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A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA ÁREA DA INFORMAÇÃO EM TEMPOS DE MUDANÇA
Jussara Pereira Santos1
RESUMO: A formação do bibliotecário inicia-se no Brasil a partir da instalação do curso da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1911, único no país até os dias de hoje a apresentar em ensino de cunho humanista. A tendência tecnicista é clara nos currículos mínimos de 1962 e 1982, apesar das Diretrizes Curriculares do MEC (2001) estimularem o desenvolvimento de habilidades e competências que levem o profissional a desempenhar com proficiência e criatividade os problemas de sua prática profissional. A observação feita nos currículos disponíveis e acessíveis na internet em maio de 2007, mostrou que, após a área de Fundamentos das Ciências da Informação, é a Área de Gestão da Informação a que maior densidade de disciplinas apresenta seguida da Área de Organização e Tratamento da Informação. A área de Recursos e Serviços da Informação é a que contém o menor número de disciplinas. Permanece, portanto, a tendência tecnicista nos currículos de hoje, fortemente influenciada pelos conhecimentos relativos à gestão de recursos informacionais. Com a falta de bibliotecas escolares e públicas no país prestando serviços de inclusão social através da informação, fica evidente a necessidade de estudos mais significativos relativos aos usuários, incluindo-se aí o desenvolvimento de competências informacionais. O papel de agente de transformação social que o bibliotecário deseja desempenhar deve ter seu foco na solução de problemas para a grande massa de excluídos que circundam as grandes cidades e grande parte do interior do país. Acredita-se que as eventuais modificações curriculares devam ser feitas para atender as realidades circundantes das regiões onde se encontram os cursos de Biblioteconomia, estimulando a criação de serviços bibliotecários em escolas e em comunidades afastadas dos centros mais desenvolvidos.
PALAVRAS-CHAVE: Bibliotecário. Formação Acadêmica.
1 Mestre em Biblioteconomia pela Vanderbilt University, USA; Professora Adjunta do Curso de Biblioteconomia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. E-mail: [email protected]
1 ESCLARECIMENTOS INICIAIS
Ao analisar o título proposto pelos colegas organizadores deste
CBBD, deparo-me com a expressão profissional da área de informação, o que
me leva a um primeiro esclarecimento: nesta comunicação estaremos refletindo
sobre a formação do bibliotecário enquanto profissional da área de
informação. Considero o bibliotecário como sendo um dos profissional da informação, já que temos como parceiros muito próximos os arquivistas, os
museólogos, os analistas de sistemas, os comunicadores e tantos outros
profissionais que usam a informação como matéria prima para seu trabalho
profissional. Chamo em meu apoio Richard Mason que, já em 1990, via a
profissão de bibliotecário como uma das mais importantes dentre o grupo dos
profissionais da informação: ”[ . . .] contador, arquivista, bibliotecário, analista
de sistema [ . . . ] e curador de museus.” (p.125).
Isto posto, vamos tentar pensar sobre o nosso passado, observar o
panorama atual do ensino de Biblioteconomia brasileiro e refletir um pouco
sobre o futuro e, quem sabe, com uma pitada de sorte, vislumbrar o que deve
mudar.
2 UM FIO DE HISTÓRIA
Todos nós, bibliotecários, ao ingressarmos nos cursos de
Biblioteconomia brasileiros ouvimos de nossos professores relatos que nos
levaram ao passado. Histórias do início do século XX, do ano de 1911, quando
a Biblioteca Nacional (BN) inaugurou o primeiro curso brasileiro nesta área e,
do ano de 1929, quando foi a vez de São Paulo oferecer um primeiro curso
junto ao Instituto Mackenzie e, posteriormente, em 1936, junto à Prefeitura
Municipal de São Paulo. Estes fatos encontram-se detalhados em inúmeros
documentos (MUELLER, 1985; SANTOS, 1998; CASTRO, 2000, entre outros)
e todos, ao referirem-se às características do ensino ministrado, incluem uma
informação que é constante: a influência francesa no ensino oferecido pela BN
e a influência norte-americana marcando os cursos de São Paulo. A partir de
então, foram criados cursos em todo o Brasil, implantados por profissionais
egressos dos cursos paulistas, aportando-lhes a ênfase recebida durante sua
2
formação. Os anos passaram e, em 1962, dois fatos marcaram a
Biblioteconomia brasileira: a regulamentação profissional e a aprovação pelo
Ministério da Educação do primeiro currículo mínimo. Foi necessário o decurso
de 20 anos para que surgisse um novo currículo mínimo (CONSELHO ..., 1982)
e outros quatorze anos para que fossem publicadas as Diretrizes Curriculares
para os Cursos de Graduação em Biblioteconomia (BRASIL, 2001), uma
decorrência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (BRASIL,
1996). A leitura feita sobre os currículos mínimos mostra a ênfase nas
atividades meio (organização e tratamento documental) o que significou a
“vitória” daqueles que defendiam a chamada vertente tecnicista. Justificativa
interessante é oferecida por Castro sobre essa questão: “Este Currículo
objetivava, entre outras questões, atender às necessidades do ´mercado
biblioteconômico ascendente´, ao aumento da produção científica brasileira que
requeria organização e controle, e as técnicas biblioteconômicas eram o canal
privilegiado para isso [ . . . ]” (2000, p. 208-209). Aqueles que defendiam que
a formação do bibliotecário deveria incluir disciplinas que lhes dessem, além
dos conhecimentos técnicos necessários, uma formação humanística e
conceitual, manifestaram sua inconformidade. Ícones da época como Edson
Néri da Fonseca, Laura Garcia Moreno Russo e Antônio Caetano Dias
registraram suas opiniões nesse sentido em várias publicações (CASTRO,
2000).
As Diretrizes Curriculares propostas pelo MEC em 2001, baseiam-se no
desenvolvimento de competências e habilidades gerais e específicas, além do
domínio dos conteúdos próprios da Biblioteconomia, de modo que os
profissionais bibliotecários sejam “[ . . . ] preparados para enfrentar com
proficiência e criatividade os problemas de sua prática profissional, produzir e
difundir conhecimentos, refletir criticamente sobre a realidade que os envolve,
buscar aprimoramento contínuo e observar padrões éticos de conduta [ . . . ] “
(BRASIL, 2001)2
Da época da aprovação do primeiro currículo mínimo até o presente, as
questões curriculares estiveram sempre presentes nas preocupações dos
professores de Biblioteconomia, não sendo, porém, as únicas e outras de
grande importância foram se agregando. Uma das recomendações do III
2 Documento eletrônico.
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Encontro Nacional de Ensino de Biblioteconomia e Ciência da Informação
(ENEBCI), realizado em São Paulo, em 1992, promovido pela Associação
Brasileira de Ensino de Biblioteconomia e Documentação (ABEBD), evidencia
estes fatos:
Currículo: a) que os currículos não se pautem unicamente no mercado de trabalho, mas se preocupem em possibilitar que o futuro profissional seja capaz de transferir conhecimentos adquiridos para a solução de questões novas, próprias de outro momento histórico [nosso grifo]; b) que o currículo mínimo de Biblioteconomia seja encarado não como uma ´camisa de força´, mas como instrumento que permite grande flexibilidade na elaboração dos diferentes currículos plenos; (ASSOCIAÇÃO . . ., 1995, fls 5).
Sem entrar no mérito da expressão transferir conhecimentos, corrente
na época, o importante da primeira recomendação estava em desenvolver no
educando possibilidades de buscar soluções para questões novas, próprias de
qualquer momento de sua futura vida profissional. Daí já se vislumbrava o que
muitos anos depois seria a meta perseguida pela Associação Brasileira de
Educação em Ciência da Informação (ABECIN), a sucessora da ABEBD, aqui
muito claramente colocada por Johanna W. Smit: “A atuação de ABECIN na
organização de variados foros de discussão tem tido por meta a reflexão sobre
a dualidade entre o ´fazer´ e o ´saber´, na manifesta intenção de reforçar o
ensino do ´saber´ em detrimento do ensino do ´fazer´ ” (2003, p. 101). Ou seja,
ensinar a buscar soluções. Com relação à alínea b, entendia-se a possibilidade
da elaboração de currículos adequados às várias realidades brasileiras. Cada
curso poderia ousar e experimentar de acordo com as necessidades da
comunidade local/regional.
No panorama mundial, a última metade do século passado trouxe
grandes alterações provocadas pela globalização e pelo fortalecimento dos
blocos econômicos, pelo fim da guerra fria e da disputa política e econômica
entre o leste e o oeste. A partir de então, foi a vez dos mais fortes contra os
mais fracos, do hemisfério norte sobre o hemisfério sul. Aconteceu a chamada
“explosão bibliografia”, a tecnologia se expandiu e “o cérebro eletrônico” (assim
foi chamado o “avô” dos atuais computadores) impôs sua presença. E, no final
da década de 90, a rede das redes aconteceu, trazendo o que pareceu ser “o
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fim do mundo” para as bibliotecas tradicionais. Paradoxalmente, foram
inauguradas imensas bibliotecas nacionais, as chamadas Novas Alexandrias,
mostrando um convívio possível entre os suportes tradicionais e as mídias que
surgiam a cada momento (MELOT, 1999).
3 A EDUCAÇÃO EM BIBLIOTECONOMIA
Os fatos acima mencionados impactaram o ensino de Biblioteconomia
no Brasil, mostrando que a união deveria ser cada vez maior não somente
entre os cursos brasileiros, mas igualmente, entre os cursos dos países do
Mercosul, o qual já era uma realidade. Havia a necessidade de preparação
dos bibliotecários, a exemplo do que já ocorria em outras profissões no Brasil e
na Europa, para a mobilidade profissional entre os países do bloco o que só se
concretizaria caso houvesse uma base curricular comum. Ocorreu uma
movimentação geral coordenada pela ABEBD e os estudos de harmonização
curricular entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai foram empreendidos e
realizados com sucesso.
A região passou a contar com uma proposta de consenso tanto em
relação à estrutura geral do currículo quanto aos conteúdos básicos a serem
incluídos. A estrutura curricular foi organizada dentro do que foi designado
“área de ensino”, a saber: Área 1 – Fundamentos Teóricos da Biblioteconomia
e da Ciência da Informação; Área 2 – Processamento da Informação; Área 3 –
Recursos e Serviços de Informação; Área 4 – Gestão de Unidades de
Informação; Área 5 – Tecnologia da Informação; Área 6 – Pesquisa. No Brasil,
houve o entendimento, pela maioria dos cursos, de que a pesquisa e as
tecnologias da informação não deveriam constituir áreas independentes, mas
perpassar todas as demais. Novamente, a preocupação em “ensinar a saber”,
ou seja, procurar através da investigação formas para a solução de problemas
de todas as áreas.
A ABECIN preocupou-se (e preocupa-se) com a qualificação dos
docentes sabendo que de sua postura e engajamento depende o sucesso e/ou
fracasso de qualquer projeto político pedagógico. Assim, com vistas ao
aprimoramento das práticas pedagógicas, tem promovido as suas Oficinas
Pedagógicas. Aponta-se aqui os temas centrais de algumas delas:
5
(Re)construção das Práticas Pedagógicas no Processo de Ensino-
Aprendizagem em Ciência da Informação (Rio de Janeiro, 2004), As
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) como Ferramenta
Pedagógica no Processo de Ensino-aprendizagem em Ciência da Informação
(São Paulo, 2005) e A Leitura como Prática Pedagógica na Formação do
Profissional da Informação (Curitiba, 2005). O Seminário Pedagógico (2003)
sobre Gestão da Informação, os Encontros de Escolas (ou Docentes) de
Biblioteconomia (regionais, ocorrem desde 1992), os Seminários Nacionais de
Avaliação Curricular além do Encontro Nacional de Educação em Ciência da
Informação mostram os eixos de trabalho da Associação. Relatórios da grande
maioria destes eventos encontram-se no site da Associação assim como as
palestras e conferências ministradas.
Em síntese: além das grandes mudanças econômicas e tecnológicas,
temos novas propostas de organização e flexibilização curricular, foco no
desenvolvimento de competências e habilidades e um movimento associativo
atuante.
E então, isso tudo foi fator de mudança na formação do bibliotecário
brasileiro?
4 MUDANÇAS? SIM? NÃO?
Mudanças, sim. Observando os currículos de 17 Cursos através de
seus sites e a distribuição das disciplinas nas quatro áreas principais da
estrutura proposta pela ABECIN, verificou-se que a Área de Fundamentos
Teóricos da Biblioteconomia e da Ciência da Informação (1) concentra o maior
número de disciplinas obrigatórias oferecidas. Compreende-se este fato por
ser a área que abriga as disciplinas instrumentais (línguas: vernácula e
estrangeiras), Informática, Lógica, Metodologia da Pesquisa, dentre outras)
além das disciplinas ligadas às Ciências Sociais e Humanas (História,
Sociologia, Psicologia, por exemplo) e aos princípios da Biblioteconomia e
Ciência da Informação. Das instituições observadas, duas oferecem cinco
disciplinas na Área enquanto quatro oferecem de 20 até 25 disciplinas
obrigatórias. A grande maioria situa seu oferecimento em torno de 12 e 15
disciplinas. O aluno que toma conhecimento dos conteúdos mencionados
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nesta Área é capaz, certamente, de entender melhor o mundo e com sua ação
nele interferir de forma positiva. É capaz de identificar situações problemáticas
e buscar soluções através do estudo e da pesquisa. Sabe comunicar-se na
língua vernácula com competência e tem conhecimentos de línguas
estrangeiras.
Já a Área de Processamento da Informação (2) inclui a organização, o
processamento e o tratamento da informação e, neste estudo, representa o
terceiro grande núcleo de disciplinas ofertadas. Um único curso oferece quatro
disciplinas enquanto que a grande maioria oferece entre onze e dezoito
disciplinas. Nela estão disciplinas como Representação Descritiva e Temática,
Análise Documentária (ou da Informação), Linguagens Alfabéticas de
Indexação e Normatização de Documentos. Esta foi uma mudança grande se
lembrarmos que os currículos mínimos eram eminentemente técnicos e que
neste momento a área “tecnicista” encontra-se em terceiro lugar no número de
disciplinas oferecidas.
A Área 3 – Recursos e Serviços de Informação é, em termos relativos às
outras áreas, aquela que abriga o menor número de disciplinas. Um curso
oferece apenas uma disciplina e os demais permanecem no intervalo de quatro
até sete disciplinas. Deve-se ressaltar que nesta Área encontram-se os
conteúdos relativos às Fontes de Informação, Serviço de Informação e
Referência e Educação de Usuários (hoje information literacy), ou seja, todas
relativas aos serviços-fim das bibliotecas e que a única disciplina que consta de
todos os currículos observados é a de Serviço de Informação e Referência. É
difícil entender as razões destas lacunas. Pode-se afirmar, exagerando um
pouco, que um acervo geral é menos importante do que boas fontes de
informação, tanto gerais quanto especializadas. É a partir do seu uso que se
constrói o acervo que irá solucionar as grandes demandas de informação da
comunidade a que a biblioteca serve. As pesquisas para o desenvolvimento de
coleções não existem sem as fontes. Sabendo-se que existe a informação em
determinado documento, pode-se localizá-la com o uso da internet e
possivelmente colocá-la à disposição do usuário em pouco tempo. Com os
conteúdos instrumentais da Área 1, Comunicação, Psicologia e Línguas,
acrescidos daqueles trabalhados nas disciplinas de contato com o público
serão realizadas entrevistas de referência adequadas, identificando-se
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claramente a demanda feita e provendo “[ . . . ] a informação certa, a partir da
fonte certa, para o cliente certo, no tempo certo e na forma adequada para o
uso a que se destina e a um custo que seja justificado pelo uso que será feito.”
(MASON, 1990, p.125, tradução nossa). Os bibliotecários também poderão
criar serviços adequados para a comunidade a que servem, desde que tenham
tomado conhecimento de sua existência ainda durante o curso de graduação. E
a information literacy? Trazendo para o bom português, trata-se da
competência informacional ou alfabetização informacional como alguns autores
preferem, comumente designada como educação de usuários. São as ações
que os bibliotecários empreendem para tornar os usuários das bibliotecas
autônomos na busca e no melhor uso da informação para toda a sua vida
pessoal e profissional. Pouquíssimos cursos têm esta disciplina em seu
currículo. Constata-se, lamentavelmente, que a área dedicada diretamente às
ações para com os usuários continua sendo “a prima pobre” dos nossos
currículos.
Á Área de Gestão da Informação (4) contém de cinco até vinte
disciplinas. Comparando-a com a Área 2, pode-se afirmar que a quantidade de
disciplinas ofertada é ligeiramente maior do que esta última, significando uma
tendência no ensino que procura formar gestores de unidades de informação
com forte embasamento técnico. Esta é outra mudança significativa de foco já
que os currículos mínimos não privilegiavam a gestão, mas sim a organização
de bibliotecas.
As ementas (ou súmulas) das disciplinas oferecidas em todas as Áreas
levam a crer que os conteúdos programáticos delas decorrentes são bastante
complexos e exigentes. Os conhecimentos de informática acham-se fortemente
representados em disciplinas como Introdução à Informática, Planejamento e
Elaboração de Bases de Dados e Redes de Informação As disciplinas de
Representação Descritiva e Temática e Indexação privilegiam a sua aplicação
aos sistemas informatizados e há a necessidade de um controle terminológico
eficiente. Houve uma época em que a classificação bibliográfica era utilizada
para a recuperação dos registros documentais; hoje, são as palavras que
contam na localização de informações, ou seja, os documentos e as
informações neles contidas. O uso das redes de informação obriga os sistemas
a ser compatíveis para fins de troca e acesso às informações. Isto representa
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um esforço maior no controle da terminologia utilizada. As estratégias de busca
on line requerem qualificação por parte dos usuários e dos bibliotecários devido
à sua complexidade. A Área 2, portanto, modificou-se inteiramente a partir da
automação de acervos (1960 nos Estados Unidos e final da mesma década no
Brasil).
A gestão de bibliotecas também se tornou mais complexa. De um lado, o
aumento de acervo e da população a ser atendida e, do outro, a própria
automação dos processos técnicos e administrativos. Planejamento
Estratégico, Marketing, Gestão do Capital Humano, Estudos de Comunidades e
de Usuários, Políticas de Informação e Empreendedorismo são apenas
algumas das muitas disciplinas oferecidas. O bibliotecário gestor é tão
importante que cursos de Gestão da Informação ou de Biblioteconomia e
Gestão de Unidades de Informação estão sendo oferecidos regularmente
(Universidade Federal do Paraná e Universidade Federal do Rio de Janeiro,
respectivamente). Esta é a segunda área em densidade de disciplinas
obrigatórias oferecidas e, em alguns cursos, supera até mesmo a Área de
Fundamentos.
A complexidade dos conteúdos da Área 2 e os desafios para o
acompanhamento do desenvolvimento tecnológico parecem seduzir a alunos e
docentes que acreditam que de seu domínio dependerá a eficiência da
biblioteca se esta for gerenciada dentro de princípios adequados.
Mudanças, não. Em verdade, os conteúdos acima são absolutamente
necessários numa época em que as bibliotecas das cidades com população
acima de 20.000 habitantes possuem, em sua maioria, recursos eletrônicos
disponíveis para o tratamento, disseminação e intercâmbio de registros
bibliográficos. O acesso à internet é facilitado nestas localidades. Os
conhecimentos especializados, aliados às práticas eficientes de gestão de
unidades de informação (bibliotecas), farão com que os registros dos suportes
informacionais e mesmo as informações sejam rapidamente identificados e
localizados. Uma primeira conclusão plausível é que muitas foram as
mudanças (para melhor) ocorridas nas técnicas de processamento dos
registros bibliográficos, da recuperação de informações e da gestão das
bibliotecas. Mas, este é objetivo das bibliotecas? Ou é um de seus objetivos
para atingir sua finalidade maior: servir às pessoas? Creio que é necessário
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lembrar que ao lado das comunidades mais ricas, bem ao lado, encontram-se
as favelas e os bolsões de miséria. Cada vez mais um contingente enorme é
marginalizado, sem acesso à moradia, alimentação, segurança e educação. As
populações pobres das cidades e a grande maioria dos municípios do interior
do país incluem-se na chamada brecha digital onde, se existe um computador
não existe o acesso à rede; se existe o acesso à rede não existe quem instrua
sobre a qualidade das informações disponibilizadas e muito menos em como
usar estas informações (sejam comunitárias, científicas, tecnológicas, etc). A
sociedade da informação na qual nos acreditamos incluídos - tanto no Brasil
quanto na América Latina - tem muitos aspectos semelhantes. Mercedes
Patalano refere-se ao assunto afirmando que “[ . . . ] não são sociedades da
informação, ainda que uma parte de sua população dela participe como
produtora e consumidora da sociedade global de informação, já que setores
majoritários se encontram marginalizados como conseqüência do
desenvolvimento desigual.” (2004, p. 139, tradução nossa). Se concordamos
com a afirmativa da autora, cabe indagar se os egressos dos nossos cursos de
graduação estão sendo preparados para lidar com estas diferenças, trabalhar
com a pobreza e ajudar a combater a ignorância Trabalhar com recursos de
qualidade pode ser um desafio para aquele bibliotecário eticamente
comprometido com o melhor desempenho possível. “Vai à luta” como dizem os
jovens, estuda, pesquisa e encontra a solução. Identifica-se aí o perfil do
egresso que com espírito investigativo e pró-atividade. E trabalhar sem
recursos, como é? Como se constrói um acervo sem recursos financeiros?
Como se organiza este mesmo acervo sem o uso do microcomputador? Fichas
datilografadas, manuscritas? Fichário à moda da caixa de sapato? Empréstimo
em caderno? Quem ousa afirmar que esta possibilidade não existe? Acredito,
lamentavelmente, que exista até mesmo em Estados menos pobres e para
trabalhar nestas condições a criatividade e a ousadia devem fazer parte do
perfil do egresso dos cursos de Biblioteconomia. É neste momento que a
grande lacuna existente na Área 3 – Recursos e Serviços de Informação, vai
aparecer. Já observamos que esta é a “área pobre”, a menos densa em oferta
de disciplinas. E então aquela colocação de “tudo pelo usuário” é verdadeira?
Bibliotecário capaz de transformar a sociedade (dos info-ricos em mais info-
ricos)? Então, pode-se afirmar, que enquanto a nossa estrutura curricular não
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abrigar conteúdos relativos aos estudos dedicados à superação das
necessidades informacionais dos cidadãos que nem sabem que o são, não
estaremos desenvolvendo habilidades e competências que levem o egresso a
cumprir com o papel social que alardeamos desempenhar. E como os
egressos seriam diferentes do que são? São fruto, ainda, de um ensino
tecnicista, muito sofisticado, muito complexo, com técnicas de gestão
avançadas, mas ainda tecnicista. O usuário é o último na realidade e o
primeiro no discurso.
A questão do apego aos regulamentos e normas é outra característica
nossa, desta vez de ordem burocrática, assim como o são os horários e os dias
de funcionamento das nossas bibliotecas públicas, escolares e universitárias,
especialmente aquelas ligadas ao poder público. Não proponho o
estabelecimento da anarquia. Normas e regras são boas, desde que possam
ser quebradas quando a situação exigir. Por exemplo: em determinada
biblioteca, apresenta-se um usuário portador de necessidades especiais
acompanhado de um familiar, numa sexta-feira, ao redor das 17h30min Para
bem de cumprir com suas obrigações escolares, escolhem uma série de livros
necessários para o estudo no final de semana. No momento do empréstimo,
esse usuário é alertado – pelo atendente – de que podem ser emprestados
somente três documentos, pois assim é o regulamento. Infelizmente, o usuário
saiu apenas com os três documentos permitidos deixando os outros “dormir”
nas prateleiras da biblioteca. No entanto, o regulamento foi cumprido. Qual a
eventual vantagem que o cumprimento dessa norma trouxe para a biblioteca?
Absolutamente nenhuma. Talvez as traças tenham ficado satisfeitas. A
priorização das regras, em detrimento da satisfação das necessidades
informacionais do usuário, confere à biblioteca excelência na padronização de
procedimentos e condutas. Todavia, o objetivo maior do bibliotecário não foi
alcançado: possibilitar o acesso irrestrito e comprometido à informação. Casos
como estes só nos envergonham e mostram que em algum momento da
formação houve falha.
Outra questão delicada é o horário e os dias de abertura das bibliotecas.
Temos um expediente durante a semana que é cumprido como expediente
comercial e as bibliotecas públicas, salas de leitura, seja lá o que for, fecham
aos sábados, domingos e feriados. Após o trabalho, após as aulas, as pessoas
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teriam disponibilidade de ir até elas, no entanto, as bibliotecas já estão
fechadas. Possivelmente, algumas pessoas trocariam com gosto (se soubesse
que existem) os livros e gibis por horas defronte à televisão aberta que,
lamentavelmente, muito pouco instrui. Os estudantes poderiam fazer seus
trabalhos, acessar a internet onde houvesse esta oportunidade, assistir a um
filme, ouvir um pouco de música, enfim, aprender se quisessem, ter um pouco
de vida intelectual. Nas férias, as bibliotecas escolares públicas estão
fechadas assim como as escolas. Quem perde são as crianças que sem a
atividade escolar, com os pais que possuem emprego (se é que têm)
trabalhando longe de casa, ficam “ao Deus dará” abandonados aos próprios
cuidados. E, então, o Conselho Tutelar corre para ameaçar a família por
abandono dos filhos. Certo. Os pais deixarão de trabalhar para cuidar dos
pequenos. Enquanto isto a escola e a biblioteca estão fechadas. Férias para
todos ao mesmo tempo.
É possível que já tenham notado que até o momento não houve menção
ao estudo das bibliotecas públicas, escolares, universitárias e especializadas
nos currículos. Um único curso oferece uma disciplina obrigatória que trata
destas bibliotecas, suas funções, características, usuários e dinamização de
suas atividades. Em vários outros, elas são oferecidas como optativas ou
eletivas e não temos como afirmar de sua oferta é permanente ou eventual.
Fico na esperança de que nos cursos não observados, a realidade
seja outra e que estejam preparando profissionais para serem gestores da
riqueza e da pobreza e que conheçam, pelo menos na teoria, o tipo de
biblioteca na qual irão trabalhar. Não estou esquecendo do estágio curricular.
Sei, no entanto, que para muitos é a única oportunidade de participar da vida
de uma biblioteca, antes da diplomação. Se derem sorte de exercer sua
atividade em uma biblioteca realmente preocupada com o atendimento de seu
público, que bom. E, se por infelicidade, escolherem a biblioteca que cumpre o
regulamento em detrimento do atendimento das necessidades dos usuários?
Lembram da história? Triste aprendizado. Se não tiverem juízo crítico, que
exemplo levarão para sua vida profissional?
5 FINALIZANDO
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A formação do profissional bibliotecário em tempos de mudança
continua a exigir uma adequação dos currículos e das práticas pedagógicas às
múltiplas realidades brasileiras se desejamos que estas mudanças não sejam
somente de aparência. Mudanças profundas em nossa sociedade acontecerão
quando cada um de nós, professores e bibliotecários, tivermos coragem de
ousar e “sair da moda”, se for o caso, para encontrar soluções que as situações
críticas estão a exigir. Nós docentes devemos lembrar de Paulo Freire (1996, p.
38) quando diz que: “Ensinar exije a corporeificação das palavras pelo
exemplo. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta
a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer
certo.” O ensino, a pesquisa e extensão devem ser praticadas por todos nós
levando os educandos a compreender melhor a sociedade a qual pertencem
estimulando soluções criativas para o benefício daquela população. Temos
que dar o exemplo , em parceria com nossos alunos, enfrentar estas situações
difíceis, saindo das salas de pesquisa e trabalhando efetivamente junto aos
usuários.
Outro ensinamento de Paulo Freire: “Ensinar exije querer bem aos
educandos: e o que dizer, mas sobretudo o que esperar de mim, se, como
professor, não me acho tomado por este outro saber, o de que preciso estar
aberto ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de querer bem aos
educandos e à própria prática educativa de que participo.” (1996, p. 159).
Penso, então, que na medida em que não demonstramos a existência de
um sincero afeto para com nossos alunos e uma grande satisfação em fazer
parte do processo de ensinagem, não estamos ensinando pelo exemplo. Como
esperar que, ao se tornarem profissionais, demonstrem afeto pelas pessoas e
prazer no que fazem?
As bibliotecas públicas e escolares estão a exigir uma grande atenção
de todos. Recentemente, em evento realizado sobre bibliotecas escolares,
ouvi estas palavras da colega moderadora: “É preciso lembrar que até às
universidades chegam poucos e nas escolares chegam milhares [de
pessoas].”3 Podemos atingir uma parte destes milhares. Uma escola com uma 3 Eliane da Silva Moro, professora do Curso de Biblioteconomia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Depoimento pessoal durante o Painel Bibliotecas Escolares promovido pelo Centro de Estudantes de Arquivologia e Biblioteconomia (CEABI), em 18 de maio de 2007.
13
boa biblioteca será a porta de entrada para uma vida melhor para os alunos,
seus familiares e a comunidade ao seu redor. Uma cidade ou um bairro com
uma biblioteca pública, não burocrática, será a possibilidade de educação
continuada para todos. E convém lembrar que os que tiveram a sorte de
freqüentar as bibliotecas públicas e as escolares farão diferença nos estudos
do terceiro grau. Serão, certamente, universitários de primeira.
A realização de dois painéis chama a atenção neste CBBD: Painel 1 –
Bibliotecas Públicas para Todos e Painel 2 – Bibliotecas nas Escolas. Qual o
significado de sua inserção ma programação oficial do evento? Que,
felizmente, as lideranças da Biblioteconomia brasileira acreditam que o debate
destes temas que tocam diretamente as ações que irão concorrer para a
erradicação da ignorância em nosso país, são vitais. Isso é uma grande,
grande alegria e nos enche de esperanças por uma Biblioteconomia para
todos, em todos os lugares.
Nossas associações de classe (ABECIN, Conselho Federal de
Biblioteconomia, Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários,
Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB) e todas as associações
estaduais de bibliotecários) esforçam-se por promover ações de educação
continuada dando oportunidade a todos de aprimoramento e crescimento
profissional. Observa-se, no entanto, que um número muito reduzido de
colegas usufruem das oportunidades oferecidas. É possível que os que mais
necessitam sejam os sempre ausentes. Faltará, novamente, o exemplo dos
mestres em termos de participação no movimento associativo?
Concluindo: muitas mudanças ocorreram na formação do bibliotecário
algumas das quais foram aqui apontadas. No entanto, ainda é necessário
lançar um olhar mais profundo sobre a triste realidade do nosso país, com tanta
pobreza, desemprego, violência e corrupção. O ensino alienado da realidade
é de “faz de conta” e o país exige todos os tipos de soluções para seus
múltiplos problemas. Não podemos deixar para amanhã. Hoje mesmo é
preciso tomar decisões que nos conduzam a ser de fato um agente de
transformação social.
É com esperança que finalizo, chamando, mais uma vez, Paulo Freire:
14
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos a quem apreender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. (1996, p. 77).
Aprendamos com nossos erros e acertos. Tenhamos humildade
suficiente para reconhecer nosso inacabamento pessoal e profissional e buscar
melhorar e contribuir sempre.
Obrigada.
Graduate Studies for Librarians in Times of Changes
ABSTRACT: graduate courses for librarians have been offered in Brazil since 1991 when the course of the Biblioteca Nacional from Rio de Janeiro was established . It was the only one in the country to offer a humanistic point of view up to now. The curricula imposed by the Ministério da Educação in 1962 as well as in 1982, were based on technical processes and until 2001 this same focus has remained. Nowadays, there is a tendency for developing abilitites and competences so to enable librarians to solve their professional problems with proficiency and creativity. Studying some curricula of courses disposable in the web it was observed that the area of Introduction to Information Sciences is the first one in number of credits, followed by the Administration area. Technical processes are ranking in third place and the Services and Reference area is the last one in number of credits. It can be said that the technical focus still remains in most of the courses offered with a strong emphasis on Administration knowledge. With the lack of school and public libraries it is clear to verify that there is a need for more emphasis on these studies so to enable the Brazilian librarians to face the very difficult situations which occur in large areas of the country. So, library schools must take into consideration that librarians must be prepared to face all types of libraries specially the ones that are devoted to the information poor people.
KEY-WORDS: Librarians. Graduate courses.
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