a garota do outro lado da rua

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Mas será que esse conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a garota do outro lado da rua?

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A garotado outro lado da rua

Lycia Barros

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A BORBOLETA

Há momentos em que cruzamos linhas invisíveis que

jamais poderíamos imaginar. Nunca imaginei que ele

seria meu, ou que eu seria dele. Nunca imaginei que

derrubaríamos os muros que nos separavam por nossas

fraquezas. Mas fico feliz que tenha sido desse jeito. Nin-

guém me compreendia muito quando tudo aconteceu, eu

também não conseguia explicar como me sentia. Na verda-

de, a maioria das pessoas não estava disposta a me dar o

tempo que eu precisava para falar. Houve noites com lágri-

mas solitárias, houve dor, precisei esperar... Mas, quando

enfim nos unimos, eu e ele já estávamos preparados para

seguirmos em uma viagem sem volta. Uma viagem rumo à

felicidade, que só os puros de coração conseguirão alcan-

çar. E nós dois felizmente conseguimos.

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ENZO

Eu sempre havia percebido algo especial naquela me-

nina, mas não apenas por ela ser bonita. Contudo, não

nos conhecíamos. Não havia intimidade entre nós dois,

nem sequer cordialidade. Nunca havíamos trocado uma

palavra sequer. Mas eu a observava frequentemente sair e

entrar em casa com a mãe — morava só com ela, o que vim

a descobrir mais a frente. Entretanto, nunca nos cumpri-

mentamos. Às vezes, eu ficava durante horas sentado na

calçada com a minha caixa da coleção de insetos colocada

entre os joelhos, pensando em chamá -la para brincar, mas

nunca tive coragem. Talvez porque, assim como meu pai,

nunca fui muito dado a interagir com os vizinhos. Ao con-

trário, meu pai estava sempre resmungando sobre os maus

hábitos alheios: seus cachorros latiam alto demais, suas

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festas eram muito barulhentas, todos estavam sempre es-

tacionando na calçada errada... Todavia, tenho dúvidas se

ele teve culpa de ficar assim. Desde que minha mãe se foi,

há quatro anos, meu pai se despediu de qualquer alegria

na vida. A única coisa que lhe restou foi o prazer de pescar.

Houve ocasiões em que pensei que ele a esqueceria, mas

percebi que isso não era algo que ele quisesse fazer; muito

menos que simplesmente lhe acontecesse. E, de fato, não

lhe ocorreu. Ainda assim, ele sempre foi um bom pai para

mim. Preocupava -se demais, confesso, e com muita fre-

quência, com praticamente tudo. Mas sei que só tentava

cumprir bem o seu papel.

Começamos a estudar juntos no quinto ano — eu e Rafaela.

Talvez tenha sido esse o ano em que tudo começou. Nessa

época, eu sentava atrás dela na classe. Ficava olhando para

sua cabeça por trás e admirando seus cabelos, compridos,

dourados e perfumados. Parecia uma sereia. Mas éramos

incomunicáveis, como se vivêssemos em dois polos distan-

tes. Ela era linda, desejada e popular, e eu era o quatro -olhos

CDF da nossa turma. Na única vez em que se virou para trás

para me passar uma prova, senti minha cara ficar vermelha

e meus óculos escorregarem pelo nariz. Sua mão ficou ali,

estendida, e Rafaela a me encarar. Acabou em cinco segun-

dos. Quando olhei para a prova e a peguei, fitei as palavras,

mas nada assimilei devido ao meu encantamento. Era como

se aquela simples troca de olhares tivesse repentinamen-

te nos tornado mais íntimos. Infelizmente, quando voltei a

mim, dei -me conta do papel à minha frente. É impressionan-

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te como uma prova de matemática pode sugar até a última

gota de felicidade da sua alma!

Nesse tempo, comecei a sonhar acordado com Rafaela.

Costumava imaginar -nos juntos e sentados em seu jardim,

conversando sobre a natureza, e ela admirada com todo o

meu conhecimento. Sempre tive certeza de que, se ela me

conhecesse melhor, se compreendesse as minhas qualida-

des, certamente gostaria de mim, mas nunca imaginei o

que nos sucederia mais tarde. No pôr do sol finalmente nos

beijaríamos, mas nunca imaginava nada indecente com ela.

Pelo menos, não naquela época.

Quando estávamos de férias, não costumávamos nos ver

muito, ou melhor, ela não me via, mesmo a minha casa sendo

bem em frente à dela. Rafaela só saía e entrava, rapidamen-

te, geralmente acompanhada de suas espevitadas amigas,

dando gargalhadinhas, ou então com algum playboyzinho

barulhento e espalhafatoso. O que, evidentemente, acabava

me deixando verde de inveja e emburrado pelo resto do dia.

Somente uma vez nas últimas férias, pela janela do meu

quarto no segundo andar, tive o privilégio de observá -la sen-

tada no jardim e jogando um disco de frisbee1 para o seu

yorkshire pegar. Foi uma das raras vezes em que não a vi

maquiada. Ficou ali por cerca de meia hora. Provavelmente,

ela havia acabado de sair da piscina, pois estava de biquíni

e com uma canga enrolada no quadril. O sol de fim de tarde

reluzia em seus cabelos e sua pele era tão dourada quanto o

1 Frisbee®: disco plástico usado para recreação (N. E.).

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sol. Em certo momento, Rafaela deitou -se na grama e fechou

os olhos para descansar. E ficou tão linda que extraiu -me a

respiração. Eu sabia que minha câmera estava ali na escriva-

ninha, bem perto da minha mão, mas não me atrevi a usá -la

para bater uma foto. Sabia que não conseguiria capturar a

beleza daquele momento, por isso preferi memorizá -lo.

No oitavo ano, comecei a reparar que ela não parava de

conversar com um garoto encorpado e com o cabelo espe-

tado com gel: Mateus. Um dos meninos mais esnobes da

nossa classe. Apesar de andarem sempre cercados de estu-

dantes, eles frequentemente davam um jeito de conversar

mais afastados dos outros alunos. Eu sempre ficava de lon-

ge, observando -os, mas não me atrevia a examiná -los muitas

vezes, pois tinha medo que Rafaela reparasse.

Mateus sempre foi o tipo de cara grosseiro e vulgar, e

o linguajar que circulava entre seus amigos faria qualquer

detento de Bangu I sentir -se ultrajado. Apesar de não nos

falarmos, vira e mexe ele entrava na sala e me dava uma co-

ronhada na nuca, no estilo “e aí, meu amigo?”, mas eu sabia

que era só para me humilhar. Porém, eu nunca fui esse tipo

de idiota -agressivo que fazia de tudo para aparecer. Na ver-

dade, sempre tive aspirações mais elevadas. Talvez por isso

não conseguisse me enturmar com facilidade. Mas Mateus

sempre “se achava” na frente dos outros alunos: era o mais

forte, o mais esportista, o com a melhor aparência... Sempre

achei que todos aqueles músculos lhe davam um ar imbecil.

Estava na cara que ele andava tomando bomba. O tipo de

sujeito que só posta fotos sem camisa no Facebook, pois é

o atributo que lhe resta. O problema era que, além disso, ele

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possuía todos os bens duráveis conhecido pelo homem, an-

tes mesmo que chegassem ao Brasil. Por isso, vivia cercado

de almofadinhas bajuladores.

Quando pela primeira vez vi os dois se beijarem, me senti

agoniado. Esmaguei meu celular com tanta força que por

pouco o coitado não tocou de desespero. Achei Mateus mui-

to afobado. Se ele sentisse uma fração mínima do que eu

sentia por Rafaela, jamais se atreveria a tocá -la daquela ma-

neira. Eu juro que tentei esquecê -la, desarquivá -la da memó-

ria, mas simplesmente não consegui. Comecei a acreditar

que, assim como meu pai, eu não seria um homem de pular

de galho em galho. Amaria minha escolhida para sempre.

Que furada...

É claro que, com dezesseis anos, eu já havia beijado ou-

tras garotas na vida. Na verdade, duas. Uma era minha prima

Patrícia. Bem, ela não era minha prima de sangue, pois era

adotada. Nosso beijo, entretanto, foi mais uma espécie de

caridade que fiz quando ela confessou que era apaixonada

por mim. Achei que como éramos parecidos, como tínhamos

os mesmos interesses e éramos ambos negligenciados pela

sociedade, aquilo poderia dar certo. Mas não consegui cor-

responder aos seus sentimentos e acabei por perder a sua

amizade. E ela ainda espalhou boatos maldosos na minha

família — e que fique bem claro, não verdadeiros — sobre o

meu hálito. Por isso meus primos me batizaram de “boca de

esgoto”. A outra que beijei foi a irmã mais velha do meu

melhor amigo Leandro. Nesse caso, a caridade foi invertida.

Mas acho que brincar de salada mista não conta muito.

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Sucedeu então que teríamos uma excursão ecológica no

colégio. Acordei angustiado naquela manhã. Em qualquer ou-

tra ocasião, eu amaria aquele passeio. Já era um assíduo pra-

ticante de trekking,2 pois, assim como minha mãe, eu adorava

a natureza, e já havia feito trilha centenas de vezes, apesar

de nenhuma delas ser na Floresta da Tijuca. Contudo, passar

um dia completo vendo aqueles dois se agarrando seria de-

mais para mim. Pensei em não ir, mas sabia que a visita valia

cinquenta por cento da avaliação de ciências e, para o meu

embaraço, e deleite do resto da classe, eu era o queridinho da

professora — que não era burra, e percebia o meu interesse

pela matéria. Por isso, a título de punição, eu era oficialmente

a única pessoa a quem Eva se dirigia na classe.

Desci a escada com a mochila preparada nas costas e não

avistei meu pai por ali. Lembrei -me que era sábado, dia em que

ele religiosamente pescava com seu irmão. Certamente, Mau-

ro já passara para pegá -lo e miraculosamente não acordei

com o barulho do bugre. Minha avó, como boa madrugadora

que era, já estava sentada na sala, olhando para a televisão

desligada. Fazia isso muitas vezes. Com o passar do tempo,

deixei de me perguntar o porquê. Sua acompanhante, Dorali-

ce, estava passando um café na cozinha e cantarolando uma

espécie de hino de igreja. Por causa da idade, minha avó an-

dava muito esquecida — para não dizer esclerosada — e con-

tava as mesmas histórias dezenas de vezes. Narrava os mes-

mos detalhes e se emocionava nas mesmas pausas quando

2Trekking: esporte constituído de provas onde se deve percorrer trilhas pré-estabelecidas em planilhas (N.E.).

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me contava sobre sua imigração para o Brasil. Jurava que era

estrangeira e sobrevivente do Titanic, e não uma paraibana

arretada. Certas vezes, ela parava no meio da história e entra-

va numa espécie de transe esquisito, e eu ficava ali, parado,

imaginando se ainda havia alguma coisa por vir. Confesso

que por puro constrangimento às vezes eu a evitava por causa

disso. Mas isso foi antes de tudo aquilo acontecer, ao que vou

lhe narrar mais à frente. Talvez, pensava eu, se ela visse a te-

levisão quando estivesse ligada, tivesse novas histórias para

contar. Poderia ser a rainha Elizabeth ou alguma personagem

anciã da novela das oito. Tinha ocasiões em que se lembrava

de mim, mas percebi que aquele não seria um daqueles dias.

— Quem é você e como entrou na minha casa? — assustou-

-se a velha Rose, assim que me viu, apontando -me o controle

da tevê como se fosse uma faca.

Aproximei -me cautelosamente e sentei no braço do sofá.

Ela ainda me apontava o objeto.

— Sou eu vovó, Enzo, seu neto. O papai já saiu?

— Ainda não vi meu pai hoje — disparou ela, parecendo

dar -se conta disso naquele momento.

Eu ri e passei o braço nos ombros dela.

— Não o seu pai, vovó, mas o meu pai, seu filho, Gustavo.

Ele já saiu?

— Não conheço seu filho — disse -me ela, em tom de des-

culpas.

Eu suspirei, desejando que ela pudesse mesmo me trocar

de canal.

— Doralice! — berrei eu, já me levantando. — Já estou indo.

Diga para o meu pai que volto antes do almoço.

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Interrompendo a cantoria, a acompanhante apareceu na

porta da cozinha.

— Enzo, querido, não vai tomar seu café?

— Como algo pelo caminho.

— Nada disso — ralhou ela —, seu pai mandou que eu pre-

parasse um lanchinho reforçado pra você. Disse que faria

uma caminhada. Só um minuto.

Ao que parecia, a definição de lanchinho de Doralice

acabaria com os problemas de fome na Somália. Ela havia

separado dois sanduíches gigantes, uma barra de cereal,

uma maçã, duas bananas e uma garrafa de isotônico de uva.

Como se não bastasse, jogou um pacote de biscoitos rechea-

dos dentro do saco. Fiquei olhando para ela, me sentindo

desnutrido. Devido ao estirão da adolescência, eu sabia que

ficara magro, mas aquilo era ligeiramente ofensivo. Porém,

antes que eu dissesse alguma coisa, ela virou -me brusca-

mente de costas e enfiou todo o lanche na minha mochila.

Fiquei me perguntando se não tombaria para trás ou arru-

maria uma lordose por causa do peso. Vovó ainda me apon-

tava o controle remoto, de modo que resolvi não contestar

nada. Só queria dar o fora dali antes que ela começasse com

a história do cruzeiro.

o

Quando cheguei ao colégio, Rafaela já estava lá, linda de

morrer, junto com a galera e esperando pelo ônibus. Ves-

tia uma legging preta, uma regata roxa e usava um rabo

de cavalo no alto da cabeça. Tinha um casaco amarrado na

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cintura. Maquiada como sempre. Fiquei um pouco preocu-

pado quando olhei para os seus pés: All Star não era bem a

melhor escolha para se fazer uma trilha. Mas eu a entendi,

pois a cor roxa do tênis combinava com sua blusa. Rafaela

era muito ligada em moda.

O dia estava perfeito. O céu de um azul firme e intenso.

Mas, apesar do dia ensolarado, o ar estava um pouco frio

naquelas últimas semanas. Era abril, e a maioria dos alu-

nos, assim como eu, havia trazido um casaco. Os alunos que

vinham chegando se embolavam numa confusa troca de

abraços, socos no peito e tapas nas costas. Eu ainda estava

olhando Rafaela quando Mateus apareceu, agarrou -a pela

cintura e plantou -lhe um beijo na boca. Um ressentimento

agudo quase me sufocou. Fumegando de raiva, olhei para o

relógio. Eram sete e quinze e o ônibus já estava atrasado.

Naquele momento, eu não conseguia pensar em nada me-

lhor para mim além de tentar ignorar aqueles dois. Ignorar

Rafaela! — pensei desanimado. Como eu gostaria de obter

êxito! Se pudesse fazer um único pedido naquele momento,

seria uma lavagem cerebral, para poder esquecê -la. Perden-

do as forças, voltei a olhar para os dois. À nossa volta, alguns

pais espiavam os filhos mais afastados e o ônibus já estava

estacionando. Suspirei.

— Não sabia que você também vinha... — Uma voz anima-

da me assustou.

Olhei para o lado e avistei Alana. Ela era da minha classe,

aliás, a única garota da turma que falava comigo. Ou, pelo

menos, a única que era educada. Falava, não. Tagarelava sem

parar. Como sabia que eu era um amante de biologia, ela

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sempre me procurava para discutir cada novo microorga-

nismo que descobria pela esfera terrestre. Ela sorria alegre-

mente, me olhando com seu rosto cheio de sardas e arrega-

lados olhos azuis. Seu cabelo liso estava eternamente preso

em um rabo de cavalo desarrumado e com alguns fios soltos

caídos por cima dos óculos de hastes vermelhas. Como sem-

pre, parecendo não fazer absolutamente questão de se des-

tacar das outras meninas, vestia uma blusa bege sem graça

e uma bermuda de mesmo tom, que descia até os joelhos.

Agarrava o livro de biologia como se fosse uma bíblia e me

olhava como se fosse anunciar a salvação. Por que será que

eu atraio esse tipo de gente?

— Resolvi vir de última hora — eu disse —, mas pelo visto

já me arrependi. — Olhei para a bagunça dos alunos perto do

ônibus.

O sorriso de Alana abriu -se ainda mais quando olhou para

os alunos, inexplicavelmente feliz.

— É sempre assim, a espécie humana fica muito animada

quando tem novidades. Logo, logo eles vão se acalmar. — Ela

virou -se novamente para mim. — Escuta, Enzo, estou com um

trabalho sobre genética pra fazer e vi na aula que você sabia

tudo sobre esse negócio de “azinho” e “azão”. Será que po-

dia me dar uma ajuda?

— Claro — falei, forçando o sorriso. — É só a gente combi-

nar de estudar.

— Maravilha! — Era fácil ver o cérebro de Alana se ani-

mar ao ouvir a palavra “estudo”. — Também podemos nos

sentar juntos no ônibus hoje, o que acha? Assim, na volta,

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poderemos ficar comentando sobre a flora que vislumbra-

remos por lá.

Claro, pensei, já com pena dos meus ouvidos, não há

nada que eu deseje mais neste mundo!

Sem saber como recusar, olhei para a galera e, pela ca-

beça vermelha, vi que Leandro também já estava por ali, ao

lado da mãe e jogando M&M´s para dentro da boca. Senti-

-me aliviado. Ele acenou para mim vigorosamente e sorriu,

sobressaltando suas bochechas permanentemente verme-

lhas. Era o único aluno cuja mãe estava perto e limpando a

sua blusa. Um perfeito suicídio social.

— Sinto muito, Alana, mas eu e Leandro já combinamos

de sentarmos juntos. Nos vemos quando chegarmos lá na

trilha, ok? — Despedi -me dela e fui caminhando em direção

aos estudantes.

A porta do ônibus abriu e todos começaram a entrar. Ain-

da agonizando por causa da minha musa, aproximei -me do

grupo. Estou agindo como um idiota, eu dizia a mim mesmo

ao caminhar para o ônibus. Afinal, eu não tenho nada com

ela. Basta ignorá -los, resmunguei ao chegar perto da porta.

Não será tão difícil, acrescentei para mim mesmo ao subir

as escadas. Será simplesmente impossível! concluí, vendo

os dois se agarrando num banco no fundo.

Rangendo os dentes, procurei uma cadeira vazia no meio

do ônibus. Leandro se sentou ao meu lado.

— Dia ruim? — foi o que perguntou.

Meti a mão no saco de M&M´s, sem ser convidado.

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— Mais ou menos — respondi. — A meu ver, sábados deve-

riam ser vinte e quatro horas mágicas sem nenhuma preo-

cupação com o colégio.

Erguendo uma sobrancelha, Leandro girou o corpo para

mim.

— Não estou te reconhecendo. Desde quando você não

gosta de fazer trilha?

— Desde que estou sendo torturado. — Olhei para trás,

Leandro me acompanhou.

— Cara, você é doente... — ele resmungou e sacudiu a cabe-

ça. — Sabe quando terá uma chance com a Rafaela? Nunca!

Você não é o tipo de cara com quem ela sai.

— Não entendi — retruquei. — O objetivo foi me elogiar ou

me insultar?

— Nenhum dos dois. — Ele riu. — Olha — Leandro respirou

fundo, parecendo evitar falar de supetão algo que julgava

melhor ser abordado com delicadeza —, a Rafaela nem ao

menos te cumprimenta. E olha que vocês são vizinhos há

anos! Se você tivesse aproveitado enquanto eram peque-

nos... As meninas são mais vulneráveis quando são crianças.

Mas agora suas chances de ela notar sua existência são de

uma em um milhão. Ainda que você se torne um cientista

famoso, ela nunca vai saber, pois não deve ler esse tipo de

revista. Já o jornal de esportes... — Ele olhou para trás, em

um tom sugestivo.

Lancei -lhe um olhar gelado. Graças a Deus, meu mau

humor raramente transbordava. Para suavizar a bofetada,

Leandro me ofereceu o M&M’s novamente. Deixei escapar um

suspiro desconsolado e enfiei a mão no saco. Em seguida,

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foquei os olhos na visão através da janela. Partimos, buzi-

nando, em meio a uma grande quantidade de pais e um ca-

chorro que nos seguiu por cerca de dois quilômetros. Um

pandemônio absoluto se instaurou. Como era de se prever, o

trajeto até o nosso destino foi uma aporrinhação. Barulhen-

to, caótico e torturante. Um dos meninos botou funk alto no

celular e tive vontade de me atirar pela janela. Ou melhor, de

atirá -lo pela janela. O motorista não tirava os olhos da rua,

as mãos apertadas no volante. Parecia tão irritado quanto

eu, que saquei meu mangá do Naruto para ler no mesmo ins-

tante em que uma cabeça apareceu por cima da cadeira da

frente. Era Alana. Fechei a revista.

— Você sabia que milhões de árvores no mundo são plan-

tadas acidentalmente por esquilos que enterram nozes e

não lembram onde as esconderam? — ela perguntou.

E lá vamos nós de novo, pensei comigo mesmo.

o

Depois de quarenta minutos de puro suplício, finalmente

chegamos. Como masoquistas adoradores de filas que so-

mos, levantamos todos ao mesmo tempo para sair do ôni-

bus juntos. Pablo, um aluno sentado mais à frente, que era

amigo de Mateus, tentou fazer Leandro tropeçar na minha

frente enquanto passava. Mas antevi o que ele ia fazer e

acabei empurrando Leandro e atropelando o pé do garoto,

esmagando seu calcanhar. O infeliz uivou alto. Olhei para

ele e pedi desculpas, com uma mistura de raiva e vontade

de rir. Ele disse que iria trocar uma palavrinha comigo de-

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