade, enquanto não decair em um

corpo. Os demais discursos são apenas simulacros, que podem servir de divertimento à

multidão, ou mesmo a seus autores, mas não possuem a força e a imortalidade do seu

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original (PLATÃO, 2009, 276e-277a).

Porta-voz do discurso dialético, Sócrates respeita o tempo necessário para

plantar as sementes das quais originam frutos provenientes da escritura da verdade na

alma de Fedro, ao contrário de Lísias, que lhe tenta inserir o conteúdo de seu

manuscrito, apressada e forçadamente, como execução de seu plano a fim de conquistá-

lo. Reconhecendo em Fedro um solo apropriado para o desenvolvimento da filosofia,

Sócrates procura semear seus discursos, na esperança de, um dia, o menino gerar, por si

mesmo, belos filhos: discursos vivos e animados, também cunhados com as exigências

da dialética, inspirados pelo amor, sempre de acordo com as necessidades psicagógicas

do ouvinte.

O discurso filosófico traz em si o embrião que pode fazer crescer e germinar, nas

almas, a atividade filosófica, tal como Sócrates, a partir de seus dois discursos e da

posterior discussão com Fedro, acredita poder plantar, na alma do garoto, o caminho da

verdadeira filosofia. Em contrapartida, o escrito de Lísias, ao ter como plano a captura

de Fedro, precisa encantá-lo com artifícios retóricos, para que o fascínio com a palavra,

ao proporcionar uma aparente fixação do saber, inviabilize a percepção do que se

mostra para além de seu discurso. O orador produz um texto que pode ser entendido

como um dado pronto, incapaz de defender a si próprio, uma vez que – imóvel – quando

interrogado, é passível de dar sempre a mesma resposta.

Conforme Derrida (2005, p. 23), o discurso escrito mantém-se semimorto,

diferentemente do falado que é vivo por possuir um pai vivo, o qual está presente,

apoiando-o, como faz Sócrates – o “homem da presença” – com seus pronunciamentos

diante de Fedro. A semi-morbidez do discurso escrito arrisca sua constituição, de acordo

com o que Sócrates percebe no manuscrito de Lísias, o qual não é concebido como um

organismo biológico, com cabeça, troncos, membros convenientes entre si e pés, pois

começa com a conclusão que o amado deve ouvir do amante supostamente não

apaixonado (PLATÃO, 2009, 264a).

O desconhecimento paterno da escrita – no sentido em que seu pai não a

acompanha por todos os lugares por onde ela passa – anula sua potência discursiva.

Somente um filho vivo de pai vivo e conhecido gera discursos: a possibilidade de

pensar a paternidade é a partir da fala viva, como podemos fazer por intermédio dos

proferimentos socráticos. Mas seria Sócrates um pai? Ele é apenas um “suplente” de

pai, segundo Derrida (2005, p. 104). Talvez, Sócrates não possa assumir uma

paternidade, efetivamente, cabendo-lhe a atividade de supri-la, porque seus discursos

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também se tratam de escritura. Um outro tipo de escritura, reanimada por meio da fala

viva: uma grafia psíquica da verdade, que se escreve seguindo os preceitos da retórica

filosófica (PLATÃO, 2009, 276a), mas ainda escritura.

Se Theuth – o inventor da escrita – somente aparenta ser seu pai por entregá-la a

um suposto abandono, disponibilizando-a a todos, sem distinções (PLATÃO, 2009,

274c-275b), Sócrates aparece para reparar a falta do pai morto ou desconhecido, ao

revelar uma escritura vivificada pela fala – escritura porque exerce o ato de grafar o

verdadeiro reminiscente na alma. Assim, a suplência paterna parece-lhe mais adequada

que a própria paternidade, se entendermos a fala como uma escritura animada ou

reanimada, já que, por tudo o que abordamos até agora, percebemos que ter um pai

presente não é, em sua origem, privilégio da escritura. Ela não precisa, necessariamente,

de um pai legítimo que a ajude enquanto estiver sendo grafada na alma: ela precisa de

alguém que se encarregue de sua assistência, como faria esse pai suplente.

Sócrates – um suplente de pai – lança várias histórias a Fedro, as quais ele diz ter

ouvido dos antigos, conforme o próprio Mito de Theuth, o qual mencionamos diversas

vezes ao longo deste artigo. Antes de contá-lo, ele afirma: “Posso narrar pelo menos

uma tradição dos Antigos. Mas a verdade sabem-na eles. No entanto, se conseguíssemos

descobri-la por nós mesmos, acaso precisaríamos ainda de nos preocupar com as

opiniões dos homens?” (PLATÃO, 2009, 274b-c). Supondo que não sejam invenções

suas e que as tenha, mesmo, ouvido deles, são palavras já escritas em sua alma, que ele

reanima, com sua fala, para que se escrevam, também, na alma do menino, esperando

que este rememore o registro psíquico da verdade, feito em alguma ascensão

supraceleste.

Do mesmo modo que Sócrates supre o pai, a dialética – aliada à retórica

filosófica e à psicagogia – supre, no sensível, a verdade que as almas alcançam no

suprassensível. Então, de vez em quando, o dialético diverte-se escrevendo, mas o faz,

ainda, a serviço da dialética, para deixar uma pista a quem quiser segui-lo na via da

verdade. Ele escreve, também, a fim de guardar recordações, sujeitas ao esquecimento

com a chegada da velhice. No entanto, Sócrates enfatiza que muito mais belo é usar a

arte dialética para tomar uma alma apta e nela semear discursos com entendimento,

capazes de prestar assistência a si e a quem os plantar, dos quais nascem outros em

almas de diferentes temperamentos, possuidores de gérmen para tornar sua semente

imortal (PLATÃO, 2009, 276d-277a).

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3. Questão de vida ou morte

A escrita pode ser um instrumento usado para tornar imortal a semente de um

discurso. Notamos isso quando Sócrates inverte seu sentido inicial, de ser elaborada

para satisfazer interesses pessoais de escritores, depois de evidenciar como os políticos

da época são seus adeptos, ao contrário do que Fedro pensa. O filósofo afirma que,

quando oradores e reis adquirem o poder de grandes legisladores, como Licurgo e

Sólon, tornando-se logógrafos imortais na cidade, consideram-lhes iguais aos deuses,

em vida, e, após a morte, pelos escritos deixados aos vindouros. A inversão faz com que

a escrita deixe de ser compreendida como uma coisa realizada com a finalidade de

aprovação pessoal, para transformar-se em algo que leva o humano à imortalidade,

aproximando-o do divino (PLATÃO, 2009, 257c-258c).

Nesse sentido, não é a escrita, por si só, que garante a imortalidade ao humano,

mas seu modo de utilização. É possível apropriar-se dela como um caminho para além

de si mesmo, em direção aos deuses, tanto para autores de discursos, quanto a seus

leitores. Para tal, os autores devem seguir as recomendações socráticas do uso da

retórica filosófica (PLATÃO, 2009, 270a-272b) e os leitores não se devem apegar aos

seus caracteres como um dado pronto ou um saber que lhes pertence, a ponto de

envaidecerem-se, como faz um certo tipo de político e para o que Tamos adverte no

Mito de Theuth (PLATÃO, 2009, 274c-275b).

A partir daí, a escrita não pode ser tomada como uma atividade da qual se deva

ter vergonha, pois o vergonhoso consiste em não escrever com perfeição (PLATÃO,

2009, 258d), conforme faz Lísias, descomprometido com a verdade e com a estrutura

viva do seu discurso (PLATÃO, 2009, 231a-234c), ao que Sócrates e Fedro dão alma,

examinando-o fora dos muros da cidade. O fato de a reestruturação do discurso de

Lísias ocorrer fora da cidade, parece-nos vincular-se ao movimento de ascensão

realizado pela alma no mito, que Sócrates narra em seu segundo discurso4 (PLATÃO,

2009, 245c-257a). O filósofo ultrapassa a opinião comum veiculada pelos homens da

cidade, dirigindo-se à filosofia, do mesmo modo que a alma, na retomada de seu

movimento original, como quando está desencarnada, eleva-se em direção às realidades

suprassensíveis.

Nesse retiro além dos muros do habitual, Sócrates é da opinião de que as

4 Cf. Asmis (1986).

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cigarras, cantando sobre as cabeças de Fedro e dele, os observam lá de cima. Se elas os

virem comportarem-se como acreditavam que a maioria costuma comportar-se –

cochilando, seduzida por seu canto, ao calor do meio-dia, em vez de conversar por

preguiça mental – rirão deles, considerando-os cordeirinhos em busca de seu refúgio

para repousar. Porém se os virem conversar, sem se deixarem embalar por sua melodia,

talvez por admiração, concedam-lhes o prêmio que obtêm dos deuses para presentear os

humanos: o canto (PLATÃO, 2009, 258e-259b).

A melodia das cigarras é mencionada pela primeira vez, no Diálogo, quando

Sócrates descreve a beleza do lugar por onde Fedro e ele circulam (PLATÃO, 2009,

230c). Esse elemento do local proporciona-lhe a invenção do mito. O filósofo conta que

antes de as Musas nascerem, as cigarras eram homens. Ao surgirem as Musas e, com

elas, o canto, alguns dos homens de tal época sentiram-se tão arrebatados pelo prazer da

música que, de tanto cantarem, esqueceram-se de comer e beber e, consequentemente,

morreram. Deles, nasceu a raça das cigarras, que recebeu das Musas o privilégio de

nunca precisar de alimento, podendo dedicar-se ao canto, do nascimento à morte

(PLATÃO, 2009, 259b-d).

Sócrates e Fedro, uma vez que se mantêm vigilantes, dando prosseguimento à

conversa, pela dádiva do canto concedido pelas Musas, imitam os ancestrais humanos

que originaram as cigarras. O filósofo não se permite conduzir pela sensação de prazer

provocada pela visão do belo amado, do mesmo modo que o deslumbramento causado

pelo belo canto das cigarras não o faz cochilar. Resistindo ao poder de atração

despertado pela beleza inerente ao canto, que faz adormecer, o filósofo e seu

companheiro transpõem o âmbito da mera sensação para edificar o belo além da

instância sensível (DERRIDA, 2005).

Mais uma vez, invoquemos o Mito de Theuth, agora para falar que o

adormecimento promovido pela melodia das cigarras exerce sobre as almas o mesmo

poder de esquecimento, que motiva a advertência de Tamos a Theuth, a respeito do que

a escrita produz. Caindo no sono do esquecimento, o homem arrisca a vida, no sentido

em que nela emerge a morte. Talvez, a morte, à qual nos referimos, não seja a biológica,

que atinge Orítia, aventurando-se ao brincar com Farmaceia (PLATÃO, 2009, 229b-c),

sem ter consciência do efeito ambivalente de um phármakon, mas a que a escrita pode

ocasionar: aquela que porta a aparência de vida.

A escrita leva à apreensão de um conhecimento de superfície, inanimado no

texto, possibilitando o acesso somente a um sentido – único e inquestionável – do qual

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se extrai apenas uma memória palpável e aparentemente animada. Seus caracteres, em si

mesmos, não alcançam uma memória permanente, estando em suas entrelinhas, a

possibilidade de conquistar uma memória viva. A verdadeira memória refere-se à

escritura do conhecimento no interior da alma, com o objetivo de construir um saber

que transborde as palavras visíveis no escrito. A confiança excessiva na fachada de

imagem da escrita faz lembrar as palavras do texto, mas não possibilita rememorar o

que este não consegue abranger: as realidades inteligíveis.

A relação entre memória e recordação, fala e escrita está compreendida numa

escritura geral, fundada na suplementaridade de duas repetições: o processo de

reminiscência, que ascende a alma à verdade suprassensível, e a lembrança imóvel que

um texto condiciona. O suprassensível dá lugar à repetição como memória viva:

repetição de vida (DERRIDA, 2005). Por outro lado, a repetição é o movimento da

recordação, do sensível estagnado nas letras textuais: repetição de morte. Mas Sócrates

inverte o sentido mortal da escrita, transformando-o na imortalidade que iguala o

humano ao divino (PLATÃO, 2009, 257c-258c). Então, o discurso escritor da verdade

na alma, precisa comprometer-se com a verdade ao tratar do assunto proposto, conhecer

bem a alma à qual se dirige e adequar-se a ela, fazendo uso da dialética,

independentemente de ser falado ou escrito (PLATÃO, 2009, 277b-c).

[Aquele] que considerar [...] que os [discursos] destinados ao ensino,

feitos para instruir e realmente escritos na alma, a respeito do justo, do

belo e do bom, são os únicos que mostram clareza, perfeição e

merecem o nosso esforço. [Aquele] que considerar que tais discursos

devem ser considerados como seus filhos legítimos, primeiro o que

traz dentro de si desde que o descobriu, depois todos os que, filhos e

irmãos daquele, nasceram nas almas dos outros, segundo o mérito de

cada uma. [Aquele] que proceder assim, com o abandono dos demais

discursos — esse talvez seja, Fedro, o homem que eu e tu

desejaríamos ser (PLATÃO, 2009, 278a-b).

A preocupação platônica com o cunho de discursos escritores da verdade,

adequados a seus destinatários, poderia servir, de algum modo, para refletirmos sobre a

complexidade discursiva dos sistemas informacionais e comunicacionais e das

interações pessoais que compõem nossa sociedade. A escritura – grafia psíquica da

verdade – da qual Platão tratou, deve ter seus adeptos em nossos dias, mesmo que estes

desconheçam as abordagens do Fedro, em especial, e que o processo se desenvolva de

maneira diferente devido a suas especificidades contemporâneas.

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Referências

ASMIS, E. “Psychagogia” in Plato’s Phaedrus. Illinois Classical Estudies. Estados

Unidos, v. 11, n. ½, 1986, p. 53-72. Disponível em:

<http://www.jstor.org/stable/23064075>. Acesso em: 12 de mai. 2013.

DERRIDA, J. A farmácia de Platão; trad. Rogério Costa. 3ª Edição. São Paulo:

Iluminuras, 2005.

PLATÃO. Fedro. Trad. José Ribeiro Ferreira. 1ª Edição. Lisboa: Edições 70, 2009.