a fotografia como paixão em cartier-bresson

15
1 A FOTOGRAFIA COMO PAIXÃO EM CARTIER-BRESSON Prof. Dr. Emanoel Francisco Pinto Barreto Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN [email protected] RESUMO Este ensaio aborda a obra de Henri Cartier-Bresson a partir da perspectiva “olhar do fotógrafo”. Olhar como algo aquém, atitude aguçada por fato cuja carga dramática a câmera enquadra e verte à condição de cena e, daí, a foto. Paixão disciplinada do captor em participação discreta, pois não pode interferir e mistificar a cena. Bresson é visto aqui, exatamente, sob o prisma da paixão a mesma que impregna o núcleo discursivo deste texto. Desde o mercado de Bali, com foto de mulher primal e seminua até Gandhi, tentamos uma apreciação da capacidade significante e comovente de sua obra. Palavras-chave: Bresson, fotografia, cena O trabalho de Henri Cartier-Bresson talvez se possa definir como um exercício de placidez e dinâmica, distanciamento e imersão do olhar em instante passageiro, conjura de arrebatamento e cerebralismo. Paixão seria, substantivamente, o termo que a tudo isso englobaria. Aquela, de sentido weberiano, paradoxalmente metódica e cambiante “apaixonada a uma „causa‟, ao deus ou ao demônio que a inspira” (WEBER, 1968, p.106). Se não, como conseguir congelar em foto o momento preciso, aquela eternidade pequena? Paixão como processo encantador o suficiente para atrair o olhar inquisitorial ao fato transeunte, mas também disciplinadora desse mesmo olhar, que obtura para aclarar: paixão como instantânea permanência, desfeita após para partir rumo ao próximo fotograma. E depois outro e outro, em processo ao mesmo tempo meta e mono a se resolver sempre por não se resolver jamais. O gesto poético de Bresson é inesperadamente político: uma política acima, a perplexa política do olhar. Captação da vida/existência em seu fragor ingênuo, curioso ou trágico. O que virá depois daquele instante? E antes, o que o implicou? Como? Por quê? Um fragmento de tempo, em conexão com um fragmento de espaço e temos o momento decisivo exposto em imagem experienciada, evanescente, sem partido e sem- causa. Vazia de palavras de ordem. O mundo por ele mesmo. “Os olhares captados pelo fotógrafo expressam uma profunda solidão, o real desencanto dos despossuídos, uma apatia que revela certa renúncia diante do peso da miséria (ASSOULINE, 2009, p. 92).

Upload: barreto

Post on 17-May-2015

2.232 views

Category:

Education


4 download

DESCRIPTION

A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

TRANSCRIPT

Page 1: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

1

A FOTOGRAFIA COMO PAIXÃO EM CARTIER-BRESSON

Prof. Dr. Emanoel Francisco Pinto Barreto

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

[email protected]

RESUMO

Este ensaio aborda a obra de Henri Cartier-Bresson a partir da perspectiva “olhar do

fotógrafo”. Olhar como algo aquém, atitude aguçada por fato cuja carga dramática a

câmera enquadra e verte à condição de cena e, daí, a foto. Paixão disciplinada do captor

em participação discreta, pois não pode interferir e mistificar a cena. Bresson é visto

aqui, exatamente, sob o prisma da paixão – a mesma que impregna o núcleo discursivo

deste texto. Desde o mercado de Bali, com foto de mulher primal e seminua até Gandhi,

tentamos uma apreciação da capacidade significante e comovente de sua obra.

Palavras-chave: Bresson, fotografia, cena

O trabalho de Henri Cartier-Bresson talvez se possa definir como um exercício

de placidez e dinâmica, distanciamento e imersão do olhar em instante passageiro,

conjura de arrebatamento e cerebralismo. Paixão seria, substantivamente, o termo que a

tudo isso englobaria. Aquela, de sentido weberiano, paradoxalmente metódica e

cambiante – “apaixonada a uma „causa‟, ao deus ou ao demônio que a inspira” (WEBER,

1968, p.106). Se não, como conseguir congelar em foto o momento preciso, aquela

eternidade pequena? Paixão como processo encantador o suficiente para atrair o olhar

inquisitorial ao fato transeunte, mas também disciplinadora desse mesmo olhar, que

obtura para aclarar: paixão como instantânea permanência, desfeita após para partir

rumo ao próximo fotograma. E depois outro e outro, em processo ao mesmo tempo

meta e mono – a se resolver sempre por não se resolver jamais.

O gesto poético de Bresson é inesperadamente político: uma política acima, a

perplexa política do olhar. Captação da vida/existência em seu fragor ingênuo, curioso

ou trágico. O que virá depois daquele instante? E antes, o que o implicou? Como? Por

quê? Um fragmento de tempo, em conexão com um fragmento de espaço e temos o

momento decisivo exposto em imagem experienciada, evanescente, sem partido e sem-

causa. Vazia de palavras de ordem. O mundo por ele mesmo. “Os olhares captados pelo

fotógrafo expressam uma profunda solidão, o real desencanto dos despossuídos, uma

apatia que revela certa renúncia diante do peso da miséria (ASSOULINE, 2009, p. 92).”

Page 2: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

2

Seria, digamos, uma política da percepção, que tem a cena como discurso

impronunciado, mas veemente. Captado em sua consistência vívida de momento único.

Ao mesmo tempo total, completo e infinito. Momento sem significado intrínseco, mas

tornado a tal pelo olhar que o fez assim. Fragmento de vida, fato objetivo, argumento

não-formulado mas presente; existência interpelada pelo olhar do fotógrafo. Que com a

vida, esfinge, deblatera, sem esperar resposta que não o ícone resultante – ícone também

ele esfíngico ao olhar do leitor. É que, paradoxalmente, o objetivado só se torna objeto

pelo olhar subjetivo que o criou e nele acredita como coisa particular. Imagem virtual, já

existente no corolário do fotógrafo, ao ser flagrada no mundo vem ao encontro de si

mesma. Eis o momento decisivo.

Siempre he tenido una pasión por la pintura. Cuando era chico pintaba

todos los jueves, día en que no había clases, y los domingos, y

pensaba en la pintura los otros días. Tenía como muchos chicos una

cámara Brownie - box, pero solo la utilizaba cada tanto para llenar

pequeños álbumes con mis recuerdos de vacaciones. No fue sino

mucho más tarde que empecé a mirar mejor a través de la cámara,

entonces mi pequeño mundo se amplió y fue el fin de las fotos de

vacaciones (CARTIER-BRESSON, 2010)

A pintura já o atraía, o gesto de documentar o mundo perpetrava aos poucos a

arte figurativa, o real captado em processo infante de estranhamento/descoberta. É que o

real figurado desvela de alguma forma a essência da coisa representada. Aborda

certezas duvidosas e certas dúvidas. Afinal, o representar é re-apresentar aquilo que se

apresenta comum, corrente, normal – ou seja: a cena é visível ao olhar inquiridor, mas

será imperceptível ao olho de quem apenas seja comum, corrente, normal. Sem

perplexidade o mundo é estático e desinteressante. Na fotografia de Bresson o mundo é

rápido e cada segundo conta. O tempo tem locução própria, e o espaço e seus habitantes

com ele dialogam. Resta saber o que dizem. E o que dizem é transcrito na imagem. A

vida e todas as suas digressões.

Parte significativa da obra de Cartier-Bresson pode ser interpretada

pela união que ele promoveu de dois recursos estéticos inovadores das

primeiras décadas do século XX: o instantâneo fotográfico e a

colagem pictórica. Embora a expressão “instante decisivo” tenha se

tornado a divisa de sua obra, o instantâneo foi apenas o meio que

Cartier-Bresson empregou para obter suas fotografias. O que elas

buscavam, e tantas vezes encontraram, era o feliz cruzamento no

mundo de dois ou mais acontecimentos similares e independentes um

do outro. É pela junção desses acontecimentos independentes que a

Page 3: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

3

fotografia se mostra e pode ser vista como uma colagem. E visto que

são captados de maneira rápida pela técnica do instantâneo

fotográfico, os procedimentos da colagem e do instantâneo se

encontram conjugados. Mas se a independência dos acontecimentos

responde, em grande parte, pelo aspecto de colagem que as fotografias

adquirem, já a similaridade entre eles movimenta rapidamente o olhar

do espectador entre um acontecimento e outro. Surge assim, no

interior da fotografia, um instante por ela simbolizado e diferente do

instante em que a fotografia foi tirada. Esse instante interno, que

necessita da técnica do instantâneo, mas não é ele mesmo o instante

técnico do disparo fotográfico, é parte fundamental de uma linguagem

que Cartier-Bresson formulou para a fotografia. Uma linguagem que

não apenas se vale do instantâneo, mas que também o significa

(TASSINARI, 2008, p. 9-10).

Surge então uma outra forma do presente. O presente da vida e as suas

divagações, esse o mister de Bresson: fazê-los co-incidir na foto. E coincidem na

colagem pictórica. Pode ser na imagem da feirante seminua do mercado de Bali. Seios

suntuosos – que adornam nudez primal, despojada e majestosamente banal aos olhares

da feira – contrastam com descarnado ancião que lhe é perto. O torso ossudo próximo

ao luxuriante-corpo-fêmeo. Na mulher, à cabeça, um turbante branco é enfeite ligeiro,

contraponto de alvura à pele escura. Mas o cesto na cabeça não é adorno, é fardo.

Temos dois seres básicos em seu estado-de-natureza infausto. Uma espécie de inocência

tosca os une, a guiar a naturalização de sua tragédia. Escassez e viço convivendo nos

corpos de tais inocentes. Tão humanos, tão singelamente espécimes, tão ingenuamente

mansos; dois exemplares, dois viventes, dois de muitos viventes de um éden suarento,

ignaro e tórrido mostrado no universo cifrado da foto, feita em 1949. Podem-se intuir os

gritos do mercado, a vida plebe e rústica, o girar dum cotidiano eterno. Cotidiano

inculto, ironia que esculpiu improvável fêmea exuberante enquanto desbastava a vida de

outro, o infeliz mirrado. Detalhe: o olhar da moça, delicado, se espicha numa meia-volta

do corpo silvestre, olhar virado para o lado e para baixo. Ela vê além, olha para fora do

que está no enquadramento, portanto fora da vista do fotógrafo e, depois, do expectador

da foto. Aí a composição perfeita, mistério e feitiço da colagem pictórica. Bresson

entrecruza dois, três acontecimentos: a moça e o esquálido; a moça, o esquálido e o que

não é possível ver, mesmo supondo. Ela olha a algum ponto. Olha a alguém? Sem

perguntas. O importante é o olhar, não o olhado. Bresson captou candura no que era

agreste. A colagem pictórica está também em imagem tomada durante a cremação de

Gandhi, em 1948. Um homem, identificado por legenda de Bresson como sendo seu

secretário, observa as primeiras chamas da pira funerária. Aquele que se vai, e o que

Page 4: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

4

fica para testemunhar a sua obra. O olhar que se debruça sobre a pira é atônito e

inconsciente de que vivenciou um momento decisivo e acabara de entrar para a

eternidade daquele momento em instantâneo dramático.

A fórmula de Charles Baudelaire para o artista moderno, a da

apreensão do eterno no efêmero, se encaixa como uma luva na poética

de Cartier-Bresson. O instante que cada uma de suas fotografias

eterniza não é o simples instante do clique da câmera, mas um instante

grafado na própria fotografia, que dela não desgruda, e que estabelece

correspondências de toda sorte entre diferentes aspectos do mundo

(TASSINARI, 2008, p. 10)

Da pintura, o surrealismo povoou expressiva parte de sua obra. Como em foto de

1948, em Pequim, quando figura quase espectral, vestida em negro, longa capa que lhe

chega aos pés, caminha em meio à bruma de rua deserta na Cidade Proibida. O

pavimento, em pedraria retangular, está molhado e reflete de forma baça a figura

daquele lêmure, ampliando o efeito de estranhamento. Chapéu preto completa o cenário

do corpo, nariz e boca encobertos por alvíssima máscara cirúrgica. Pronto. Um ponto de

luz, em contraste com a trevosa figura, habitava corpo sígnico que se movia em meio a

fog quase sinistro. O perfeito equilíbrio de formas e volumes, com imponente

construção ao fundo, trai o pintor naquele instante: mas a pequenez humana em

assimetria, confrontada à arquitetura, já é fotografia. Aí é o fotógrafo encontrando seu

momento decisivo. O fotojornalismo como expressão de um ato é ato ele mesmo de

expressão metalinguística.

Na fotografia existe um novo tipo de plasticidade, produto das linhas

instantâneas tecidas pelo movimento do objeto. O fotógrafo trabalha

em uníssono com o movimento, como se este fosse o desdobramento

natural da forma, como a vida se revela. No entanto, dentro do

movimento existe um instante no qual todos os elementos se movem

em equilíbrio. A fotografia deve intervir neste instante, tornando o

equilíbrio imóvel (CARTIER-BRESSON, 2010).

Equilíbrio, portanto, não indica estaticidade, pelo menos não completamente.

Equilíbrio, no universo bressoniano, é a sutil conjugação de movimento, passagem e a

captura da exatidão que lhe foi atribuída. Equilíbrio como gesto malabar de mão que se

move, para impedir que caia ao chão haste retilínea apoiada tão-só na ponta de um dedo.

Equilíbrio, portanto, é gesto, inconstância, virtuose e mutação. Equilíbrio é instabilidade

Page 5: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

5

controlada. Por via de consequência equilíbrio é dinâmica. Momento que somente para,

maduro, quando a foto se completa. E mesmo assim ela sugere continuidade, pois toda –

boa – fotografia é um livro imenso, escandindo o olhar de aquém para dentro dela como

se ali houvesse profundidade e infinito, ou a partir dela para os lados, estabelecendo,

pelo imaginário, suas ligações e seus elos com o seu antes e o seu depois. Corrente.

O olhar do fotógrafo está sempre avaliando. Um fotógrafo pode captar

a coincidência de linhas simplesmente ao mover a cabeça uma fração

de milímetro. Pode modificar a perspectiva com um leve dobrar de

joelhos. Ao colocar a câmara próxima ou distante do objeto, o

fotógrafo pode desenhar um detalhe – ao qual toda a imagem pode

ficar subordinada ou ainda que tiranize quem faz a foto. De qualquer

modo, o fotógrafo compõe a foto na mesma duração de tempo que

leva para apertar o disparador, na velocidade de um ato reflexo

(CARTIER-BRESSON, 2010).

Ou seja: fotografar é ato militante de viver o momento. O distanciamento maior

ou menor não liberta o fotógrafo da força centrípeta que o prende ao fato. O

distanciamento é técnico; a captura do instante emoção e paixão – e o envolve. A

realidade pode ser metamorfoseada ao ser clicada. O olhar compreensivo do fotógrafo,

ao observar cena da vida – p. ex. uma criança mendicante que brinca –, retira dali

momento precioso, jamais percebido pelo pequeno ator. O captor, que critica aquele

instante histórico da miséria lúdica, é agente heurístico do grande drama humano sobre

a face da Terra. E se a miséria é assim estetizada, essa mesma estética faz a denúncia do

que trabalhou em estado de arte. E isso inclui a vida e seu par antitético, a morte. O ser

humano flagrado em sua condição transeunte.

O retratista precisa estar convencido de que sua arte tem ligação

profunda com a morte. O retrato é o reflexo de uma coisa única,

fadada a desaparecer. Uma verdadeira luta contra o tempo. Entender

isso no momento de apertar o botão é ter consciência de tudo o que a

condição humana tem de efêmero e precário. No entanto, de todos os

tipos de fotos, os retratos são ao mais intemporais. É por isso que

Cartier-Bresson não os data, ou o faz de maneira fantasiosa, mas data

com exatidão suas fotos para reportagens, que são o reflexo de uma

situação específica no contexto preciso (ASSOULINE, 2009, p. 168).

Mas, para buscar a imagem e paralisá-la, é preciso fugir à inércia do ficar. É

preciso uma nova compreensão do estar, indo. A militância da vida, nos primórdios de

Page 6: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

6

si, o levou à África. A Europa era, tornara-se mapa pequeno demais para o seu

caminhar. Queria ser incerto, porém não irresoluto. E assim foi. Início dos anos 1930.

Porque o idealista dentro dele se sente uma alma aventureira, porque

ele é de uma geração que se quer disponível para todas as partidas e

pronta para todas as novidades, porque ele sufoca nos limites do

Velho Continente, porque o espírito da época lhe parece subitamente

viciado e o dos lugares esclerosado [...] (ASSOULINE, 2009, p.56).

Quando não está caçando, tira suas primeiras fotos com uma máquina

que comprara antes de sua partida para a África, uma Krauss de

segunda mão, a tampa da objetiva fazendo as vezes de obturador [...]

Uma fotografia é particularmente forte. Tirada da parte de trás de uma

canoa, mostra três negros de costas remando seminus; porém, como

cada um faz um gesto diferente com o remo no ar e na água, a imagem

oferece o espetáculo raro de um movimento em três tempos

perfeitamente decomposto num único e mesmo plano (ASSOULINE,

2009, p.59).

Começava aí a epopeia. Gilberte Brassaï, emigrado húngaro à França, fotógrafo,

acabara de publicar seu livro Paris à noite. A 15 de novembro de 1932 publica artigo no

L’Intransigeant (ASSOULINE, 2009, p. 66), em texto seminal que de alguma forma

anteciparia a visão bressoniana de fotografia:

Existe uma diferença fundamental entre a fotografia e a pintura. A

primeira constata, a segunda cria. A primeira é um documento e,

mesmo quando desprovida de qualquer interesse, continua sendo um

documento. A outra se baseia por inteiro na personalidade, e tudo

desmoronaria num monte de escombros se esta faltasse. [...] O que

atrai o fotógrafo é justamente a possibilidade de penetrar os

fenômenos, de apreender suas formas. Ah, presença impessoal! Eterno

incógnito! O mais humilde criado, o deslocado por excelência, que só

vive nas imagens latentes. Ele as persegue até seus últimos refúgios,

as surpreende no que existe de mais positivo, material e verdadeiro

nelas. Quanto a saber se é preciso conceder-lhe o tão comprometido

nome de “artista”, realmente, isso não tem nenhuma, mas nenhuma

importância (ASSOULINE, 2009, p. 67).

“Quanto a Cartier-Bresson, seu estado de espírito se resume a uma dessas

fórmulas cujo segredo ele detém: „Fazemos uma pintura ao tirarmos uma foto‟”

(ASSOULINE, 2009, p. 67). Foto e pintura, em sua diversidade, formam, contudo, um

vértice: buscam prender o tempo que corre no homem para que o tempo, essa entidade

proustiana, não seja coisa perdida e inutilmente buscada, mas um cotidiano salvado de

naufrágio. Especialmente na foto, que é um ser nervoso, o tempo se aninha, a história se

Page 7: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

7

recompõe, a retina social reencontra seus fantasmas mais ilustres e descobre os mais

indistinguíveis caminhantes. Encontramos o Homem. A fotografia é uma emanação da

vida. A fotografia mede forças com a morte. E vence, de alguma forma, vence.

Essa condição proustiana, que epidermicamente aqui mencionamos, pode ser

encontrada nele mesmo quando diz:

[A fotografia é] imagem diferente da que temos o hábito de ver,

singular e contudo verdadeira, e que, em virtude disso, é para nós

duplamente cativante, pois nos surpreende, nos arrebata dos nossos

hábitos e, simultaneamente, nos faz entrar em nós mesmos ao nos

recordar uma impressão (PROUST, apud BRASSAÏ, p. 49).

“A única viagem verdadeira, a única fonte da juventude, não estaria em dirigir-

se para novas paisagens mas, com outros olhos, ver o universo com olhos de outros”

(PROUST, apud BRASSAÏ, p. 49). Essa tentativa de copiar a vida aduz à foto a

sensação de seu inverso, a presuntiva e vindoura ausência da vida, o vazio; pior que

isso, a vida em processo de esvaecimento no homem e, deste, no mundo. A fotografia

registrando a queda. Ninguém melhor que o autor de Em busca do tempo perdido para

expressar isso e ao mesmo tempo enaltecer a fotografia – que nunca praticou, mas à

qual era orgânica e apaixonadamente ligado:

Eu estava ali, ou melhor, ainda não estava, já que ela não o sabia. De

mim [...] havia apenas a testemunha, o observador, de chapéu e casaco

de viagem, o estranho que não é de casa, o fotógrafo que vem tirar um

clichê dos lugares que não serão mais vistos. O que, mecanicamente,

fez-se naquele momento em meus olhos quando percebi a minha avó,

foi na verdade uma fotografia (PROUST apud BRASSAÏ, 2009,

p.136).

Bresson, a exemplo de Proust, o sabia muito bem: o fotógrafo precisa ser o

anônimo participante, o ator sem papel. Em cena, precisa não ser visto a fim de que o

drama não perca autenticidade. Visto, exercita uma espécie de pudor pelos outros, uma

vez que sua voz pode ser discurso contraditório, e seu clique equivalente a um atentado.

Nuestra tarea consiste en observar la realidad con la ayuda de ese

cuaderno de apuntes que es la cámara, fijándola pero sin manipularla

ni durante la toma, ni en el laboratorio mediante trucos, porque eso es

visto por quien sabe ver. En un reportaje fotográfico uno llega, como

el árbitro, para contar los golpes, como una especie de intruso,

Page 8: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

8

fatalmente. Hay que acercarse al sujeto con pie de plomo, incluso si se

trata de una naturaleza muerta. Hay que andar con guantes, pero

teniendo el ojo alerta. Sin precipitaciones, porque no se golpea el agua

antes de pescar. Nada de fotos con flash, por supuesto, aunque más no

sea que por respeto a la luz, aún cuando no esta. Porque sino el

fotógrafo sería alguien insoportablemente agresivo. Este oficio

depende hasta tal punto de las relaciones que se establecen con la

gente que una palabra puede estropearlo todo, y entonces los alvéolos

se cierran. No hay aquí sistema, salvo el hacerse olvidar y hacer

olvidar la cámara, que es siempre demasiado llamativa (CARTIER-

BRESSON, 2010).

Tais cuidados, ritualizados, pôs em prática em sua entrevista com Gandhi, 30 de

janeiro de 1948, mesmo dia da morte do Mahatma. Num dos instantâneos, vertical, este

aparece enquadrado de forma a estar inclinado, levemente, para a esquerda, como se não

tivesse sido possível evitar o que aparentemente, só aparentemente, seria uma falha de

Bresson, um escorrego formal, um delicado desequilíbrio da figura central. Na verdade,

a Leica dialoga com o momento, participa daquela solenidade de luz e sombra. O

khaddar de Gandi, sutilmente, reluz. Há algo de santidade. O Mahatma, como a

vendedora, também olha para fora da foto e percebe-se que está falando a alguém.

Quem? Não importa. O não-fotografado personifica ator incognoscível, inescrito ao

texto visual, mas suposto e assim invisivelmente presente. Bresson conta:

Estou diante do último faquir da Índia. Ele está de cócoras sobre um

fino colchão de crina, e seu corpo magro está envolto por um tecido de

algodão branco. Ele me cumprimenta à maneira indiana, com as mãos

juntas, depois me estende a mão e me convida a ficar de cócoras à sua

frente. Esse faquir acolhedor é Gandhi. E o que ele conseguiu operar é

muito mais difícil do que atirar uma corda para o ar e esperar que

fique suspensa. Ele subtraiu à Coroa inglesa quatrocentos milhões de

súditos (ASSOULINE, 2009, p. 189).

Na curta assertiva a percepção da imagem narrada alude à fotografia como

elemento retentor; já a foto do Mahatma, aqui como memento, é recordação ínfima e

grandiosa de uma vida toda.

Antes de deixá-lo, o fotógrafo lhe mostra o catálogo de sua [...]

exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York. O Mahatma,

visivelmente bastante interessado, o folheia sem pressa. De repente ele

para, recua e olha fixamente para uma imagem.

– Qual o sentido dessa foto? – pergunta ele em inglês.

– O sentido não sei. Este e Paul Claudel, nosso grande poeta católico,

uma pessoa muito preocupada com o fim do último homem.

Page 9: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

9

Caminhávamos por uma rua de aldeia perto de seu castelo de

Brangues quando cruzamos com um carro fúnebre vazio, mas

paramentado e puxado por cavalos. Adiantei o passo para ficar de

frente, com a igreja ao fundo. Ele se virou para olhá-lo e então... [...]

Seu interlocutor fica como que petrificado.

– A morte, a morte, a morte... – murmura por fim, apontando para a

foto. Não dirá mais nada. A audiência chega ao fim. Cartier-Bresson

parte no meio da tarde, com sua bicicleta. Menos de uma hora depois,

ao chegar em casa, ele é empurrado por pessoas que correm nas ruas,

em pânico, gritando a plenos pulmões: – Gandhi está morto! Mataram

Gandhi! (ASSOULINE, 2009, p. 190).

Mahatma é morto, o corpo varado por três tiros. A vida de Gandhi agora estava

nos instantâneos. Nos de Bresson e em muitos outros, de muitos outros. As fotos ficam

como lembranças avatares, e cada uma registra momento de separação. As fotos dos

grandes mortos, de sua pessoa, do seu cortejo fúnebre, são um carpir, uma nênia que

alarma a perda. Mas voltemos à vida. Nesta, o olhar do fotógrafo busca o

acontecimento. Pode ser algo dotado de espontaneidade, o chamado fato de ação, que

tem começo, meio e fim. Mas pode ser, sem que com isso se perca sua essência

jornalística, fato construído pela composição – composição, não manipulação – do

momento decisivo. Bresson fazia isso sempre, apondo a uma imagem o seu fundo, o

homem e sua circunstância dilemática. Sem fundo, sem oposição, não há informação. E

mesmo no rosto em close há um fundo: aquilo que está por trás da expressão, da face. O

fotógrafo como o aquém dessa expressão-sentimento-fundo. A máquina, essa extensão

do retratista, captando o quê? Na verdade, ninguém sabe. Toda foto é uma manifestação

perplexa. Integrada ao fotografado, para realçá-lo do seu contexto; contexto que,

contudo, persiste, por insinuação. Mas é isso mesmo o que ele quer. O não-enquadrado

é parte da fotografia e do acontecimento. A foto flutua entre aquilo que mostra e aquilo

que elidiu.

[...] o acontecimento é inseparável de seu dispositivo de observação,

de maneira que a distinção entre o observador e o observado perde um

pouco de sua evidência. [...] Cada imagem é adquirida sobre um

número ilimitado de imagens virtuais (ainda que cada uma delas

esconda uma outra). [...] A representação da mídia de uma greve do

metrô é a imagem que lhe reflete a cidade, entendida como um fluxo

de circulações. A cidade se reflete na imagem de um pisoteado de

pedestres insólitos. De uma maneira geral, o que é acontecimento em

nossas sociedades (acidentes, catástrofes, delinqüência, terrorismo

etc.) revela destas sociedades a trama policial que é o seu inverso. A

tela – como superfície refletora – não é um acréscimo ao

Page 10: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

10

acontecimento; ela o revela (no sentido fotográfico), revelando-se a

ela própria (MOUILLAUD, 2002, p. 66-67).

O acontecimento, portanto, tem eiva de paixão, seja na documentação de fatos

que o senso comum já os recheie de tal, como na hipotética greve do metrô, seja na

câmara escura que todo fotógrafo deve trazer adrede a si. Porque, para expressar o

tempo em imagem é preciso esforço. A fotografia é essa expressão do tempo

transmutado à condição de figura. Na nossa tentativa de medir o tempo o marcamos em

segundos, minutos, horas. Mas temos também outras formas de medir o tempo, talvez as

mais singelas, e mais representativas do ato banal do estar vivo: muitas vezes falamos

em momentos e em instantes. Mas, quantos segundos tem um momento? Um instante

dura quantos minutos? Não importa. Momento ou instante são uma forma

desapercebida – porque trivial – de nos referirmos à cambial, mecânica, negligente ou

tensa passagem da vida. Um presente contínuo e suportável desde que não estejamos em

situação de espera. O minuto busca o tempo. O momento está preso à vida, é tempo em

sua forma de emoção. Ninguém espera por outro trinta momentos ou sessenta instantes.

Mas no infinitesimal interstício que une as ações que desenvolvemos durante a espera,

quando a continuidade repetida dessas ações se transforma em tédio, quando o tédio

cede lugar à angústia, quando a angústia chega a desespero, aí chega o momento, o

instante a nos dizer para não esperar jamais. O momento é o tempo sensível. Na

fotografia, então, é o precioso minuto não medido, é o instante primoroso, aquele

curtíssimo período sem tempo quantificado, mas à espreita. A espreita, na fotografia, é o

momento escandido da espera. E isso não cansa. É a espera consensual ao que virá. E

afinal vem o clique, conduzindo pela luz, à caverna escura da máquina, um excerto de

mundo. É quando o tempo-momento é recolhido e poeticamente arquivado, pois toda

fotografia tem essa intenção poética, mesmo quando impregnada da poética da desgraça

ou movida pelo burlesco.

A condução deste texto nos leva aqui a entender o sentido profundamente

humano e humanista de Bresson, aliado à sua percepção da História. Esta vai além da

simples atualidade, é algo complexo, dramático. O resultante da História é um

estruturante/estruturado da vida coletiva e da microvida individual. Influi no destino das

massas, das elites e no fado do desempregado. Assim, é tão importante a captação das

imagens de Gandhi, Matisse, Claudel, Satre, a vida na Costa do Marfim, México, a

Guerra Civil Espanhola, a coroação do Rei George VI, a Libertação de Paris ou as

Page 11: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

11

ruínas da Alemanha (ASSOULINE, 2009, p. 171) quanto visões do povo, anônimos

percorrendo ruas, paisagens de gente amontoada, dor e fastio do viver, olhares alegres,

visões boas do cotidiano.

A semântica bressoniana oscila entre o local deslocado de sua condição de

particularidade para o universal, que por isso mesmo ali está presente. Bresson registra

tais processos em cada foto-microcosmo. O potencial de historicidade é encontrado no

instantâneo, funcionando o fotógrafo como sujeito participante, uma vez que a

historicidade “não é apenas alguma coisa na qual nos „metemos‟ como quem veste uma

roupa. Nós somos historicidade, somos tempo e espaço” (HELLER 1993, p. 14).

A importância de se assumir como agente de historicidade lhe foi mencionada

em abril de 1947 pelo amigo Robert Capa, em Nova Iorque, quando Bresson encerrava

ali exposição que durara dois meses.

– Desconfie dos rótulos. Eles tranqüilizam, mas as pessoas se aferram

a eles e depois você não conseguirá mais se livrar. Vão pôr em você o

pequeno fotógrafo surrealista... Você estará perdido, se tornará

preciosista e maneirista. Continue o seu caminho, mas sob o rótulo do

fotojornalista, e guarde o resto no fundo do coração. É isso que

agradará você sempre que entrar em contato com o que acontece no

mundo (ASSOULINE, 2009, p. 170).

Com a superação da influência do surrealismo ampliou-se o olhar, ingressando

completamente na historicidade. Poderoso exemplo está em foto de 1948 quando da

débâcle da China Nacionalista, cuja legenda assim dizia:

Shanghai, dezembro de 1948. A corrida do ouro. À porta dos bancos

do Bund, filas enormes se formaram e invadiram as ruas vizinhas,

interrompendo todo o tráfico. Cerca de dez pessoas morreriam na

desordem. O Kuomintang decidira distribuir reservas de ouro,

quarenta gramas por cabeça. Algumas pessoas esperaram mais de 24

horas para tentar trocar seus papéis-moedas. A ordem era debilmente

mentida por uma polícia cujos equipamentos desconjuntados eram

remanescentes dos diversos exércitos que, ao longo de quinze anos,

haviam se interessado pela China (ASSOULINE, 2009, p. 205).

A foto é impressionante. Para entendê-la recuemos no tempo e façamos nossa

reinserção virtual à época, ao drama circunstanciado e suas manifestações de crueza

histórica e humana, com a derribada abrupta de um mundo milenar, uma sociedade em

ruínas. Esse artifício nos permitirá a percepção, mais que isso, a sensação, o leitmotiv,

Page 12: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

12

da performance bressoniana: a fixação da época em um momento, pois fotografia é

contexto. E como momento, como tempo emocionado de um e de outro lados, torna-se

expressão; é troca, pois é além e é aquém: do fotógrafo para a cena, desta para a foto e

da foto para o aquém/além final – nós.

A fotografia-cena mostra uma sinergia de desesperados que se engalfinham em

processo de encaixe, como se fora um balé grotesco. A foto tem movimento, ação,

angústia emplastrada a corpos e faces que se oprimem. Seu tom de baixa luminosidade é

dantesco, escuro como se o ar estivesse encardido. Um pouco acima, ao fundo, dois

homens, de costas para a fila, olham-na com olhar de estranhamento como se também

não fizessem parte daquela corrente de desgraçados. A fila vem da esquerda para a

direita. Os braços estendidos, o côncavo/convexo de corpos encastoados, que se

empurram em bricolagem medonha, dirigem a linha do olhar. A imagem tem ritmo e

movimento, desespero e um vago sentimento de que tudo aquilo resultaria em vão. Ali

estavam apenas condenados.

Suas fotos são efetivamente o que sugere seu Images à la sauvette, ou seja:

imagens colhidas à espreita, atitude furtiva e leoparda. O fotógrafo tenso espera, com a

paciência do momento, que o mundo perfile determinada cena. Mas a composição não

está no mundo, está dentro dele, fotógrafo. É preciso esperar que o ato se defina para ser

transposto à condição de fato. Assim, percebe-se em toda a sua obra a presença da

composição perfeita; do detalhe ao amplo, do grumo à totalidade. A obra Images à la

sauvette revela em título um estado de espírito de lancinante poesia porque poesia

experienciada. Foi vertido para o inglês à condição de The decisive moment, fórmula o

mais próximo possível ao estado de espírito bressoniano. E foi essa a predominância

que se fez. Não lhe tirou a grandeza, apenas o fez mais jornalístico. Talvez o exemplo

mais forte dessa práxis sauvette seja a foto de duas lésbicas, em 1934, México.

Uma noite, Cartier-Bresson comparece a uma pequena recepção na

casa de uma personalidade cuja garçonnière seu amigo Tonio Salazar

decorara. A tequila corria solta. Apenas Cartier-Bresson se abstém de

beber, consumido por uma disenteria amebiana. Para fugir do tédio,

ele visita a casa com o pintor, perde-se no labirinto de seus aposentos.

No andar de cima, eles ouvem um leve ruído, e então...

– Tive bastante sorte. Só precisei empurrar a porta. Duas lésbicas

faziam amor. Era de uma voluptuosidade, de uma sensualidade... Não

víamos seus rostos. Era maravilhoso, o amor físico em sua plenitude.

Tonio segurou uma lâmpada, fotografei várias vezes... Não havia nada

de obsceno. Eu nunca as teria feito posar. Questão de pudor

(ASSOULINE, 2009, p. 93).

Page 13: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

13

À obscuridade do ambiente une-se o obscurecimento buscado por quem se sabia

praticante de ato de licença, satisfação física de idílio interdito. A porta, entreaberta; a

lâmpada, improvisada; jamais o flash, com sua luz gritante, luz que levaria aquele ato à

condição de indecência e ultraje, tudo compôs a psique da foto.

La falta de definición del elemento central de la composición,

consecuencia del movimiento y de la baja velocidad de obturación,

provoca tensión en nuestra mirada. Los torsos y extremidades

entrecruzadas de las anónimas protagonistas sumados a la ocultación

de sus rostros acrecienta la sensación de caos formal en la escena.

Estos cuerpos reflejan una luz intensa que contrasta con las partes más

oscuras de la toma y aumentan la tensión. Por otra parte, la aparición

casi fantasmagórica y desproporcionada de una supuesta mano cerca

del vértice inferior derecho junto a la ocultación de los rostros es un

claro ejemplo de elementos que aumentan la tensión compositiva

(FABREGAT, 2010).

A foto tem algo de sigilo cúmplice. Mulheres sem rosto a se arder em privativo

fragor. Alcova e corpos enroscados. A luz, luz modesta, luz que é quase réstia, é

elemento formal forte e decisivo. Temperada pelo olhar do mago, ressalta o branco dos

corpos combinado à clara padronagem floral do lençol onde se abraçam. Dele partem

lampejos. Assim, foi obtida e ressaltada luminância sutil, quase fluorescente. Fagulhas

exalando a essência daquele ato a confessor silencioso e absolvente. Uma mulher cobre

a outra, mas não tem o corpo curvilíneo da femme fatale. A inexistência de beleza

corporal estonteante atira para longe qualquer intenção de gratuidade nesse erotismo. A

baixa velocidade do obturador amplia o efeito impressionista – o movimento das mãos

da mulher que está embaixo, e tenta despir a parceira de seus trajes íntimos.

Despojamento e entrega são a marca desse encontro de intensa e cândida malícia.

Mulheres sáficas e sem rosto. O anonimato desfeito tiraria daquele momento sua

essência de segredo para se transformar em escândalo e não era esse o caso. O fato de o

captor haver ajustado a velocidade do obturador indica como, cerebral e

apaixonadamente, elaborou aquele momento; como parou, calibrou a máquina,

posicionou-se e enquadrou, contribuindo na consumação de rito sigiloso. Após, saiu.

Bresson dizia, na apresentação de The decisive moment, em 1952:

Page 14: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

14

El fotógrafo no puede ser un espectador pasivo, no puede ser

realmente lúcido si no está implicado en el acontecimiento. La

memoria es muy importante, la memoria de cada foto tomada al

galope, a la misma velocidad que el acontecimiento; durante el trabajo

uno debe estar seguro de no haber dejado agujeros, de haber

expresado todo, porque después será demasiado tarde; no se podrá

hacer desandar el tiempo (CARTIER-BRESSON, 2010).

“Não se poderá desandar o tempo”. Essa a essência e a consciência do captor,

seu gesto, sua obra, sua arte poético-jornalística. Consciência a sabença de estar

imergido num tempo histórico e existencial, nessa relação de contradita

complementaridade entre a vida na polis e a vida enquanto estar e ser. Sua obra se

constitui em corolário e ilação. O primeiro como aspecto cerebral, argumentativo,

sintático: o homem preso às teias políticas de coordenação e subordinação no mundo; o

segundo eminentemente poético, estimativo, avaliação aproximada do que virá, o devir

dos outros e o seu próprio devir àquele encadeado. Seu trabalho, em todo o grande

momento decisivo de sua vida, foi de inquietação permanente e de equilíbrio que não

buscava permanecer. Apenas estar. Estar na hora certa e em certas horas em que era

preciso estar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOULINE, Pierre. Cartier-Bresson: O Olhar do século. Porto Alegre: L&PM,

2009.

BRASSAÏ, Gilbert. Proust e a fotografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

CARTIER-Bresson, Henri. El momento decisivo. Disponível em:

<http://fotojornalismojf.files.wordpress.com/2007/09/el-momento-decisivo.pdf> Acesso

em: 20 jun 2010.

FABREGAT, Hugo Doménech. Banco de datos: análisis de la imagen fotográfica.

Disponível em: <http://www.analisisfotografia.uji.es/root2/pdf/Cartier-

Bresson%20(1934).pdf> Acesso em: 20 jun. 2010.

HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sergio Dayrell (orgs). O jornal: da forma ao sentido.

2. ed. Brasília: editora Universidade de Brasília, 2002.

Page 15: A fotografia como paixão em Cartier-Bresson

15

TASSINARI, Alberto. Henri Cartier-Bresson: o instante radiante. In: MAMMI,

Lorenzo; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). 8 X Fotografia: Ensaios. Companhia das

Letras, 2008.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.