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A FORTALEZA CONTEMPORÂNEA: ENTRE A IMAGEM E O

IMAGINÁRIO URBANO 1

Ricardo Alexandre Paiva

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo compreender como a construção da imagem

contemporânea da cidade de Fortaleza-Ceará, por intermédio de intervenções urbanas

do poder público estadual e municipal se relaciona com a legitimação política dos

respectivos poderes, sobrepondo-se ao caráter coletivo da memória e interferindo no

imaginário sócio-espacial da cidade. Partindo do pressuposto da capacidade do espaço

urbano de expressar os aspectos simbólicos e ideológicos, será discutido o universo

conceitual da imagem, do imaginário e da memória, a fim de identificar as implicações

deste processo de transformação sócio-espacial.

Palavras-chaves: imagem e imaginário urbanos, memória, Fortaleza-Ceará.

1 - INTRODUÇÃO:

A utilização do discurso da renovação/requalificação/reabilitação/revitalização nas

propostas de intervenção urbana em Fortaleza, sobretudo na área central, apresenta

algumas contradições: por um lado, a tentativa de valorização do passado, tendo como

suporte o resgate de um tempo perdido sob a suposta valorização do patrimônio e da

memória urbana e por outro lado, a criação de novos valores que se projetam para o

futuro. Ambos os caminhos se revestem de intenções modernizantes e são edificados a

partir da construção de uma imagem moderna da cidade.

As questões de ordem cultural-ideológica sintetizam os interesses econômicos locais,

principalmente por intermédio do turismo, e os interesses políticos de manutenção do

poder, pois a imagem produzida de Fortaleza sob o mito da modernidade (cidade e

1 Artigo publicado nos Anais do I Encontro Estudos da Imagem – 2007.

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governo “modernos”) incorpora elementos simbólicos na sua construção, ressalta

Dantas:

Uma nova imagem é assim construída, a Cidade do Sol, concebida e inserida numa escala

mais ampla (sistema mundo), ela é elaborada pela elite política local, conforme a

indicação de uma consciência turística que a apresenta como o espelho do novo governo.

Assim, ela ultrapassa o contexto estritamente turístico e se revela propaganda política,

transformada peremptoriamente em publicidade para responder aos critérios do

desenvolvimento econômico e anunciar a modernização. (DANTAS, 2002:57). (Grifos no

original).

Estes elementos simbólicos se sustentam no espaço urbano na transmissão de

mensagens culturais e ideológicas (BARRIOS, 1986). Neste contexto, as intervenções

urbanas em Fortaleza cumprem o papel de legitimação política e econômica do Estado,

materializando a construção de uma imagem “oficial” de Fortaleza. No entanto, este

processo não está isento de contradições e conflitos, já que se verifica uma distância

significativa entre a imagem de modernidade produzida pelos governos e a realidade

efetiva da capital cearense. A segregação sócio-espacial é o indicativo mais

emblemático das contradições. Este quadro de segregação, que consiste dialeticamente

dos desdobramentos dos mesmos processos sociais, pode ser entendido a partir de uma

reflexão que contempla os limites da construção da memória da cidade a partir do

embate entre a imagem e imaginário urbanos.

2 - OS SIGNIFICADOS DA IMAGEM E IMAGINÁRIO URBANO

Freqüentemente, imagem e imaginário se confundem enquanto categorias de análise

sobre a cidade. Ambas produzem informação, mas se expressam de modo diverso. A

imagem e o imaginário urbano constituem manifestações de espacialização social

individualizadas no lugar.

A imagem urbana, segundo Lucrécia Ferrara:

(...) corresponde à informação solidamente relacionada com um significado que se

constrói numa síntese de contornos claros que a faz única e intransferível. (...) É um

código urbano e impõe uma leitura e fruição que estão claramente inscritos na cidade

como espaço construído (FERRARA, 2000:118).

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Nas elaborações conceituais sobre a sintaxe da imagem urbana, Ferrara (2000:120)

admite que a iconicidade da imagem, sempre renovada e construída como elemento

simbólico uno, é veiculada oficialmente como algo essencialmente estático e sintético.

Esta iconicidade da imagem urbana pode ser percebida na tentativa do Estado e da

Prefeitura de Fortaleza de mostrar exclusivamente a faceta “moderna” de Fortaleza.

Sendo assim, a cidade apresenta-se com uma imagem institucional, no nível simbólico,

que hierarquiza o espaço urbano, exibindo o poder que a organiza, utilizando essa

imagem para a manutenção desse poder. Revela-se desta forma a intenção de emplacar

uma imagem de Fortaleza com um único significado, identificado com o Estado,

eliminando as contradições inerentes à dinâmica urbana da cidade (diferenciação e

fragmentação), pois:

(...) é preciso reconhecer o caráter intrinsecamente ‘falso’ da imagem da cidade, uma vez

que, por sua própria natureza (sintética e unificadora), jamais guardará uma relação de

identidade, ou sequer de correspondência, com o objeto representado (GONDIM,

2001:10). (Grifos no original).

Essa imagem da cidade, não só repercute no olhar fugaz do turista, como também cria

nos moradores a ilusão de pertença, ocultando a percepção das contradições.

Evidentemente, a assimilação e aceitação da imagem da cidade pela população não se

consolidam de forma integrada, mas estão inscritas na lógica do imaginário urbano,

que ao contrário da imagem urbana:

(...) corresponde à necessidade do homem de produzir conhecimento pela multiplicação

do significado, atribuir significados ao significado (...) Pelo imaginário, a imagem urbana

– locais, monumentos, emblemas, espaços públicos ou privados – passa a significar mais

pela incorporação de significados extras e autônomos em relação à imagem que lhe deu

origem (FERRARA, 2000:118).

Nesta perspectiva, o imaginário urbano abre a possibilidade de transcender as limitações

de uma imagem unívoca e cristalizada, pois possibilita, através da participação do

cidadão, “no emaranhado dos seus sentimentos, memórias, experiências e informações

urbanas” (FERRARA, 2000:118) o desencadeamento de um processo de transformação

que duvida das formulações pré-concebidas da imagem produzida.

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O imaginário urbano, assim como a imagem urbana, se desenvolve através da percepção

e da recepção, mas enquanto na imagem urbana a percepção é uma constatação, uma

visualização e a recepção é uma fruição, no imaginário a percepção exige um juízo

perceptivo e a recepção incorpora a participação (FERRARA, 2000). Nestes termos, o

imaginário tem uma conotação mais sociológica (GONDIM, 2001:12), porque mais

complexa, dependente de uma inteligibilidade sobre a cidade.

Partindo do princípio que a imagem é a cidade vista e o imaginário é a cidade

imaginada, no sentido de pretendida (SILVA, 2001), pode-se admitir que imagem e

imaginário constituem um par simbólico, na qual os significados excedem os signos.

Estas considerações auxiliam a compreensão das intervenções do Estado e da Prefeitura

na paisagem urbana de Fortaleza e a interação entre a mensagem pretendida (espaços de

representação2) e o seu enfrentamento com a realidade (representações do espaço3),

relacionados à imagem e ao imaginário urbanos, respectivamente.

3 - O LUGAR COMO SUPORTE DA MEMÓRIA DA CIDADE

Segundo Halbwachs, (1990:143), “não há memória coletiva que não se desenvolva num

quadro espacial”. Esta afirmação implica na necessidade de justificar a

inseparabilidade entre tempo e espaço na definição da memória social e suas

conseqüências na memória das cidades, um coletivo de lugares.

A ligação do conceito de lugar, como espaço dotado de significação, ao de memória

acontece quando se introduz o conceito de “memória do lugar”, ou seja, o lugar suporta

e reforça a memória social, através da manutenção de suas formas espaciais.

Segundo Abreu (2000), a crescente valorização do passado pode ser entendida pelas

mudanças ocorridas a partir da globalização, que por colocar as relações espaço-tempo

em outra dimensão, opera simultaneamente com a homogeneização e a necessidade de

individualização. Neste sentido, “o passado é uma das dimensões mais importantes da

singularidade”, fazendo ressurgir a valorização e criação do lugar, que na maioria das

vezes se manifesta como uma forma esvaziada, conseqüência de uma história e 2 As representações do espaço como “o espaço do poder, da burguesia, do capitalismo” (LEFEBVRE apud LIMONAD, 2003:29), identificados com o conceito de “espaço abstrato”. 3 Os espaços de representação como “o espaço do vivido, dos habitantes e dos usuários “ (LEFEBVRE apud LIMONAD, 2003:29), identificados com o conceito de “espaço social”.

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memória sem conteúdo. O vínculo da globalização com a atual forma de valorização do

passado tem lugar também na crescente transformação do passado em objeto de

consumo e sua valorização serve aos interesses da atual fase do capitalismo.

A primeira esfera da memória que tem vínculo com a dimensão espacial é a memória

individual. Esta categoria, muito mais biológica/psicológica, tem interesse para o estudo

da memória da cidade quando é elemento essencial da identidade de um lugar,

principalmente a partir da modalidade da história oral. No entanto, sua contribuição é

válida apenas quando direcionada para a identificação de um lugar coletivo, na

interseção de memórias individuais. Pelo seu caráter individual e restrito, o espaço da

memória individual é subjetivo, deformado, as escalas são distorcidas, isto a torna

insuficiente para o estudo da memória das cidades (ABREU, 2000).

Neste sentido, a memória de um lugar e das cidades é uma memória coletiva, que “não

é a agregação pura e simples de memórias subjetivas”. Para Halbwachs (1990) a

memória coletiva é um conjunto de lembranças construídas socialmente e referenciadas

a um conjunto que transcende o indivíduo. A memória coletiva, além de estar

referenciada no lugar, existe em função da ligação que estabelece com um grupo de

pessoas e a dinâmica de suas práticas sócio-espaciais. Este quadro espacial, diferente do

espaço subjetivo da memória individual, é um espaço compartilhado e vivido, ou seja, o

lugar.

Halbwachs (1990:82) admite que a memória coletiva é também uma corrente de

pensamento contínuo, que retém do passado somente aquilo que ainda está vivo ou

capaz de viver na consciência de um grupo. O desaparecimento do grupo significa a

substituição da memória coletiva pela memória histórica. Nas suas palavras:

Quando a memória de uma seqüência de acontecimentos não tem mais por suporte um

grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqüências,

que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores,

quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas

sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhe são decididamente

exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças é fixá-las por escrito em uma

narrativa seguida, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos

permanecem (HALBWACHS, 1990: 80-81).

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Os objetos materiais servem, então, tanto de suporte para a memória coletiva, como de

testemunho para a memória histórica, além de reproduzirem ambas. No entanto, é

importante observar que a cidade funciona como denominador comum de várias

memórias coletivas, pois:

(...) a cidade não é um coletivo de vivências homogêneas. Para definir o que seria a

memória das cidades, nossa categoria de análise não pode ser a população. O que faz com

que surja uma memória grupal ou social, referida a um lugar, é o fato de que aquele grupo

ou classe social estabeleceu ali relações sociais. Estas relações, entretanto, podem ser de

dominação, de cooperação ou de conflito, e variam tanto no tempo como no espaço.

Conseqüentemente, a vivência da cidade dá origem a inúmeras memórias coletivas, que

podem ser bastantes diferentes uma das outras, mas que têm como ponto comum a

aderência à essa mesma cidade (ABREU, 2002).

As relações de “dominação e conflito” se verificam principalmente na dimensão da

memória histórica, pois as classes mais abastadas, representadas na maioria das vezes

pelo Estado, são responsáveis pela construção dos objetos mais duráveis na paisagem

das cidades, como intervenções na estrutura urbana, monumentos e edifícios públicos,

assim como são os detentores das instituições de preservação da memória oficial.

A estrutura urbana, os espaços públicos (parques e praças), os monumentos, o

patrimônio cultural e ambiental como um todo, representam importantes elementos na

preservação da memória histórica e da memória coletiva, pois são “lembranças que

estão eternizadas na paisagem ou nos registros de um determinado lugar, lembranças

essas que são agora objeto de reapropriação por parte da sociedade” (ABREU, 2002).

O patrimônio cultural e ambiental tomado como memória histórica, na condição de

testemunho e como preservação de memórias coletivas, na condição de elemento

dinâmico do cotidiano, é a base das políticas de preservação implementadas pelo

Estado. Estas políticas de preservação da memória, por intermédio das intervenções no

espaço urbano, constituem ações orientadas para garantir os interesses econômicos e

políticos dos grupos dominantes, sob a proteção do Estado. Quando apropriada pelo

Estado, a memória a ser preservada e construída manifesta-se unívoca e autoritária,

impondo-se sobre a diversidade das memórias coletivas. A política de preservação

inscrita numa:

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(...) política cultural que idolatre a memória enquanto memória ou que oculte as

memórias sob uma única memória oficial está irremediavelmente comprometida com as

formas presentes de dominação, herdadas de um passado ignorado. Fadada à repetição e

impedida de inovação tal política cultural é cúmplice do status quo (CHAUÍ, 1992:43).

As estratégias de representação dos governos que usam o patrimônio histórico e cultural

para veicular uma idéia de inserção urbana e regional dentro do modelo econômico

vigente através de uma nova imagem da cidade, não podem ser confundidas com

política cultural. Com base nestas estratégias dos governos, torna-se imprescindível o

questionamento do papel do Estado no que toca à memória e à preservação, pois:

O estado não pode colocar-se como centro de onde se define e irradia a memória, pois, ao

fazê-lo, destrói a dinâmica e a diferenciação interna da memória social e política; não

pode ser produtor da memória nem o definidor do que pode e deve ser preservado. O

Estado deve comporta-se como serviço público aos cidadãos (CHAUÍ, 1992:45).

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caso específico de Fortaleza, o que se pretende aqui mostrar é que as intervenções

urbanas e os discursos e as práticas de preservação do patrimônio cultural e ambiental,

sob a liderança do Governo do Estado e Prefeitura Municipal, malgrado a sua incipiente

e rarefeita atuação, contribuem para o obscurecimento da memória da cidade e

principalmente do seu Centro. Sua maior evidência é a ausência de ações efetivas

relativas à preservação da memória do Centro a partir da estrutura urbana, monumentos

e edifícios históricos. Pelo contrário, as intervenções no Centro de Fortaleza parecem

ignorar a paisagem existente com o intuito de atender ao mito da cidade moderna,

fundando uma nova tradição.

5 - BIBLIOGRAFIA

ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a memória das cidades. VI Seminário de

História da Cidade e do Urbanismo. Natal, 2000.

BARRIOS, Sônia. A Produção do Espaço. In: SOUZA, Adélia de e SANTOS, Milton

(org.). A Construção do Espaço. São Paulo. Nobel, Coleção Espaços, 1986.

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CHAUÍ , Marilena. Política Cultural, Cultura Política e Patrimônio Histórico. In: O

direito à memória : patrimônio e cidadania . Secretaria Municipal de Cultura.

Departamento do Patrimônio Cultural, 1992.

DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. A construção da imagem turística de

Fortaleza/Ceará. In: MERCATOR (Revista de Geografia da UFC). Ano 1,

número 01, 2002.

FERRARA , Lucrecia D’Alessio. Os Significados Urbanos. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo: Fapesp, 2000.

GONDIM , Linda Maria de Pontes. Imagem da Cidade ou Imaginário Sócio-espacial?

Reflexões sobre as relações entre espaço, política e cultura, a propósito da

Praia de Iracema. Revista de Ciências Sociais v.32 n. 1/2 2001.

HALBWACHS , Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LIMONAD , Ester (org). Entre a ordem próxima e a ordem distante: contribuições a

partir da obra de Lefebvre. X Encontro Nacional da ANPUR (Sessão Livre)

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SILVA , Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.