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A FUGA DO JAGUAR ROMANCE SOCIOPEDAGÓGICO A FUGA DO JAGUAR 2013 Joel de

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A FUGA DO JAGUAR ROMANCE SOCIOPEDAGÓGICO

A FUGA DO JAGUAR

2013

Joel de Sá

PREZADO LEITOR, o presente apanhado de textos sequenciais que denominei romance sociopedagógico aborda os fatos sociais mais prementes, no que diz respeito à formação do cidadão e às atividades pedagógicas.O homem contemporâneo mantém uma extremada repulsa para com as características e hábitos da distante Idade da Pedra.

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Esta obra:A Fuga do Jaguar.Romance sociopedagógico de ficção.Autor: Joel Pereira de Sá.Gênero: literatura brasileira. 1ª edição 2013.Todos os trabalhos técnicos – redação, diagramação, correção – foram realizados pelo autor. Está registrada na Biblioteca Nacional.Todos os personagens e episódios são fictícios, com base na verossimilhança.O AUTOR é poeta, contista e cronista,Professor de História e de Geografia.

As expressões referentes ao Paleolítico até soam como pejorativas. Porém, é inegável que dos Trogloditas herdamos preceitos – por alguns chamados de mitos - absolutamente profícuos, hábitos que viabilizaram a convivência grupal e com ambientes hostis, consagrando a origem do que hoje chamamos Educação. Os remotos Trogloditas, por nós sapiens suscitados na imaginação, provavelmente não se assemelham aos monstros ideológicos que criamos. E, hoje, quando alguém não comunga com o pensamento “moderno” se torna um Troglodita, na pior acepção pejorativa.A modernização do processo educativo, é bem provável, não nos beneficiou tanto quanto desejamos ou não nos conduziu a um grau de progresso humanitário tão sólido como os tutores da administração pública teimam em festejar. Não crescemos o suficiente ou não atingimos o grau intelectual almejado. Aí a Educação, manifestação das minúcias regidas por comportamentos culturais que visam facilitar as relações com as outras criaturas e grupos humanos, o ambiente e as atividades humanas, deixam de perceber influências úteis ou aderem a fórmulas perniciosas.

Fica ao leitor proposta a discussão e opinião acerca do tema.Contato: [email protected]

Tenha uma proveitosa leitura!

Joel de Sá

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A FUGA DO JAGUAR

CAPÍTULO UM

Toda cidade tem uma praça. Qualquer bairro ostenta um ambiente para o qual convergem os habitantes, mesmo que não possua status de praça. Mesmo não sendo gramada, ornada com árvores e flores. Pode ser um simples descampado onde se joga bola aos domingos, à noite acontecem encontros

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furtivos de namorados e as crianças correm ludicamente. A área a que chamavam praça estava na iminência de deixar de existir. Seria destruída, escavada, revolvida, implodida. Estava sujeita a virar voçoroca, charco. O troar ensurdecedor das máquinas, bate-estacas, pás, picaretas, telas de arame, vergalhões suscitava uma conturbação. As falações do povaréu eram diluídas pelo barulho. Ficava apenas uma indecifrável celeuma no ar. Os golpes das marretas feriam o solo e o juízo das pessoas. A movimentação e a excitação podiam não passar de um conjunto de fatos corriqueiros. O inusitado que estava a se desenrolar ficaria por conta da relação que o ambiente traçaria entre o passado e os fatos que estariam por vir. Aos finais de semana jovens e adultos passavam o dia jogando bola. O playground das crianças, os encontros lúbricos deixaram de ocorrer, descaracterizando-se depois que o local virou palco de acontecimentos tenebrosos. Ao anoitecer uma face medonha se revelava. Sujeitos de má índole praticavam atos abomináveis. No

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soturno os episódios torpes se tornavam mais claros.

_Do que o senhor está falando, homem?

_Das coisas mais infames que acontecem!

_Mas aqui é um campo de futebol, e futebol é um esporte de excelências. O senhor não sabe?

_Huuum! Eu só sei que d’agora pra frente esses malandros não vão ter mais lugar para fumar o baseado, cheirar a farinha, queimar pedras de craque, assaltar e estuprar as mocinhas decentes que passam por aqui.

O outro vacilou por alguns segundos sem se render aos argumentos: _Então a molecada vai ficar sem espaço para bater uma bolinha.

_Ora bola! Ora futebol! _A prática de esportes é útil e

saudável. Isso ninguém pode negar. O senhor sabe que a única diversão que esses jovens têm é o futebol e o único espaço disponível é aqui. Da pena deles, sem qualquer lazer aqui na vila.

O interlocutor manteve os olhos fixos no chão a refletir acerca dos argumentos de Jaguar. Voltou a se contrapor:

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_O senhor sabe das ruindades que acontecem. Ou não sabe? Como líder comunitário tem a obrigação de fazer alguma coisa para impedir a propagação dos males. A bandidagem não pode continuar massacrando as pessoas de bem. Ademais, essas desgraceiras estão contaminando o bem mais precioso que o povo conseguiu conquistar. A escola tem que ser respeitada. Ela é um espaço sagrado. É nela que nossos filhos, nossos netos e todos que nascerão aqui, serão transformados em cidadãos. Ela foi erigida para trazer dignidade à comunidade.

Jaguar arregalou os olhos. Ficou encabulado com o atrevimento do cafuzo iletrado. O cabra que mal tinha chegado do sertão nordestino parecia muito inteirado.

_Eu estou plenamente ciente, seu Augusto. E é por isso que faço questão que esses rapazes tenham um cantinho para se divertirem aos finais de semana. O senhor é novato na vila. Eu vivo aqui desde criança. Conheço tudo como a palma da mão. Sei dos potenciais e das necessidades deles.

Marcos Freitas foi apelidado de Jaguar quando adquiriu um velho automóvel jaguar e o equipou com todos os acessórios de um carro do ano.

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Estava sempre se gabando do seu esplendoroso carro. Ganhou um veículo e um nome. Era um homem feroz, como diziam alguns admiradores, intrépido nas situações difíceis ou para proteger os amigos e a comunidade.

Augusto correu os olhos em volta, analisando as pessoas que assistiam à faina dos homens. Em quê converteriam aquele local que chamavam de praça? Máquinas, ferramentas e homens entregues à lida extenuante, enquanto os curiosos se impacientavam com a incógnita. Parou próximo a um dos trabalhadores. Indagou: _O senhor deve ser o encarregado da obra, né? _Que obra? _ Respondeu o homem sem virar o corpo. Não será construída nenhuma obra aqui, pelo menos do meu conhecimento, não. Com cara de desânimo ele fez uma pausa. Voltou a inquirir: _Então o que é que tantos homens, tantas máquinas estão escarafunchando aí? Esses besouros de ferro estão botando tudo às avessas! O trabalhador riu silencioso da metáfora e voltou-se com presteza. Largou a fita métrica, levantou a aba do boné que protegia a calva do sol e

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aproximou-se, fixando nele seus olhos azuis. _Meu nome é Petrúcio Lutsky e sou empresário circense. Quero avisar que nenhuma mina de diamante foi encontrada aqui _ Fez um leve gesto de rir _ Pelo interesse dos curiosos parece a exploração de uma jazida de diamantes ou a descoberta de uma arca encantada. _Moço, este recanto guarda segredos muito mais estupendos! Por não dar importância à advertência de Augusto, ou por não tê-lo entendido, o homem continuou em seus afazeres. Completou: _Nós vamos armar aqui nosso circo. Vamos trazer divertimento para o povo carente. A gente daqui necessita de entretenimento. Todos precisam nutrir o organismo, mas é indispensável alimentar a alma. A diversão vai ajudá-los a recuperar a autoestima. Vai contribuir com a escola, despoluindo a mente das crianças.

Até aquele momento Augusto ouvia o homem do circo com refinada atenção. Seu anseio era obter uma informação mais animadora sobre o destino daquele recanto sombrio e malfadado que acumulava ocorrências sinistras. O terreno constituía um misto de apego, terror e repulsa, de amor e

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medo. O pretenso templo do saber e da compreensão estava convivendo lado a lado com a perdição e a degradação humana. A escola Nicolau Maquiavel estava colada àquela área.

Os episódios compunham um torvelinho na mente de Augusto. Ele estava encabulado. Recuperar a autoestima com circo, conforme tinha filosofado Petrúcio Lutsky, não estava ao alcance de sua compreensão. Até que ponto um circo tinha o poder de levantar a animosidade de alguém ou dar subsídios à educação. Enfim, ele não via nenhuma coerência na conjunção escola-circo. A instalação do circo começou a enfrentar a oposição de muita gente, inclusive da diretora da escola. A Nicolau Maquiavel era a única instituição educacional do novo bairro e exercia um consistente fascínio sobre a população. A arquitetura sobranceira se destacava do topo da colina. Era vislumbrada de qualquer parte do bairro. Distinguia-se a fachada em azul e branco, cores que para os projetistas devia ter um forte significado. A caixa-d’água apontava altiva para o céu como a torre de uma igreja gótica, para purificar as almas enodoadas pela ignorância. Ela representava o poder e

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louvava a iniciativa dos administradores em favorecer aquele povo. Augusto se tornou o mais veemente admirador do símbolo do conhecimento, das boas maneiras e do progresso. Descrevia-se ali o monumento mais sagrado pelo qual todos os homens deviam passar para se fazerem cidadãos dignos. Tudo era diferente do que ele havia conhecido até o momento. No sertão nordestino as instalações escolares eram decadentes. A escola da usina abrigava-se num galpão em ruína. As carteiras eram substituídas por mesas toscas e os assentos eram tamboretes. Apenas os alunos que chegassem cedo tinham acesso a eles. Os retardatários se acomodavam em toras de madeira dispostas em desalinho pelo extenso espaço desproporcional. Os equipamentos se limitavam a uma lousa quebrada, alguns livros antiquados, uma régua e uma palmatória. A professora mal conseguia transmitir os rudimentos alfabetizatórios. Havia uma escola de verdade. Era uma pequena edificação. Sem muita suntuosidade, com paredes caiadas e chão com cerâmica. Tinha quadro-negro entalhado na parede, duas dezenas de carteiras. Porém, não era para ter aula. Era apenas para justificar uma verba superfaturada pela prefeitura

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local e camuflar o desdém do usineiro pela educação de seus agregados e empregados. Como virou escola sem aulas veio a ser utilizada como estrebaria para os cavalos mangalargas. Augusto tinha uma imagem preconcebida dos resultados da educação. O rádio a tevê, os auto-falantes, os megafones, a boca do populacho alardeavam incansáveis que o homem só se torna honrado se seguir os preceitos ditados pelo processo educativo. A prédica soava como uma canção destoante. Cresceu ouvindo a ladainha. Não entendia por que só as crianças oriundas das famílias mais abastadas iam à escola da cidade. A escola tosca era para alguns filhos de agregados. E nem àquela ele teve oportunidade de frequentar. Queria estudar, se tornar entendedor dos conceitos do mundo. “Oxe, menino, tu és muito ousado! Tá é cometendo uma heresia! Se o patrão ficar sabendo... Unh!” O processo miraculoso de que tanto falavam, que transformava os jovens em homens poderosos não podia ser experimentado por quem quisesse. Até sonhar era proibido. Verbalizar os anseios, jamais. Cafuzos devem permanecer Trogloditas. São os Homens da caverna contemporâneos dos

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Modernos. Ficava intrigado quando falavam dos avanços da ciência, da tecnologia enquanto o sertão do cafuzo convivia com um ensino rústico, com um desenvolvimento utópico, inexistente para muitos. Ao tentar desenrolar os pergaminhos em cujas dobras estariam descritas as normas de um bom viver ele se depararia com intrincados sistemas. Os usineiros e seus asseclas, que tanto falavam do bem proporcionado pela educação, os mantinha no marasmo, impedindo-os de vislumbrar um céu alvo, prendendo-os na subserviência absoluta, assassinando-os silenciosamente. Os diálogos com os agregados eram raros e efêmeros, limitando-se a ditames arrogantes. Nas poucas vezes em que lhes falava era para ordenar que não deviam mandar os filhos à escola. E assim os assassinavam um a um. Outras vezes o massacre era coletivo. Todos os cafuzos tinham sido assassinados pela ideologia sinistra do usineiro. Tantas vezes Augusto planejara vingar a morte dos antepassados. Mas ele também estava a ser assassinado. Seus ossos tinham sido triturados nas moendas. Seu corpo estava a ser decepado pelas foices nos canaviais. O sangue era a garapa que enchia os tanques e os deixavam exangues.

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Quando Augusto foi eleito para o conselho de educação as pessoas disseram que ele serviria apenas para dissimular uma suposta democracia: seria apenas um mangalarga a chafurdar numa sala de aula. Porém, ele entendia que sua responsabilidade ia além de simplesmente se preocupar com seus filhos. Ele que sempre acreditou na ladainha secular sobre a eficácia da educação, depositaria toda a confiança no processo. As burocracias públicas não estavam bem claras para ele. Não entendia o implexo dos regulamentos, mas sabia que deviam ser acatados. Via que a escola ainda carecia de complementos estruturais. Sabia que para uma futura geração, começando por seus filhos, era necessário um modelo inovador e consistente de ensino. Estava fascinado pela Nicolau Maquiavel, sabendo que seus filhos não seriam impedidos de frequentá-la. “A educação é a única salvação, por mais perdidos que se encontrem os homens”: essa máxima ortodoxa estava impregnada em sua mente. O nome charmoso, a fachada imponente e os professores bem preparados eram fatores que contribuíam para que a instituição se tornasse atraente. Estava

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evidente que a nova geração necessitava de instruções com conteúdos científicos e recursos tecnológicos, em instalações modernas, regidas por ideias revolucionárias. A Nicolau Maquiavel reunia todos os atributos adequados. Embora seus antepassados tivessem sido cooptados na senzala ele sabia que era de grande relevância manter a tradição que eles trouxeram de Cabinda e Oió. O fato de ele não ter sido alfabetizado no ensino metódico não o impediu de compreender certos códigos indispensáveis às boas relações humanas e para a convivência com os eventos da Natureza. Na usina cansara de ouvir: “Negro não tem que estudar”. Devia permanecer estúpido para fornecer apenas a força dos braços. Precisava apenas ser ágil e subserviente. O canavial era o povo do sertão. Cada caule de cana era um negro, um cafuzo, um mestiço cujos gemidos ecoavam pelas fímbrias da Serra da Barriga. O canavial era o mundo mestiço prestes a ser aniquilado, podado pela foice inclemente ou incinerado pelo fogo ateado pelo usineiro. Seus corpos seriam atirados na moenda. Seus ossos vão ser triturados e vão virar garapa, o sangue derramado em torrentes para irrigar os dutos do capital acumulado.

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A construção da Nicolau Maquiavel respeitava os padrões atuais, mas necessitava de algumas ampliações. Não estava equipada com quadra de esportes, por exemplo. Os professores de educação física utilizavam o terreno dos fundos para instruir os alunos. No local havia traves de ferro e redes de náilon, doado por um vereador. Uma grama nativa fazia dali um campo quase perfeito de futebol. Jaguar observava sisudo o diálogo entre Augusto e Petrúcio. De pé, a meia distância, ele não se intrometeu. Voltou a se aproximar da multidão que travava uma discussão acalorada. Uns concordavam com a montagem do circo, outros sequer sabiam o que aconteceria depois de cessada a escavação, depois de tanto furar buracos. A discórdia suscitou uma forte contenda. Foi o próprio Jaguar quem interferiu, evitando que se travasse um enfrentamento direto. Os ânimos estavam exaltados e naquelas condições qualquer impropério podia acender um estopim com resultados imprevisíveis. O terreno que se tornou o terror do bairro e motivo de polêmicas seria, afinal, utilizado para uma boa causa. As controvérsias eram, sobretudo, pela razão de muitos

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desejarem que o terreno fosse ocupado com uma obra pública. Os flancos do campo eram ornados por verdejantes touceiras de capim. Ao fundo, junto ao muro da escola, havia algumas amendoeiras frondosas, ladeadas por vicejantes moitas de colonião. Acontecimentos infaustos se tornaram rotina. Maus elementos drogados arrastavam as mocinhas para lá, estupravam-nas e provocavam mutilações ou as assassinavam. Chegavam a enterrá-las à flor da terra. Muitos jovens envolvidos com narcóticos foram mortos lá. Produtos de roubos eram ocultados para serem posteriormente recolhidos pelos criminosos. Também se praticava a venda de entorpecentes, sobretudo durante os campeonatos de futebol. Agitadas, as pessoas não conseguiam se entender. Petrúcio Lutsky tentou furar o cerco para se safar da fogueira que estava a ser acesa. Apanhou a cuia e sorveu mais um gole de chimarrão. O mate fervente desceu derretendo a mucosa. A frieza cárpata foi incapaz de resigná-lo. Era mais de trinta anos convivendo com palhaços, atores, serviçais, gente de toda a natureza e muitos animais selvagens. O circo passou a ser seu mundo. Aprendeu

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a produzir o riso, muitas vezes arrancando-o dos aborrecimentos e das lágrimas. Ensinou a muitos a arte que herdara dos avós. Apesar das inconstâncias a vida devia ser conduzida com bom humor. O circo era uma escola porque nele se aprendia ou se estimulava o sorriso, atributo essencial à vida. O circo não contradizia os princípios da educação. Nele não havia espaço para a tristeza. Nele o sorriso não era imposto, era espontâneo. A plateia exporia a alma e ressuscitaria a alegria se ela estivesse morta. Depois de percorrer quase todo o Sul, a trupe chegou à cidade de São Paulo. A imensa metrópole prometia suprir as necessidades ocorridas nos últimos meses. Porém, as concorrências, especulações e burocracias o perseguiam. O guerreiro cárpato resistiria. Firmou-se teimosamente naquele campo minado. Não podemos retroceder, confidenciou à esposa. Ela tinha sido contorcionista por mais de dez anos. Depois que o corpo passou a não obedecer aos comandos ela resolveu se dedicar apenas à administração da empresa.

A multidão outra vez pôs-se ao redor do dono do circo. Ele se afastou

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apenas por prudência. Tinha o aval das autoridades municipais para botar o circo para funcionar. Por isso não devia temer as pessoas. Ficou absorto, apesar do burburinho. Surpreendeu-se ao sentir uma mão tocando seu ombro. _Pode ficar frio, meu camarada. Isso aí é apenas fogo de palha. Essa gente é que nem maritaca: só faz tagarelice. Petrúcio se voltou lentamente, tentando manter a frieza habitual. Percebendo sua apreensão o outro emendou: _Meu nome é Marcos Freitas, mas pode me chamar de Jaguar. É como todos me conhecem. Aqui eu sou mais conhecido do que nota de um real. Mas meu valor é de um monte de notas de cem. _ Sorriu escancarado _ Sou líder comunitário e trabalho em prol das benfeitorias do bairro. De vez em quando o povo cisma, provoca algum tumulto, tentando atrapalhar o trabalho da gente, sabe? Mas ninguém vence este animal velho não. Petrúcio encarou Jaguar. Seu temperamento dúbio ficou martelando a cabeça do dono do circo. Meia dúzia de policiais estava posicionada. Só aí ele entendeu por que a confusão tinha cessado. Um dos policiais se adiantou

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depois que Jaguar fez um meneio com a cabeça. Dando a entender que era o chefe da guarnição, estendeu a mão ao circense.

_Senhor... como é mesmo seu nome?

_Petrúcio. Petrúcio Lutsky. _Pelo que vejo o senhor é o

encarregado. _Sou o proprietário do circo.

_Ah. Muito bem. Então o senhor pode continuar seu trabalho. Pode prosseguir na montagem. Ninguém vai fazer o circo pegar fogo.

Deu uma ruidosa gargalhada. E antes de rodopiar sobre o tacão do coturno e dar meia volta, ordenou que seus comandados o acompanhassem. Segredou ao ouvido do dono do circo:

_Da pro senhor descolar uns ingressos pra gente? Sabe como é que é: a gente ganha salário mixuruca e os meninos pedem que os levem ao circo. A coisa tá braba! O povo havia dispersado. Apenas alguns teimosos ainda observavam a certa distância. A lona havia sido esticada. As bancadas para a plateia estavam postas e o picadeiro pronto para receber os artistas. Apenas não estavam a contento as acomodações dos animais. Apesar de

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poucos, eles necessitavam de conforto. O maior cuidado deveria ser com o jaguar, felídeo de uma espécie rara da família das panteras. Era o maior o mais feroz animal do circo, um belo espécime. Exótico e exuberante, de uma esplêndida pelagem, cujas pintas em amarelo e preto pareciam ter sido desenhadas a pincel. Além da onça, apenas um casal de chimpanzés, dois macacos-prego, um pônei, um bode, dois gatos-do-mato e meia dúzia de aves. O circo fora muito bem equipado. Tivera muitos animais silvestres: leões, elefantes, camelos, gorilas, avestruzes. Porém, em virtude das dificuldades financeiras o empresário teve que abrir mão de parte do patrimônio. Animais e equipamentos foram vendidos por preços irrisórios. Com a tralha que restou tentaria levar em frente a companhia. Entretanto, os espetáculos não perderiam o fascínio. Com a ausência de muitos utensílios, artistas e animais ele teve que ser criativo, conseguindo improvisar e criar novas atrações. Com um alto-falante amarrado no teto de um maverick anunciava os espetáculos. Um palhaço em pernas de paus acompanhava o veículo, percorrendo as ruelas do bairro lentamente, distribuindo pirulitos às

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crianças e beijos despretensiosos às moças. Gago e com voz fanhosa, o locutor anunciava as atrações. Os anúncios deixavam as pessoas curiosas para conhecer o misterioso locutor. Ele escondia o rosto atrás de uma grossa máscara enquanto trafegava em marcha lenta pelas ruas. “Senhoras e senhores. Respeitável público: esta noite vocês assistirão a um belo espetáculo. O bode que devora a onça. O palhaço que peida fogo. A moça nua que vai domar a fera. O locutor misterioso...” A cada dia ele anunciava uma atração curiosa, porém, a revelação era sempre prorrogada. Os jovens assistiam a todos os espetáculos. Queriam ver a moça nua dominando a fera. Os mais velhos queriam conhecer a fisionomia do locutor misterioso. As crianças aguardavam a noite, ansiosas para assistirem ao cabrito valente enfeitado de leão devorando o feroz jaguar. Da escola eles vislumbravam joviais as cúpulas do circo e recontavam sorridentes as peripécias mágicas encenadas na noite anterior. Petrúcio optou por manter o jaguar no circo. O animal possuía um valor não só de caráter financeiro como afetivo. Tinha por ele uma estima como se fosse um cachorro. A onça fora capturada ainda filhote por um caçador.

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Apreendida pelos fiscais florestais, que decidiram confiar seus cuidados ao dono do circo, mediante a paga de uma taxa. Aliás, devolver o pequeno animal à floresta naquelas condições seria condená-lo à morte. Ao jaguar era dispensado o melhor tratamento. Era um animal disciplinado e inteligente. A despesa andava muito alta, sim. O quadro de artistas tinha sido reduzido drasticamente. O tratador dos animais teve que ser dispensado e a tarefa passou a ser repartida com Jorginho. De pequena estatura ele era consideravelmente gordo e com poucas habilidades para o picadeiro. Petrúcio devia usar as artimanhas para resolver os problemas. Além de tratador do jaguar, Jorginho foi imediatamente promovido a ator. Virou o palhaço Bolinha. Ele entrava sempre inadvertidamente em cena para forçar o riso da plateia. Suas tiradas eram tão desprovidas de hilaridade que as pessoas acabavam gargalhando da falta de graça. Outros estorvos rondavam a empresa de Petrúcio. Depois de conseguir permissão da prefeitura para estender a lona nos fundos da Nicolau Maquiavel as resistências persistiram.

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Embora temeroso, ele decidiu que não desistiria. Tinha pretensões econômicas e percebeu que o bairro era um rico filão. Conseguiria uma gorda bilheteria e sairia do vermelho. A aventura lembrava os antepassados. O avô havia imigrado da Ucrânia. Na década de 1940, ainda moço, foi preciso fugir do totalitarismo stalinista. Conseguiu furar o cerco da cortina de ferro. Aventurou-se perigosamente até se desvencilhar das garras afiadas de Iossif Stalin. Aleksandr Lutsky empreendeu uma gloriosa porfia, arrancando a esposa e os quatro filhos das armadilhas do tirano que se dizia o melhor exemplo de socialismo. Penetrou na Polônia ainda destroçada, atravessou a Alemanha que arquejava sob os abalos da grande guerra. Ao alcançar as vagas altaneiras do fabuloso Atlântico pôde dar adeus a uma Europa que se encontrava em frangalhos e prestes a aniquilar toda a sua gente. Nem parecia aquela deusa formosa que um dia, por descuido, se lançara ao brumoso Mar Egeu e fora salva por um herói grego. Dali em diante os Lutsky respirariam aliviados. O patriarca escolheu para viver os distantes trópicos. O mundo situado abaixo da linha do equador sempre foi para ele um lugar lendário. Tinha ouvido

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falar sobre as terras cheias de venturas e oportunidades. O navio fez uma escala na América do Norte, mas ele decidiu não desembarcar, como fizeram outros fugitivos europeus. O navio recolheu as âncoras e as chaminés soltaram uma baforada de fumaça negra, avisando que não havia mais tempo para retroceder. Outra vez um adeus e a ansiedade de chegar ao local onde seria sua nova pátria. As livres relações comerciais permitiram um rápido progresso. Já não era perseguido como nas terras russas onde todos eram sufocados por Iossif, cuja nação ele considerava um latifúndio seu. Abriu os olhos cansados, viu-se diante de uma extensa floresta, ora com araucárias altas, ora com prados verdejantes. Era próximo às escarpas da Serra Geral que desembarcavam a maioria dos estrangeiros oriundos de regiões setentrionais. Embora se sentindo um peixe fora d’água, estava aliviado. Virou-se em torno do próprio corpo como um redemoinho e divisou as coxilhas que lembravam as reentrâncias dos Cárpatos. A esposa e os filhos continuavam intrigados se perguntando: “E agora, o que vamos fazer?”.

_Vamos reestruturar nosso pequeno circo. E levar a vida que levávamos na Ucrânia.

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A esposa apenas ajeitou o lenço que lhe cingia os cabelos escorridos e assentiu com a cabeça. Resmungou:

_Deixamos nosso circo lá. Nossos equipamentos, nossos animais e um porco divertido. Ficou lá também o grande porco que ostentava um vasto bigode, alimentava-se de sangue e dominava o país com um tridente que nem o demo.

Aleksandr tirou o chapéu de feltro, massageou os cabelos afogueados e apertou os olhos azuis tentando enxergar as ocorrências em sua terra distante.

_Um dia aquele grande porco vai se afogar em sua própria lama!

Petrúcio foi educado naquele ambiente. Seu caráter se formou com base na tradição ucraniana. Herdara dos pais a profissão, a índole austera e perspicaz. Para ele era como se tivesse vivido na Ucrânia, correndo pelas escarpas das montanhas, atuando no circo dos avós, vislumbrando as ondas do brumoso Mar Negro. Diante de todo aquele filme que se projetava em sua mente é que ele se aventurava pelo país que nasceu. Os relatos e as virtuosidades ucranianas estavam impregnados em sua personalidade. A

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arte circense impregnou-se em seu espírito. Além do circo o avô Aleksandr ocupara-se de atividades diversas. Tentara ser pecuarista. Iniciou criando porcos, no entanto, as condições da região não eram tão favoráveis como nos Cárpatos. Foi agricultor, comerciante, caixeiro-viajante e soldado. Aí voltou a montar o pequeno circo. Os componentes eram apenas seus familiares. Usava alguns animais que conseguia amestrar: dois cavalos, quatro ovelhas e um porco atrapalhado ao qual deu o nome de Iossif. Dizia que o nome era um demérito ao porco e não uma homenagem ao tirano russo. O circo de Petrúcio possuía alguns animais, porém nenhum porco. Ele imaginava uma forma de prestigiar a memória do avô. Entendeu que dando continuidade à atividade circense seria já uma grande homenagem. Quando adquiriu o jaguar pensou em lhe dar o nome de Iossif. Começou a chamá-lo assim. Aquele animal tinha um instinto ferino tanto quanto o tirano. Mas à medida que a convivência se tornava mais duradoura notou que a onça possuía certa docilidade e inteligência. Sua ferocidade era inerente à natureza e podia ser trabalhada. Dependia só do tratamento e não do instinto arrogante e

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da vontade absoluta de destruir. Decidiu que o chamaria simplesmente jaguar. Permanecia horas junto à jaula. Por que o bicho não podia ficar fora da jaula? Todos os animais podem acarretar perigo ao homem quando não se compreende a liberdade e a privacidade. O poder ilimitado fez com que Iossif se tornasse uma fera, arrogante e cruel. Seu instinto perverso o levou a destruir as criaturas sob seu poder. Conseguiu dilacerar seus corpos e perturbar suas mentes. O jaguar rolou preguiçoso e voltou a cochilar. Ao perceber que seu dono o observava tiranicamente levantou lentamente e se aproximou. Esticou a língua tentando lamber sua mão. Petrúcio se esquivou. “Aqui do outro lado da grade é outro mundo. Eu, Petrúcio estou num mundo. Tu, jaguar, estás em outro. Fazemos parte de dois mundos distintos”. Gostaria de saber como o jaguar via o mundo dele, como enxergava as coisas lá fora. A onça apenas rosnou, negando-se a responder. Então tentou adivinhar seus sentimentos, sua moral. Era o inverso do mundo de Iossif. Talvez o jaguar se sentisse um prisioneiro do tirano soviético. Não seria necessário perguntar mais nada. O mundo do

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jaguar era como o mundo deixado nos Cárpatos. Mantinha-o enclausurado para protegê-lo, diferentemente de Iossif que sujeitava seus súditos para humilhá-los. Petrúcio emergiu dos devaneios ao ouvir Bolinha a chamá-lo.

_Tem uns homens aí querendo falar com o senhor.

_Quem são? _Um deles é o que disse ser

líder comunitário. Os outros eu não conheço.

Petrúcio se virou e viu os três homens vindo em sua direção.

_Vou tomando a liberdade de entrar. – Projetou o corpanzil em frente à estreita porta que dava acesso à jaula dos animais. Exibiu os dentes tingidos pela nicotina e estendeu a mão rechonchuda a Petrúcio. Bateu forte em seu ombro. Ele deduziu: “Se isso é modo de cumprimentar, imagina quando este homem resolve dar uma bofetada!”.

_Estava levando um papo com meu xará? – Perguntou sorrindo – Ah! Eu também quero falar com ele. Marcos Freitas se aproximou da jaula, pondo a mão sobre a grade de ferro. O animal havia se afastado. Retornou rápido, desferindo uma forte patada. Conhecendo os hábitos do

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animal, Petrúcio interveio com presteza dando um puxão em Jaguar.

_Foi por pouco! – Gargalhou Jaguar. Esboçou um sorriso pálido. Os outros dois homens que o acompanhavam puseram a mão sobre o coração, visivelmente assustados. O espanto foi desfeito com um breve momento de descontração.

_Quase que vemos Jaguar ser devorado pelo jaguar – Proferiu um.

_Um animal nunca devora seu semelhante – Argumentou Marcos Freitas. Jaguar com jaguar se entendem. Não se preocupem, eu sou um homem experiente. Sou uma velha onça ardilosa. Sei que o bicho tem razão em defender seu território. Também não esperei que me apresentassem a ele, né.

Repousou o pesado corpo sobre uma banqueta, sem deixar de forçar o humor. Petrúcio estava intrigado. Demonstrando boas maneiras convidou os homens a se acomodarem na improvisada sala de visitas.

_Bom, senhor Jaguar, anh... senhor Marcos Freitas...

_Jaguar. Diga Jaguar mesmo. É como todos me conhecem e até gosto de ser chamado assim. _ E, entendendo que Petrúcio estava ansioso para saber o

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motivo que os trouxeram ali, adiantou-se:

_Meu caro Petrúcio Lutsky, este aqui é o professor Robson. Ele é professor de educação física da Nicolau Maquiavel. Faz parte da coordenação e é um brilhante profissional. Robson retesou-se sobre seu porte avantajado, estufou o tórax a fim de mostrá-lo mais saliente. – E este – Continuou – é o vereador Leandro Roquette, homem de ótimos préstimos no legislativo municipal. É líder do executivo na câmara. Eleito pela terceira vez vem executando excelentes trabalhos durante todas essas legislaturas. É um parlamentar atuante e está sempre pronto para atender a população. Estes dois cidadãos são pessoas de caráter imbatível. Inclusive, foram eles que se empenharam para que o circo do senhor fosse montado aqui. O vereador Leandro facilitou os trâmites junto à prefeitura, providenciando o alvará. O professor Robson empenhou-se para que fosse concretizado o que era um desejo de todos.

_Tudo bem. Eu compreendo – Veio Petrúcio – Sei, conforme foi relatado pelo senhor e por outros líderes do bairro, que havia muita polêmica a respeito deste espaço. Que, embora

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pertencendo ao município, não era dispensado a ele o devido cuidado. Eu estou ciente de que todos os senhores se esforçaram para que eu pudesse me estabelecer aqui. Fico plenamente agradecido. Vocês são pessoas de uma condescendência fora do comum e eu sei que sem ela eu jamais conseguiria botar minha empresa para funcionar. Tenho a convicção de que com isso estarei contribuindo com a educação da comunidade.

_Muito bem – Veio interrompê-lo Jaguar. É também disso que nós queremos falar. Estendeu a mão em direção a Robson e a Leandro. – O professor vai aproveitar a oportunidade para te fazer uma proposta. Desta vez é ele quem vai te pedir um favor.

Um metro e noventa, rosto agradável e tórax sempre mantido em proeminência, Robson ensaiou dar um passo à frente. Entreabriu os lábios, mas Jaguar se antecipou:

_O senhor sabe que a Nicolau Maquiavel não possui uma quadra para a prática de esportes. Era aqui nesta área que o professor Robson ministrava as aulas de educação física. Assim, ele vem pedir sua permissão para continuar dando aulas no mesmo local. Agora ficará dentro do teu circo.

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Petrúcio abriu um raro sorriso. O vasto bigode revelou os dentes. _Bah! Eu não preciso nem responder, tchê. É com muita satisfação que eu recebo o grande mestre Robson. Por outro lado eu nunca poderia deixar de aceitá-lo. Vocês não precisavam nem pedir. _Não, não. Agora quem manda aqui é o senhor – Proclamou com autoridade Jaguar, passando o braço sobre o ombro do dono do circo. – Pois bem, meu irmãozão, já dava para perceber que o senhor é um gaúcho ponta firme. Aliás, até hoje não conheci gaúcho cagão. Todos sorriram divertidos. O professor e o vereador aproximaram-se de Petrúcio. Bateram em seu ombro e apertaram sua mão. _Não vou atrapalhar o horário dos espetáculos porque as aulas serão somente na parte da manhã e os espetáculos são à noite, não é mesmo?

Petrúcio assentiu com a cabeça ainda sorridente. _E se for preciso eu me prontifico a ajudar na arrumação – Concluiu o professor. _Não se preocupe. – Cortou Petrúcio. – Basta tirar os espeques que separam o picadeiro da plateia. Mas isso

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é muito fácil de ser recolocado. Não vai haver incômodo nenhum. _Estou disposto a colaborar com o senhor no que mais precisar – Afirmou Leandro Roquette. Jaguar intercedeu: _E eu, seu Petrúcio, estarei sempre por aqui. O senhor já sabe que pode contar comigo a qualquer momento. Os três homens apertaram outra vez a mão de Petrúcio e se retiraram. O carro do vereador arrancou cantando pneu, conduzindo o trio.

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CAPÍTULO DOIS

Nada. Nem o sol nem o vento e a chuva compatibilizavam-se com a área nos arredores da cidade de São Paulo. Quando havia bom humor as pessoas chamavam-na de periferia. Quando a intenção era diminuir o mérito ou enaltecer as regiões que se lhe opunham, chamava-se favela. Era uma alusão pejorativa e humilhante, desqualificando não somente o local, mas os cidadãos que lá residiam. Deflagrava-se assim um embate moralista entre os ocupantes dessas regiões e os que habitavam as áreas mais centrais. A paisagem era desoladora. As construções não revelavam qualquer estética. O bege predominava, as construções desalinhadas e de tamanhos reduzidos, davam origem a ruas estreitas e vielas. As paredes passavam anos para serem revestidas de reboco e tinta. A

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topografia irregular desinteressou investidores e o local se tornou acessível às pessoas de baixa renda. Frequentemente aconteciam deslizamentos e inundações, levando ao cemitério algum morador e deixando muitos outros sem abrigo. Cada família não tinha mais que cinquenta metros quadrados para montar um casebre. Era um amontoado de pessoas em choças úmidas. A rede de água era irregular e a iluminação clandestina. Para quem via de fora o bairro era tudo de ruim: esconderijo de criminosos, de traficantes de drogas, aglomerado de pessoas estúpidas e de nordestinos broncos. E tantos outros adjetivos desqualificadores. Inegavelmente, o local distante e de difícil acesso atraía indivíduos de má índole que se refugiavam depois de cometer crimes ou para praticá-los mais longe dos olhos da justiça. O serviço público estava muito aquém do satisfatório. A assistência à saúde era fragílima. A segurança pública praticamente ausente. Foi naquele bairro que Augusto Sacramento fixou residência. Distante do sertão e das perseguições seculares era lá que ele se desvencilharia definitivamente das opressões dos usineiros. Era lá que ele consumaria a

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vingança pelo assassinato de sua estirpe. Despediu-se da esposa e dos filhos, prometendo voltar para buscá-los. Subiu na carroceria de um fenemê sacolejante. Dez dias depois foi despejado debaixo de um viaduto na Baixada do Glicério. _Agora tu pegas teu rumo que eu pego o meu – Disse o dono do caminhão. Ele tomou o saco com algumas peças de roupa, duas rapaduras e a inseparável peixeira. Olhou em volta e só viu caras estranhas, viadutos, altos edifícios e carros, muitos carros. “Co’os diabos com tanto carro!”, murmurou. Deu dois passos e um automóvel passou raspando nele em alta velocidade. “Esses pestes são muito mal educados”, resmungou. Dali em diante entenderia que não devia atravessar a rua a qualquer momento. Compreendeu que a falta de atenção contribuía com a incidência dos atropelamentos naquela cidade louca. Ninguém dava atenção aos semelhantes e sequer se olhavam no rosto - Que gente mais esquisita. Começou a andar pela calçada atulhada de pessoas, evitando atravessar a rua para não ser atropelado. Estava muito atarantado, mas sabia que não podia se deixar intimidar. Era um mestiço atrevido e

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intrépido. Tinha amansado burro brabo, gado arredio. Realizara trabalhos de toda natureza. Enfrentara sertanejos valentes com faca, facão, clavinote e rifle papo-amarelo. Por que não encarar uma situaçãozinha daquela? Ora, ora, se um cabra nascido e criado no meio das mais duras pelejas iria se acovardar com pouca coisa! Um sujeito nascido nas rampas da Serra da Barriga, onde os negros mais rijos lutaram contra o organizado esquema colonial não podia ter medo de munganga. Era descendente daquele povo forte e corajoso que resistiu impávido nos arraiais de Palmares. O saco jogado na cacunda e os olhos sempre atentos. Nesse vaivém ele andou por muito tempo no mesmo quarteirão até encontrar a oportunidade de seguir em frente. Também não fazia diferença se andava em círculo ou em linha reta, não tinha destino certo. Parou numa praça para descansar. Sentou-se num banco, jogou o saco no chão, tirou o chapéu de couro e meteu os dedos nos cabelos amarfanhados. Ergueu a cabeça e se deparou com um homem parado a seu lado. Ia perguntar onde podia encontrar algum emprego, mas o homem se adiantou:

_Ô meu, tem um cigarro aí?

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Olhou o sujeito, desatou o nó que servia de fechadura ao saco.

_Só tem este arapiraca. É o melhor fumo. Meteu outra vez a mão no saco e foi puxando devagar. O homem deu um salto ao ver o luzir da enorme peixeira. Correu gritando:

_Ladrão! Ladrão! O sertanejo ainda tentou se

explicar: _É pra tu picar o fumo, seu fio da

peste. Aí viu-se cercado por quatro agentes da polícia.

_Solta a faca, cara, senão eu atiro! – Adiantou-se o chefe da guarnição com o parabelum em punho.

_Esta faca é pra cortar fumo, seu soldado.

_Soldado, não: sargento. Trate-me mais sério. Cê tá preso!

_Preso? Eu num fiz nada. Nunca pratiquei desordem, nunca matei ninguém.

_O senhor tentou assaltar um cidadão com uma arma branca. Vai querer resistir?

_Ele tem mesmo cara de mau elemento, sargento – Acusou um dos componentes da guarnição.

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_Deve ser daqueles nordestinos cangaceiros – Veio outro.

O terceiro preparou-se para emitir seu parecer. O sargento o deteve com a mão levantada.

Ainda assustado com a grandiosidade da metrópole, Augusto mal conseguia entender o que estava acontecendo. Não era para cair numa ratoeira que tinha corrido da aridez do sertão. Enquanto era escoltado uma torrente de pensamentos ruins inundava sua cabeça. Pensou em não acatar a voz de prisão. Mas tranquilizou-se convencido de que os policiais logo constatariam que tudo não passava de um equívoco. Mais uma vez pensou na vingança aos usineiros. Um mal poderia conduzir a outro mal maior e mesmo tão distante do sertão ele poderia não estar ileso.

_Entra aí rápido, seu baiano estúpido – Bradou o policial graduado. Ele ainda retrucou: “Deixa de brincadeira, seu soldado”. O policial o encarou carrancudo. Empurrou-o para dentro e pediu que não o chamasse outra vez de soldado.

O céu azul tingindo a Serra da Barriga, as reentrâncias tentando abafar os gemidos e o sangue dos negros mosqueando o chão ressequido, suas

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costas lanhadas e as almas feridas. A luta pela conquista da liberdade suscitou nele um turbilhão de pensamentos. Seu sangue ainda não tinha sido derramado, mas sua dignidade já estava ferida. Como era sofrível a dor da humilhação. O policial o interrompeu nas reflexões.

_Tá esperando o quê, seu capiau? Entra logo. Prepara-te! O delegado vai te enquadrar por ameaça, tentativa de roubo e porte de arma branca. Cê tá fodidinho da silva! Um homem apareceu atrás do guichê com um copo de café. Na outra mão tinha um cigarro. Esticou o pescoço para melhor visualizar as pessoas que entravam. Sorveu o café com ímpeto, deixando o copo ainda pela metade sobre uma mesinha. Começou a aspirar e expirar baforadas de fumaça sem demonstrar preocupação. As narinas transformaram-se numa chaminé. Perguntou pausadamente:

_Que é que foi desta vez, praça? _Cadê o doutor? – Indagou o

policial. _Qual é o q.r.u., praça? – Insistiu

com mais energia. _Eu tenho um nome e uma

graduação. Sou o sargento Hipólito!

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Parece que não sabe! Preciso apresentar um flagrante ao doutor.

_Quem vai decidir o que é flagrante é o doutor, certo, praça?

_Não me chame de praça, seu... _Alto lá! Pode baixar a bola –

Ditou altivo o escrivão – O senhor não está em seu quartel. Está numa delegacia e a autoridade aqui sou eu, na ausência do doutor delegado. Eu tenho a obrigação de saber sobre as ocorrências, principalmente quando o delegado se faz ausente.

_Eu quero apresentar a ocorrência ao doutor – Voltou esforçadamente refeito.

_Então espere. Ele deve retornar daqui a duas horas.

Augusto estava trespassado. Constrangido também por assistir a briga de duas autoridades. Entendeu que aquela discussão fazia parte de uma encrenca antiga. Coisa daquela natureza no Nordeste ele nunca tinha visto. Uma disputa daquele tipo era resolvida na base da revanche, a faca ou a bala. Se o cabra tentasse depreciar o outro a coisa fedia. Os dois se encaravam de peixeira no gogó. Ele mesmo enfrentara situações das mais complicadas. Porém percebia que no Sudeste o inimigo era muito mais oculto e capcioso, não se

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manifestava com clareza. No sertão quando um sujeito encrencava com outro chamava logo pra briga, assim na veneta. Quem fosse mais rápido na faca, no facão, no porrete ou na bala seria o vencedor.

Augusto olhou os presos sentados no chão atrás das grades. Um prisioneiro de dentes careados e barba crescida gritou:

_Nós vamos ter mais um companheiro. Não se esquece de trazer cigarro pra nós aqui, ô meu.

O preso falava enristando o dedo. Não sabia ele que o motivo que levou o nordestino à delegacia fora exatamente o cigarro. Augusto cerrou os dentes e fechou os olhos para reter a vontade de invadir a cela e dar uns bons murros naquele sujeito insolente.

_Daqui a pouco cê vai estar aqui dentro com a gente, mano – retornou o preso. – Quê que andou aprontando? Deve ter arrochado algum transeunte, né? Deve ter batido a carteira de algum babaca na Praça da Sé ou no Viaduto do Chá. Mas você não tem cara de larápio não. Com essa cara de baiano tá mais pra quem meteu a peixeira em alguém.

Nisso surgiu um carcereiro vindo dos fundos da delegacia. Bateu a porta com um estrondo e foi em direção ao

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xilindró. Empunhava um cassetete de madeira e tinha na cintura um parabelum. Ficou furioso:

_Ô Mão do Cão, se não calar eu vou quebrar os dentes que ainda te restam nessa boca imunda! Mão do Cão era freguês habitual das delegacias centrais. Era um delinquente perigoso e incorrigível. Tinha um diabo tatuado na palma da mão, por isso o apelido macabro.

O preso sorriu sem se dar por vencido. Depois de fazer a advertência o carcereiro permaneceu por alguns segundos junto à grade da cela, desferiu uma barulhenta cacetada sobre os ferros e pôs-se de frente para Augusto. Só aí o alagoano entendeu por que o agente tinha se irritado. As marcas de sono estavam acesas em seu semblante. A falação de Mão do Cão tinha interrompido seu cochilo. Os agentes de polícia tinham que trabalhar em empregos paralelos para se manterem.

_E o senhor, por que está aqui? – Quis saber o agente.

_Num sei não, meu patrão. Eu acho...

O sargento se adiantou. Outra vez o escrivão interveio.

_Pode deixar, Bandeira. Esse é um problema para o doutor resolver.

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O carcereiro ainda olhou o nordestino de cima a baixo.

_Você não vai querer se meter no meio desses marginais – Admoestou.

_Ele cometeu um crime, quer dizer, dois - Insistiu o sargento.

Outra vez os pensamentos levaram Augusto a adejar para a terra natal. As franjas azuis da Serra da Barriga. A senzala onde os negros se amontoavam como porcos. Os campos de serviços forçados sem decreto. Os pelourinhos onde os castigos eram constantes e cruéis. A imensidão que se perdia de vista e se escondia no horizonte tinha sido palco de sangrentas batalhas. Durante décadas seus antepassados tinham tentado se defender do jugo e da perseguição dos colonizadores, dos donos de engenhos que teimavam em mantê-los como burros de carga. Os vales e tabuleiros outrora ocupados pelas extensas glebas e dominados por latifundiários davam lugar às usinas e a cidadelas. O domínio capitalista e opressor permanecia. Os contrafortes, extensos e vicejantes, serviram de abrigo aos negros que não se sujeitaram à escravização. Pouca diferença havia entre a atualidade e a época dos quilombos. Em volta das usinas se aglomeravam centenas de

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famílias. Sem ter um palmo de terra para cultivar vendiam a preços ínfimos a força dos braços, enriquecendo o patrão, debilitando a si. Os remanescentes dos negros um dia tiveram aquelas terras para cultivar e se refugiarem. Sufocados foram perdendo a resistência, tornando-se débeis, impotentes perante a prepotência dos coronéis. Quando os latifundiários lhes permitiam plantar era num trecho pequeno e de terra inculta. Quando a pequena roça dava frutos os patrões soltavam o gado para se alimentar do pouco que devia alimentar seus filhos. Numa dependência que não conseguiam entender, amontoava-se uma dívida que os forçava a trabalhar ininterruptamente. Os débitos nunca eram quitados.

O sonho da cidade grande o tinha traído. Via na cadeia o retrato da desgraça humana, a verdadeira degradação da alma. Homens sem caráter, sem sonho e sem pudor, reduzidos à boçalidade. Agora ele entendia o que era a verdadeira desgraça humana.

_Isso não é vida – Confidenciou

Augusto com a esposa – Eu vou-me embora pra São Paulo e só volto aqui

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para levar tu e os meninos. Não vou esperar até sermos todos assassinados. Desforrar uma mácula não é cometer um crime. Mas sei que não posso mais ficar aqui. Nem eu nem minha família podemos ficar a penar.

A esposa encharcou os olhos. Não podia contestar a opinião do homem que escolheu para jurar companheirismo e amor eterno perante um altar sagrado. Tampouco devia impedi-lo de si safar das garras afiadas de um uma fera irada. Foi tratar de matar uma das galinhas mais gordas para fazer o frito que o alimentaria durante a longa viagem. Desejou boa sorte, enquanto ele se agasalhava na carroceria de um velho fenemê.

As lágrimas ameaçaram arrebentar as pálpebras. Ele foi mais forte. “Ochente, eu sou é homem. Homem que é homem num chora por nada nesse mundo”. Tinha crescido ouvindo esse bordão. Certo ou errado ele jamais se dera chance de analisar. Apenas achou que chorar era se acovardar e aceitar o infortúnio. E o homem não devia se entregar espontaneamente à desdita. Zumbi se revoltou com a humilhação a que foi submetida toda a sua linhagem. E apesar pusilanimidade de muitos dos

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seus ele jamais desistiu de reconquistar a reputação da etnia iorubá. Uma nova nação floresceria naquele lugar não fosse o avassalamento perpetrado pelo atroz colonizador.

O sangue de Zumbi corria nas veias de Augusto. Sua reação ao furar o cerco dos usineiros não foi sinal de covardia, mas de defesa. Tentar se manter como gente não era crime, era um dever, repetia em solilóquio. Desse direito ele jamais abriria mão.

Augusto já estava desiludido da liberdade quando viu entrar um homem alto, louro, de camisa social e gravata. Segurava o paletó pelo colarinho. Naquele dia fazia calor na pauliceia e seu rosto ruborizado estava salpicado de suor.

_Boa tarde, doutor – Cumprimentou o sargento, surpreendido pela chegada inadvertida do titular da delegacia. O delegado respondeu sem virar o rosto. Dirigiu-se a sua sala, apressado. O escrivão foi até a entrada do corredor para se certificar da chegada do chefe.

_Diga ao doutor que tenho uma ocorrência – Vociferou cheio de si o sargento.

_Calma, praça. O homem nem acabou de chegar.

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O sargento ficou carrancudo, mas não retrucou.

_Alguma ocorrência pendente, Barricheli? _ Requisitou o delegado.

O escrivão se levantou com um cigarro e um copo de café nas mãos. O barulho que vinha da rua chamou a atenção de todos e estorvou a resposta.

Veemente, um policial adentrou as dependências da delegacia acompanhado por sua guarnição. Eles traziam algemado o suposto meliante.

_Doutor. Prendemos este ladrão em flagrante!

_Que foi que houve? – Interveio tranquilo o escrivão.

_Este elemento assaltou e feriu um transeunte.

_Cadê a vítima? – Dessa vez foi o delegado quem quis saber, sorvia o café oferecido pelo escrivão. O policial virou-se, olhando em direção à porta.

O soldado Ribeiro deu meia-volta, saiu até a varanda e fez um aceno para as pessoas que se encontravam a certa distância.

O sargento Hipólito gritou de sobressaltado:

_Soldado Ribeiro! O soldado fez um volteio rápido e

se colocou em posição de sentido frente a seu superior.

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_Venho apresentar uma ocorrência, senhor. Este homem foi pego cometendo um delito contra aquelas pessoas – Disse apontando para as vítimas.

Do fundo do corredor Augusto também ficou perplexo. O homem que os dois policiais traziam preso era o mesmo que o acusara de querer roubá-lo.

Com a tranquilidade de um policial experimentado o delegado fez um gesto para o escrivão.

_Barricheli, parece que temos uma ocorrência anterior a esta, não é?

_Sim, doutor. O praça ali diz que tem uma ocorrência para apresentar.

O delegado pôs os cotovelos sobre o balcão e solicitou que o sargento se aproximasse.

_Qual é sua ocorrência? _Doutor, aquele homem ali tentou

assaltar um transeunte. No momento em que o cidadão passava pela praça ele ameaçou esfaqueá-lo.

_Quem é a vítima? _É este aqui – Disse tocando o

ombro do homem conduzido pelo soldado Ribeiro.

_E o senhor? Qual é a sua ocorrência, soldado Ribeiro?

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_É roubo e agressão, doutor. Este homem assaltou estas três pessoas e feriu a uma delas com um punhal.

O delegado estalou os olhos. O homem, objeto da primeira ocorrência, figurava como vítima e como indiciado. Passou a mão sobre os cabelos lisos, tentando entender a confusão. Começou a interrogar as vítimas de roubo e agressão conduzidas pelo soldado Ribeiro. Confirmou-se que uma pessoa foi ferida com um punhal e três outras foram vítimas de roubo. O flagrante delito foi elaborado. Imediatamente o indiciado foi colocado no cárcere. O sujeito era reincidente, com passagem por várias delegacias da região.

_Sim, sargento. Agora vamos a sua ocorrência. Relate o que ocorreu.

Atarantado Hipólito não sabia como iniciar. A suposta vítima de sua ocorrência tinha se transformado em réu. O delegado mandou que o escrivão elaborasse um termo de simulação de ocorrência, por entender que a má condução de procedimentos atrapalhava o andamento dos trabalhos policiais. Antes de se retirar Hipólito ainda tentou confundir o delegado, solicitando que ele procedesse numa investigação sobre Augusto. Disse que ele podia ter cometido algum crime no Nordeste e

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podia estar fugindo do flagrante. O titular da delegacia foi interrogar Augusto.

_De onde é o senhor? _De Alagoas. Acabo de chegar de

lá. _Que veio fazer aqui? O interrogado pigarreou, começou

a articular palavras desconexas, mas se recuperou.

_Eu? Eu vim procurar emprego. _O senhor está tentando me

enrolar? Querendo esconder alguma coisa?

_Não, não... não, senhor. Não tou querendo esconder nada.

_Não tente enganar a polícia. Se tentar vai se dar mal.

O delegado encarou o nordestino com firmeza. Augusto se levantou, soltou os braços e olhou nos olhos do titular da delegacia.

-Nunca tentei enrolar ninguém, seu doutô. Sou um homem da roça, pobre e decente.

_Tá bom. Então vamos continuar. Que tipo de emprego o senhor pretende arranjar?

Outra vez Augusto oscilou, mas conseguiu se recuperar com rapidez.

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_Qualquer coisa... É porque lá a vida é dura. Lá a gente trabalha feito escravo.

_Em que o senhor trabalhava lá? _No canavial, na Usina. Sabe?

Mas já fiz de tudo. Lá eu era obrigado a trabalhar na Usina, porque eu morava nas terras do usineiro.

_E só por que morava nas terras do lado da Usina tinha que trabalhar lá?

_Todos que moram lá são obrigados a trabalhar na Usina e ganhar o tanto que o usineiro quer pagar.

_ Quais eram suas ocupações na Usina?

_Tudo. Tanger bois, cortar cana, prensar cana, capinar... Tudo...

_O senhor estudou? _Estudei apenas alguns meses. _Sabe ler e escrever? _Não. A escola da Usina não é

para ensinar. O delegado tomou um susto. _Como assim? Todas as escolas

são para ensinar. _Não. Aquela de lá não é. Ela é só

para os filhos dos agregados e empregados da Usina e é para não ensinar. O usineiro dizia que trabalhador e filho de trabalhador não precisam aprender a ler e a escrever. Precisam é ter coragem e força para cortar e

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capinar cana. Os filhos dos trabalhadores precisam estar vivos apenas para auxiliar nos serviços da Usina, para outras atividades devem estar mortos. É um prejuízo investir em educação de filhos de empregados. Escola de lá é só para manter a aparência e não deixar escapar a verba governamental.

Estarrecido o delegado deu por encerrada a entrevista. Pretendia se alongar mais um pouco para avaliar a conduta do sertanejo. Tinha ouvido falar de episódios horripilantes envolvendo sertanejos oprimidos pela seca e pela exploração de patrões desumanos. Concluiu que Augusto era uma vítima das calamidades que assolavam as regiões inóspitas do país. Entendendo que não podia manter o homem sob custódia, o delegado permitiu que ele pernoitasse nas dependências da delegacia. Seria fácil acatar a fútil denúncia do sargento Hipólito e manter aquele homem tosco na cadeia, mas sabia que não era correto, nem justo fazê-lo. Ainda se preocupou em encaminhá-lo a uma agência de empregos.

Dois dias depois Augusto estava trabalhando numa construção na região do Anhangabaú. Embora desolado pelos últimos acontecimentos não se deixou

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esmorecer. Uma treliche armada num vagão improvisado o acomodaria durante as noites frias, entre mais de duzentos operários. A ausência da esposa e a saudade dos filhos perturbava seu espírito, mas nem isso foi capaz de aviltar sua honra. Incansável, trabalhava até dezesseis horas por dia. Para Alagoas não mais voltaria. Era na metrópole paulistana que ele reconstruiria sua vida. Tinha a convicção que devia amparar seus rebentos como a avestruz mantém os filhotes sob as asas, como os leões e as hienas cuidam de suas pequenas crias. Conservaria os bons ideais e a tradição iorubá. Ao trazer os filhos para junto de si faria com que eles tivessem moradia digna e uma educação de qualidade. Não os queria mortos, conforme tinha decretado o usineiro. Sua geração não seria vítima da crueldade. Tornar-se-iam cidadãos soberanos, decentes e não escravos, como ele e seus ascendentes o foram. Com a economia acumulada durante vários meses de serão conseguiu comprar um pedacinho de terra afastado do centro da cidade. Construiu um barraco e mandou que viesse a família. A esposa e os filhos, bens eternos de quem ele jurou nunca mais se separar, vieram renovar o

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espírito. Camila, a caçula vinha revirar seus bolsos em busca de balinhas, enquanto ele alisava seus cabelos afogueados e tirava da mochila um saquinho de pirulitos. Distante das agruras do sertão, da opressão da usina, do tratamento desumano dos senhores de engenho e junto da esposa e dos filhos ele pode renovar a alma. Agora tinha um cantinho para abrigar sua prole. Queria ver seus filhos a caminho da escola, num uniforme azul e branco. Os sapatos luzidios e a mochila cheia de livros. Via-os estudando lições, aprendendo teoremas, colando graus, recebendo diplomas e defendendo teses. Que magnífico! Não era um sonho, era um anseio veemente, uma projeção real.

Por muito tempo, numa simplicidade pueril, Augusto acreditou na boa intenção dos usineiros. Os homens que louvavam os benefícios do processo educativo suscitavam esperanças para o povo modesto e seus filhos. Porém não conseguia entender ao ver os filhos dos abastados ainda jovens tornando-se doutores em medicina, em letras, em leis e outras carreiras ilustres, ditadores de ordens e muitas vezes administrando municípios ou se tornando membros de assembléias legislativas. Os filhos dos agregados

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nunca se destacavam ou sequer se safavam da ignorância. Não entendia que o processo era multifacetado e delimitado.

CAPÍTULO TRÊS

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Depois de ouvir três batidas na porta Natália Rossini olhou por cima dos óculos de aros dourados. Encarou a serventuária. A moça botou apenas o rosto pela estreita abertura da porta.

_A senhora mandou me chamar? _Sim. Quero que avise a todos os

professores e membros do conselho de educação sobre uma reunião hoje às dezenove horas.

_Qual é o assunto? _Diga-os apenas que é de extrema

urgência. E que a presença de todos é indispensável.

A serventuária ainda encarou a diretora, insistindo sobre o assunto. Detrás da mesa a mulher deu um ultimato:

_Você pode ir. Providencie com rapidez o que lhe pedi.

Pisando ruidosamente sobre o assoalho de madeira a secretaria voltou ao expediente. Robson olhou com atenção. Observou estupefato os gestos da moça e ficou a admirar sua beleza. A cintura bem torneada, as proeminências posteriores tornando-se cobiçadas e as coxas polpudas tocavam-lhe. Desejou conquistá-la. No entanto, a apreensão superou a concupiscência. Voltou a mexer nos planejamentos. Não contente deixou a sala dos professores e foi à

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secretaria. Carolina se atinha aos telefonemas. Robson pôs a mão sobre o ombro dela. Inquiriu:

_Que é que tá acontecendo, Carol? Vi você sair aloprada da diretoria. Escutei dona Natália gritando contigo. Está acontecendo alguma coisa estranha nesta escola. O que é?

A secretária apenas fez um sinal de reprovação, afastando a mão dele.

_Fala, Carol. Que é que há? _Por favor, Robson. Você tá me

atrapalhando! Me deixa, cara! _Ah! Eu quero saber! _Depois eu te conto – Completou a

moça, enquanto apertava as teclas do telefone. Robson se retirou lentamente, mantendo-se atento ao movimento das pessoas na escola. A obscuridade dos fatos fez com que o jovem professor interrompesse os relatórios e diários. Abandou os papéis e passou a imaginar as situações que envolviam o ambiente e os funcionários. Estava comprometido com o sistema educacional e sabia que alguma responsabilidade pesava sobre ele. Possuía ideias avançadas e vigor em alta. Jovem, robusto, vigoroso, professor de educação física, faixa-preta de kung-fu, tórax saliente, braços grossos, pernas bem torneadas, rosto agradável, cavanhaque, piercing,

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tatuagem na omoplata, olhos azuis e muita lábia. Muito paquerado, montava as garotas na garupa de sua moto e ia fazer ponto final num motel. Galanteador, carinhoso e insaciável. Frenético, ele fazia a moto escorregar pelas avenidas em busca de aventuras juvenis e estupidamente humanas. Naquele momento apenas duas coisas o preocupavam: alçar voos altos e conquistar a graciosa Carolina. Com vinte anos a moça era atraente e cobiçada. Novata na Nicolau Maquiavel, sua competência, beleza e simpatia se somaram para formar o carisma sobre todos da escola e da comunidade. Solícita nos trabalhos conquistou a estima de pais e alunos e o respeito dos colegas.

_A Nicolau Maquiavel precisava mesmo de uma secretária bonita. Isso faz com que a gente trabalhe com mais entusiasmo.

O rapaz sorriu, tomou a mão da garota e beijou suavemente.

–Seja bem vinda a nossa modesta escola.

As faces dela coraram. Tentou disfarçar, mas estava impressionada com a beleza do rapaz. Robson jurou conquistá-la. Porém, naquele momento a movimentação

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inusitada o afligia. Estava ainda absorto, os papéis largados, várias bitucas sobre um cinzeiro quebrado. Assustou-se ao deparar com o rosto rosado de Carolina.

_Professor Robson. _Oi, minha linda. Disse afagando

sua face. Ela se esquivou. _Vim só te dizer que foi convocada

uma reunião de urgência com todos os professores e conselheiros de educação para hoje à noite.

_Foi? Para quê? Tentou segurá-la, mas ela fugiu em direção à secretaria.

_Eu também não sei – Completou enquanto entrava em sua sala.

Robson voltou. Sentou-se novamente à vasta mesa. Tirou um cigarro e começou a devorá-lo esfaimado. Aturdido, não conseguia se concentrar. Os relatórios não iriam ser entregues no tempo previsto. Deu um soco na mesa e levantou disposto a ir à secretaria conversar com Carolina. Recuou ao ver Natália entrando lá. Puxou mais um cigarro. Foi ao banheiro. Nem conseguiu urinar. O nervosismo comprimia as vísceras. Tomou um susto ao ouvir a diretora chamar seu nome.

_Estou aqui, dona Natália. _Você já está avisado da reunião,

não é? Já sabe que não pode faltar. Se quiser ir em casa, ainda dá tempo. Dou

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mais um dia para entregar os relatórios. Vai. Já está dispensado, ordenou dando meia-volta.

Robson ficou estático e mudo. Apenas conseguiu assentir com a cabeça. A convocação era como as badaladas funestas do sino. Ele não entendia por que tanta insistência em tê-lo na reunião. Afinal, em apenas alguns minutos ele tinha sido convocado três vezes. Quis indagar sobre o tema da reunião, mas a boca não obedecia ao cérebro. Suas pernas não lhe levavam a lugar algum. Qualquer que fosse o tema da reunião era motivo de forte preocupação. A partir dali nem mais o interesse por Carolina o animava. Ele mesmo não conseguia entender o que estava ocorrendo consigo. Apanhou o capacete, montou na moto e acelerou pela avenida. Resvalou num automóvel, quase atropelou um pedestre e brecou colado a uma cegonheira ao furar o sinal vermelho. Pensou em Carolina, mas não conseguia aplacar a sensatez. Ela era numa garota tão bela, tão pura, tão diferente. Era o estilo singular da garota que o atraía. Fez a moto piruetar afoita entre os automóveis. Um caminhão quase o abalroa num cruzamento. O motorista buzinou e gritou enfurecido: “Quer morrer, motoqueiro filho da puta!”

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Concluiu que era ele mesmo que tinha cometido a imprudência. O compromisso não era mais com a educação, nem com as garotas bonitas. Parece nem consigo mesmo. Um homem apaixonado transforma-se num petardo quando seu desejo é correspondido. Quando isso não acontece o estopim fica à espera de ser aceso. Na outra extremidade o indivíduo desamado mantém-se solto como uma nuvem no céu do sertão. Flutua a esmo rebolado pelo vento. A alma fica volúvel, sujeita a ser dominada por qualquer brisa, por mais branda que pareça. É um mágico sobre uma cama de pregos. O amor é um espinho de mandacaru que fura, dói, adoece e deixa a ferida aberta. Aí a criatura sem afeto pode converter-se numa armadilha de múltiplas faces, numa bomba de milhares megatons, espalhando estilhaços em todas as direções. E assim pode ferir a qualquer expectador. Os dois extremos são perigosos.

A moto de Robson roncava pela avenida sem que ele se apercebesse do desempenho que ela exercia sobre o asfalto escorregadio naquela tarde de neblina da metrópole paulistana. Os impulsos másculos e férreos em conjunção com o elemento máquina

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constituíam uma dualidade pirofórica capazes de ativar a mais perigosa erupção. A moto, o asfalto, o tráfego, a neblina, o impulso, as situações, o homem. As complicações movidas por sentimentos diversos podiam resultar em episódios incontornáveis.

As pessoas da comunidade não pretendiam assistir à derrocada da escola e muito menos mereciam ficar expostas a quaisquer percalços advindos do seu fracasso. A Nicolau Maquiavel era o espaço sagrado do saber. Todos os habitantes se esforçavam para conservar cada palmo do prédio que a abrigava, manter intacta cada carteira, cada cadeira, cada ferramenta que pudesse ser essencial ao ensino. Procuravam arrecadar recursos para que diretores, professores e funcionários em geral, seguissem ir em frente com o projeto educativo. A concretização desses ideais é que faria das daquelas criaturas verdadeiros cidadãos, profissionalizados e prontos para topar de frente com um futuro por mais áspero que parecesse. Era da Nicolau Maquiavel que deviam egressar os jovens já modelados conforme os padrões mundiais, na forma da mais perfeita civilidade. A coragem de botar o projeto para funcionar e a conjunção de

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instrumentos capazes de dar arrancada ao motor era outro aspecto que devia ser levado a sério.

A Nicolau Maquiavel tinha sido construída respeitando os modelos da arquitetura moderna. Era um prédio espaçoso com três pavimentos. A fachada frontal era adornada com colunas compactas. As janelas embutidas possuíam estilos requintados e o frontispício com cores diversificadas. O saguão de dimensão considerável abria espaço para a recepção da secretaria. Na área que antecedia o saguão um jardim com plantas floríferas completavam a beleza da construção. Três mastros sustentavam hasteadas as bandeiras do município, do estado e da federação. Entre as plantas ornamentais jazia galhardo um busto de Nicolau Maquiavel. Às sete da manhã pais e mães traziam os filhos para receber as primeiras lições. Transbordante de brio, Augusto conduzia os filhos. Maravilhado com a suntuosidade da escola ele tinha certeza que eles estavam submetidos ao mais moderno sistema de ensino. Passava a ver o cinza do céu fugindo para dar lugar a um colorido mais intenso. Podia vislumbrar a ressurreição da estirpe mestiça. Aí acreditava na salvação de toda uma geração, incluindo

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seus descendentes. A Nicolau Maquiavel se revelava um exemplo de excelência e, sem dúvida, seria a máquina que promoveria a cidadania a todas aquelas crianças. Ali sim, as crianças e adolescentes teriam uma receptividade decente. As salas eram bem iluminadas, paredes azulejadas com carteiras e cadeiras novinhas, prontas para acomodar os alunos de uniformes azul e branco. A Nicolau Maquiavel foi implementada sob gestão pública. Os impostos pagos por todos os contribuintes foi o grande motor. Mas foi a insistência da comunidade e o suor da população local que determinou sua realização. Sem a formação de um mutirão não se teria conseguido erguê-la. O orçamento final espantava a qualquer leigo, pelo seu volume. E o mais assustador: sequer um décimo dele tinha sido aplicado. Uma planilha de vultosos custos foi apresentada às finanças oficiais. Porém, de toda forma o fato de se conseguir erguê-la era um forte motivo para que cada pessoa do bairro se sentisse mais dono dela. Natália Rossini tirava uma conclusão muito positiva disso. A participação direta no levantamento do prédio faria com que as pessoas se sentissem donas

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e se preocupassem com sua manutenção. Ela mesma sabia que estava fazendo seu papel em conscientizar alunos e pais de que a escola era um patrimônio dos mais valiosos. Desde que assumiu a direção não conseguiu se ocupar de outra coisa que não fosse sua administração. Realizou algumas especializações pedagógicas e estava dando seguimento a um mestrado. Os conhecimentos adquiridos seriam direcionados às centenas de alunos. “Vamos alcançar, em pouco tempo, a posição de melhor escola do Brasil”, sentenciava envaidecida. Queria fazer da Nicolau Maquiavel um modelo a ser seguido pelas demais escolas. Pretendia mostrar que era possível oferecer educação de qualidade em escolas periféricas. Mostraria que, ao contrário de certas interpretações, a escola não refletia a carência do bairro onde se localizava. Sua intenção era afastar tudo que pudesse impedir que seu projeto avançasse. Estimulava a comunidade a se manter vigilante. Ela devia liderar com mão de ferro, mantendo-se atenta ao menor movimento suspeito. A escola convivia lado a lado com a criminalidade. O terreno colado à parte posterior foi palco de muitas cenas

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desagradáveis protagonizadas por uma quadrilha de delinquentes. Junto com as autoridades locais, conselheiros e professores mobilizara-se para combater os crimes que conspurcava a instituição. Depois que a área foi ocupada com o circo houve um certo alívio para a população. Para ela não. Exprimir com eloquência os protestos contra a instalação do circo não era bem sua intenção. Mas ficou claro que não aceitava que palhaços pudessem colaborar para o processo educativo. Considerava que os espetáculos eram um contrassenso. Deixando de analisar fatores importantes das diversas potencialidades humanas a diretora estava sendo injusta e imodesta. Suas supostas boas intenções iniciais estavam sendo atropeladas pela empáfia desenfreada e irracional. A escola e a educação, dois elementos com conformações variadas e objetivos comuns, pareciam se distanciarem em milhares de anos luz. As duas deviam tocar a mesma melodia, mas estavam destoando, produzindo notas desafinadas. Foi nessa orquestra que os protestos sorrateiros de Natália ganharam coro. _ “Botar um circo pra funcionar, em vez de construir outra escola, um hospital, uma delegacia...”

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Ela conseguiu implantar na humilde forma de pensar da comunidade a ideia que a escola é um espaço mais nobre, engrandecedor e que o circo é um local desprezível, sem estrutura psicoética. Dentro desse contexto estava declarada uma guerra ideológica.

O sistema educativo do bairro já vinha sendo engolido pelo resto da cidade. Sufocado, o novo ajuntamento humano foi deglutido pelo segregacionismo. O edifício venerado como uma catedral, uma mesquita ou um terreiro armazenava crianças e adolescentes como uma penitenciária ou as detinha como numa linha de montagem. Amontoava-as como se fazia na senzala. Os meninos eram reféns de medidas que deviam protegê-los.

A moto de Robson deslizava livre sobre as vias molhadas. Ele e sua máquina formavam um dueto que não entendia o que era limite. A máquina era apenas o resultado de uma pulsão do homem que a conduzia. O condutor desobedecia às normas impostas e forçava sua montaria a dar o máximo de si. No calor do momento ele jogava para as profundezas abissais toda e qualquer preocupação. A mãe queria que ele

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fosse médico. Até tentou ingressar numa faculdade de medicina. Entrou para o curso de direito, mas desistiu no segundo ano. Os pais passaram a exigir um esforço maior. Ele apenas torceu o ombro.

A irmã mais jovem bacharelara-se em economia e se preparava para fazer pós-graduação em comércio exterior. Com tanta dedicação ela se sentia com autoridade para advertir o irmão.

_Por que não prossegue com o curso de direito?

_Não tenho saco para ser advogado. Levar maçada nos tribunais, defender causas absurdas e livrar da cadeia assassinos, corruptos e ladrões. Afinal, não quero passar a vida carregando processos para um lado e para outro a serviço de causas injustas.

_Não vem com essa não. Advocacia é uma profissão célebre – Insistiu a irmã. – Analisar o comportamento das pessoas, seus atos e defendê-los perante um tribunal é uma ação generosa.

Robson ficou calado olhando o café que fumegava na xícara. A fumaça dissipando-se no éter da sala, fundindo-se com outros gases até se tornar inexpressiva. Espetou os dedos entre os cabelos fartos e permaneceu mudo. Não

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tinha o hábito de falar muito. Seu poder de argumentação não era dos melhores e isso era uma razão para não optar pela carreira jurídica. Tinha consciência da necessidade de escolher um bacharelado qualquer. Às vezes percebia que não tinha vocação para nada. Não tinha paciência para sentar no banco de uma universidade, ficar analisando teorias e elaborando teses acadêmicas.

_As baladas, as tuas farras exageradas vão te fazer um cara alienado _ reclamou a mãe.

_Mamãe, eu sou jovem. Preciso curtir. Preciso desfrutar de minha juventude.

_Mas deve estar atento e te preparar para o futuro. Adquirir uma profissão sólida, como teus irmãos, teus amigos. Como todo mundo faz.

A irmã o encarou num gesto afirmativo, ratificando a proposição da genitora.

_Veja aí tua irmã. Mais jovem do que você, meu filho. Já é uma economista de fama. Bem empregada e com ótima reputação no mercado.

Enfastiado de tantos discursos Robson tomou sua montaria e acelerou eufórico pelas ruas. A pista, os semáforos vermelhos, os veículos, os guardas, os comandos, os pedestres.

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Ora, ora, que não atrapalhem. Que desapareçam do caminho. Naquele momento ele está dentro de um mundo só seu. Ele quer correr, quer velocidade. Quer voar. Flutuar como uma pluma ao vento. Sentir-se livre, solto. Quanta pegação no pé! Será que não podia ter o direito de se sentir como bem quisesse? Os familiares tinham percebido sua esquisitice e desinteresse pelos estudos. Suas atitudes não condiziam com sua personalidade. Robson estava curtindo a vida à beça. “Apenas umas pegadas num baseado não faz mal. É só pra ficar um pouco mais aceso”.

Resolveu voltar à universidade. Procurou a área pedagógica. Praticante de artes marciais escolheu o curso de educação física.

A mãe e a irmã lançaram um olhar de insatisfação. Torceram o queixo para o mister da educação. Ainda não totalmente refeitas elas colaboraram com a festa de formatura. A mãe deu de presente uma moto mais potente. A irmã pagou a despesa.

Robson se tornou professor. Integrou-se à causa pedagógica, comprometendo-se com as práticas didáticas. A causa abraçada por ele fazia parte de propostas vitais para a comunidade. Fora avisado de todas as

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condições no momento da posse. Não podia negar que tinha consciência das responsabilidades.

Depois de encarar a realidade o jovem professor já não se encontrava tão encantado com a educação. Enfim, o caráter ainda não se fixara em sua personalidade. Foi para reforçar e cobrar ações mais efetivas que Natália Rossini convocara a reunião. Todos os participantes deviam reafirmar os compromissos, mostrar disposição e atitudes rigorosas para com a manutenção da ordem na Nicolau Maquiavel.

_Já estamos na mira de todos. Nossa comunidade é considerada a escória da cidade. Mas não vamos permitir que a nódoa atrapalhe nossos tão majestosos propósitos. Conto com a participação de todos os senhores e de todas as senhoras. Os que não são funcionários são membros da comunidade, estudam ou têm filhos estudando nesta escola e isso é mais um motivo para que zelem pelo bem-estar dos que se utilizam desta instituição. Sei que cada um de vocês pode contribuir, mas peço que quem não puder fazer o máximo de bom não faça o mínimo de ruim. E se não conseguir realizar qualquer ação concreta em favor, pelo

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menos denuncie quem vier atentar contra a instituição. A escola não é do governador, do prefeito, nem da diretora: é de todos vocês. Os senhores e as senhoras são os donos dela. Eu, como diretora tenho dado o máximo de mim, como é sabido por toda a comunidade, no sentido de evitar episódios desagradáveis, para fazer com que alcancemos os mais sublimes objetivos. A minha alegria é saber que posso contar com aliados como os senhores e as senhoras para preservar o maior bem que vocês possuem e dar continuidade ao processo educativo. Tenho certeza que a partir de hoje todos estarão mais engajados nesta luta, que nenhum de vocês vai permitir que o terror tome conta de nossa escola, de nossos lares de nossa comunidade. Não vamos permitir que os narcóticos dominem nossos jovens, ou que mudem a trajetória gloriosa que só a escola é capaz de conduzir. Nossa sociedade será a mais coesa e organizada desta cidade. Aqui reinará a paz e a civilidade. Nosso futuro será mais promissor. O bem estará do nosso lado, com Deus e Jesus Cristo caminharemos. Meus agradecimentos aos professores que se dispuseram, especialmente ao professor Robson. Agradeço aos conselheiros

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comunitários, ao senhor Augusto Sacramento que, apesar das dificuldades, vem colaborando incansavelmente. Ao vereador Leandro Roquette que, com seus projetos e indicações, incentiva a prefeitura a investir na escola. Também agradeço de coração ao Jaguar, isto é, ao senhor Marcos Freitas, conselheiro que atua com muito afinco e que tem contribuído com doações para o aparelhamento da escola. Muito obrigado a todos e que Deus nos ilumine.

A diretora foi aplaudida com uma longa salva de palmas. Augusto se levantou. Visivelmente emocionado, proferiu:

_Nós vamos ajudar a combater a malandragem, dona Natália. Nem que isso custe nosso sangue!

_Cada pedra que nós carregamos para erguer a escola foi para o bem de nossos filhos, de nossa família, de nossa sociedade – Completou José Cícero, outro conselheiro. Enquanto os circunstantes batiam palmas, outras pessoas faziam comentários sem muito destaque, inaudível pelo barulho dos aplausos. Jaguar levantou a mão, do canto esquerdo da sala, pedindo a palavra. As pessoas acompanharam com o olhar.

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_As crianças vão à escola, muitas vezes, sem sequer ingerir uma xícara de café ou um pedaço de pão e, na maioria das vezes, não vão fazer uma refeição quando voltarem para casa. Só temos que aplaudir a generosidade de todas as pessoas desta comunidade, envolvidas direta ou indiretamente. Líderes comunitários, conselheiros de educação, políticos e empresários que vêm contribuindo para o progresso da Nicolau Maquiavel. Os professores estão de parabéns porque são bem instruídos e dedicados. A diretora, na pessoa de dona Natália, merece o nosso mais sincero respeito pela luta que vem desenvolvendo. A minha humilde pessoa, este Jaguar velho que vocês veem, é homem de palavra. Vou fazer o que for necessário para ajudar a manter de pé a Nicolau Maquiavel. Estou à disposição, vinte e quatro horas por dia, para vigiar a escola e impedir que malfazejos ataquem. Vou escorraçar qualquer marginal que queira acabar com nossa paz. Pode contar comigo, dona Natália. Quero dizer pra quem ainda não sabe que presto assistência a mais de duzentas famílias. Distribuo cestas de alimentação e outros bens de primeira necessidade para a vila inteira.

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Houve uma longa aclamação. Jaguar manteve o braço erguido. Sua autopromoção e sua postura altiva impressionaram os circunstantes, no momento em que os espíritos estavam voltados para o desempenho da escola em relação à comunidade.

CAPÍTULO QUATRO

Um curta metragem projetava na cabeça de Augusto Sacramento. A partida do sertão de Alagoas. A esposa acenando tristonha. Os filhos choramingando. O coração apertado e a retenção das lágrimas. O fenemê sacolejante. As situações que o forçaram a fugir da terra natal. As humilhações e

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as dificuldades que o recepcionaram. O apoio de pessoas caridosas e o êxito. Enfim, a recompensa: encontrar um cantinho o qual pudesse se dizer dono, onde acomodaria a família. Mais de uma década depois ele fazia uma avaliação de sua história. A resposta não viria tão rápido. Encontrou dificuldade para juntar os fragmentos espalhados ao longo da trajetória. Agora tinha casa e emprego. O sustento da família estava garantido. No sertão nunca teve um palmo. As terras em que ele mal podia pisar abarcavam extensões da Serra da Barriga. Lá ele tinha trabalho garantido apenas num curto período entre a semeadura e a colheita da cana-de-açúcar. O resto do ano, quando o patrão permitia, ficava a vagar pelas fazendas, uma semana ali, um mês acolá à procura de diárias exíguas. Quando a sorte o ajudava sobrava para levar alimento para os filhos. Eles esperavam ansiosos, de boca aberta, como filhotes de passarinho. Passou a mão pelos fiapos falhos do bigode, acendeu mais um cigarro e tragou com sofreguidão. Seus filhos tinham crescido. O mais velho estava casado. Depois de alguns envolvimentos policiais arranjou um emprego numa pequena fábrica e passou a levar uma vida sem incidentes.

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O segundo, com vinte e um anos, encontrava-se preso. Fora condenado a uma dezena de anos de reclusão por roubos e extorsões. A terceira filha chegara a estudar, mas

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abandonou a escola depois de engravidar inadvertidamente. Augusto obrigou o pai a assumir a criança. Pior para ele: teve que sustentar os três. O desajuste tinha tomado conta do lar do alagoano. Camila, a caçula era a esperança. Estudiosa, inteligente e obediente. Augusto sentia-se orgulhoso dela. “Esta sim, vai ser uma estrela brilhante. Vai ser uma bióloga de categoria. Todos vão ter que prestar reverência ela. Vão ter que se curvar a sua eminência. É ela que vai dar um nome de honra a nossa estirpe”. Camila se tornara promissora, dando sinais de que cumpriria com os anseios dos pais. A boa perspectiva de Augusto não foi longe. A garota em quem apostara as últimas fichas trouxe surpresas desagradáveis. _Isso é coisa da idade, meu velho – Tentou conformar a esposa. O homem apenas resmungou. Deu meia volta, não engolindo a desculpa. Soltou tragos longos em mais um cigarro.

_A que hora ela chegou em casa ontem?

_Ah! Eu... Eu não sei bem. Eu já estava dormindo.

_Caramba! Quando a gente reclama diz que é implicância!

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_Mas ela sempre chega tarde da escola.

_Ontem foi feriado, muié. _Feriado?... Feriado de quê?

_Sete de setembro, seu diabo! Veja como tu andas no mundo da lua. Enquanto eu me mato, fazendo serão, tu ficas aí de boca aberta! Nem sabe o que acontece a teu redor! Qualquer dia vão te carregar dormindo e tu só vai ver quando tiver bem longe daqui. Sua dorminhoca! Tu és uma mosca morta! Pois se não fosse o Delfino eu ficaria que nem um abestalhado sem saber das coisas.

_Que coisas, marido? O que é que tá se assucedendo?

_O mundo passa em tua volta e tu nem vê. Fica nessa lerdeza enquanto tua filha zanza por aí, não se sabe onde, fazendo não se sabe o quê.

Nair nada respondeu. Macambúzia, foi até a cozinha. Seu silêncio só confirmava que as queixas de Augusto tinham fundamento. Ela reconhecia que não tinha vigor suficiente para liderar a família. Tinha deixado a rédea muito frouxa, sim. Os tempos não eram como em alguns anos atrás no Nordeste. Os meninos tinham crescido em outro ambiente, adquirindo

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costumes diversos. Ela não se dera conta disso.

_Pois é. E tu, por acaso, sabes onde está Camila neste momento? – Interrogou furioso.

_Ela... Ela deve ter ido à escola. _Ela não foi à escola hoje. –

Explicou a filha mais velha. _Cadê ela? – Quis saber o pai. _Eu acho que ela está dormindo. _Dormindo até uma hora dessa?! Camila, de fato, entrara no mais

profundo sono. _Já passa da meia-noite –

Exclamou. Tentaram despertá-la. Ela se

mexeu lentamente. Puseram-na de pé. Ela se esborrachou no chão.

_Esta menina tá muito doente!- Afligiu-se a mãe – Socorre minha filha!

Augusto ficou atarantado. A cabeça começou a doer. As mãos trêmulas foram buscar algum amparo, alguma coisa que o fizesse se acalmar. Encontrou um cigarro. Na falta de remédio era a droga que iria ferir um pouco mais e mascarar o nervosismo.

_Ela ingeriu algum medicamento em excesso? Alguma substância

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suspeita? Água sanitária ou coisa do gênero? _Questionou o médico.

_Não, não doutor. Ela não usa remédio nenhum – Respondeu a mãe.

_Bebeu ou comeu alguma coisa estragada?

_De jeito nenhum, doutor. Nada. Ele só cheira um pozinho branco de vez em quando. Ela diz que é pra ficar mais inteligente, pra estudar melhor.

O médico arregalou os olhos. Fez uma breve avaliação e a encaminhou ao setor de emergência, antes de solicitar alguns exames. Camila ficaria em observação durante toda a noite. O médico informou que ela apresentou reações de delírio.

Se Augusto não entendeu bem, menor foi a compreensão de Nair.

_Pai e mãe, a filha de vocês fez uso de alucinógenos. Cocaína, craque ou maconha. Qual dessas drogas foi? Ainda não posso afirmar. Pode ter sido uma dessas que eu mencionei, porque são as mais comuns. Mas pode até ter sido outra mais agressiva. Acrescento ainda que por pouco ela não entrou em coma irreversível.

_Droga, doutor?! – Correu Nair em direção ao médico com as mãos apoiadas na cabeça.

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_Sim, minha senhora. Infelizmente. Sei que é lastimável uma mãe, um pai ouvir essas afirmações. Mas é verdade. Agora aconselho-os a procurar uma clínica para tratamento.

Augusto ficou patético. Não queria que fosse verdade. Viu a filha com o rosto desfigurado. Uma garota, tão cândida e delicada. Não podia aceitar que Camila fizesse uso de drogas. Tinha sofrido muito para manter a família intacta. Muito trabalho, decência, muita dedicação. Seu sonho foi manter a família unida e coesa como mantiveram seus antepassados. Nunca imaginou que o tempo ou outros fatores pudessem interferir nas tradições do seu povo, fazendo com que suas aspirações fossem derrotadas. Sua pretensão era ter o ensino como direcionador dos destinos dos meninos. A educação que estava tão patente em sua memória seria o santo milagreiro. Se outros da sua estirpe não alcançaram, seus filhos seriam tocados por ela.

Será que o médico tinha falado a verdade ou estava querendo zombar de sua honestidade? Na verdade o via com cara de paspalhão, um sujeito sarcástico que não assume os atos de sua profissão. Voltaria ao hospital e tentaria

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desmascará-lo. O doutor não vai difamar minha filha, uma moça casta, estudiosa e respeitada. Minha filha caçula jamais se envolveria com drogas. Ela é filha de um cidadão honesto. O que o doutor falou não é verdade. Ele está apenas querendo humilhar um retirante nordestino que veio aportar nas terras do Sudeste. “O senhor está apenas querendo repetir a provocação que fez de mim um eterno refém desta situação. Ninguém há de me tirar o brio, nem o senhor nem ninguém. Fique sabendo, seu doutor, que este cabra velho aqui em sua frente já encarou as mais diversas situações. Não vou arredar pé deste hospital até que desminta o seu diagnóstico absurdo. Enquanto não parar com as insinuações não vou embora. Vou provar que não se deve desmoralizar um trabalhador decente que nem eu. Não. Prefiro até cometer um desvario, mas garanto que vou arrancar do senhor a verdade. Vais confessar o erro, terás de admitir que tentou me enganar. Não vais ultrajar minha filha, minha caçula, a última esperança de ver resgatada minha honra. Eu vou até o inferno para provar que minha filha não é a moça

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pecaminosa que o senhor diz ser. Ah, se vou”.

Agarrou o jaleco branco do médico. E ele, num esforço inumano, tentou se desvencilhar. Gritou:

_Enfermeira! Por favor, chame o segurança. Há uma pessoa atrapalhando o plantão.

Augusto Sacramento estava mais uma vez sitiado. Havia algemas e grilhões dentro e fora do seu corpo. Seu espírito encontrava-se aturdido, cercado pelas mais intransponíveis muralhas. Um cheiro de gás asfixiante penetrou nas narinas. Virou-se de um lado para outro e percebeu que não estava sob custódia policial. Sem compreender o que acontecia viu que nem o médico nem a polícia estavam ali. Tentou alcançar a esposa do outro lado da cama. Sua mão sequer se movimentou. Balbuciou o nome da esposa. Virou-se com muita dificuldade e os olhos mórbidos divisaram um vulto. Ouviu, muito distante, uma voz chamar seu nome. Só aí se deu conta que era Nair. Não entendeu por que ela não estava deitada do seu lado, já que não estava na prisão.

_Toma aqui, homem, este remédio.

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Nair tentava fazê-lo tomar a caneca com chá de mastruz, enquanto explicava o que se passara:

_Tu sofreste uma vertigem. Tá muito fraquinho, precisa tomar estas mezinhas. Tá até tresvariando. Não queria cair outra vez na realidade. Qualquer pesadelo, qualquer sonho ruim seria menos deplorável que os fatos. Já superara muitos momentos difíceis, opressões e humilhações. Mas a angústia de ver a filha caída em desgraça era fulminadora. O infortúnio o perseguia desde as gerações mais remotas. Arrancados à força do seio de Mama África os antepassados seriam decepados como os canaviais do Brasil. Foram trucidados na moenda das usinas. Com a perseguição em vigor ele decidiu se mobilizar para que os filhos, os netos, e toda a descendência pudessem se orgulhar do novo rumo. Dali em diante seus filhos não mais sapecariam a pele pelos canaviais nem seus ossos seriam triturados nas moendas. Sentou trêmulo na cama com a cabeça entre as mãos. Antes de sorver goles sonoros de chá fez uma breve reflexão sobre sua trajetória. Queria detectar onde o nó tinha sido mal feito. Por que estava acontecendo tanta desgraça em seu lar. A esposa pôs-se a

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seu lado e, adivinhando seus pensamentos, falou: _Isso que está acontecendo é tudo coisa feita, meu véio. Eu fui falar com Mãe Madá e ela me disse que Camila tá com encosto. Eu já desconfiava. Algum malfazejo andou botando burundanga nela. Augusto derreou-se sobre a cabeceira da cama e nada falou. _Mãe Madá disse que vai tirar o caboclo que entrou nela - Insistiu a esposa. Embora fragilizado o homem arregalou os olhos, estupefato. Deu um salto, e meio cambaleante correu em direção ao banheiro. Vomitou todo o chá. Mas não conseguiu expelir as angústias. Quando a mulher voltou a falar ele apenas resmungou. Sequer reclamar adiantava. Seus protestos seriam uma guerra contra os furacões da maldade que inclementes solapavam seu espírito. O passado estava borrado e não tinha como limpá-lo. A reminiscência de uma herança maldita o perseguia. O futuro estava seriamente comprometido. Estava para entregar os pontos. Havia pelejado demais, encontrava-se enfraquecido. Sua resistência de homem intrépido era uma chama que se

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apagava aos poucos. Não encontrava nada em que pudesse se agarrar. A relutância dos ébanos de Cabinda dissipava. As novas ondas da modernidade tinham feito com que o espírito de guerreiro destemido debilitasse. Alguma coisa que ele não podia vislumbrar estava interferindo em sua conduta. Não percebia que estava desprovido de algumas armas ou o inimigo estava mais bem equipado. Tinha buscado como subterfúgio a bebida e o jogo nos botecos do bairro. Presumiu ter encontrado o alívio para as perturbações e quando menos se deu conta tinha se transformado num alcoólatra doentio e antipático. Levantou, passou a mão no chapéu de couro. A esposa ainda acorreu apreensiva. Não conseguiu impedi-lo.

_Bota uma cachaça aí, Juvenal – Solicitou ao encostar-se ao balcão. O dono do bar despejou lentamente a pinga no copo. – Passa a régua, cara.

_Porra! Tu tá com sede mesmo, hem?!

_Trata de me atender e fica de bico calado, seu fio de uma égua!

_Ora mais! Cê tá abusado pra caralho! Tu és troncudo, mas num é dois

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não. Não é por que andaste rasgando a barriga de uns otários em tua terra que vai me amedrontar. Sempre tive respeito por ti, mas não tenho medo. E outra coisa: aqui dentro do meu comércio quem canta de galo sou eu!

_Tu chamas esta espelunca de comércio? Isto aqui é um chiqueiro!

_Mas é aqui que tu vens todos os dias acalmar teus chiliques. Quando tá tomando tuas biritinhas e jogando truco tu num diz isso. Eu queria saber que bicho foi que te mordeu pra tu ficares assim tão azedo. Ah, já sei: tu perdeste a estribeira. Não consegue mais comandar a família e vem querer descontar nos outros. Ninguém tem nada que ver com tua incompetência não.

_Olha aqui, seu filho da puta, - Agarrou o colarinho de Juvenal - não vem se intrometer em minha vida, não. Eu num tenho que te dar nenhuma satisfação, entendeu? Fica aí quietinho, na tua. Teu negócio aqui é vender e receber. Eu te devo alguma coisa? Se te devo pode falar que eu pago agora. Mas se num devo vai tratando de botar outro copo de pinga.

_Vai com calma, Augusto. Só tou tendo paciência contigo porque sou teu amigo e tou vendo que tu num tá

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normal. Mas num sou obrigado a aguentar desaforo de seu ninguém, ouviste?

O dono do bar tentou recuperar polidez enquanto afastava com cuidado a mão do agressor.

_Tu já falaste demais, cabra – Proferiu Augusto enquanto sorvia o quinto pileque – Num me aborrece não, porque hoje eu num tou pra muita lorota.

_Vem cá, camarada. Vamos conversar. Tu vens sempre aqui, toma tuas biritinhas, mas nunca te vi tão estubibado. Sou teu amigo, tu sabes muito bem disso. Tu nunca arrumaste arengas aqui. É um homem decente, honesto, trabalhador. Bom... Sei que há alguns problemas em casa. Mas, sabe, eu quero é só te ajudar.

_Tu num acha que tá querendo saber demais dos meus problemas? Eu sou homem, rapaz. Ainda me garanto. Não preciso que ninguém fale por mim.

O alagoano avançou sobre Juvenal. Suas mãos rijas abarcaram o pescoço do homem a fim de estrangulá-lo. Os fregueses deixaram o baralho sobre mesinha no canto da sala e acudiram.

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_Vocês são amigos. Sempre se respeitaram. Agora ficam se estranhando aí que nem dois bois bravos – Reprimiu Nonato.

_Cala tua boca, senão vai sobrar pra tu também, seu zarolho!

_Ah. Meu chapa, a coisa comigo é diferente. Se vier pra cima de mim vai tomar tanto catiripapo que vai sair daqui carregado.

Nonato exibiu a musculatura e o porte avantajado. E os dois começaram a trocar murros, pontapés e empurrões, cadeiradas e golpes de garrafas. Embora já bem debilitado pelo efeito da aguardente, Augusto não se deixara abater tão facilmente por Nonato. A agressão mútua só foi interrompida com a interferência de outras pessoas. Nonato ficou com algumas escoriações, mas foi Augusto quem levou a pior.

Aquilo era resultado da intromissão de um espírito mau, concordavam os circunstantes. Ele devia ser levado ao terreiro de mãe Madá. Ela ia expulsar a coisa ruim do seu corpo.

O atabaque repicava retumbante, percussionado pelas mãos ágeis de um cafuzo. Os filhos-de-santo cadenciavam o passe elegantemente, repetindo o ritmo, referenciando a ialorixá. Nair

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tomou um susto ao ver Augusto entrando no terreiro carregado por alguns homens.

_Mãe Madá! Socorre este coitado! Entrou um caboclo arruaceiro nele. Ele acabou de aprontar coisas que até o cão duvida! Este homem não é de encrenca. É um homem calmo e bom. Entonce só pode ser um isprito malino que tá atazanando a vida do coitado. Ele tá possuído pelo sujo!

A mulher que fez o apelo se afastou, abrindo espaço para os filhos-de-santo. Enquanto a ialorixá e os guias se aproximavam, fazendo um círculo em volta do homem, Nair observava tudo, atônita. A mulher que conduzira Augusto se aproximou da esposa:

_É teu marido, minha dona? Ele tá com o bicho nos couros. Tá todo perturbado, o infeliz. Ele parecia um homem de corpo fechado. Que é que se assucedeu? Ah. Já sei, foi um caboco tranca-rua que se apoderou dele. Tá cheio de isprito pernicioso atazanando o povo daqui. Temos mesmo é que suplicar que mãe Madá dê uns passes inté fazer o mal sair ligeirim deste corpo. E tu, por que é que veio aqui, se nem sabia que teu marido tava possuído?

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_Eu vim trazer minha fia que tá com encosto.

_Eita, desgraceira! Tua fia também tá com isprito ruim?! Entonce a família tá toda enfeitiçada! Fez o sinal da cruz e foi se afastando devagarzinho. Olhou por cima do ombro e balbuciou: cruz em credo! Deus e todos os orixás que me protejam dessas maldições!

Dentro ou fora do terreiro as pessoas se encontravam perplexas. Os que procuraram a Deus e aos santos e não obtendo uma resposta imediata, acorriam em busca da proteção dos orixás. Porém, quem não partilhava da fé nos deuses negros também percebia os efeitos da conturbação por que passava a comunidade. Nenhum dos deuses invocados dava o ar da graça. Estavam adormecidos ou permitiam que os ventos da modernidade perturbassem o anseio da paz.

Nem todos que ali estavam eram filhos-de-santo e frequentadores costumeiros do canzuá. Alguns entraram lá apenas por curiosidade. Pedro Peres tinha ido apenas para prestar solidariedade a Augusto. Não tinha afinidade com os cultos afros. Descendente direto de espanhóis guardava uma forte aversão aos

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costumes e à cultura do continente negro. Receoso ele observou com atenção a realização dos rituais. Tentava fugir, mas uma força sobrenatural o prendia no espaçoso salão. Aquele universo exercia um inusitado magnetismo sobre ele. Os deuses do panteão africano precisavam explicar que os rituais não faziam parte de uma cultura regida pela maldade, que os negros não estavam pactuados com as forças malignas e que os descendentes dos bantus não se alinhavam com qualquer prática perniciosa nem negavam a busca do bem em prol da comunidade. Embora os instrumentos de percussão aparentemente conduzissem à euforia, os circunstantes se encontravam retraídos e com espíritos inibidos diante da calamidade.

Os orixás não se manifestaram em palavras ou em ações, a mãe-de-santo não se manifestou, nenhum homem articulou qualquer palavra. Os deuses estavam apáticos e mudos. Foram os acontecimentos que falaram por si. Pedro Peres, imergindo de um efêmero sobressalto, compreendeu que a comunidade inteira estava mergulhada num nebuloso invólucro. Nem todos os deuses do panteão universal seriam

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capazes de evitar uma hecatombe. Eram as próprias pessoas que deviam se mobilizar. Conscientizou-se que, embora os deuses fossem concebidos como entidades antropomorfas, cada um devia criar o seu, de acordo com a tradição, o caráter individual e a necessidade. Entretanto, sem a mobilização comunitária nenhum deus, santo ou orixá teria razão de ser. E o poder sobrenatural que os mantinha inertes não era a ação de onipotência de nenhuma divindade.

O atabaque era batido sem piedade enquanto a ialorixá fazia mesuras sobre o homem. Invocou a força de Nzambi e abriu caminho em meio aos filhos-de-santo. Proferiu uma série de expressões em iorubá numa pronúncia irregular. Deu início ao ritual de purificação, convocando a comunidade a lutar para mudar o rumo que estavam tomando os jovens, viciados em entorpecentes e envolvidos na delinquência. Se a impotência dos deuses era evidente, aos homens, com suas debilidades, restava apenas juntar esforços para exterminar o mal que os acometia. Deus é um só, os homens são inúmeros e podem realizar feitos inimagináveis. Os grandes agentes do

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mal, embora não fossem totalmente conhecidos, deviam ser descobertos e eliminados.

Perceptivelmente temerosa Nair se aproximou. Olhou por cima dos ombros das pessoas e percebeu que o marido estava inconsciente. A grande ingestão de aguardente o deixara incapaz de adquirir forças para protestar.

Homens e mulheres assistiam embevecidos ao culto, enquanto o atabaque ruflava. As pessoas recebiam passes e os filhos-de-santo dançavam ao som do couro. As batidas percutiam com veemência. Era para fazer com que os orixás acordassem e se comovessem com os desatinos das pessoas. Todos estavam envoltos no mais denso torpor. Deus estava indiferente, Obatalá se encontrava de mãos atadas. Aliás, as mudanças ou as providências para os destinos pertenciam agora às determinações de outra natureza, não à divina. O atabaque, instrumento capaz de fazer a comunicação com os deuses afros, não conseguia emitir uma simples mensagem. O candomblé era apenas um ponto de fuga, a forma mais rígida e menos ridente de suportar as cruezas. Os praticantes da cultura dos

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antepassados bantu permaneciam escravos de ideologias reacionárias, embora oficialmente alforriados. Ademais, o candomblé não era apenas e simplesmente uma reminiscência das religiões africanas, era um laço sutil, um tênue fio de ligação com o qual os mestiços ainda podiam contar em matéria de mentalidade. Era, sim, mais uma forma de demonstrar que não estavam conseguindo se encontrar como cidadãos, cuja identidade ameaçava se perder. Os mestiços formavam quase a totalidade da população do bairro. Se ainda tentavam ligar sua cultura à tradição africana era para inscrevê-la como sustentáculo. Os orixás eram os mais acesos signos que conheciam e um dos poucos vínculos com os ancestrais. Porém, não era os atributos espirituais e muito menos qualquer fanatismo que os movia ou os diminuía. Naquele momento eles necessitavam era de uma autoafirmação como homens e como sociedade.

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CAPÍTULO CINCO

O azul dos olhos de Petrúcio Lutsky adquiria um colorido mais intenso todas as vezes que ele se deparava com situações difíceis. Sentados no escritório improvisado ele e sua esposa tentavam encontrar uma alternativa. Alice percebeu o brilho nos olhos do marido. Não gostava de vê-lo assim, meio ríspido com os funcionários, sobretudo. As pessoas dedicadas e leais que os auxiliavam não mereciam um tratamento duro. Mas o temperamento se tornava áspero até com os animais.

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Havia muito tempo Alice era responsável pela administração burocrática do circo. Muitas vezes conseguiu contornar crises. A genialidade que contribuiu para resolver tantos problemas agora não a permitia enxergar um fio de esperança. Os dois se assustaram com a entrada intempestiva de Bolinha. _Patrão! Patrão venha correndo me ajudar! Estamos fodidos!

_Que foi que houve, Bolinha?! O funcionário conduziu o casal

aos viveiros dos animais. Petrúcio entendia que não era correto manter animais silvestres presos. Antes de adquiri-los foi preciso aprender a domá-los. Ele entendia que para um animal criado na Natureza era muito incômodo viver confinado entre dois metros quadrados, cercado por grades de ferro. Entendia que qualquer descuido com eles podia ser fatal.

O jaguar tinha arrombado as grades carcomidas da jaula. Embora debilitado pela alimentação escassa o animal ainda reservava forças para se desvencilhar de um claustro que o sufocava e o fazia refém do descaso e da fome. O instinto o levou a sair do

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quadrilátero imundo antes que virasse alimento para os micróbios.

Acuada entre as moitas viçosas de colonião a onça se protegeu ao meio de dois potentes troncos de flamboiã. De um lado era a frágil cerca do circo, do outro o muro da Nicolau Maquiavel. O dono do circo tentou se aproximar do jaguar. O bicho rosnou, mostrando os dentes pontiagudos, avisando que não aceitaria a aproximação de ninguém. Petrúcio tentou algumas manobras para atrair o animal, porém nenhuma delas funcionou. O bicho estava muito irritado. Bolinha chegou perto e quase levou uma patada. Não era mais aquele bichinho dócil que foi adotado ferido. Os dois homens ficaram desesperados, mas logo caíram em si. Aquela criatura não era um ser humano que é forçado a se adaptar com rapidez à opressão, ao descaso, ao sofrimento. Os seres não humanos não aprenderam ainda a dissimular os sentimentos e as emoções, nem a aceitar imposições. Muitas pessoas observavam de longe. Ninguém devia correr o risco de ser vítima de uma onça enfurecida e faminta.

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O bairro estava alarmado, mas muitos confiavam na competência de Petrúcio em dominar o jaguar. A polícia foi acionada. Quando chegou uma guarnição especializada em captura de animais silvestres a situação já tinha sido contornada. Petrúcio e Bolinha, com habilidade e muita perspicácia, conseguiram convencer o animal a retornar a sua morada. Porém, não antes de saciá-lo com um bom pedaço de carne. A jaula foi consertada com velhos pedaços de arame. Ficaria com as gambiarras até que conseguissem fazer uma manutenção de verdade. Petrúcio retornou ao escritório. Recomendou a Bolinha que ficasse atento aos movimentos dos animais. Não tinham dinheiro para comprar a ração dos bichos, as jaulas estavam carcomidas pela ferrugem. A renda da bilheteria baixava vertiginosamente. As pessoas não frequentavam o circo como nos primeiros meses. Alice mexeu nos carnês de encargos que deviam ser pagos ao fisco municipal. O compromisso de isenção de impostos vigorou apenas por alguns meses. A prefeitura passou a cobrar vultosas taxas. Faltava combustível para os

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veículos sucateados. Tiveram que racionar tudo, inclusive a alimentação. Tentaram vender alguns equipamentos. O preço que ofereciam era irrisório, não dava para sanar qualquer necessidade.

_Hoje nós conseguimos a doação de uma boa porção de carne de um açougueiro generoso. Amanhã nós não sabemos com quem podemos contar – Lamentou Alice.

_Eu já tentei falar com o vereador Leandro Roquette, mas o assessor me disse que ele está participando de um congresso em Brasília. Disse-me que eu devo agendar uma audiência.

_Por que você não pede para o Jaguar intermediar uma conversa com o vereador, já que eles são muitos amigos?

Petrúcio se levantou, fez que ia deixar o escritório. Passou por Jorginho, mudo e encurvado sobre um caixote de madeira. Os dois ficaram a trocar olhares por minutos sem nenhuma palavra articularem. Uma enxurrada de recordações veio povoar o pensamento do dono do circo. Bons tempos em que seu avô dirigia um pequeno circo. Os artistas eram os filhos e os netos. Foi naquela ocasião que ele adquirira amor

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pela arte circense e a admitiu como seu definitivo meio de ganhar a vida. Preservar a tradição do avô lhe rendia motivação. Um homem idealista, vigoroso e de caráter imbatível, um belíssimo exemplo para a família Lutsky. Foi essa façanha enobrecedora que o levara a se desvencilhar das garras de Iossif Stalin. Nem queria mencionar o nome do monstro da neve, mas era impossível esquecer o terrível mal que ele causou. Tinha a impressão de que se sua família nunca tivesse deixado a Ucrânia eles teriam muito mais autonomia. Seriam muito mais senhores de si. Isso, se não houvesse um tirano sanguinário que tentava corroer suas vísceras e atrapalhar-lhes os planos. Era um ruidoso lamento interminável que retinia em seu juízo. Será que Aleksandr tinha razão em migrar? Ele se pegou muitas vezes fazendo esta pergunta. Então, entregue às divagações ele ilustrava mentalmente os flancos, às vezes verdejantes, às vezes alvos pela neve dos Cárpatos. Voltou a esticar o pescoço em direção ao viveiro do jaguar. O animal estava deitado, imóvel em sua clausura. Não havia salvação para ele, como não houve para os súditos de Iossif. Milhões de infelizes sucumbiram

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sob o despotismo do Grande Porco. O inofensivo animal sucumbe sob minhas ordens e eu o mantenho refém do meu capricho e dos meus interesses numa jaula apertada. A cabeça doeu em pensar nos problemas que tinha para resolver. Aí foi Alice quem ficou intrigada. E os três trocaram olhares tediosos. Petrificada, a ex-contorcionista pousou as mãos sobre os papéis. Se fosse retratada por Vincent Van Gogh seria uma cópia fiel de Arlesiana. Porém a esposa de Petrúcio Lutsky não era de ficar patética a esperar o pavio da dinamite queimar.

_O que é que tá acontecendo? Eu quero saber! Vocês estão escondendo algo de mim. Você sabe, meu querido, que eu não fico nem um pouquinho feliz quando escondem as coisas de mim. E quando eu não fico feliz fico irritada. Você já me conhece!

O rosto de Jorginho se tornou mais avermelhado do que o normal. Permaneceu cabisbaixo. Petrúcio girou em torno de si, passou a mão pelos cabelos louros e ameaçou arrancar o vasto bigode, fio por fio. Pigarreou.

_Nada. Não é nada não, minha esposa. O que tá martelando minha cabeça é ainda a fuga do jaguar. Nós

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podemos ainda nos contentarmos de poder contar com pessoas decentes e corajosas como Jorginho e os poucos funcionários que nos restam.

A esposa pôs a mão no queixo, tirou os óculos e limpou um fio de lágrima. O marido só confirmava a verdade. Muitos funcionários tinham sido dispensados. Quase duas dezenas não suportaram o baixo salário. Menos de meia dúzia permaneceram. A modesta companhia tinha para oferecer como remuneração nada mais do que a alimentação escassa. Para os que decidiram ficar mais valia a pureza de caráter de Petrúcio e de sua esposa, considerando que o circo tinha sido uma ótima escola. Por isso deviam se manter leais.

_A prefeitura não está cumprindo com o trato, meu marido.

_O pior não é isso! Há coisa bem mais grave!

_Então diga logo o que é! Petrúcio sabia que não devia ter

insinuado contar os tenebrosos acontecimentos, pelo menos naquele momento. Tinha medo que ela caísse numa crise nervosa. Agora, diante da insistência dela não lhe cabia mais nenhum estratagema.

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O dono do circo se afastou da pequena janela por onde observava o viveiro dos animais. Deu dois passos e se aproximou da mesinha. Jorginho acorreu tentando impedir que o patrão falasse. Começou a balbuciar palavras de protesto, mas sua voz ficou embargada. Petrúcio fez um sinal com a mão a fim de conter o palhaço Bolinha. Ele encurtou os passos junto à mesinha de Alice. Foi falando:

_O senhor tem certeza que precisa contar tudo a dona Alice?

_Certeza absoluta! _Mas agora, neste momento? _Ora, Bolinha... Ora, Jorginho. Não

podemos mais ficar tentando enganar a nós mesmos, tchê.

_É. É, mas... Mas, patrão. Nós devíamos ter um pouco mais de cautela. Verificar melhor o que está ocorrendo.

O dono do circo reagiu irritado. Deu um murro na mesa e virou para Jorginho quase se sobrepondo a seu corpo achaparrado.

_Você é um camarada muito bom, muito dedicado, muito trabalhador, mas é muito ingênuo. O palhaço Bolinha ficou lívido. Ficou triste por entender que seu patrão o julgava incompetente. Inábil para

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muitas atividades até se reconhecia. Mas era servil e esforçado.

A bilheteria vinha representando um verdadeiro fracasso. Os espetáculos estavam sendo suspensos por falta de público. A programação foi reformulada e mesmo assim não atraía espectadores. Durante muito tempo o circo representou o único lazer do bairro. Era onde as pessoas se reuniam para descontrair, esquecer as agruras cotidianas. Agora, porém, era um ambiente repulsivo, usado pelos viciados e pelos vendedores de narcóticos. Natália se encontrava cheia de razão. Do alto de sua prepotência ela proclamava a vitória: tinha advertido do perigo que o circo causaria. No início ela não alardeara os protestos para não desagradar à maioria das autoridades unânimes em concordar com a instalação. Para ela o terreno dos fundos deveria servir para a ampliação da escola e não para dar lugar a uma enorme cobertura de lonas sujas, cheio de feras e de palhaços desconjuntados, cujas graças não suscitavam a ventura de ninguém. Ela dizia que as tiradas dos palhaços e os dramas, as comédias trágicas e o humor negro eram insulsos, um destrato para com a educação. Os

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palhaços inventavam piadinhas que feriam a moral e a cultura.

_Então contem logo o que está acontecendo. – Voltou a exigir Alice.

_Pois bem. Você deve se lembrar do tempo em que escolhemos este local para armar nosso circo, não é?

_Sim, me lembro muito bem. _Lembra-se do alvoroço que

aconteceu? Muitos protestos, muita polêmica e muito apoio. Na realidade a voz dos que consentiam foi mais consistente e formou-se um couro em favor da instalação do circo. Nós ficamos perplexos, não é verdade? Não entendíamos por que tanta discussão. Aquilo nunca havia acontecido em nenhuma das cidades por onde passamos. Muita gente foi contra, pessoas influentes, como a diretora da escola. Porém, a maioria dos que tinham poder de mando era a nosso favor. Você há de admitir que teve dificuldade em pegar no sono na primeira noite. E naquela noite de estreia a bilheteria foi rentosa.

_Hunrum, hunrum _ Com o dedo indicador sobre os lábios a mulher ouvia com olhos arregalados.

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_Muitas pessoas importantes nos visitaram. Professores da Nicolau Maquiavel, diretores, conselheiros de educação, líderes comunitários, políticos, autoridades policiais.

_Sim, Petrúcio, e aí... _Nós tivemos um apoio maciço.

Apoio moral, estratégico e financeiro, conforme eu falei a você na época, te lembras?

_Lembro, lembro! Continue. _É. E você ficou assim meio

boquiaberta, com tanta bajulação, com tanto interesse. Mas achou uma maravilha, de modo que andava sorrindo à toa.

_Concordo com você. Mas... _Mas você não sabia o motivo de

tanta lisonja. Você nunca fez ideia por que eles queriam tanto que nos estabelecêssemos aqui. Augusto chegou a apontar alguns indícios. Eu não dei importância.

Alice encarou o marido. Pôs-se de pé, fitando-o nos olhos. Sem proferir uma palavra ela exigiu que o homem continuasse.

_Então lhe digo: eles queriam que nós colaborássemos com a erradicação dos crimes que aconteciam neste local.

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_Como?! _É que este local era ermo, mal

iluminado... Ele passou a contar com detalhes

o que ocorrera em outros tempos sobre o chão onde eles estavam alojados. Relatou sobre os acordos feitos entre ele, as autoridades e a população. Os motivos eram nobres, por isso aceitou sem restrições. O bairro lhe renderia boa bilheteria, mesmo tendo que baratear o preço do bilhete e franquear a entrada a algumas pessoas. As autoridades locais e alguns empresários se comprometeram a fornecer transporte dos bairros vizinhos até o circo nos horários dos espetáculos. A iniciativa funcionou apenas por um período muito curto, enquanto outros benefícios prometidos nunca foram cumpridos. Nas primeiras semanas a tranquilidade reinou. Estupros e assaltos, por exemplo, deixaram de ocorrer.

_Jamais imaginei uma coisa dessas - Lamentou-se a mulher.

_O caso, minha mulher, é que você fica o dia inteiro trancada nesse quartinho e não vê o que está acontecendo além destas paredes, ou seja, destas lonas.

_E isso é tão grave, meu marido?

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_Não contei nem a metade. Bom. Como disse, nós contribuímos para combater o crime, certo? Mas algo de grave passou a ser desenvolvido por aquelas pessoas que cobravam nossa cooperação. E, paradoxalmente, a erradicação de alguns crimes fez surgir um campo fértil para que vicejassem outros, promovidos por quem devia erradicá-los.

_Desembucha logo de uma vez, homem. Eu já não aguento mais de curiosidade.

_O fato é que a gurizada está pitando droga dentro do nosso circo!

_Pitando, não. Comerciando! Comprando e vendendo, fumando e cheirando. Se for pra contar, conta logo tudo! – Interveio Jorginho.

Alice colocou as mãos na cabeça. Quando menos se deu conta já estava de pé, agarrada aos colarinhos do marido e de Bolinha.

_De qual gurizada vocês estão falando?

_Dos alunos da Nicolau Maquiavel, ora.

_Mas! Os alunos da Nicolau Maquiavel?!...

_É claro que a eles estão se juntando uma cambada de estranhos

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que não são alunos, que aparecem não se sabe de onde.

_E o professor Robson não vê isso?

Jorginho ia responder, mas Petrúcio colocou-lhe a mão na boca. Outra vez a mulher ficou cismada. Mexeu nos óculos e voltou a se sentar atrás da mesinha. Não conseguiu acomodar as nádegas na cadeira.

_O professor não pode fazer nada.

_E vocês? Também não podem fazer nada?

Petrúcio ficou desajeitado. Jorginho meteu o rosto no tórax como uma tartaruga que foge do predador.

_Senhor Petrúcio, o senhor é o dono desta empresa. Como é que pode admitir um absurdo desse? Seu Jorginho, o senhor é nosso funcionário de confiança. Sabe de tudo e nada faz para impedir! E agora, o que é que vamos fazer da vida?

_Pelo amor de Deus, minha mulher, seja mais compreensiva. Tenha um pouco de paciência para que possamos concluir a história.

_Ah! Mas que história horripilante, hem!

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_Pois, estranho mesmo eu acho é você imaginar que eu admitiria uma coisa tão horrorosa.

_Então eu mesma vou falar com o professor Robson! – Afirmou a mulher.

_Não adianta, dona Alice. O professor é viciado e nós desconfiamos que ele...

_Que ele o quê, cristão? _Que ele está facilitando a

maldita atividade, minha mulher. Ele, provavelmente, está no tráfico.

Fez-se um silêncio aterrador. Os três ficaram sapateando no pequeno cômodo. Os poros de Alice começaram a desprender torrentes de líquido. Havia dias que o marido não dormia direito. Que ele estava inquieto ela tinha percebido, mas não entendia o motivo. Somente agora compreendia a gravidade dos fatos. Porém, muita coisa ainda a deixava encafifada. Sabia que seu marido era um homem enérgico, batalhador e, acima de tudo, honesto. Os bons modos faziam parte da tradição da familiar. Pais e avós, a quem ela conhecera, foram pessoas de bem. Eles não admitiam maus procedimentos. No entanto, ela acreditava que seu marido ainda optava por conservar a herança moral dos antepassados. Estavam

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casados fazia quinze anos e apesar das muitas dificuldades já enfrentadas ele jamais bandeara para a imoralidade. Então concluiu que o marido tinha sido envolvido numa trama.

_Por que é que a diretora protestou tanto contra nossa permanência aqui?

Petrúcio ficou calado. Ele também não conseguia entender tais implicações.

_Então por que você não denuncia o bandido desse professor à polícia?

Outra vez o silêncio veio como resposta.

_Pois eu não entendo o que o impede.

Petrúcio passou a mão no rosto. Olhou de esguelha para Jorginho.

_Vocês dois estão de conluio! Sabem de coisas mais graves. Não tentem me enrolar! Se não tomarem uma providência irei, eu mesma, denunciar.

Se o circo tinha sido montado naquele local para amenizar fatos que conturbavam a comunidade, não tinha alcançado o objetivo. A população local ficou mais aliviada quando viu a grande cobertura de lona ocupando o local

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fatídico. Havia a certeza de que a presença do circo e o movimento constante de pessoas inibiriam a ação dos delinquentes.

O dono do circo devia optar pelo bom senso colaborando com a comunidade e rezando pela cartilha dos administradores da prefeitura. Seu objetivo era ganhar dinheiro. O circo era sua única fonte de renda, sua roça, sua pescaria. À medida que as dificuldades financeiras foram crescendo, ele teve que se deslocar em busca da clientela. Nas proximidades dos centros ele não conseguia concorrer com companhias bem aparelhadas com artistas renomados em seus elencos. Ao chegar naquele local as autoridades o convenceram de que estaria colaborando com a erradicação do crime, além de trazer entretenimento às pessoas e estímulo às atividades escolares. Os argumentos fizeram com que ele acreditasse que o novo bairro lhe renderia um grande faturamento. Antes de firmar contrato com a prefeitura e dar sua palavra aos líderes da comunidade ele fizera uma pesquisa animadora. “Dessa vez nós conseguiremos sair do vermelho. Vamos abastecer nossos veículos, comprar

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equipamentos novos e contratar mais artistas. Quem sabe até conseguiremos um elefante treinado e uma parceira para o jaguar. Vamos reestruturar nossa companhia”, segredou com a esposa. Ela nada respondeu. Estava cismada com as polêmicas em torno da instalação da companhia. Só depois da primeira apresentação ela mudou de ideia. Por algumas semanas seguidas a fila da bilheteria dobrou o quarteirão. Durante o dia as crianças vinham fazer visitas para observar os poucos animais selvagens, sobretudo o jaguar. O circo virou atração por mais de um motivo. À noite os pais eram convencidos a levar seus filhos e ao lado deles se descontraiam com os espetáculos. Os resultados positivos, porém, não puseram fim às contendas. Inconformadas com o suposto mau uso do local muitas pessoas ainda protestavam. E Petrúcio, do alto do otimismo, esforçando-se para tornar patente que o circo alargava os sorrisos. Os ilusionistas e os palhaços transformavam as lágrimas oriundas das opressões. Os malabaristas viviam equilibrando um mundo cheio de vaivens, de agitações. O trapézio era a firmeza com que as pessoas eram atiradas de um canto ao outro da vida,

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assim como a companhia itinerante sobrevivia dentro de um mundo constantemente mutante. Nem mesmo o voraz Iossif conseguiu exterminar todas as criaturas, embora pretendesse.

Porém, o sonho de mudança radical, de beneficiamento não passou de amarga ilusão. O circo não serviu para dar alento às crianças, para coibir a criminalidade, nem para divertir e sequer para proporcionar meio de sobrevivência. Ironicamente, passou a colaborar com o crime. Antes os malfeitores agiam a céu aberto. Podiam ser vistos e, consequentemente, denunciados. Agora eles “trabalhavam” com total segurança, protegidos pelas lonas. Havia uma cobertura, no sentido lato, e os delinquentes, com toda liberdade, praticavam as ações mais sórdidas. Os conselheiros de educação proferiam em couro que o circo tinha passado a ser uma extensão da escola. Era debaixo das lonas que os alunos recebiam as instruções de educação física. Os chefes do tráfico mandavam recados, ratificando que o circo era uma filial do comércio de entorpecentes. Conduzido pelas intenções malévolas a teoria estava defendida com um raciocínio cruciante, mas concreto. E o

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dono do circo, ao tentar espernear, deparou-se com as próprias mãos algemadas. A aflição estava estampada no semblante de todos, mas era para Alice que o momento se tornava mais martirizante. Ela desconfiava que seu marido e seu funcionário de confiança ainda escondiam alguma coisa. A situação financeira outrora promissora acenava com complicações. A renda da bilheteria caiu drasticamente.

Petrúcio estava metido num terrível dilema. Queria denunciar os criminosos. Mas tinha sido advertido de que se o fizesse sofreria duras represálias. Fora avisado que era para deixar o tráfico correr livre. Num dia de domingo um sujeito louro, magro, de olhos fundos e cavanhaque ralo aproximou-se da bilheteria quando o espetáculo iniciava. Encostou o rosto na viseira, constatou que o dono do circo se encontrava sozinho. Falou baixo:

_Abre a portinha que eu quero falar contigo.

_Pode falar - Respondeu Petrúcio carrancudo e paulatino.

_Abre, mano! Eu quero falar daí de dentro.

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Abriu parte da jaqueta e deixou aparecer a coronha de uma arma. Petrúcio obedeceu.

_O dinheiro que eu apurei hoje foi uma ninharia.

_Fica frio, maluco. Eu não vou te assaltar não. Fica com tua merreca aí que eu não preciso dessa porra. Eu só vim te dar um recado. É o seguinte, véio, escuta bem o que eu falar: tu num vai impedir a molecada de vender o bagulho aí dentro do teu circo, não. Tu vai deixar os manos transitar numa boa. Eles vão entrar e sair na hora que quiserem, tá limpo? Outra coisa: tu também num vai se meter em denunciar nosso trampo, certo? Já tá avisado! E se se meter a besta em desobedecer já sabe, vai pagar caro!

Antes de sair da salinha o homem abriu a jaqueta, sacou a pistola, pressionou o cano na barriga de Petrúcio. Não falou mais nada, apenas enristou o dedo indicador, reforçando a ameaça. O dono do circo ficou transtornado. Com a cabeça pipocando e as mãos trêmulas ele teve muito trabalho para localizar a arma que deixava debaixo de uma cadeira. Vou acabar com aquele maldito agora, pensou. Engatilhou a arma e deu uma

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volta em redor do circo. Verificou alguns becos dos arredores, mas o homem tinha sumido sem deixar vestígios, tão rápido como tinha aparecido. Petrúcio esperou sua volta. O homem nunca mais reapareceu. Ele imaginou que podia ser uma brincadeira de mau gosto. Mas sua prudência o ensinou a não duvidar. Já tinha ouvido falar de muitas desgraças motivadas por reações a provocações. Não queria ser personagem póstuma de nenhuma delas.

Depois de confidenciar com Jorginho o triste ocorrido, os dois decidiram que não provocariam as represálias dos traficantes. Alice não abria mão de denunciar à polícia. O marido e o funcionário não queriam falar das ameaças para não aterrorizá-la ainda mais.

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CAPÍTULO SEIS

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Petrúcio Lutsky despertou com um forte barulho. Levantou a cabeça e, perplexo, percebeu que os ruídos vinham dos fundos do circo. Aquela tinha sido a noite mais sossegada dos últimos meses. Havia relaxado depois que a esposa o fez tomar uma xícara de chá de camomila com algumas gotas de um sedativo. Antes que ele pulasse da cama Jorginho entrou subitamente no quarto. _Que é, rapaz? Tá ficando louco?! _ Repreendeu. _Desculpe patrão! É que aconteceu uma coisa medonha! Petrúcio nada falou. Passou a se vestir atabalhoadamente enquanto pensava no fato de os traficantes terem transformado seu circo em uma feira de narcóticos. O que mais poderia estar acontecendo. _Vamos, desembucha. Fala logo, que diabo foi dessa vez?! Os dois foram para o meio do circo e encontraram Alice trêmula. Perto do muro da Nicolau Maquiavel uma quantidade considerável de pessoas observava algo, assustadas. Petrúcio pensou que o jaguar tivesse outra vez arrombado as grades da jaula. Ou pior:

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_Mataram o jaguar, não foi isso mesmo?!

_Não, meu marido. Mataram Camila e enterraram em nosso quintal! O que é que falta para acontecer neste inferno!

Sacudido por um turbilhão de incompreensão o dono do circo encaminhou-se para o fundo do circo. Ao pé do muro da Nicolau Maquiavel, do lado de uma amendoeira e cercado por viçosas moitas de colonião, várias pessoas estavam de olhos arregalados. O amontoado de terra solta indicava que o solo tinha sido revolvido há poucas horas. Do acúmulo de terra e pedras submergia uma cabeleira feminina. Todos reconheciam os cabelos alourados de Camila.

_Os malvados mataram a menina e a enterraram a flor da terra – Lamentou uma mulher. _Nem se deram ao trabalho de enterrá-la direito – Lamentou outra, tapando a boca com um lenço. _Pra que tanta malvadeza com a pobrezinha – Lastimou-se uma terceira enquanto fazia o sinal da cruz. Os policiais afastaram as pessoas. A cena do crime e o cadáver deviam ser preservados para não atrapalhar a

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perícia. Os policiais chamaram os pais de Camila para fazer um reconhecimento parcial. _É ela mesma! – Proferiu aos gritos a mãe – É ela. Os cabelinhos cacheados e tingidos de louro. Mataram minha filha! Eu também quero morrer! Eu não quero mais viver! Um policial afastou-a. Solicitaram que o pai se pronunciasse. Augusto apenas confirmou com a cabeça. Transtornado, sequer conseguiu articular uma palavra. Desde que ela se envolvera com drogas ele sabia que tudo poderia acontecer. Havia dois dias que ela estava fora de casa. Mas seus sumiços eram tão frequentes que já não assustavam mais. Os filhos são a forma, o olor, a cor e o sabor daquilo que nunca se experimentou. Porém, todas essas sensações os pais querem experimentar. Mas se não houver o exercício das relações com essas criaturas nunca se lhes conhecerão, nunca se saberá que elas ocultam preciosidades ou armazenam estopins. Augusto queria enxergar algo que não fosse cinza, tatear alguma coisa que não fosse rugosa e ouvir uma canção não lamuriosa. Queria continuar em contato

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com a mesma pureza do momento que a ouviu sua chorar ao deixar o ventre da mãe. Almejava as maravilhas da vida não para seu usufruto, mas para a extensão de sua árvore. Seus filhos, e em especial Camila, eram os ramos que estavam a vicejar e ele tinha esperança que florescessem. Mas naquele momento enxergou apenas figas murchas. O último fio de esperança acabava de se esvair. O frágil sentido de viver virou poeira e se perdeu na imensidão do firmamento. Tinha já feito muitas avaliações a respeito de sua trajetória. Não adiantava pensar, já estava tudo perdido. Tentara ser firme em todos os atos, um pai cuidadoso, um bom marido. Ser um cidadão de bem não tinha servido para premiá-lo com uma vida digna. Seus pais ensinaram que a única herança que um homem humilde pode dar aos filhos é a honestidade. A vida difícil nas bordas da Serra da Barriga o orientou a resistir às cruezas do sertão e a se agarrar aos atributos morais. Mas algo mais forte interferiu bruscamente nos seus planos. Ele traçara um projeto, os ventos instáveis empurraram-no para uma direção oposta. As más lembranças estavam chegando como uma torrente.

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Reviu Camila pequenininha sem querer largar seu colo enquanto o caminhão o aguardava para embarcar para São Paulo. Um nó ameaçou bloquear a garganta e ele não conseguiu articular sequer uma palavra. Proferiu mentalmente: “Que a paz fique com vocês!” O tempo que passou longe dos filhos foi longo e agonizante. Porém, juntar-se novamente à família foi tirar das costas um peso. Decidiu que faria tudo para transformá-los em cidadãos de bem. Camila teria o melhor tratamento. Por ser a mais nova, queria que ela se formasse. Ela ingressaria na escola Nicolau Maquiavel, cuja diretora garantia que era a mais capacitada das redondezas. O sertão era carente de centros educacionais. As escolas públicas funcionavam em compartimentos improvisados ou em salas que causavam repulsa. Os professores eram totalmente inabilitados. A Nicolau Maquiavel devia estar provida de recursos razoáveis, pronta para proporcionar uma educação excelsa. Ela é a forma mais apropriada para o aprendizado de meus filhos, avaliou ao se deparar com o prédio esplendoroso, salas bem planejadas, repletas de carteiras novinhas e bem

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cuidadas. Os professores eram profissionais com formação plena. Envergando jalecos brancos eles seriam imbatíveis na transmissão dos preceitos educacionais. Camila queria ser bióloga. O pai se emendaria para que os desejos dela fossem concretizados. Augusto, não obstante, compreendia a importância que o ensino bem ministrado exercia sobre a formação dos cidadãos. Sabia que a educação era o caminho mais curto para a condução do indivíduo ao entendimento do universo e que era com os atributos proporcionados pela escola que as pessoas aprendiam com quais ferramentas e como lidar com as coisas que os cercavam. Somente a escola estava credenciada a indicar as relevâncias e os pontos de risco, as complexidades da Natureza e as complicações provocadas pelo próprio homem. Consequentemente, tinha certeza que sua filha caçula estava no caminho certo, protegida de todos os descaminhos. Augusto Sacramento ganhou a simpatia da diretora. O esforço em preservar os bons costumes e em ajudar a manter a ordem na escola e no bairro fez com que a diretora o convidasse para se candidatar ao conselho de educação.

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Numa eleição muito disputada ele foi o representante mais bem votado. Natália Rossini não se cansava de elogiá-lo. Ele se tornou um dos líderes mais atuantes. Pertinaz, Natália Rossini estava empenhada em mostrar ótimos resultados na Nicolau Maquiavel. As excelências nos trabalhos dariam riqueza aos relatórios e futuras teses enobrecedoras. Era aí que se justificava a homenagem à principal filosofia do patrono da escola. Os fins teriam que justificar qualquer que fosse o meio. Desejava, acima de tudo, ser reconhecida como exímia educadora. Percebia que, mais do nunca, necessitava do auxílio da população, em especial dos conselheiros e líderes. E contava com um pequeno exército disposto a colaborar. Por isso sentia-se fortalecida. Não era de admitir que sua autoridade fosse desacatada. Ela própria se definia como uma mulher obstinada, com opinião própria e não se deixava dominar por influências quaisquer.Os episódios desagradáveis chegaram ao seu conhecimento. Foi um desafio aceitar uma incumbência tão espinhosa. Ergueu a cabeça e proclamou em alto e bom som: “Esses fatos não terão prosseguimento. Isso só acontece

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quando há uma administração sem propósitos! Verão que sou uma criatura de sexo feminino, mas ousada, estrategista e dura na queda. Vou desafiar qualquer transgressor. Ninguém vai tumultuar minha administração”. Natália Rossini estava navegando em águas turvas enquanto subestimava o poder da desordem organizada. Ela conduzia a escola como uma instituição isolada da sociedade. Preferia resolver os problemas sem levar em conta o caráter humano, o meio ambiente e as diversas especificidades que regiam suas relações. Não era apenas introduzir alunos na escola e as coisas seriam resolvidas. Rechear os diários com nomes e números e um rol de diplomas auferidos a qualquer custo era a grande relevância. A comunidade, com suas características sócio-econômico-culturais, ficaria excluída do processo. Assim, em vez de promover uma integração eficiente ela contribuía para que a escola se tornasse mais vulnerável, a educação segregacionista e ineficaz. Seus projetos regrediam ao milenarismo arraigado e tradicional. Ela não podia negar que estava ciente disso. Era no afã de conseguir estatísticas urgentes e que se manifestou sua

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arrogância e sua irracionalidade. Isso refletiu, como um relâmpago no relacionamento com a comunidade. Desiludido com o aparato que o encantara à primeira vista, Augusto foi o primeiro a reclamar. A sua franqueza e seu caráter rude não deixavam margem a qualquer timidez. Entrou sem avisar na diretoria e foi repreendendo a titular. Incomodada, ela pediu que ele se retirasse. _Não vou sair porque aqui não é tua casa. Isso aqui é nosso. Se a senhora não tá dando conta do recado é quem deve sair e deixar que outro diretor assuma. Decepcionado com a institituição na qual tanto crédito depositou o alagoano não conseguiu distinguir as escolas toscas do sertão para os agregados da Usina e a moderna Nicolau Maquiavel. Natália não admitia que houvesse irregularidades na escola. Sempre achava que os supostos pequenos problemas seriam contornados sem muita dificuldade. Não permitiria que a polícia marcasse presença no estabelecimento. Exibir um aparato de forças ostensivas seria demonstrar problemas, revelar uma imagem

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negativa, uma incompetência administrativa. A escola havia sido contaminada pelo câncer dos narcóticos. Grande parte dos alunos estava viciada e, com efeito, envolvida na disseminação do mesmo vício. Muitos professores também se viciaram e colaboravam com a entrada da droga nas dependências da escola. Estranhos tinham trânsito livre, comercializavam a droga e faziam uso dela com os alunos, faxineiros, inspetores e professores. Pressionada por alguns conselheiros para tomar providências ela apenas torcia o queixo e em vez de agir exigia que os líderes da comunidade se virassem sozinhos. Naquele dia teve o desgosto de encerrar a reunião sem chegar a qualquer conclusão. Quando abriu a porta do carro encontrou um bilhete sobre o banco do passageiro. Assustou-se. Como é que aquele bilhete veio parar dentro do carro se ela tinha trancado as portas? O recado era taxativo. Ordenava que ela não avisasse à polícia sobre o comércio de narcóticos no interior da escola. Dizia ainda que se a polícia tomasse parte ela sofreria sérias consequências.

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A diretora entendia que os efeitos de um trabalho educativo nunca são percebidos em curto prazo. Tinha como objetivo atingir toda a faixa etária juvenil em larga escala. Somente com trabalho árduo e dedicação é que podia alcançar êxito na empreitada. Era o momento, portanto, de fazer uma avaliação, repensar o que foi feito e como foi feito. Ela sabia que apenas os subsídios fornecidos pelo governo não eram suficientes para desenvolver um trabalho efetivo. As pessoas da comunidade tinham o dever de colaborar até porque eram os atores principais, repetia ela diariamente. De início a cooperação superou as expectativas. Pessoas humildes, líderes, conselheiros da educação, pequenos empresários, políticos mostraram-se dispostos a ajudar. O vereador Leandro Roquette deu sua palavra. Ele prometera indicar projetos para incentivar as atividades escolares e trazer benefícios à educação no bairro. Alguns pequenos empresários também prestaram ajuda financeira. Marcos Freitas estava sempre a postos. Sua dedicação o levou a ser escolhido para o conselho. Devotado, frequentava reuniões e financiava projetos. Ele mesmo se autodenominava

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microempresário, embora se negasse a revelar a área de atuação.

A diretora ficou estarrecida com a notícia do assassinato de Camila. A moça estava viciada e trabalhava para o narcotráfico, todos sabiam. Natália foi a última a saber. Foi aí que ligou os incidentes da escola a ela. Depois de tantas ocorrências funestas veio certificar-se que havia muitos mistérios em torno de seus colaboradores. Fez uma longa reflexão e notou que fora imprudente ao acreditar em todos. Ademais, ela tinha suas ambições pessoais, cujos atributos considerava essenciais para motivar as criaturas humanas, levando-as a capacitarem-se. Tinha realizado alguns cursos de pós-graduação com o fim de se aprimorar e entender as complexidades e, sobretudo, para sua promoção própria. Ela confabulava com os familiares, iria conseguir. Nos primeiros momentos encheu-se de ânimo, sonhava recebendo condecorações e promoções, reconhecimento justo pelo trabalho. Seu nome seria mencionado nas páginas das mais relevantes revistas e jornais. Aclamada pela população, elogiada pelas autoridades e ovacionada como

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heroína dos povos carentes. Suas teses seriam objeto de adoção de educadores do país e do mundo. Ao assumir a escola surpreendeu-se com professores e coordenadores mergulhados num profundo torpor. A assessoria de bons profissionais era indispensável para que o seu intuito fosse atingido. Então decidiu cutucá-los, acordá-los para a realidade. Eles estavam ali era para trabalhar e uma boa administradora devia ser austera e exigente. Procurou saber o porquê de tanto abatimento. Os professores estavam desalentados. A maioria era composta por profissionais de meia idade, com vinte e trinta anos de atuação. Tinham dado tudo de si durante toda uma vida para transmitir bons costumes e conhecimentos aos filhos dos outros, para transformar a comunidade. Eles pretendiam, sim, implantar uma mentalidade de cultura salutar. Depois de tantos anos as armas de que dispunham se tornaram obsoletas e eles perceberam que a batalha tinha sido em vão. Já não conseguiam educar seus próprios filhos. Era impossível sobreviver com os salários minguados e mesmo depois de três décadas de labor não estavam estabilizados. Seus vencimentos eram

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insuficientes para suprir as necessidades básicas. Tinham o Estado como um péssimo parceiro, um frágil sustentáculo. Sentiam-se cansados e convictos de que funcionavam apenas como fantoches, umas vezes manipulados, outras vezes penalizados pelos gestores públicos. A eles era inculcada a responsabilidade pelo insucesso do sistema e pela ausência de projetos abrangentes. Estavam cientes que o Estado, o qual devia protegê-los e muni-los de equipamentos para fazê-los soldados vencedores da batalha chamada Educação e Progresso, mantinham-os numa prisão, penitenciando-os como se fossem eles os culpados pela própria inoperância. Natália não era funcionária de carreira. Tinha pouco tempo de atuação na área. Galgara ao posto de direção mais por favores políticos do que por seus próprios méritos. Sua vocação pela prática pedagógica era tênue. Sem entender por que aconteciam tantas tragédias em volta da Nicolau Maquiavel ela ficou decepcionada apenas com o inesperado. Tentaria contornar a situação à sua maneira. A primeira atitude foi procurar um bode expiatório. Como Augusto foi o primeiro que se

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expunha foi quem tomou a primeira patada. Ela o acusava de não ter ensinado boas maneiras aos filhos, de ter largado Camila à sorte dos narcotraficantes. Chegou a culpar Petrúcio de colaborar com a venda de entorpecentes dentro de sua companhia. Muitas pessoas disseram que ela o denunciou anonimamente à polícia. Enfim, tinha arrumado intriga com muita gente.

Camila estava submersa no barro até o pescoço. Apenas seus cabelos amarelos ficaram expostos acima da terra. A polícia tinha recebido uma denúncia anônima sobre o eventual criminoso. O denunciante disse ter visto Petrúcio jogando o corpo dentro da uma vala. A partir daquele momento ele era o principal suspeito do crime e da ocultação do cadáver. O delegado avisou que ele não devia deixar as dependências do circo até que se esclarecesse o caso. O bairro estava em polvorosa. As pessoas estavam atônitas. Para muitos era difícil crer que Petrúcio fosse capaz de cometer um ato tão desumano. Matar e enterrar a garota no seu próprio quintal. Fazia pouco mais de dois anos

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que ele aportara ali com sua companhia circense. Seria, portanto, impossível todo o bairro conseguir conhecê-lo em tão pouco tempo. Sem impor nada ele colaborou. Mostrou-se sério e enérgico nas atitudes. Ofereceu cursos grátis de arte circense aos jovens. Tornou-se amigo de Augusto. Ao chegar ao bairro fez questão de se apresentar como uma pessoa de bons princípios. Aliás, o fato de ter armado o circo num local de má fama era um gesto de coragem e solidariedade. Tinha atendido a uma solicitação da escola Nicolau Maquiavel cedendo seu espaço para que os professores ministrassem aulas de educação física. Entretanto, nem todos o consideravam um cidadão distinto. O fato de ele ter surgido como um meteoro levantava suspeitas. Nem sabiam se ele era realmente gaúcho, descendente de ucranianos ou o diabo. Quem poderia garantir que ele não estava fugindo da justiça por algum mal feito num local remoto do país? Algumas pessoas julgavam que seu sotaque cárpato expressava atitudes ásperas e ações atrozes, que ele seria, sim, capaz de praticar qualquer ato ignominioso. Ele conseguiu tirar a moça, algumas vezes,

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do vício. Mas ela retornava. E isso somava razões suficientes para ele se irritar. As vendas de narcóticos estavam acontecendo dentro do seu circo e uma das introdutoras era ela. Ele andara se queixando com pessoas do bairro e até combinara com algumas delas um meio de dar fim nos indivíduos mais implicados na distribuição de narcóticos. A diretora disse ter tido algumas conversas dessa natureza com ele. Ela sustentou que nunca autorizou o professor Robson a solicitar espaço no circo para ministrar aulas de educação física. A polícia acolheu com reserva os pareceres proferidos pelos populares sobre a conduta do suspeito. Paralelo à perícia no local do crime a polícia estava procedendo nas averiguações necessárias para elucidar o caso. Petrúcio foi submetido a um longo interrogatório. Os policiais estavam intrigados com um detalhe: por que ele não tinha ouvido nenhum barulho naquela noite. O buraco foi cavado quase debaixo de sua cabeça. Calculou-se que o executor tinha demorado pelo menos uma hora na escavação. Foi usado, provavelmente, enxadão e picareta para furar o chão esturricado,

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provocando pancadas ásperas e ruidosas. Seria muito difícil alguém não despertar. Petrúcio não tinha apresentado nenhum álibi convincente. Ele disse apenas que naquela noite tomara alguns medicamentos que o fizeram dormir profundamente. Demonstrando pouca convicção o delegado ouviu sua defesa. As autoridades policiais tomaram todas as providências para evitar que ele se evadisse. Tudo levava a crer que o principal executor tinha se valido de colaboradores para efetuar o ato macabro. Uma nuvem negra empardecia o céu dos Lutsky. A casa que sempre foi palco de jovialidade e de harmonia estava ornamentada pelo marasmo. Excetuando algumas questões corriqueiras aquela família sempre usufruiu de um agradável convívio. À noite era a alegria e a festa que o picadeiro oferecia a uma plateia animada. De dia era a disciplina nos ensaios dos espetáculos e arrumações do picadeiro. Petrúcio não tinha inventado o riso, mas queria ser o condutor para difundi-lo pelo mundo afora. Seu avô é quem o tinha inventado e ensinado a ele. Queria

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ver todas as crianças, todos os jovens sorridentes, todos os pais felizes. Dessa forma ele entendia que os estudantes da Nicolau Maquiavel encontrariam mais motivação nas aulas. Tomando por base tais predicados podia-se presumir como jamais houvera espaço para tristeza naquele circo. A esposa cuidara da administração da companhia com firmeza, encontrando, em todas as ocasiões uma solução para os problemas. Porém agora ela estava arrasada diante do fato inexplicável. Na noite da ocorrência ela não havia dormido com o marido. Ele optara por ficar sozinho para melhor aliviar a tensão. Ela teimava em denunciar as ameaças dos delinquentes à polícia. Se tivessem deixado fazê-lo a desgraça podia ter sido evitada. Às vezes não entendia o marido. Ele tinha algumas ideias meio estranhas. Ficou com uma dor no peito ao fazer ilações. Seus pensamentos adejaram por todas as possibilidades. Jorginho estava acabrunhado. Naquela hora nem o colorido das maquiagens, nem as gargalhadas intensas da plateia infantil eram capazes de botar um pouco de brilho em seu semblante. Ele próprio cogitou consigo sobre a possibilidade de

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ter sido mesmo seu patrão o autor do crime. A situação desesperadora podia levá-lo ao desatino. Um homem aflito é uma bomba ativada. Não queria julgá-lo. Não, não. Jamais faria isso. Nem queria que seu patrão sonhasse com as suspeitas. Portanto, mal sabia ele que também estava na lista da polícia como implicado no crime. Foi Jorginho quem descobriu a ação dos usuários e vendedores de narcóticos dentro do circo. O primeiro a ser flagrado foi o professor Robson. Jorginho vinha espreitando-o havia alguns dias. Desconfiava das atitudes não habituais. O professor de educação física estava inalando uma cápsula de cocaína no banheiro.

_Professor! _Palhaço Bolinha!

_Éh... O senhor pode me explicar isso?

_Seu Bolinha, quer dizer, seu Jorginho, não tem explicação. É que... Eu sou viciado!

_Mas o senhor está usando droga em plena atividade pedagógica!

_Já falei ao senhor: eu sou viciado. _Isso é explicação?

_Pode não ser explicação. Mas é um vício.

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_Mas aqui não é lugar para curtir vício.

-É que eu não consigo me controlar. Até tento, mas quando dou por mim já estou cheirando.

_O senhor fala do vício como se fosse uma virtude. Eu acho que o senhor tem que dar uma explicação porque está em aula, seus alunos estão aí. E está na casa dos outros. Como é que o senhor vai justificar, me diga?

_Eu não estou querendo justificar nada. Estou apenas argumentando. Estou dizendo que sou viciado e não me pergunte por que sou viciado.

_Mas o senhor é uma autoridade, um educador. É um profissional que foi designado para instruir os jovens desta comunidade, inclusive para livrá-los dos descaminhos, dos vícios. Ou pelo menos evitar que se viciem os que ainda não o fizeram. Leve seu vício para o inferno, para onde quiser! Respeita a casa dos outros e para de contaminar esses adolescentes.

_O senhor está me acusando de uma coisa que não é verdade.

_É verdade, sim. O senhor está viciando os meninos. E ganhando dinheiro com isso.

_Isso é uma acusação muito grave.

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_É grave, mas é verdadeira. _Sabe de uma coisa? Eu não tenho

que ficar dando satisfação a ninguém, muito menos a um palhaço.

_Sou palhaço, mas tenho decência.

_Um palhaço que não faz nenhuma graça...

Jorginho percebeu que não valia a pena discutir com uma pessoa tão arrogante e que estava em estado de paranoia. Constatou que enquanto o professor se drogava no banheiro os alunos faziam a mesma coisa, dispersos pelo circo. A partir dali ele passou a observar com mais rigor a movimentação de Robson. Chegou à conclusão que ele estava usando aquele espaço não como sala de aula, mas como mercado de entorpecentes. Ficou furioso com a petulância. Sua ironia o deixou desanimado. Será que era mesmo um palhaço tão sem graça?

A venda de narcóticos se tornou intensa. Não só alunos como pessoas vindas de fora compravam a droga e faziam uso ali mesmo. Ao final das aulas os alunos invariavelmente saíam frenéticos, transtornados. Petrúcio resistiu em acreditar ao ouvir os relatos de Jorginho. Ficou

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estático por alguns minutos. Foi constatar com seus próprios olhos. A ameaça veio em seguida, antes que eles pudessem tomar providências drásticas. Decidiram procurar Jaguar. Foram informados que ele estava viajando a negócio. Recorreram a outras pessoas, porém as mesmas respostas receberam.

Petrúcio enxergava uma avalanche despencando sobre si. Mas como podia provar que não estava sendo conivente? Pensou em contar à polícia que estava sendo forçado a aceitar o narcotráfico. O delegado poderia achar que ele estava blefando: por que só agora tinha vindo denunciar? Por fim, após a morte de Camila a população é que estava a ameaçá-lo.

Petrúcio pediu garantias à justiça. Ouviu do delegado que se não tentasse se evadir nada lhe aconteceria. Líderes, conselheiros, políticos e empresários que demonstraram interesse em combater a delinquência agora se escondiam sob a carapaça da covardia. Todos aqueles que se diziam preocupados com a manutenção da ordem naquele momento sumiram, deixando-o como isca. O vereador Leandro Roquette só aparecia quando havia alguma festividade para exibir seus supostos

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préstimos. Jaguar desferia patadas quando os negócios não davam certo. A diretora andava desmotivada, sobretudo por não alcançar a meta desejada em relação aos níveis de ensino que, com efeito, culminariam em deixar de perceber as promoções tão almejadas. Alguns líderes encontravam-se insatisfeitos. Augusto, que fora um dos conselheiros mais fervorosos, entregara-se à embriaguez, omitindo a causa que tanto o fascinou. O desvelo dos líderes fora, inicialmente, incondicional. O dono do circo estava ciente que alguns queriam apenas tirar proveito, usando pessoas desavisadas como laranjas. Ele mesmo estava convicto de que tinha sido usado. O que certos sujeitos queriam era ver o circo pegar fogo. A escola Nicolau Maquiavel, a grande esperança de promoção da cidadania naquele bairro distante, agora não passava de um instrumento sórdido, capaz de provocar a degradação da sociedade. Os episódios se contrapunham para constituir um infeliz paradoxo.

O projeto pedagógico de Natália não reconhecia a calamidade social da comunidade, suas carências econômicas, as origens étnicas e outros

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aspectos sutis, porém de suma relevância. O texto dos relatórios era consistente. A elaboração estava de acordo com as fórmulas oficiais internacionais. As dissertações com conteúdos magistrais retratavam com perseverança os termos mais refinados. Um dos seus projetos foi apreciado por uma banca de mestrado e premiado com uma publicação, cuja repercussão lhe causou lisonjeio. Entretanto, o elemento humano dos arredores da Nicolau Maquiavel, cujas peças constituíam o xadrez social era desconhecido ou omitido. A didática aplicada com esmero não continha a solidez do tratamento que Augusto viu em sua terra natal, cuja rusticidade ele abominava. A Nicolau Maquiavel, com sua arquitetura soberba, consideravelmente equipada, amplas salas, pátios extensos e bem ajardinados estavam servindo para abrigar a numerosa população de viciados, vendedores e traficantes. Esses fatos abomináveis fugiam aos olhos e às providências de educadores renomados.

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CAPÍTULO SETE

O velório era aguardado por centenas de pessoas. O caixão seria exposto numa mesa no centro da sala. Quatro coroas de flores adornavam, funestamente, as paredes. A primeira tinha sido mandada pelo vereador Leandro Roquette. As outras foram

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oferecidas por comerciantes e políticos. Algumas mulheres preparavam lanches para as pessoas. Entre queixumes e choramingos lastimavam o destino fatídico da moça. Os jovens do bairro estavam submersos na nebulosidade dos narcóticos. Eles se desintegrariam na cegueira até caírem nas profundezas abissais. Foram várias as tentativas para resgatar Camila. Os pais e os amigos tentaram içá-la do buraco da perdição. Fora uma garota admirável. Os olhos cor de esmeralda, vivazes eram atentos a tudo. O rosto matreiro e a fala convincente cativavam as pessoas e todos duvidavam que ela um dia pudesse se meter com maus elementos. Petrúcio e Jorginho chegaram a adverti-la dos perigos que corria. Ela respondia que era uma curtição e que a droga não lhe custava nada. “Pode não custar neste momento, mas depois o preço será muito alto”. Represada pelo entorpecimento dos narcóticos ela não dava ouvidos. O bloqueio à reflexão e à faculdade de argumentação tinha sido processado pelo uso continuo da droga. O que interessava era somente flutuar, viajar para um mundo fantástico. Não demorou muito para se tornar dependente. Começou a se prostituir

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com os traficantes como meio de garantir o fornecimento da droga que a mantinha “acesa”. Em pouco tempo a pequena quantidade já não era mais suficiente. O sexo oferecido pela garota não satisfazia a fome insana dos traficantes. Aí foi que ela virou mula. Sua vida deu uma viravolta. Quando não estava dormindo na nóia, estava correndo para entregar o produto, fugindo de um traficante que tentava invadir a área ou de uma viatura da polícia que porventura circulava por ali. O chefe da boca exigia agilidade e rapidez. Ela tinha contraído uma dívida que jamais seria paga. O vício virou uma bola de neve. Cada vez que tentava se satisfazer com uma determinada quantidade seu organismo exigia mais. Iniciou-se fumando um baseado a cada semana. Passou a fumar todos os dias. Em pouco tempo era cinco por dia. Quando menos se deu conta a maconha já não lhe bastava. Foi aí que Robson lhe apresentou o pó branco que cintila os olhos e inebria a mente. Num piscar de olhos ela já estava consumindo tudo: cocaína, craque, haxixe, ecstasy, heroína. Fumava, cheirava, injetava, bebia, comia, esfregava, introduzia na genitália. Foi num dia de intensa

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paranoia que Robson a deflorou. A diretora e os professores estavam em reunião na diretoria regional. Usaram a sala dos professores para o coito. Inalaram uma enorme quantidade de pó. Despidos das vestes e da realidade se abraçaram. Horrorizada com a cena a secretária não conseguiu arredar pé. Camila estava a esfregar-se nas nádegas de Robson. A cópula era uma fisiologia não habitual, porém tornou-se uma aberração conduzida pela substância alucinógena. Restos de maconha e de cocaína espalhados pelo salão, corpos desnudos umectados pela transpiração sudorípara, saliva, urina e sêmen. Tentou fugir do repugnante cenário, mas o professor agarrou-a pela cintura e com o auxílio de Camila obrigou-a inalar cocaína. Em meio aos protestos os efeitos da droga foram alcançando seu cérebro. Camila tirou sua roupa. Robson tateou suas nádegas e esfregou o dedo anular sobre o orifício anal, apalpando as zonas erógenas com a boca. A garota emitiu espasmos e entregou-se à orgia. A sensibilidade a conduziu a movimentos irrefreáveis, sendo arrebatada por um êxtase colossal. Ensandecido o trio protagonizou um bacanal regado a entorpecentes e depravações. Os atos

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libidinosos e o consumo de alucinógenos prolongaram-se pela tarde. A escola tinha sido transformada num palco de atos nefandos. Com muito esforço Carolina conseguiu se por de pé. Tinha sido atirada na perversão. Ainda chocada e abatida foi ela quem socorreu os outros, impedindo-os de cair numa overdose e de serem flagrados pela diretora. Atordoado, o casal se vestiu. A diretora adentrou na escola e por pouco não assiste ao repugnante teatro. Os cabelos amarfanhados, os semblantes lívidos de Camila e Robson e o olhar assustado de Carolina guardavam as marcas do incidente. Natália interrogou Carolina. A secretária disse não ter percebido nada estranho. Era muito perigoso denunciar aqueles loucos, seria como confessar sua participação. Enfim, ela lembraria os fatos com um misto de satisfação e constrangimento. Já tinha observado várias cenas indecorosas na escola. A admiração que tinha por Robson era mais um motivo que a mantinha de boca fechada. Em outra ocasião tinha dado uma cheiradinha e uns beijos nele. Natália sabia que as dependências da Nicolau Maquiavel tinham se tornado ponto de venda e

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compra de narcóticos. Camila tinha entrada franqueada no estabelecimento. Ganhara a confiança da diretora por ajudar nos serviços da secretaria e por ser filha de um homem por quem Natália tinha muito apreço. Com a liberdade que gozava não teve dificuldade em distribuir os narcóticos pelo colégio. Robson era responsável pela armação das estratégias. Encarregava-se em facilitar a entrada dos narcóticos e das pessoas interessadas em comprá-los. Carolina andava sobressaltada, a diretora percebera isso. Ela tinha ouvido uma conversa muito dura entre Jaguar e Robson. Jaguar disse que havia entregado cem quilos de pó no mês anterior e que o professor até aquele momento não lhe tinha devolvido o valor correspondente em moeda. _Dinheiro, meu amigo. Cacau, reais é o que eu quero. Não me interessa desculpas, blablablá. Quero é a transformação do produto em notas. Em maços de notas de cinquenta e de cem reais. Foi para isso que te entreguei os pacotes da branquinha. Tu me garantiste que este local era um bom mercado, que iria fazer dessa molecada toda consumidores de farinha, não foi?

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_Foi, chefe. Mas não é de um dia pra outro que se consegue dominar uma escola desse tamanho. _Pois da teus pulos que eu preciso do dinheiro. Bota esses malditos para cheirar, injetar ou comer cocaína. Vai ensinando essa molecada a engolir e a vender pó. Esses infelizes precisam consumir mais pó. Eu quero ver todo o mundo consumindo pó. Quero ver todos se aglomerando num montão de pó, feito ratos numa montanha de lixo, comendo esfaimados, gerando renda em meu bolso. O “índio” tá na minha cola. Ele quer retornar à Bolívia, mas só vai com o dinheiro completo. Eu não posso falhar com ele, é meu fornecedor. É um cara ponta firme. E nessas coisas tu já sabes: escreveu num leu, o pau comeu. E come mesmo.

_Sei como é. _Pois é. Lembra-se do Focinho de

Porco, do Jegue, do Olho de Vidro? Eles foram visitar São Pedro porque vacilaram. E do outro professor, teu colega? Disseram que ele foi transferido. Foi transferido pros sete palmos. Esses aí todos foram pro saco porque não cumpriram com o regulamento do tráfico. Tu sabes como é a lei do tráfico. Sabe, né?

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_Sei, chefe. _Sabe, mas não está dançando

conforme a música. E no circo do imbecil daquele gaúcho, como está por lá?

_Os compradores andam meio fugidios. Eu dei uma maneirada lá porque percebi que ele anda desconfiado.

_Que houve? _O Bolinha me pegou cheirando... _Ora, cara. Despacha aquele

palhacinho sem graça pro inferno... Não, não. Manda uma ameaça braba pra eles. Mas olha lá: não vai derrubar os caras não. Nós precisamos daquele circo. Ali é uma fonte de renda maravilhosa. Se precisar a gente da um banho em um ou nos dois. Ó, tu num tem um cabra bom pra dar uma dura nele não? Ah, eu já sei quem vai dar o recado. Aquele gaúcho metido a ucraniano vai ficar pianinho. E tu _ Bradou colocando o dedo indicador entre os olhos do professor _ Vai tratar de vender essa porra dentro de dois tempos. Quero a grana em minha mão até semana que vem. Certo? Não vai querer comer capim pela raiz, vai? Vai querer ser transferido para o inferno como o outro professor?!

Robson apenas ficou a ouvir cabisbaixo o homem a quem chamava

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chefe, enquanto ele se retirava carrancudo. Desolado e com rosto lívido o professor se deixou cair numa cadeira.

Carolina passou a acompanhar com mais atenção os movimentos do professor e constatou que havia uma relação muito estreita entre Robson, Camila e Jaguar. Os três eram comparsas. Entre eles compunha-se uma hierarquia descendente: Jaguar, Robson, Camila. Enquanto Robson recebia ordens rigorosas de Jaguar, pressionava Camila para ser mais ágil na entrega do produto. Camila era também responsável por vigiar os demais vendedores. A secretária achou estranho um professor sendo submetido às ordens de Jaguar como um soldado a um general. Pelo menos uma dezena de professores acatavam os comandos de Robson.

Ela iria guardar silêncio. Decidiu, porém, não fazer do pânico uma auto-repressão. Tinha que desabafar com alguém. Natália pareceu não dar crédito aos relatos. Ficou paralisada. Colocou os cotovelos sobre a mesa e segurou o rosto, num gesto de desespero.

_E agora, o que vou fazer, meu Deus! _ Lamentou. Os homens que sempre me auxiliaram e que esperei ser

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a salvação são os lobos. Só me resta recorrer à polícia. Vou agora mesmo falar com o delegado.

Embora tenha resistido por muito tempo em não admitir que um pelotão permanecesse cercando a escola Natália estava decidida a pedir apoio.

Mal ela deixou a escola o telefone tocou. Carolina ouviu uma voz ríspida. Tentou obter a identidade do interlocutor. Queria falar com a diretora, bradou terminantemente a voz. Carolina ficou desesperada. Ligou para o celular dela. Deu caixa postal. O ameaçador continuava gritando. “Se for feita alguma denúncia a coisa vai piorar”. Quase meia hora depois Carolina conseguiu estabelecer contato.

_Retorne rápido para cá, pelo amor de Deus!

Muito assustada a diretora atendeu ao celular.

_Eu já estou na delegacia, minha filha. Estou aguardando para falar com o delegado.

A denúncia seria registrada dentro de alguns minutos. Se os traficantes cumprissem com as ameaças o mundo iria acabar para todos da escola. Eles estavam dispostos a exterminar quem os desafiassem.

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_Por favor, volte para cá antes que seja tarde!...

A moça não conseguiu terminar de falar. Um estupendo estrondo sacudiu tudo. O mundo estava se esfacelando. O celular escapou das mãos, cadeiras e mesas foram esparramadas para os lados. Objetos caíram sobre ela. Sofreu um breve desmaio. Natália notou que algo estranho tinha acontecido. Deu pra ouvir a gritaria. Tomou a direção do carro de volta à escola.

Centenas de pessoas se aglomeravam do lado de fora da Nicolau Maquiavel. Foi difícil entrar no prédio. O desespero tomava conta dos funcionários. Carolina estava aos prantos e tentava se manter de pé. Policiais civis e do corpo de bombeiros passaram a vasculhar o local em busca de outros artefatos. Através dos estilhaços recolhidos especialistas concluíram que a explosão tinha sido provocada por uma bomba de fabricação tosca. Foram presos alguns suspeitos para averiguação. Vizinhos e funcionários foram interrogados. Ninguém soube fornecer qualquer informação. O delegado permaneceu no local a fim de ter uma conversa mais formal com a diretora.

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_Eu soube que senhora esteve há pouco em minha delegacia.

_Sim. Fui até lá. _A senhora pretendia fazer

alguma denuncia? Nisso, bateram na porta. Carolina

encostou o rosto no vão da porta entreaberta.

_Dona Natália, o senhor Jaguar quer falar com a senhora.

_Diga-o que neste momento não posso. Estou conversando com o doutor delegado.

_Ah, é o Jaguar? O senhor Marcos Freitas pode participar de nossa conversa. É um cidadão de bem e pode trazer contribuição para o caso. A senhora não acha? _ Acorreu o delegado.

_A... acho. Acho, sim. Acho _ Atarantada a diretora não conseguiu ocultar o descontentamento. O delegado, porém, não se deu conta ou fingiu não notar a perplexidade. Sem dar tempo para quaisquer circunlóquios a figura alta e espadaúda de Jaguar despontou na soleira da porta. Antes de ser convidado invadiu a sala, puxou uma cadeira e se colocou entre os dois, descaradamente. Foi abrindo a costumeira falação:

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_O clima aqui se encontra muito tenso, hem!

_Com a bandidagem que nos ronda há tanto tempo não podia acontecer outra coisa, não é mesmo seu Marcos, quer dizer, seu Jaguar?

_Sei, dona Natália. Entendo a revolta da senhora, que a de todos nós. A senhora sabe, mais do que ninguém, o quanto tenho me emendado para ajudar a coibir a malandragem. A senhora tem recebido contribuições frequentes de minha pessoa, materiais, morais et cetera. Também é testemunha de que eu forneço assistência financeira à população pobre deste bairro. Só neste mês eu doei duzentas cestas básicas para famílias carentes. Sou um líder que atuo junto à classe desfavorecida. Estou do lado do povo pobre até porque sou pobre como todos daqui. Graças a Deus tive um pouco mais de oportunidade e muita coragem para trabalhar. O que eu não tenho peço para amigos empresários: alimento, remédio, assistência médica e outras coisas mais. Tenho marcado presença nas reuniões para estimular nos bons rendimentos dos alunos desta instituição.

_Não tenho a menor dúvida de que se tivessem mais homens como o

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senhor este bairro não se encontraria nesta situação. O que o senhor tem proporcionado de útil para esta escola é de um valor incomparável.

_Aproveito o momento para reiterar o meu apoio. Quero ajudar em tudo que for necessário. Quero continuar contribuindo com a escola, com a polícia e com o povo. O doutor delegado me conhece de longos tempos e sabe que sou honesto. Não meço esforços quando se trata de lutar pelo bem social. Vivo aqui desde moleque, convivo com as dificuldades do meu povo e sou totalmente solidário. Não é porque me tornei um empresário de sucesso que vou me afastar da comunidade. Como diretora desta escola dona Natália tem tido dificuldades devido à falta de recursos. Mas o problema maior é a invasão de alguns maus elementos que tentam atrapalhar o bom andamento do ensino. Quero parabenizar esta mulher de fibra, esta heroína. Nenhuma outra educadora fez o que a senhora está fazendo aqui. A senhora tem corrido os quatro ventos em busca de auxílio. Muita gente veio ajudar. Pessoas boas se juntaram à senhora. Mas algumas pessoas que se dizem gente boa não passam de raposa em pele de carneiro.

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É claro que a senhora não tem culpa de ter dado crédito. Tenha muito cuidado com quem está lidando. Alguns estão é conspirando contra a senhora. Venho notando isso há algum tempo. Tem alguém querendo empurrá-la pro abismo. E são pessoas em quem a senhora mais confia.

Natália passou a mão pela testa e arregalou os olhos. Nem precisou perguntar.

_Bom. Eu não vou entregar ninguém. Nunca fui dedo duro. Na hora certa a senhora vai saber. Natália ficou encabulada. Quem poderia estar concorrendo com ela. De qualquer forma a situação não era nada um agradável. Acabara de receber uma ameaça de morte e em seguida uma bomba explode em sua escola. A visita sarcástica de Jaguar lhe deixou ainda mais angustiada, com o coração a sair pela boca. A partir daquele momento ela não teve mais dúvidas de que era ele mesmo o comandante do narcotráfico e responsável por toda a desgraça ocorrida no bairro. Estava nas mãos dele. Em alguns momentos ela tinha que concordar com as dissimulações apenas para não despertar mais sua ira. Enxergava nele o arquiteto do atentado

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social que, sem nitroglicerina e urânio, transformava os jovens em submissos homens-bombas. Ele tinha se autopromovido em senhor da vida e da morte, comandando os destinos fatídicos da comunidade. Os adolescentes faziam uso dos entorpecentes para fugir da alienação que os envolvia ou para alcançar um mundo fantasioso onde a transitória satisfação substituía a angústia oriunda do descaso institucional.

O chefe de polícia continuou a conversa sem se preocupar com a alteração do semblante da diretora.

_Então, dona Natália, agora a senhora pode dizer qual a queixa que tinha para me fazer.

A diretora olhou Jaguar de soslaio. Fixou os olhos no delegado.

_Doutor, como o senhor mesmo foi testemunha, talvez nem seja necessário que eu faça a queixa. Acaba de acontecer um atentado anunciado. A escola tem sido alvo de delinquentes como bem disse Jaguar. Estão depredando a escola de uma forma muito brutal. Eu tinha ido apenas

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solicitar mais urgência na detenção dos marginais.

_Bom. Uma ação preventiva seria função específica das guarnições da polícia ostensiva. Mas eu sou muito amigo do comandante da polícia militar, bem como do secretário de segurança e o que puder fazer para colaborar, farei. Pode ter certeza. Eu vou entrar em contato com as outras autoridades e vamos em pouco tempo mudar essa situação. A senhora vai ter a segurança pessoal garantida e a escola não será mais alvo de ataques. Eu acredito que essa bombinha que jogaram aí é coisa de moleques que não têm o que fazer. _Eu também acredito, doutor. Aliás, não só acredito como tenho certeza. Mas se eu pegar um moleque desse ele vai sofrer em minhas mãos _ Interveio descaradamente Jaguar. _Eu tenho que me retirar, mas alguns dos meus homens vão ficar para concluir a investigação e reforçar a segurança da escola. Muitas viaturas estão rondando pelas adjacências, de modo que a senhora pode ficar tranquila, os delinquentes vão ficar longe daqui. A essa altura já tem negrinho se arrepiando todo com medo de ser preso. A população está atenta e vai denunciar

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quem ainda tenha coragem de cometer qualquer ato lesivo. O Jaguar está aqui em nossa frente e pode nos garantir isso. A senhora o conhece melhor do que eu, conforme atestou agora há pouquinho. Entretanto, não há motivos para desespero. Desejo um bom dia a vocês. Estou à disposição. Até logo. Natália sentiu um arrepio depois que ficou sozinha com um sujeito extremamente astuto e periculoso, dissimulado e cheio de artimanhas. Ele tinha conseguido ludibriar até as autoridades. Ela previu que naquele momento ele iria fazer mais uma ameaça, talvez a mais contundente de todas.

_Dona Natália, – Foi falando ao se por de pé - nós sempre fomos aliados. Não é agora que vamos quebrar as alianças. A parceria que fizemos foi eficaz, deu resultados. Então, agora não podemos desfazê-la. Somos sócios. Estamos no mesmo barco que em alguns momentos bambeia para afundar, em outros flui em águas mansas. Estamos envolvidos na mesma política. De agora em diante tudo que a senhora fizer deve me comunicar. Eu posso ser mais útil do que a senhora imagina. Posso até salvar a vida da senhora, entendeu? Eu disse

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para tomar cuidado com algumas pessoas. Reafirmo: eu tenho um ouvido muito sensível e ouvi pessoas de sua confiança ameaçando jogar uma bomba nesta escola.

A mulher ficou a matutar. Pôs o dedo indicador sobre os lábios, interrogando sua própria memória.

_Sabe quem falou isso? Um dos conselheiros de educação. É uma pessoa em quem a senhora põe inteira confiança.

_O Pedro de Almeida? _Não, não. Outro. O mui amigo

da senhora, sabe? _Não tenho a mínima ideia... Ah,

meu Deus! _ Seu amigão: Augusto

Sacramento. _Foi ele quem detonou a bomba?!

_Não. Não estou afirmando. Estou dizendo que o ouvi dizer que um dia veria a Nicolau Maquiavel ir pros ares.

_O Augusto?! _Sim, senhora. Ele anda ébrio.

Anda bebendo umas cachaças loucas. E a senhora sabe que bêbado não pede segredo. Quando tem uma intenção abre o bico sem titubear. E quando pretende fazer não mede empecilho.

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_Mas isso pode ser apenas uma força de expressão, maluquice de bebedores.

_A senhora sabe que é desse tipo de expressão que nascem as intenções. A filha dele está perdida. Ele disse que a escola tem culpa por ela ter aprendido a fumar, a cheirar, enfim. Olha só que acusação infame. Aí falou que ia se vingar. Disse que queria ver a Nicolau Maquiavel transformada em escombros. É esse o sujeito que se diz amigo da senhora. Como é que uma pessoa pode achar que uma escola tem culpa na desgraça que acontece com uma filha? Dessa forma ele está atingindo não só a senhora, mas toda a instituição, todas as pessoas da vila. Afinal de contas, seu Augusto é um cara perigoso. É um nordestino brabo que, além de não ter educado os filhos, já deve ter aprontado mil e uma bagunças lá pelo sertão. A senhora duvida?

Natália ficou cabisbaixa. Sabia que toda aquela falação era uma tentativa leviana de desviar a verdade dos fatos. Ficou a refletir aturdida. Será que em algum momento ele não tinha alguma razão? Até que ponto ela podia confiar em Augusto. Ele tinha motivos para detestar a escola ou os caminhos para

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os quais ela estava conduzindo seus discípulos. Nos últimos meses ela havia percebido que Augusto estava bebendo muito. Ele fizera muitas reclamações contundentes da escola.

A diretora estava se sentido como uma casca de nozes em alto mar. Seria impossível continuar ali cercada de inimigos. Naquelas condições não dava para confiar em mais ninguém. Os aliados haviam virado oponentes. Decidiu que pediria transferência. Comunicou aos funcionários que dentro de uma semana se desligaria daquela unidade educacional. Quando se preparava para encerrar o expediente o celular tocou. Ficou a ouvir o tom áspero da voz masculina: “Preste bem atenção, diretora: a senhora está proibida de se transferir desta escola. Esqueça! Pode cancelar seu pedido. Vai ficar aí, e de bico calado, se não quiser que o bico ou o pescoço seja cortado! Diga a secretária que ela também não pode deixar esta escola, certo? Aliás, prefiro que nenhum funcionário seja transferido. Se alguém for transferido é para o outro mundo. E acho que a senhora não quer mudar para o céu ou para o inferno, não é?”. Natália ainda tentou argumentar, mas a ligação foi interrompida

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bruscamente. O céu tinha sumido do seu alcance e o inferno estava arquitetado. A derrota tinha se consumado. Ela estava perdida, a escola estava em ruínas, a educação estava fracassada. Tinha errado em aceitar dirigir aquela escola ou seus projetos pedagógicos estavam falhos? Não podia se alongar em reflexões. Pensou em voltar à delegacia para pedir garantia de vida. Ficou a pensar sobre a forma como Jaguar tinha dito que ela corria risco de vida. Enquanto ainda ponderava sobre as situações o telefone tocou. Carolina correu para atender.

_Se for para mim diga que não estou.

Toda vez que o telefone tocava havia a expectativa da explosão de uma nova bomba, deteriorando todo o prédio da escola, triturando os frangalhos de sua alma e dando um ultimato ao sistema educativo. Trêmula a secretária quedou-se por alguns segundos com o fone na mão tremelicante. As duas mulheres trocaram olhares aterradores. Natália entendia o que a secretária queria dizer, mas insistia em não ouvir.

_... Ele sabe que a senhora está aqui. Disse que a senhora tem que atender pelo bem de sua vida.

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Pálida a diretora tomou o fone. Ouviu mais ameaças e exigências. Ordenou que ela fizesse uma arrecadação em dinheiro junto aos alunos, a seus pais e à comunidade. Estipulou um montante elevado. Em dois dias o dinheiro devia ser entregue a Robson. Natália empalideceu. Começou a desmaiar e foi amparada por Carolina. Suas têmporas latejavam e o suor escorria pelo rosto. Quando imaginava que o terror estava cessando, uma nova onda de atentados era deflagrada. Seu coração parecia querer explodir. Decidiu ir ao médico. Um funcionário entrou assustado e avisou que os quatro pneus do carro dela tinham sido furados.

Natália mandou chamar o professor Robson. Queria saber por que a voz no telefone ordenara que o dinheiro arrecadado fosse entregue a ele.

_Não sei, dona Natália. Eu juro que não sei por que citaram meu nome. Não tenho nada com isso. Eu mesmo estou correndo risco de vida. Estou sendo jurado de morte. Anteontem eu levei uma fechada na Avenida Ibirapuera. Ainda caído, todo ralado, dois caras saíram do carro e em vez de me socorrer disseram que da próxima vez

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passariam por cima de mim. E aí arrancaram em disparada pela avenida.

Natália se manteve calada. Já não conseguia entender nada. Talvez fosse o professor também uma vítima daquela maldita situação. De modo geral, os professores da Nicolau Maquiavel se sentiam impotentes para promover a educação. Natália estava sendo complacente com Robson. Afinal, com o decorrer do tempo, apesar da severidade ela foi sendo seduzida pela beleza e pela lábia. Numa tardezinha, quando todos os professores tinham encerrado as atividades, Robson permaneceu na escola para atualizar alguns relatórios. De um safanão o moço arrancou-lhe as vestes. Ela tentou beijá-lo na boca, ele se esquivou. Não queria fazer amor, queria apenas transar para se vingar, para mantê-la sob seus domínios. Era uma forma de impedir que ela o denunciasse. Descarregar os despojos viscosos que lhe remexia os escrotos era uma forma de algemá-la pelas forças e pelas ideias. Ela tentou acariciá-lo, beijar seu tórax. Ele só permitiu toques dácteis e carícias bucais nas genitálias. Os funcionários retornaram para assistir o espetáculo. O escárnio ecoou das janelas feito uma

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plateia no circo. O corpo alvo e robusto da diretora, e os seios grandes batendo nas coxas de Robson enquanto ela umedecia labialmente o apêndice peniano. A diretora tinha sido dominada pelos impulsos sensuais, ensegueirada pelas gotas salobras da droga concupiscente. Robson conseguia mais uma vitória que seria dedicada a Jaguar. O esforço dos líderes tinha sido inútil. A comunidade estava num emaranhado, cujos tentáculos a transformava num ambiente cada vez mais irracional. Os mais idosos, quase todos oriundas de regiões rurais, tiveram uma educação mais rigorosa, mesmo que informal. No entanto, seus filhos e netos estavam sob a predominância da modernidade, de um mundo globalizado em que os padrões de outrora estavam sendo considerados antiquados e inservíveis. Como consequência a cultura tradicional seria suprimida em detrimento de outras oriundas de além-continente. Para os jovens, porém, seria necessário que se estabelecessem regras de acordo com suas condutas, seus novos padrões de vida, os paradigmas que a própria globalização era responsável por instalar. Porém,

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nenhuma inovação disciplinadora tinha sido estabelecida. Nenhum profissional se ocupou em proceder a concatenação dos processos que pudessem conduzir os jovens ao entendimento do velho e do novo, que tornasse óbvia a relação que havia entre esses momentos do universo humano, introduzindo fórmulas de readaptação. Enfim, a educação deixava de ser singular e homogênea para se legitimar como um fenômeno de várias facetas. Era um processo sem o qual os homens deixavam de existir como animais racionais. Eis por que Augusto se declarava morto, inexistente, ele e sua linhagem. Por essa razão, uma vez que tinha sido massacrado pelos usineiros donos do poder, só restava a represália. Não desejava que a educação se estabelecesse sobre os homens para igualá-los, mas para tornar as diferenças entre eles menos extremadas. Mas, já que isso não ocorria, só lhe restava vingar os antepassados de toda a humanidade. Mas como se vingar se as escolas ditas modernas e os gestores da nova educação davam continuidade ao assassinato social?

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CAPÍTULO OITO

O rabecão estava estacionado ao lado do circo. Após as averiguações no local o corpo de Camila seria levado ao Instituto Médico Legal. Durante todo o dia centenas de pessoas ficaram apinhadas nas adjacências do circo à espera que o corpo fosse exumado. Em todos os semblantes lia-se uma acentuada marca de desgosto. Já não bastava o sofrimento dos parentes? Já não era suficiente o pânico, a insegurança e a desassistência por que passava aquele povo? O sol declinava para o ocaso. Uma viatura toda escura, escoltada por patrulhas, estacionou na frente do circo. Do banco do passageiro saiu um homem de terno. Tinha a barba espessa e usava óculos de lentes escuras. Cumprimentou os colegas e se aproximou da cova rasa. Fez uma rápida inspeção e conversou demoradamente. Depois de verificarem atentamente e tirarem algumas fotografias os auxiliares iniciaram a exumação. O povo avançou. A sena era

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macabra, mas todos queriam ver, mesmo chorando e vomitando. Os policiais se esforçaram para afastá-los. O assassino foi calculista e frio ao matar, cavar um buraco e enterrar a pobre moça. Ninguém tinha mais dúvida que o autor era Petrúcio. Ele se encontrava recolhido no circo com a esposa e os funcionários ao lado do tumultuado teatro do crime. Estavam todos aprisionados dentro do circo. Sem poder deixar suas dependências eles ouviram, durante todo o dia, imprecações e ameaças. As pessoas revoltadas estavam dispostas a atacá-los, mas foram impedidas pela polícia. Sendo comprovada a culpa Petrúcio seria julgado pela justiça e não à mercê da fúria. O ânimo foi estorvado pela decepção e pela angústia. Mesmo retraídos eles se esforçavam em convencer que não estavam envolvidos no crime. Alice e Bolinha suspeitavam secretamente de Petrúcio. Ele havia manifestado a intenção de dar fim no professor e na garota. A polícia não tinha encontrado um implicado tão perfeito, por isso não conseguiu descartá-lo como principal suspeito. E ele não tinha nenhum álibi convincente para rebater a suspeita. Todas as circunstâncias se

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ajustavam para condená-lo. Agora era esperar o momento do desfecho devastador. Os policiais de plantão tiveram que pedir reforço para reprimir os protestos. Um grupo tentou jogar gasolina e atear fogo no circo. Queriam ver o circo pegar fogo e seus donos arderem como bruxas medievais. O delegado geral deu uma volta pelos fundos do circo e detectou a precariedade das jaulas. Ficou impressionado com a maneira como eram cuidados os bichos. Confabulou com alguns colegas. Além da opressão do confinamento os animais acarretavam perigo. As pessoas que residiam nas imediações estavam expostas ao risco de serem devoradas se os animais se soltassem. O feroz jaguar acomodava-se numa jaula carcomida, cujas ligas metálicas se desintegravam ao mais leve toque. Foram falar com o dono do circo. Alguns dos representantes do bairro os acompanharam. _Estamos passando por uma situação difícil _ Alegou Petrúcio. _ Os espetáculos não andam rendendo e estamos tendo muitas dificuldades financeiras.

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_O que o senhor pretende fazer para salvar estes bichinhos? _E agora que ele vai mofar na cadeia, não é doutor? Rarará! É mesmo engraçado. Ele que deixa os pobres animais passando fome atrás das grades, agora vai sentir o que eles sentiram por muitos anos. Vai também pagar a malvadeza que fez com Camila. Um dos delegados fez um sinal brusco com a mão para que Jaguar se calasse. Como autoridade séria ele não admitia intromissão de desconhecidos. Dirigiu-se ao titular do distrito local: _Quem é este cidadão e por que está metendo o bedelho onde não deve? _Ele é o Jaguar, o Marcos Freitas. É um líder do bairro. Ele tem colaborado incansavelmente com a manutenção da ordem nesta comunidade. É uma das pessoas que mais lutou para combater a onda de crimes. O policial ouviu a explanação paulatina com muita atenção. Após examinar Jaguar com os olhos dirigiu-se ao dono do circo: _Vou pedir às autoridades competentes que providenciem a doação dos animais menores. A onça pintada eu acho que deve ser levada a um parque zoológico de maior dimensão. Este

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animal não pode ficar exposto como está. É um sério risco para ele, para as pessoas do bairro e para o senhor. Aliás, se não tem uma autorização do Ibama, vai ser enquadrado em mais um crime. Um inquérito vai ser instaurado e só aí vai se saber o procedimento da justiça, certo? O senhor será informado do andamento. E procure imediatamente um advogado para defendê-lo. De preferência dos bons. Embora desconfiado da intromissão de Jaguar, o delegado seccional requisitou o depoimento dele. _A empanada do circo é um acobertamento de crimes, doutor delegado. Esse empresário circense, como ele se diz, é na verdade um palhaço, e dos mais insossos. Enquanto ele diz que seu objetivo é levar diversão às pessoas a molecada fica fumando maconha e cheirando cocaína lá dentro. O delegado ficou abismado. Fez mais alguns questionamentos e Jaguar relatou uma história com detalhes. Disse que o palhaço Bolinha era colaborador de Petrúcio e que não tinha dúvidas da participação dele. Eles tinham se aproximado da escola para introduzir os narcóticos nela.

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O titular da polícia levaria em conta todos os relatos e iria constatar a veracidade. Petrúcio se sentia encolhendo para dentro de si mesmo. Não conseguia articular sequer uma frase em sua defesa. E ainda tinha que ouvir ameaças irônicas de um bandido como Jaguar. O canalha que orquestrava uma série de malfeitorias ainda tinha a audácia de pousar de bom moço ao lado das autoridades. Por sua causa a comunidade estava mergulhada no marasmo. Mas como é que ia provar tudo isso se sequer conseguia se safar do crime do qual o acusavam? Para complicar ainda mais ele percebia que o delegado do distrito local estava do lado de Jaguar. Via naquilo uma conjunção estranha. Marcos Freitas frequentava os meios sociais mais refinados, por isso as autoridades governamentais e policiais não viam motivos para levantarem suspeitas quanto ao seu comportamento. Havia um incontestável abatimento estampado no semblante de cada habitante. O bairro estava no centro de um furacão. Estava na iminência de ser destruído pelos sopapos

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fulminadores. Todos desejavam combater a fera que teimava em comê-los vivos, mas encontravam-se impotentes. A comunidade carente e humilde não pretendia criar outro mundo, com hostilidade, onde reina a barbárie e onde ninguém se reconhece como criatura civilizada, nem desejava se perpetuar numa sociedade estúpida. Sua gente não pretendia continuar a serem reconhecidos como alienígenas, acéfalos sem qualquer capacidade para progredir. Queriam apenas o que lhes cabia por direito natural: não morrer para o mundo moderno; não ser sepultadas em vida ao deixar de usufruir dos atributos a que todos os humanos, sem exceção, tem que usufruir. A área que serviu por muito tempo como lata de lixo para resíduos industriais perigosos não despertava o interesse dos administradores públicos. Ninguém se mobilizou para impedir a ocupação. A povoação erguida da noite para o dia causou surpresa. Políticos oportunistas se aproveitaram da ocasião para mostrar os supostos dons caritativos doando materiais de construção, piçarrando ruas, facilitando a instalação de luz elétrica e água. Em pouco tempo a população atingia a

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marca das dez mil pessoas. Para os vinte mil, trinta mil foi um pulo e quando menos se esperou a gleba estava toda ocupada, abrigando quarenta mil criaturas. Já não havia mais como negar a necessidade de uma organização sólida na estrutura social. O formigueiro humano formava um imenso amontoado. A área pouco extensa não comportava tantos corpos adequadamente. O impacto não demorou a se manifestar. Era o gado no corredor do matadouro. O acúmulo tornou-se um desarranjo incontrolável. Com pitadas que mais assemelhava a rações para animais néscios, o mínimo do básico era distribuído pelos governantes. Aí eles se ausentavam para só retornar nas vésperas dos pleitos. Extrapolaram nos discursos, proclamando os gastos “exorbibitantes” com as “gentes inúteis”. Nessas ocasiões intermitentes, em meio às eloquências, os favelados eram agraciados com as mais primorosas promessas. O povo continuou a se comprimir entre casas rústicas, vielas enlamaçadas, pirambeiras escorregadias e córregos fétidos. A Augusto fazia lembrar as roldanas dentadas das moendas que trucidavam a cana,

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canalizava a garapa, espremendo o suor e o sangue dos mestiços. Os usineiros sugavam, ávidos, suas últimas resistências. A cada dia novos moradores desembarcavam no novo povoado. Pais de família que buscavam algumas centenas de palmos de terra para colocar nele uma cobertura e abrigar a família. Outros queriam apenas dar continuidade ao crescimento da cidade, embora cientes que o progresso seria muito lento. Indivíduos de má índole, acostumados com a usurpação, aproveitaram para se refugiarem no local de difícil acesso. De lá eles teriam mais facilidade para praticar crimes sem serem achados pela polícia. As novas gerações que se formavam cresciam sem instrução, impedidas de acesso a um mundo ideal. Tão perto da tecnologia de ponta, tão longe do progresso. Aquele submundo estava caminhando para um perigoso bestialismo. As pessoas de bem se mobilizaram para chamar a atenção dos governantes. Eles queriam mostrar aos chefes das instituições governamentais que o perigo de uma hecatombe social era questão de dias. Embarcados nos mais diversos obstáculos os homens foram construindo

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seus casebres, dando forma ao bairro. Uma nova cidade se formava, novas famílias eram constituídas. Em contraposição a muitos malfeitores que lá se acoitaram, as pessoas de bem guerrearam ferrenhamente. Foi criada uma associação que fez um considerável movimento, cujos ecos foram percebidos pelos ouvidos de uma autoridade sensível. Alguns membros do governo entenderam que não podiam ficar apáticos aos clamores do povo humilde. Num discurso demagógico, uma constante estratégica, diziam que o novo bairro não comportaria maiores investimentos. O discurso era apenas uma maneira sutil de dizer que a gente dali não merecia ser contemplada com uma infraestrutura digna. De certa forma as pequenas associações começaram a ganhar força enquanto contabilizavam novos membros. Seus clamores tornaram-se mais intensos. Os governantes decidiram atender algumas reivindicações. Com o elogiável gesto de bonomia, é claro que seriam recompensados. Foi instalado um pequeno posto de saúde, denominado Unidade Mista de Saúde Doutor Ernesto Guevara. O nome pomposo e assustador para alguns tinha um charme, mas sua

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capacidade era enganadora. O início da construção da escola trouxe esperança para o povo. Representava a edificação do progresso humano, de um novo tempo. Seria a ferramenta com a qual eles transformariam suas vidas para participar da globalização. Era a luneta que lhes permitiria enxergar o caminho do bem-estar e as boas relações com o resto do mundo. A lamparina que alumiaria a longa estrada a ser percorrida. Deu-se àquela escola o nome de Nicolau Maquiavel. Era um nome forte, configurando o esforço férreo de dominar as forças malignas que teimavam em exercer a hegemonia sobre a comunidade e o desejo de romper as barreiras da ignorância e da barbárie. Os membros das associações estavam orgulhosos e não paravam de festejar a brilhante vitória. Diretores e professores estavam entusiasmados. O bairro tinha que ser identificado, algumas ruas foram nomeadas. A que ligava a escola ao posto de saúde ganhou o nome de Avenida Adolf Hitler. À área dos fundos da escola foi dado o nome de Praça Carlos Lamarca. E uma rua que ligava aos outros bairros foi nomeada como Rua Virgulino Ferreira da Silva. Para os forasteiros o batismo

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assustava. Mas os habitantes se orgulhavam das ruas charmosas e diferentes do habitual. As personalidades que deram nomes às ruas representavam a ousadia, o poder e a rebeldia. As contradições e a união de forças que os habitantes e o mundo necessitavam entender para dar uma guinada ao progresso humano. Porém, indivíduos mal intencionados se infiltraram nas associações. Tão sagazes eram que demorou para ser detectado a presença deles. Só foram notados quando já haviam formado uma verdadeira alcateia. A colônia de bactérias estava necrosando o organismo. A base da torre estava minada, a construção estava prestes a ruir. As forças se contrapunham, as pessoas se olhavam desconfiadas, cada uma culpando a outra pela infelicidade social. A comunidade deixava de existir. Restava apenas uma massa amorfa, bandos de criaturas desorientadas. Teorizam os especialistas do comportamento humano que a ambição é inerente à criatura humana. Que é uma virtude imprescindível à sobrevivência num mundo extremamente competitivo. Outra tese

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atesta que os humanos são essencialmente sociáveis. As pessoas daquele povoado estavam mais declinadas para a primeira tese. O povoado se transformou numa selva, com todas as suas leis: o mais potente investia ferozmente para devorar o mais frágil. Augusto tinha um objetivo agressivo dentro dos limites da sua ética particular. Queria reservar um lugar digno para si e para sua família. O fantasma dos negros zumbizando pelos campos, pelas senzalas e nos pelourinhos estava aceso em sua memória. As costas lanhadas pelos açoites sofridos faziam-no ruminar desolado. Homem é homem com caráter, liberdade, direito, faculdade para agir, expressar-se, locomover-se, prover-se, pensar, compreender. Quando isso deixa de acontecer o homem inexiste. Quando não se permite que isso aconteça assassina-se o homem. Quando se bloqueia o acesso dessas virtudes a toda uma gente comete-se um genocídio. Os usineiros haviam massacrado os cafuzos. Augusto se vingaria. Estava decidido. Desterrar-se-ia pelos campos, sertões, florestas, pela cidade grande, pelas favelas.

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Natália batalhava incansavelmente em busca do sucesso profissional. Pretendia ser uma educadora de fama, aclamada e recompensada por apresentar relevantes projetos pedagógicos. Colegas de profissão criticavam os conteúdos e consideravam-na insensível e arrivista. A soberba a impedia de enxergar os pontos que ainda estorvavam sua ascensão e de fazer uma autocrítica. O terror que os narcóticos haviam provocado no bairro a atingira em cheio. Entendendo que era Jaguar o responsável pela disseminação da droga ela resolveu romper a barreira do medo e enfrentá-lo. Já estava mesmo arruinada. Frente a frente com ele, na diretoria, encostá-lo-ia na parede. _Então o senhor tem o poder de vida e morte sobre mim? A pergunta foi fulminante. Naquele momento a habitual audácia de Jaguar recrudesceu. Pela primeira vez a ousadia se transformou em tartamudez. Ele levou alguns minutos para reagir. _Eu sou o senhor da vida e da morte. Não sei até quando, mas ainda sou.

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_O senhor não acha isso um exagero? Não vê que está se superestimando? _Não. Eu estou sendo sincero. Sei de minha capacidade. Vou até onde minha audácia e minha indignação me levam. Eu decidi encarar essas situações. Quando comecei a enxergar a vida me deparei com um mundo embaralhado, doido, totalmente injusto, malvado. Afinei os ouvidos a passei a ouvir discursos eloquentes, bem articulados, doutrinas, fórmulas... _As fórmulas são materiais elaborados para a prática humanizada, para as boas ações. São as plantas das edificações. _Espere só um pouco: eu cresci ouvindo essas prédicas. Procurei ver a tradução dessas verborragias nas mais diversas ações e jamais descobri as verdades. Eu me rebelei, me subverti, fui subvertido em meu corpo de homem e decidi subverter a ordem. Revoltei-me por mim, para mim e para o mundo. Decidi violar essas obscuras verdades, revelando as mais evidentes mentiras que fulminam milhares e milhões de ingênuos diariamente. _O senhor abriu caminhos contraditórios e muito mais

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fulminadores, viciando os jovens, entupindo-os de narcóticos. Com isso criou falsas expectativas. _Eu não tive outra opção. Tornei-me um fora da lei. À medida que você se torna um desordeiro não tem mais volta. Nesse momento tudo que reage pela ordem obscura é a desordem. E a alternativa é tentar se especializar, se cobrir. Brigar, se cobrir, se cobrir, brigar... -O uso dos narcóticos tornam os jovens alienados, revelando-os uma realidade irreal. _O sistema educativo ilude. As ideologias, os discursos, as fórmulas fazem uma lavagem cerebral gradativa. Jovens e adultos são conduzidos a um mundo quimérico, onde um pseudo-status proclamado nas belas dissertações descrevem a cidadania como uma virtude. As criaturas iludidas não passam de uma legião de pobres coitados, ignorantes, subservientes, escravos de ideologias hegemônicas. Os textos dos mestres, doutores, livres-docentes são belos, admiráveis. Bem paragrafados, repletos de aspas, hífens, parênteses. Honram os dicionários, e bendizem as enciclopédias, glorificam as

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doutrinas, mas não humanizam as pessoas. Natália estava a não se suportar. Queria virar um petardo e explodir junto com aquele patife. Recuperou a postura. _O senhor louva as atitudes que levam ao narcótico, ao vício, à criminalidade... _Eu sou um homem que virou um Jaguar não por opção. Foi a situação que me levou a virar uma fera transgressora das leis. Passei a viver numa jaula onde não há lei. O que determina a predominância é a arrogância, o poder incondicional. Só permanece vivo quem lança mão desses recursos e não há fórmulas para se chegar a eles. _Mas o senhor não vive numa jaula como o jaguar do circo. _Engana-se a senhora. Nós vivemos numa jaula sem grades. Cada um com sua jaula, que é o procedimento individual, cercado pelas fórmulas, pelas normas. Cada um carrega sua própria jaula. O jaguar do circo carrega aquela que os outros o ajudam carregar. _Falando em fórmulas: não há fórmulas estabelecidas, o senhor quer dizer. Mas elas existem, porém são instáveis por falta de consistência e de observação do interesse social.

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_As fórmulas instituídas são manobras políticas. Os regulamentos que se dizem bem elaborados são um conjunto de scripts com práticas que nunca funcionaram. Podem até serem decorados e declamados pelos mais célebres atores. O processo educativo, por exemplo, é uma manobra urdida pelos que detém o poder contra os súditos. _Não é verdade seu Jaguar, quer dizer, Marcos Freitas. Eu posso falar com propriedade sobre isso. Sou uma cientista da pedagogia e sou militante da educação... Ele a interrompeu com uma risada de deboche. _A senhora é uma gozadora, dona Natália. Não brinque comigo. Rarará. Ou a senhora é muito ingênua ou tenta fingir muito bem. A maioria dos projetos da senhora, inclusive o que a levou a concluir seu mestrado foi patrocinado com dinheiro do comércio de pó. Vocês professores, ideólogos, gestores da educação dizem fazer parceria com a sociedade para conceber a cidadania e se tornam comparsas ao criar depósitos de alunos, promoções indevidas, defendendo privilégios a donos de empresas-escolas e interesses

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de gestores municipais estaduais e federais. A cada dia fazem as classes subalternas mais subservientes e desinformadas. _Em meus projetos não usei dinheiro sujo. _Dinheiro é dinheiro, numerário. Ninguém tem aversão a dinheiro, ninguém o rejeita. Dizem um monte de asneira, mas quando se deparam com os maços de notas todos ficam fascinados. O que foi usado nos teus projetos e inclusive ajudou a erguer o colégio que a senhora dirige, foi em grande parte ganha por mim e por meus parceiros do narcotráfico. E a senhora é nossa parceira. _Desordeiro não tem parceiro, tem comparsa. E eu não me junto com desordeiros. _Esperneie. Negue. Diga o que quiser. Mas já é nossa parceira, comparsa, o diabo. Afinal de contas é nossa sócia. E agora que já conheceu toda minha história sabe que não pode me entregar à polícia porque usou o dinheiro que diz sujo para uma causa que disse ser limpa, que a senhora chama causa nobre. A senhora precisava da escola para levar em frente os projetos. Mas teu parceiro legal, o

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estado, não punha em tuas mãos as verbas necessárias. Eu precisava da escola para investir numa clientela grande e faminta. Alunos, professores, funcionários todos estavam carentes. Eu entrei lá pra suprir a carência deles e eles contribuíram com meu comércio. Natália empalideceu. Tentou correr, fugir. Nem chorar conseguiu. Leandro Roquette tinha como intuito atingir os pináculos da política brasileira. Estava sempre atento à história dos mais ilustres parlamentares. Sabia que a maioria deles tinha começado por baixo. Ele era a lei, um escriba atento e inescrupuloso. Os rabiscos que ilustrariam páginas e mais páginas dos libelos seriam redigidos para seus caprichos, não para o bem-estar dos que o elevariam ao céu dos seus intentos. Como Marcos Freitas, ele tinha apenas uma desenfreada cobiça. Em seu caso a subversão teria que ser desalentada e camuflada. Mas a parceria com eventuais transgressores foi inevitável. Ele agia em nome de um sistema organizado para combater a subversão, porém, paradoxalmente, Jaguar era um dos patrocinadores de suas campanhas eletivas.

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Para reter os instintos mais ferrenhos os animais dotados de pensamentos e ideias necessitam de exercícios constantes, providos de vigilância e disciplina. A cobiça e o sentimento de usurpação podem até nascer com o homem, porém a necessidade da vivência coletiva exige o cumprimento de regulamentos rigorosos. Marcos Freitas e Iossif quebraram as regras. Pensaram apenas na promoção pessoal, ignorando os regulamentos que primam pela boa conduta num mundo em que a sobrevivência se baseia no amplo relacionamento com as pessoas e com o meio ambiente. O jaguar, a onça pintada, não possuía idoneidade mental para isso, mesmo condicionada a obedecer a alguns comanados. Sua capacidade de raciocínio era limitada, os instintos a conduziam até os extremos de sua necessidade fisiológica. Quando soube que sua prisão preventiva havia sido decretada Robson tremeu. Tinha sido um mau-caráter. Aceitava as acusações, mas não se entregaria à polícia. Não iria mofar numa prisão. Montou na moto e acelerou. Ultrapassou automóveis importados,

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carros, caminhões. Acelerou mais. Desafiou as sirenes das viaturas policiais. Fez piruetas. Empinou. Vislumbrou pedaços brancos de nuvens num céu cinzento. Desafiou a garoa. Acelerou e a moto voou. O zumbido foi ouvido pelas viaturas. Depois que os policiais constataram a precariedade com que os animais eram tratados voltaram a cuidar de desenterrar o cadáver de Camila. Os últimos raios de sol desapareciam, deixando apenas um lume de arrebol. Em poucos minutos tudo ficaria pardacento. O perito ordenou que os auxiliares começassem a retirar a terra. Com a visualização prejudicada foi preciso instalar uma iluminação artificial. Ao remover as primeiras pás de terra os dois auxiliares perceberam algo estranho. Estupefatos chamaram o perito. _O corpo não é de uma pessoa! _ Afirmou um deles. O perito nada disse. Vestiu uma luva na mão direita e colocou um dos pés dentro do buraco. Com uma espátula afastou o resto de terra do corpo. Constatou a afirmação dos ajudantes. Ordenou que os funcionários terminassem o trabalho.

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Pediu a aproximação dos outros policiais. Embora houvesse uma sensação de alívio, um misto de fúria, decepção e aborrecimento os invadiu. Tinham sido enganados, e a polícia não podia ser ludibriada em qualquer hipótese. Viram naquilo um estratagema para encobrir outra ação legitimamente criminosa. Havia sido colocado numa boneca uma peruca que imitava com perfeição os cabelos de Camila. Os pais da moça ficaram atônitos. Um fato tão nefasto não podia ser convertido em equívoco tão de repente. As pessoas que vieram para o velório se aproximaram da boneca com peruca alourada. Era mesmo igualzinho aos cabelos de Camila. Como num sonho os objetos fúnebres desapareceram, a casa ficou vazia. Entretanto, o clima de luto e a sensação lúgubre estavam ainda enevoando seus espíritos. Para o casal continuava a agonia. A filha não tinha sido assassinada, mas permanecia desaparecida. Não acreditavam que a morte dela estivesse descartada.

Um portador não identificado veio dizer que Camila tinha sido sequestrada e que posteriormente seria exigido um resgate em troca de sua vida. Foi mais uma onda de conturbação. Alguns dias

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depois foi constatado que a notícia era falsa. Camila tinha se internado numa clínica para drogados numa cidade interiorana. Ao se dar conta da própria existência ela tentou se desbravar. Antes de se identificar como mulher e se deparar com os encantos da feminilidade topou com o monstro da tragédia humana. Ainda não tinha reconhecido o caráter que a acompanharia pela vida e que a faria gente quando entrou em contato com os narcóticos. Uma guerra foi deflagrada em seu caráter contra o vírus da deformação. Ao defrontar com a carranca disforme ela recuou. Mas o monstro já a tinha dominado. No espelho o corpo de mulher jovem e formosa não passava de um esqueleto, um monte de ossos sem músculos e sem pele. Tentou se livrar daquela imagem horrorosa, quis eliminar a própria vida. Não conseguiu porque não tinha mais vida. Ninguém consegue subtrair o que não existe. Em seguida ela iria tentar se reencontrar. Nos confins do seu universo ela iria juntar energia como os corpos celestes e recompor seu esqueleto. Por que não se reconstituir como a poeira cósmica? Ela não constituiu as estrelas? Camila

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adejou ao espaço sideral a fim de tornar realidade sua existência. Quem sabe ela seja um daqueles milhões, bilhões ou trilhões de pontinhos cintilantes lá no fim do céu. Mesmo que tenha se tornado apenas o pontinho que menos pulsa já será um sinal do existir.

Para a polícia a batalha continuava. Havia muitas coisas a serem esclarecidas, muitas outras a serem descobertas. Muitos crimes haviam por trás dos estranhos acontecimentos. Policiais do serviço reservado vinham coletando informações para juntar provas contra os malfeitores. Petrúcio, a diretora da escola e mais de meia dúzia de líderes do bairro se reuniram no circo. O delegado seccional que viera presenciar a reconstituição do crime conversou com os suspeitos e pôde testificar, junto com as outras autoridades, que de implicados eles passavam a vítimas. A diretora da escola e o dono do circo relataram como foram coagidos a aceitar o comércio de narcóticos. Os conselheiros falaram sobre as ameaças que sofriam e como os jovens eram seduzidos pelo vício. O delegado esclareceu que a polícia vinha seguindo os passos de Marcos Freitas

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havia algum tempo. Em apenas alguns anos ele tinha formado um patrimônio significativo. Sua peçonha infectou toda a cidade, propagando-se por toda a região, observou o delegado. Jaguar tinha conseguido aterrorizar, adoecer e raquitizar toda uma comunidade. Detectou a precariedade do sistema educativo e a existência dos espíritos mais incautos e instalou seu vírus letal na escola. Através de sua sede inescrupulosa ele tinha posto a perder toda uma geração. Muitas chagas jamais seriam saradas. Mas a polícia se empenharia, sem medir esforços, em amputar o cancro que relutava em contaminar o resto do corpo ainda não atingido pela metástase. Antes de partirem os policiais prometeram manter a segurança no circo, na escola e no bairro como um todo, dando uma assistência especial aos que estavam sob a ameaça do traficante. Era madrugada e Petrúcio se lembrou de ir ver a jaula do jaguar. Tomou um tremendo susto ao constatar que o animal não se encontrava lá. Fez uma averiguação mais rigorosa e percebeu que havia um buraco no

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viveiro. Pediu ajuda a Jorginho e os dois passaram a rondar o quintal. _Ele não se encontra aqui, patrão!

_Tem que estar. Procura direitinho, tchê!

Não era nenhum cachorrinho pequinês ou um gato para se esconder numa moita de colonião. Aflitos eles chamaram os outros funcionários. Procuraram pelas ruas adjacentes. Como era madrugada não encontraram ninguém que pudesse dar informação. As frágeis grades da jaula tinham sido arrombadas. Petrúcio tinha se livrado da imputação da morte de Camila, mas daquela vez seria condenado pelo tratamento relapso com o animal silvestre. A fera estava solta nas ruas e podia provocar uma tragédia de dimensões inesperadas. Faminto ele devoraria a primeira pessoa que encontrasse. Vasculharam as ruas como quem procura uma pérola. Ouviram as sirenes assustadoras das viaturas policiais. Concluíram que devia ser mais um homicídio no bairro. Ultimamente os sons das sirenes se tornaram uma canção trivial, um augúrio durante as madrugadas úmidas. Deram de frente com uma delas. O veículo freou

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bruscamente. Ágeis, os policiais saltaram de arma em punho.

_Virem todos de costas e ponham as mãos na parede! - Advertiram.

Enquanto os policiais procediam na revista, o chefe da guarnição encarou Petrúcio.

_O que é que o senhor faz na rua a esta hora?

_O jaguar fugiu e... _Sim. Nós sabemos que ele fugiu.

É por isso que mobilizamos todo o quadragésimo batalhão. O senhor também foi escalado?

_Estamos procurando. Nós só percebemos agora há pouquinho que ele conseguiu arrombar a jaula e sumir.

_Ah! Eu estou falando de um Jaguar e o senhor de outro. O jaguar do senhor é aquele que está com fome de carne fresca. O nosso é o que perturba a alma e domina a consciência das pessoas. Bom. Vou explicar: as investigações feitas pelo departamento de polícia civil chegaram à conclusão que Marcos Freitas é o grande chefe do tráfico de entorpecentes da região. É o causador de toda a ignomínia que se expandiu pelo bairro. Nossas rondas ostensivas estão todas mobilizadas para capturá-lo. Ele se evadiu de sua

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residência, mas não deve estar longe. Vamos pegá-lo, mais cedo ou mais tarde. Agora explique o senhor o seu caso. _Foi o jaguar que fugiu. A onça que eu criei, domestiquei e o usava em meus espetáculos. Aquele que os senhores viram lá deitado na jaula nos fundos do circo. Sei que posso pagar caro por isso. Resta-me agora pedir ajuda aos senhores.

O tenente olhou para seus subalternos, de um a um, e fez um gesto de rir. O momento não era para gracejos, mas a situação era burlesca.

_Os jaguares fugiram. Quando nós os capturarmos vamos promover uma porfia entre os dois. Vamos testar é mais ágil e quem tem mais sede de sangue.

Os soldados fizeram boca de rir. A situação poderia ser cômica se não fosse extremamente trágica. Petrúcio ficou carrancudo a morder o bigode.

_Nós vamos acionar a polícia florestal. Dentro de pouco tempo teremos os dois animais atrás das grades. Um numa jaula de aço e o outro num presídio de segurança máxima.

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CAPÍTULO NOVE

Livre Jaguar podia a qualquer momento deflagrar mais um atentado. Os jovens recrutados como mulas,

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soldados e gerentes do narcotráfico, seguiram suas instruções inexoráveis depois de presos ao vício. Os que se negaram a obedecer ou não cumpriam as orientações pagaram com a vida. Dezenas de adolescentes foram cruelmente assassinados. Muitos enlouqueceram pelo uso contínuo de entorpecentes. Outros cometeram o suicídio por não assimilar o sentido da vida. Muitas garotas se entregaram à prostituição como meio de sustentar o vício e por não acreditar no valor da honra. Uma incidência alarmante de assaltos nos comércios, arrombamentos de residências e sequestros aconteciam diariamente. A cada semana um número assustador de garotas sofria estupros. Muitos pais caíram em depressão e alguns foram vitimados pelo enfarto precoce. Um número considerável se entregou à embriaguez e à mendicância. A miséria humana estava alojada em cada rua e em todas as residências. Não havia família que não tivesse um histórico de desditas. As assistências públicas que acanhadamente lá se instalaram também se tornaram reféns. O posto de saúde, equipado precariamente, funcionava como fornecedor de seringas. Anfetaminas e

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outras drogas legais eram entregues aos viciados ao invés de auxiliar nos tratamentos da população. Os funcionários trabalhavam sob as ameaças. Os benefícios do governo eram concedidos a conta-gotas. A população era discriminada a olhos vistos, o que servia de condimento ideal para transformar o local num gueto maldito. Os jovens não tinham mais autoestima. Cultivavam o desprezo e o rancor pelos demais, principalmente por pessoas de outros bairros. Para eles a sociabilidade não tinha nenhum sentido. Os mais velhos, perdidos no tempo, também foram contagiados pela tibieza. O funcionamento da escola Nicolau Maquiavel para muitos foi a esperança de transformação. Os pais enxergaram naquela instituição um instrumento restaurador das estruturas sociais, das bases efetivas da civilidade e da formação de seus filhos em pessoas de bem. As mães conduziam suas crianças sorridentes a desfilar rumo à escola. Trajando uniformes em azul e branco, as mochilas cheias de livros. Uma professora airosa os vinha recepcionar no portão. No fim da jornada as mesmas crianças retornavam joviais à casa festejando junto à mãe o aprendizado de

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mais uma lição. Em pouco tempo conseguiriam elaborar uma redação, executar operações de trigonometria, concluir uma análise coordenada e decorar a tabela periódica. Os pais viam os meninos crescendo diligentes, ingressando numa faculdade de direito, de engenharia ou de ciências sociais. Viam-nos envergando uma beca marrom, discursando durante a colação de grau e sendo chamados de doutores. Consideravam eles que o centro sagrado da educação purificaria seus espíritos do pecado social. Então, para aquele local convergiram os milhares de almas que já não suportavam o purgatório onde, na pior das hipóteses, devia haver a continuação da vida. Todos corriam ansiosos em busca da preciosa dignidade. As criaturas que foram atraídas àquele lugar tinham atrás de si um histórico de moral ou pelo menos de busca à prosperidade. Petrúcio, Augusto, Natália e os milhares de anônimos esperavam serem encaminhados para um mundo bem mais organizado que o do passado. Todos perseguiam uma virtude comum. Os pais tranquilizavam-se, pois entendiam que os filhos na escola estariam guardados de todos os

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perigos e, acima de tudo, estariam adquirindo os paradigmas norteadores da boa conduta. Certificavam-se de que ninguém jamais poderia transpor os muros do palácio do saber. Para eles a Nicolau Maquiavel era uma fortaleza detentora de todas as virtudes e de todas as potencialidades. Foi a primeira, transformada naquelas condições, em última probabilidade de êxito. Seria o local adequado para arrebanhar e proporcionar aos jovens um ideal sólido de cidadania. Era lá que eles iriam adquirir um padrão de vida condizente com as estruturas do mundo civilizado. De lá eles egressariam prontos para enfrentar o mercado de trabalho. Sairiam repletos de entendimento do universo. Os pais começaram a perceber a mudança de temperamento dos meninos e das meninas. Repentinamente os anseios deles se converteram em pesadelo. O sonho de Augusto foi o sonho de todos os pais, o dissabor foi o mesmo. Os homens são jardineiros em potencial. Augusto foi um denodado jardineiro. Cultivou um jardim vicejante. Por algum tempo as plantas prosperaram. Foram regadas com

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carinho. Mas uma praga veio atacar e nenhum inseticida conteve a derrocada. Aí o jardim murchou antes de florescer. A própria planta de Augusto se tornou raquítica, com galhos retorcidos. Dentro dele havia agora uma planta seca. As grandes vicissitudes do infortúnio estavam estampadas em cada personagem. O terror que os dois jaguares conseguiram expandir castigava sem piedade toda a comunidade. O mundo não era mais o mesmo. As pessoas não se entendiam. As personagens do teatro sinistro eram fugitivas já de outros atos aviltantes. Eram retirantes em busca de refrigério. Petrúcio tinha na memória a opressão que seus ancestrais sentiram. As pungentes narrativas lhe doíam na alma. Os comentários sobre o que eles sucumbiram nas garras do impiedoso tirano Iossif faziam-no arrepiar-se. Augusto tinha as marcas acesas das humilhações a que foram submetidos seus antepassados nos contrafortes da Serra da Barriga. Eles foram feitos bestas, torturados pelos caprichos de colonizadores perversos. Agora o desinteresse dos administradores públicos em empreender uma assistência eficaz contribuía para que a

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situação humilhante se tornasse duradoura. A humilhação, a segregação era um estigma da qual ele jamais se livraria. Desertou pelas caatingas, pelas florestas, pelas gerais, pela selva de pedra. Como era um homem morto, seus ancestrais tinham sido assassinados, não fazia diferença assassinar os algozes. Já estava condenado à prisão perpétua, carregando os mais pesados grilhões, sufocado na mais espessa mordaça.

O jaguar implantou o pavor na cidade. Poucos se arriscavam em sair de casa. A polícia estava em prontidão. Com sua sagacidade típica a fera driblava a todos. Submersa no impasse a polícia não sabia a qual dos jaguares dar prioridade. Os dois representavam extremo perigo. Os jornais ostentavam manchetes, advertindo que havia animais perigosos à solta. Alguns jornais falavam do animal silvestre, outros se referiam do poderoso narcotraficante, suscitando uma enorme confusão. As pessoas permaneciam atônitas. Jaguar, jaguar! Jaguar homem, jaguar animal. Jaguar bípede, jaguar quadrúpede. Jaguar demolidor e devastador. Jaguar devorador de carne humana. Jaguar destruidor de almas e de mentes. Jaguar

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que dilacera os ossos, que suga o sangue, que nunca sacia a fome de sangue, de criaturas dispostas a servi-lo. Jaguar que se aproveita da fragilidade de caráter dos humildes. Jaguar que usa a força e a violência que lhe é peculiar para devorar os animais mais frágeis. Jaguar que usa da incompetência e do descaso das instituições e se lança sobre a presa como a onça ataca a lebre. A imprensa ora falava de um, ora de outro. A notícia quase vira humor negro. O jaguar não deu chance para mais gracejos. Decepou o braço de um menino. Feriu gravemente uma moça. No extremo sul da cidade devorou um cão de estimação que passeava pelo calçadão conduzido por uma madame. E enquanto uma guarnição tentava capturá-lo feriu cinco policiais e empreendeu nova fuga. A polícia recebia telefonemas com supostas localização dos dois jaguares. A imprensa emitia informações turbulentas. Os criminosos ameaçavam com explosões, sequestros e assassinatos caso o traficante fosse preso. Quartéis, delegacias e outros prédios públicos seriam explodidos. Como prova do poder e da audácia os “soldados” fiéis a Jaguar tinham

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detonado uma bomba de alto poder destrutivo na Nicolau Maquiavel. O prédio inteiro ruiu. O incêndio que se seguiu converteu em cinzas equipamentos, livros e documentos. Uma bomba foi atirada numa delegacia, causando muitos estragos e um ferimento de considerável gravidade em um policial. Em seguida cinco ataques foram registrados, atingindo civis e militares. Três policiais foram estilhaçados pelo impacto de um petardo. Eram as primeiras vítimas fatais. Noutra região um jovem perdeu a vida atacado pela onça. Os comandos militares colocaram toda a tropa em prontidão. As donas de casa não iam mais às compras, os alunos não eram mandados à escola, os trabalhadores não tinham disposição para ir ao emprego. Letárgicos, todos temiam sair às ruas. Era ponto de honra para a polícia capturar Marcos Freitas. O objetivo era prendê-lo com sua numerosa quadrilha e desmantelar o gigantesco aparato de vendas de entorpecentes. A cidade estava sendo vasculhada. Bocas, botecos, hotéis, motéis casas de parentes, casas de amigos, casas de pessoas implicadas no crime, bueiros,

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becos e vielas. Os atentados prosseguiam fazendo vítimas, ora leves, às vezes fatais. O pavor da população crescia. Todos estavam vulneráveis. Através de uma denúncia anônima, Marcos Freitas foi localizado numa casa abandonada. Um forte aparato policial cercou o local e a operação começou pra valer. Dali ele não teria como escapar. Mas não contavam com tanta petulância e agilidade. Armado com um fuzil de última geração Jaguar não economizou munição. Em menos de dois minutos cinco agentes tombaram. O criminoso esgueirou-se pelos fundos da casa, pulando pelos telhados e muros feito um gato selvagem. Metralhadoras, pistolas e fuzis cuspiram um sem-número de projéteis. Nenhum o atingiu. Dois policiais foram alvejados por tiros de companheiros. O fogo amigo começava a fazer vítimas. O traficante atirou uma granada sobre a multidão. Três civis, um policial e um jornalista foram estraçalhados pelo impacto do artefato. Mais de cinquenta pessoas tiveram ferimentos consideráveis. Aconteciam atentados simultâneos por toda a cidade. Os comparsas invisíveis do traficante

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estavam provocando horrores. Uma bomba de tempo foi colocada num dos palácios do governo. Não fez nenhuma vítima porque quando veio a explodir já havia terminado o expediente. Provocou um grande prejuízo material. O jaguar, a oncinha, animal selvagem e irracional, por sua vez, contribuía para que aumentasse o terror. Acuada ela se tornava mais perigosa. Depois de perseguida pelos agentes da polícia florestal penetrou numa casa da região central, avançou sobre um rapaz e o matou. O moço ficou desfigurado. Os policiais disparam dardos com substâncias anestesiantes, mas acertavam os curiosos que paravam nas proximidades. Eles pretendiam capturá-la viva. Antes que os policiais entrassem na casa o bicho atacou mais uma pessoa e fugiu ileso. Marcos Freitas aproveitou um momento de descuido dos seguranças e invadiu uma mansão. Desarmou-os e amarrou junto aos donos da casa. A polícia efetuou o cerco. Os alto-falantes das viaturas ecoaram em alto som que ele não teria escapatória. Insistiram que ele devia se entregar. Franco-atiradores posicionavam-se em locais estratégicos. Milhares de curiosos e uma multidão de

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jornalistas disputavam posições privilegiadas para registrar os acontecimentos e dar uma boa pauta aos jornais, rádios e tevês. Pelo celular o proprietário da casa implorou ao comando que não ordenasse a invasão. Jaguar tinha várias granadas de alto poder e não hesitaria em detoná-las. O nervosismo dos policiais era percebido tanto pelos reféns como por Jaguar. “Vamos morrer todos! A primeira coisa que vou fazer quando a polícia entrar é tirar os pinos destas granadas. Aí todo mundo vai pro espaço junto comigo. Impeça que eles entrem se não quiser virar recheio de salsicha. Seus filhos não vão servir nem para fazer ração de gato!” Advertia o delinquente de minuto em minuto. O empresário tentou convencê-lo a se entregar. Conversou outra vez com o comandante da operação pelo telefone e este garantiu que ele teria sua integridade física preservada. Jaguar não acreditava. Percebeu que havia um aparato de guerra lá fora. Através do dono da mansão Jaguar pediu para a polícia recuar. Eles fingiram atender. Jaguar percebeu quando dois policiais se aproximaram de uma vidraça. Eles iam arrombar a janela e entrar

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repentinamente na casa. O criminoso atirou uma granada. Os policiais foram atingidos em cheio pela força centrífuga da bomba. Outros dois policiais que davam cobertura receberam o impacto com menos gravidade. Jaguar anunciou que mataria os reféns de um a um, depois incendiaria a casa. Atirou mais uma banana de dinamite. A explosão não feriu ninguém porque a queima do pavio foi retardada. A polícia se movimentava irrequieta e confusa. Com opiniões divergentes os oficiais já não se entendiam. Os atiradores decidiram que invadiriam a casa, mesmo sem a anuência dos superiores. Com a arma apontada para a cabeça e com uma banana de dinamite amarrada à cintura um dos seguranças foi obrigado a esvaziar os tanques de alguns automóveis e derramar o combustível pela casa. As válvulas do encanamento de gás foram abertas. Antes de atear fogo nas poças de gasolina Jaguar desatou as mãos dos reféns. Atirou duas granadas contra os policiais e tentou se proteger. Dessa vez o horror foi transmitido em tempo real pelos canais de comunicação. Toda a cidade pôde testemunhar a cena dantesca.

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As explosões foram ouvidas a quilômetros dali. Em poucos segundos a casa toda ardia em enormes labaredas. Muitos policiais ficaram feridos. Os que não foram atingidos recuaram para não virarem torresmo. Os soldados avançavam e recuavam durante a sucessão de explosões. Os mais experientes especialistas estavam impressionados como o fogo tinha se propagado com tanta rapidez. Apenas três horas depois o fogo começou a ceder. Foi feito o rescaldo e chegou a hora de procurar as vítimas. Era impossível encontrar alguém com vida. Jaguar estava transformado em carvão, todos tinham certeza. Bem equipados os soldados do Corpo de Bombeiros conseguiram entrar na casa destruída. Nenhum vestígio de corpos. Remexeram os escombros, reviraram os objetos transformados em carvão e cinza. Encontraram um corpo carbonizado em meio aos destroços. A força das explosões podia ter projetado alguns para fora da casa. Arrombaram a adega, cuja área fora menos atingida. Lá estavam o empresário, sua mulher e seus filhos desfalecidos. Ali mesmo foram feitos os primeiros atendimentos.

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A busca de Jaguar entre os escombros foi minuciosa. O primeiro corpo encontrado não era dele. Num outro cômodo encontraram desmaiado um dos seguranças. Das sete pessoas que havia na casa foram encontradas o empresário, sua esposa e os dois filhos com vida. Um dos seguranças estava fora de perigo. O corpo carbonizado tinha sido identificado como sendo do segundo segurança. Fez-se uma varredura, mas o sétimo corpo, que seria de Jaguar, não foi localizado. A noite com suas potentes asas marrons veio trazer mais náusea. Jaguar teria tomando um automóvel de assalto, segundo uma testemunha anônima. Ele lançou-se fora da mansão no momento das explosões e atravessou a cidade. A sagacidade do delinquente impressionava os policiais mais experientes. Reuniram-se novamente com o objetivo de elaborar novas táticas. Reiniciou-se a perseguição. Centenas de viaturas trafegavam em alta velocidade pelas ruas e avenidas. A cada momento um telefonema anônimo informava a localização de Jaguar. A maioria tinha o intuito de confundir a polícia e dar tempo ao fugitivo empreender nova fuga. Dois acidentes graves

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aconteceram simultaneamente em duas regiões distintas, envolvendo viaturas, motoqueiros e pedestres. A polícia adotou novas táticas. Os guardas do batalhão florestal pelejavam com a onça pintada. O animal continuava driblando-os e fazendo mais vítimas. Depois de fugir espetacularmente da mansão em chamas Jaguar aprofundou-se na mata densa do parque florestal. Dissimularia sua silhueta entre árvores frondosas, moitas e capins. Era astuto e destemido, não se renderia ao impressionante aparato bélico. O barulho dos motores e as sirenes assustavam a qualquer criatura. Jaguar tinha um concorrente. A onça pintada disputaria cada metro quadrado da floresta. A área podia ser grande para duas criaturas serenas, mas muito pequena para duas feras que tinham como objetivos a dominação e a ganância. Jaguares de naturezas diversas e objetivos semelhantes. Temidos, os dois tinham conseguido aterrorizar e paralisar a cidade. O ambiente humano não os suportou. Restava saber se dali em diante a pequena floresta os aceitaria.

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Depois de se posicionarem estrategicamente, os policiais teceram um cerco compacto e começaram a vasculhar a floresta. Dali o Jaguar bípede e o jaguar quadrúpede jamais escapariam. Marcos Freitas estava muito cansado. Quase toda sua munição tinha sido gasta. Suas forças já não respondiam mais aos estímulos do cérebro. O alento de homem destemido se tornava exíguo. Restava apenas uma vontade ferrenha de vencer, a resistência incrível que o permitiu construir um império em menos de uma década de malfeitorias. Tinha infringido as regras que regem a cidadania e os bons costumes. Fê-lo por indignação com a violação de outras regras ou por falta de opção. Quem dera toda aquela energia tivesse sido canalizada para uma atividade regular. Se toda a sua bravura e seu vigor tivessem encarnadas no espírito de um benfeitor a comunidade teria sido direcionada a outra órbita. Mas ele escolheu um caminho mais curto, embora cheio de emboscadas. E jamais se deu ao trabalho de cogitar sobre as diferenças entre a dignidade e a corrupção. Apenas enxergou a senda que o faria detentor

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de regalias. Para se enveredar pelo crime foi levado por ideias quiméricas. Foi sonhar com um horizonte brilhante dentro de um mundo cinzento. As mesmas ideias fizeram milhares de vítimas pelo vício que ele espargiu. Ainda adolescente começou a fazer pequenos furtos. Andar de moto e de carro. Adquirir um jaguar era infinitamente impossível se fosse trabalhar numa empresa qualquer. Jamais se interessou por uma profissão e perdeu a motivação pela escola antes mesmo de concluir o ensino fundamental. Com uma arma na mão se sentia superpotente, um Hércules, um Lampião, um Deus. Com um fuzil o poder viria com mais facilidade. Era nos assaltos que conseguia faturar milhões em poucos minutos. Não se furtava de frequentar os locais mais requintados, desfilar com mulheres bonitas, viajar para os mais diversos lugares chiques. Dinheiro não lhe faltava. Os mais vulneráveis se encantaram com sua pompa e se tornaram presas. Trancafiaram-se no misticismo dos entorpecentes, criaram um mundo próprio e perderam o contato com o universo autêntico. O instrumento de persuasão era para tornar os jovens

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viciados, incondicionalmente. Quando eles tentaram abrir a porta para o mundo real não mais encontraram a chave. Estavam isolados do resto do universo. Azar deles, sorte de Jaguar. Para ele não importava se as pessoas consideravam essas ideias insensatas. Jamais se deu tempo para analisar as consequências de todas as loucuras e da facilidade com que adquiria os bens e usufruía o luxo. Não admitia que as coisas adquiridas por vias ilegais fossem efêmeras e traiçoeiras. Riu com sarcasmo do circo e da escola que prometiam arrancar os jovens do vício e do crime. Em algumas ocasiões afirmou que tanto o circo como a escola eram absolutamente inúteis. Ironicamente ele entendia da forma incompetente como estavam sendo manuseadas essas ferramentas. O jaguar estava exaurido. O incauto animal silvestre foi o estopim para muitos acidentes durante aqueles dias de fuga desesperada. Com a fome incontida a alternativa foi fugir para o habitat de origem. Sua ferocidade voltara a se revelar. Se a convivência com o homem conseguisse modificar terminantemente a natureza dos animais silvestres surgiriam subespécies

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deles. A fome o transtornou e, aliada à perseguição contínua, serviu como estímulo. Diferente do seu homônimo humano o que ele queria era apenas satisfazer os desejos famélicos, as necessidades básicas de todos os seres vivos. Tocado pela desnutrição ainda conseguiu devorar um cachorro e parte do rosto de um homem. O acossamento dos policiais era muito mais intenso do que a fome. Isso ressuscitava nele o instinto da fúria felina. A natureza selvagem voltara a se manifestar com intensidade. Era como se nunca tivesse pisado um picadeiro e jamais tivesse sido tão íntimo e subserviente a uma criatura humana. A selva estava sendo para ele tão familiar que dela parecia nunca ter saído. A cada cinco metros havia um soldado bem posicionado. Centenas de viaturas estavam estacionadas de modo a dificultar uma eventual fuga. Homens especializados em combate na floresta fariam uma varredura da qual não escaparia sequer um camundongo. Extenuado, Marcos Freitas camuflou-se debaixo de uma pequena palmeira. O tronco robusto protegeu sua retaguarda. Estava decidido a esgotar as últimas forças lutando. No desespero

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para se defender revirou os bolsos da jaqueta. Não havia mais nenhuma granada, nenhuma banana de dinamite. Apalpou o fuzil e constatou que a munição tinha acabado. A peça de aço que lhe proporcionou glamour, valentia e poder era agora uma geringonça sem serventia. Pensou em levá-la quando fugisse dali, mas sabia que se não havia munição não conseguiria amedrontar a ninguém.

A beleza e a sagacidade do jaguar fantasiaram indelevelmente, durante um longo estágio, a mentalidade das crianças, transportando-as para um mundo colorido. A fuga provocou um duplo sentimento de alívio e desespero. Marcos Freitas deixou-se confundir com a onça no cognome e na efetivação dos atos. Por anos a fio ele se notabilizou por infringir regras e devorar almas, entendendo que da desordem em que se especializara tiraria da trama uma ordem que não conseguia ser imposta pelas autoridades constituídas. Arrogante e estúpido calculava ter adquirido astúcia suficiente para se tornar eterno como um herói lendário. Crianças e adolescentes fascinaram-se com o poder de ambos os

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jaguares. Vislumbravam um lume intermitente, às vezes vermelho, outras vezes azulado. Só não conseguiam identificar a suposta superpotência. Eram veementes e de extrema relevância os pedidos de explicação. Mas ninguém se ateve em proceder nas revelações. Crianças e jovens desejavam ter liberdade de escolha, uma educação em conformidade com suas potencialidades psíquicas e seus anseios. Sem a devida orientação eles enxergaram nos entorpecentes a autonomia, ignorando que a mesma droga iria representar um futuro de privações e de infortúnios. Um existir sem futuro. Os dois jaguares estavam circunscritos a um território exclusivamente deles. Um optara ou fora levado a transgredir os preceitos estabelecidos; o outro, forçado a se adaptar a outra natureza buscou o refúgio na solidão absoluta. Enquanto preso numa jaula de dois metros por dois ou cercado por garotas, violações de regras sociais, capangas e pistolas pertenciam agora a outro universo. Optando ou não com suas garras, suas presas, seus fuzis de sobrevivência,

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ambos tornaram-se senhores do pânico e do infortúnio, da vida e da morte e se lançaram numa das fugas mais compenetradas para se tornarem eternamente perseguidos ou heróis de uma gama de desvalidos. Camuflaram-se em suas pintas pretas e amarelas. Em suas artimanhas e valentias e foram unir-se numa glória ou numa desdita. Se não conseguissem se entender e compartilhar mutuamente aquele universo, confrontar-se-iam, debater-se-iam sangrentamente até se fazerem entender pela força e pela astúcia. Guerreariam até se dissolverem como se dissiparam as fórmulas incognoscíveis que os humanos tinham criado. Os anônimos, por motivações opostas, estavam permanentemente condenados ao desentendimento.

A Nicolau Maquiavel não existia mais. O prédio não resistiu ao estouro das bombas. Uma montanha de escombros marcava o local onde um dia funcionou o que se pretendia que fosse o templo da sabedoria. Da paisagem apenas se destacava a empanada do circo mantendo-se, teimosamente, intacta. A desolação dos moradores era notada em cada semblante. As mães dos

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alunos evitavam transitar pelas imediações. Alguns professores lamentavam não terem podido evitar a tragédia.

Petrúcio Lutsky pôs o circo à disposição. A maioria era unânime em concordar que as aulas fossem ministradas debaixo das lonas até que os administradores públicos providenciassem um local adequado. Natália Rossini resistia. Ficou furiosa ao perceber que seria obrigada a acatar a opinião da maioria. O período letivo devia ter prosseguimento. Os poucos professores em condição de lecionar se apresentaram dispostos a levar os conhecimentos e as devidas orientações, impedindo que os alunos arcassem com mais prejuízos. Constrangida a diretora ergueu a cabeça visualizando as cúpulas de lonas. Jamais imaginou um dia se utilizar do espaço que tanto subestimou. Os que compartilhavam com as ideias de Natália não mensuravam que o templo do saber não é um castelo indestrutível, uma estrutura inarruinável. Qualquer escola podia ser desmontada em sua constituição física e ideológica e remontada quando se pretendesse. O

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templo do saber não necessariamente se abrigaria num imponente edifício. O saber, a educação, a cultura podiam ser suscitados sob uma tenda, sim.

A voz do locutor fanhoso ecoou pelo alto-falante. Depois de executar o Bolero de Ravel em ritmo de blues ele anunciou que os espetáculos voltariam a acontecer debaixo das empanadas. Finalmente a mágica seria revelada, a máscara cairia. Meio atarantado o palhaço Bolinha fazia gracejos desengonçados. Ele tinha consciência que era um palhaço sem graça, mas naquele momento dava tudo de si para recuperar o sorriso das crianças. Elas permaneciam irrequietas, enfileiradas aguardavam ao lado da porta. Ouviu-se uma longa salva de palmas. As cortinas se mexeram. Apareceu o homem da máscara. Cumprimentou a plateia e num aparente descuido deixou a máscara cair. A plateia aplaudiu frenética. As luzes foram sendo focadas no picadeiro e apareceu o rosto de Petrúcio num sorriso amplo. Ele estendeu a mão para a cortina que se abria lentamente e proclamou: “A magia acaba de se consumar!”. Do fundo do picadeiro foram aparecendo os professores,

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acenando desenxabidos em seus jalecos brancos. “Está decretado o reinício das aulas”, disse solenemente. Soou uma canção alegre dos auto-falantes. Era uma canção desconhecida. Ela vinha anunciar que o mundo podia tomar outro rumo. Dali em diante só dependia de quem viria reger a orquestra. Natália tentou disfarçar a lividez, a fúria, o descontentamento com os episódios ou consigo mesma. Sem se localizar dentro da própria personalidade remexeu a pasta à procura de rascunhos dos projetos. Não tinha certeza se as próximas dissertações seriam bem sucedidas. Apenas estava convencida que daquela vez pediria transferência para uma escola distante dali, quem sabe até mudaria de profissão. Petrúcio Lutsky sempre trabalhou vendendo sorriso. Era sua profissão e sua missão, o que lhe renderia lisonja. Naquele momento seu objetivo era doar bom humor e estimular a felicidade para que os alunos e seus pais entendessem que a educação devia ser ministrada com prazer e para o prazer. Para inspirar interesse nas crianças os conteúdos didáticos tinham que ser uma satisfação, não uma coerção.

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JOEL DE SÁSP, 25/07/2012.

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