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pelo número 260[

A FILOSOFIA DE EMANUEL KANTAO SEU ALCANCE

TEXTO COMPLETO

WI LL DU RANT

Tradução de

MARIA THERESA MIRANDA

Ilustrações de

EDMUNDO RODRIGUES

EDIÇÕES DE OURO

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Traduçdo do original:"THE PHILOSOPHY OF IMMANUEL KANT"

Copyright by Haldeman—Julius Company

Direitos reservados para a língua portuguésa:TECNOPRINT GR AFICA S. A.

As "EDIÇÕES DE OURO"

são classificadas

nas cinco categorias abaixo,

de acôrdo com o custo editorial :

Sêlo e Medalha de Ouro

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Este livro das "EDIÇÕES DE OURO" foi totalmentecomposto num tipo de letra especial que permite umaleitura fácil. Contém o texto completo do originalprimitivo. NAO SE OMITIU UMA ÚNICA PALAVRA.

Publicado e impresso porTECNOPRINT GRÁFICA S. A.

RIO DE JANEIRO, GB.

1. Peso, qualidade e quantidade de papel.

2 . Direitos autorais ( alguns, são caríssimos) .

3. Impressão a côres, composições especiais, foto-

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mais caro.

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Cada livro das "EDIÇÕES DE OURO" é

• completo• sem cortes• sem condensações

contendo, pois, "tudo" o que o autor escreveu, cuidadosamenterevisado sob a responsabilidade dos editôres.

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O "segrécio" dos Livros de Biilso, em todo o mundo, ao reproduzirgrossos volumes por prêço acessível, é simples:

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INDICECapítulo 1 Pág.

CAMINHOS ATÉ KANT 111. De Voltaire até Kant 132. De Locke até Kant 153. De Rousseau até Kant 22

Capítulo IIKANT, ELE PRÓPRIO 27

Capítulo IIIA CRITICA DA RAZÃO PURA 35

iÌe

1. Estética Transcendental 392. Analítica Transcendental 443. Dialética Transcendental 47

Capítulo IVA CRITICA DA RAZÃO PRATICA . . 55

Capítulo VDA RELIGIÃO E RAZAO 61

Capítulo VIDA POLÍTICA E DA PAZ ETERNA . . 69

Capítulo VIICRITICA E AVALIACAO 79

Capítulo VIIIUMA NOTA SÕBRE HEGEL 91

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CAPÍTULO I

CAMINHOS ATÉ KANT

NUNCA sistemaalgum de pen-

samento dominou tan-to uma época como afilosofia de EmanuelKant dominou o pen-samento do século de-zenove. Após quasesessenta anos de desen-volvimento quieto eret irado, o misteriosocelta de Kónigsberg (*)despertou o inundo desua "sonolência dog-

mática", em 1781, com a sua famosa Crítica da Razão'Pura; e daquele ano até agora a "filosofia crítica" temdominado o campo especulativo da Europa. A filosofiade Schopenbatier ascendeu a um breve período depoder com a onda de romantismo que veio -em

Antiga cidade da Prússia Oriental, hoje Caliningrado, naLituânia (ti.R.S.S.). N. do E.

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1848; a teoria da evolução vaireu tudo anterior a elaapós 1859; e a iconoclastia jovial de Nietzsche ocupouo centro do palco filosófico quando o século ia atin-gindo o seu fim. Mas essas manifestações eram secun-dárias e de superfície; por baixo delas a corrente fortee segura do movimento Kantista continuava a correr,sempre mais profunda e amplamente; até hoje seusteoremas essenciais são os axiomas de tôda a filosofiamadura . Nietzsche aceita Kant como fato comprovadoe segue em frente; ( 1 ) Schopenhauer classifica aCrítica como "o trabalho mais importante da lite-ratura alemã" e considera qualquer homem umacriança até que tenha compreendido Kant; ( 2) Spencernão compreendia Kant e precisamente por êsse motivo,talvez, tenha ficado um pouco abaixo da estaturafilosófica mais completa. Adaptemos a frase de Hegelsôbre Spinoza: para ser um filósofo é preciso queantes se tenha sido um Kantista.

Portanto tornemo-nos imediatamente Kantistas.Mas, aparentemente., isso não pode ser feito de ime-diato pois na filosofia, como na política, a distânciamais longa entre dois pontos é uma linha reta. Kanté o .último autor no mundo a quem devemos ler sôbreKant. Nosso filósofo assemelha-se e difere de Jeová;fala através de nuvens, mas sem a iluminação dascentelhas dos raios. Despreza exemplos e as coisasconcretas; teriam feito com que seu livro ficasse muitolongo, explica ele. ( 3) (Assim abreviado contém, dequalquer modo, oitocentas páginas.) Sua leitura eradestinada apenas a filósofos profissionais e estes não

I. A Vontade de Poder, vol. II, parte I.2. O Mundo como Vontade e Representação, Londres, 1883; vol.

II, p. 30.3. A Critica da Razão Pura, Londres. 1881; vol. II, p. XXVII.

Tildas referências subseqüentes são ao volume II.

precisariam de ilustrações. No entanto quando Kantdeu o manuscrito da Critica ao seu amigo Herz,homem muito versado em especulação, Herz devol-veu-o lido pela metade, dizendo que receiava a insa-nidade se prosseguisse. O que faremos com um filósofoassim

Aproximemo-nos dêle indireta e cautelosamente,começando a urna distância segura e respeitosa: par-tamos de vários pontos na circunferência do assuntoe depois sigamos apalpando nosso caminho na dire-ção do centro sutil onde a mais difícil de tôdas asfilosofias tem seu segrêdo e seu tesouro.

1. DE VOLTAIRE ATÉ KANT

O caminho aqui não vai da razão teorética semfé religiosa à té religiosa sem razão teorética. Voltairesignifica o Iluminismo, a Enciclopédia, a Idade daRazão. O caloroso entusiasmo de Francis Bacon haviainspirado em tôda a Europa (exceto em Rousseau)uma fé inabalável no poder da ciência e da lógicapara solucionar afinal todos os problemas e ilustrara "perfectibilidade infinita" do homem. Condorcetescreveu, na prisão, seu Quadro Histórico do • Pro-gresso do Espírito Humano (1793), que falava nasublime fé do século dezoito no saber e na razão enão pedia nenhuma outra chave para a Utopia a nãoser uma educação universal. Até mesmo os sóbriosalemães tiveram seu Aufkliirung, seu racionalista,Christian Wolff, e seu esperançoso Lessing. E os im-pressionáveis parisienses da Revolução dramatizaramesta apoteose do intelecto venerando • a "Deusa -daRazão," — personificada por uma encantadora jovemdo povo.

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Em Spinoza esta fé na razão produzira uma mag-nificente estrutura de geometria e lógica: o universoera um sistema matemático e podia ser descritoa priori por pura dedução de axiomas aceitos. EmHohbes o racionalismo de Bacon transformara-se numintransigente ateísmo e materialismo; mais uma veznão era para existir a não ser "átomos e o vácuo".De Spinoza a Diderot os destroços da crença iamficando na esteira da razão que avançava; um a uni,os velhos dogmas desapareciam; a catedral gótica dacrença medieval, com seus encantadores detalhes,desmoronou; o antigo Deus caiu de seu trono juntocom os Bourbons, o céu transformou-se no mero fir-mamento e inferno passou a ser apenas uma expressãoemotiva. Helvécio e Holbach tornaram tão eleganteo ateísmo nos salões da França que até o clero o ado-tou e La Mettrie foi propagá-lo na Alemanha, sob os

auspicios do rei da Prússia. Quando, em 1784, Lessingchocou Jacobi proclamando-se seguidor de Spinoza,tivemos o sinal de que a crença atingira seu nadir ecie que a Razão triunfara.

David Hume, que teve papel tão importante noataque do lluminismo à crença sobrenatural, disseque quando a razão está contra o homem, êle depressase voltará contra a razão. A fé e a esperança religiosas,expressas nas milhares de tõrres que se elevavam dosolo em tôda a parte na Europa, tinham raizes pro-fundas demais nas instituições da sociedade e no cora-ção cio homem para permitir uma rendição fácil aoveredicto hostil da razão; era inevitável que essa fé eessa esperança, assim condenadas, iriam levantar dú-vidas quanto à competência daquele juiz e pediriamuni exame tanto da razão quanto da religião. O queera êsse intelecto que se propunha a destruir com umsilogismo as crenças de milhares de anos e de bilhõesde homens? Seria êle infalível? Ou seria um órgãohumano como qualquer outro, com suas funções epoderes rigorosamente delimitados? Era chegada ahora de julgar êsse juiz e de examinar êsse impiedosoTribunal Revolucionário que distribuía tão farta-mente a morte a tôdas as esperanças antigas. Era che-gada a hora para uma crítica da razão.

2. DE LOCKE ATÉ KANT

O caminho pa;• um tal exame havia sido preparado pelos trabalhos de Locke, Berkeley e Hume: noentanto. aparentemente, seus resultados erani tambémhostis à religião.

John Locke (1632-1704) havia se propostoaplicar à psicologia os testes e métodos indutivos de

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Francis Bacon; em seu grande Essay on Human Under-standing (Ensaio sôbre a Compreensão Humana).(1689), a razão, pela primeira vez no pensamento mo-derno, voltara-se para si mesma e a filosofia começaraa investigar o instrumento em que por tanto tempoconfiara. Êste movimento introspectivo na filosofiacresceu passo a passo com a novela introspectiva que

vinha sendo desenvolvida por Richardson e Rousseau;tal como o tom sentimental e emotivo de ClarissaHarlowe e La Nouvelle Héloise tinha sua correspon-dência na exaltação filosófica do instinto e sentimentoacima do intelecto e da razão.

Como surge o conhecimento? Temos nós, comoo supõem algumas pessoas, idéias inatas, por exemplo,de certo e errado, de Deus, — idéias inerentes à mentedesde o nascimento, anteriores a tôda experiência?Teólogos aflitos, preocupados em que a crença naDivindade desaparecesse por Deus não haver aindaaparecido em nenhum telescópio, pensaram que a fé

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e os costumes morais pudessem ser fortalecidos sepudesse ser demonstrado que suas idéias centrais ebásicas eram inatas em tôdas as almas normais. MasLocke, ainda que Visse bom cristão, pronto a defendereloqüentemente a "Razoabilidade da Cristandade",não podia aceitar essas suposições; proclamou, tran-qüilamente, que todos os nossos conhecimentos vêmda experiência e através de nossos sentidos — que "nadaexiste na mente a não ser o que existiu primeiro nossentidos." A mente é no nascimento uma fôlha limpa,uma tabula rasa, e as experiências sensoriais escrevemnela de mil maneiras até que as sensações produzam a

memória e a memória produza idéias. Tudo isso pare-cia levar a surpreendente conclusão de que desde que~ente as coisas materiais podem afetar nossos sen-

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tidos nada conhecemos a não ser a matéria e temosque aceitar uma filosofia materialista. Se as sensaçõessão o estõfo do Vnsamento, argumentavam os apres-sados, a matéria tem que ser o material da incute.

De forma nenhuma, disse o Bispo George Berkeley(1684-1753): essa análise Lockeana do conhecimentoprova antes que a matéria não existe exceto comounta forma da mente. idéia era brilhante — refutaro materialismo com o simples expediente de mostrarque não temos conhecimento de coisa alguma que sejaa matéria; em tõda a Europa somente unia imaginaçãogaélica poderia ter concebido essa mágica metafísica.Mas vejamos como é óbvio, disse o Bispo: não nosdisse Locke que todos nossos conhecimentos são deri-vados de sensações? Conseqüentemente todo nossoconhecimento de qualquer coisa é meramente as sen-sações que tensos dela e as idéias derivadas dessassensações. Uma "coisa" é meramente um aglomeradode percepções — e . sensações classificadas e inter-pretadas. Protestas que teu café é muito mais substan-cial que um aglomerado de percepções e que unimartelo que te ensina carpintaria através de teu pole-gar tem unia grandiosa materialidade. Mas teu café,a princípio, não é nada a não ser uni amontoado desensações de visão, olfato e tato, depois, paladar. e.em seguida, confôrto e calor interno. Da MCSMil forma,o martelo é um aglomerado de sensações de côr,tamanho, forma, pés° , etc.; sua realidade não estápara ti em sua materialidade, mas sim nas sensaçõesque vêm de teu polegar. Se não tivesses sentidos, omartelo não existiria de roclo' para ti; êle poderiamartelar teu polegar insensível e incessantemente e,no entanto , não receber de ti a menor atenção. Êle éapenas 11111 amontoado de sensações ou uni amontoado

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de lembranças; é uma condição da mente. 1-Ma amatéria, ao que saibamos, é uma condição mental ea única realidade que conhecemos diretamente é amente. Isso é tudo quanto ao materialismo.

Mas o Bispo irlandês não contara com o céticoescocês, David Hume (1711-1776), que com a idadede vinte e seis anos escandalizou tôda a cristandadecom o seu altamente herético Treatise ou HumanNature (Tratado sôbre a Natureza Humana), — umdos clássicos e uma das mara ∎ dhas da filosofia mo-derna. Conhecemos a mente, disse Hume, somenteC01110 conhecemos a matéria: através da percepção.embora ela, nesse caso, seja interna. Nunca percebe-mos qualquer entidade como a "mente"; percebemosmeramente idéias separadas, lembranças, sentimentos,etc..‘ mente não é u n ia substância, uni órgão que temidéias; ela é apenas um nome abstrato para a série deidéias; as percepções, lembranças e sentimentos são amente. Não há unia atina que se possa observar portrás dos processos do pensamento. O resultado pareceuser de que Nume havia destruido a mente tão eficaz-mente quanto Berkeley destruíra a matéria. Não res-tava nada e a filosofia se encontrou no meio de ruínaspor ela mesma causadas.

Mas Hume não se satisfez em destruir a religiãoortodoxa pelo arrasamento da alma; propunha-setambém a destruir a ciência pela dissolução do con-ceito de lei. Tanto a ciência como a filosofia, desdeos tempos de Bruno e Galileu, davam grande iMpor-tfincia à lei natural, à "necessidade" na seqüência doefeito após a causa; Spinoza criara sua majestosa me-tafísica com base nessa esplêndida concepção. Masobservai, disse Hume, que nunca percebemos causas ouleis; percebemos acontecimentos e seqüências e inferi-

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mos causação e necessidade: uma lei não é um decretoeterno e necessário ao qual os acontecimentos estãosujeitos, mas sim meramente uni sumário e abreviaçãomental de nossa experiência caleidoscópica; não temosgarantia de que as seqüências até aqui observadasreaparecerão sem alteração nas experiências futuras."Lei" é um hábito observado na seqüência de aconte-cimentos; mas não existe "necessidade" num hábito.Sómente as fórmulas matemáticas possuem necessidade

-- apenas elas são inerente e inalteravelmente ver.dadeiras e isso ~ente porque tais fórmulas sãotautológicas — o predicado já está contido no sujeito;"3 X 3 9" é uma verdade eterna, e necessáriaapenas porque "3 X 3" e "9" são uma única e mesmacoisa expressa de forma diferente; o predicado nãoacrescenta nada ao sujeito. A ciência, então, terá quese limitar estritamente à matemática e às experiênciasdiretas; não poderá confiar em deduções não verifi-cadas das "leis". "Quando corrermos bibliotecas con-vencidos desses princípios", escreve nosso fabuloso

(ético, "que destruição teremos que fazer! Se porexemplo tomarmos em nossas mãos qualquer volumede metafísica escolar, perguntemos: "Contém qualquerraciocínio abstrato referente a quantidade ou número?Não. "Contém qualquer raciocínio experimental tra-tando da realidade e da existência?". Não. jogue-oentão nas chamas, pois não pode conter nada a nãoser sofismas e quimeras." (4)

Imaginem como as orelhas dos ortodoxos zumbi-ram com essas palavras. A tradição epistemológica —a investigação da natureza, das fontes e da validezdos conhecimentos — cessara de ser um apoio paraa religião; a espada com que o Bispo Berkeley abaterao dragão do materialismo voltara-se contra a menteimaterial e a alma imortal; e, no turbilhão, a própriaciência sofrera graves ferimentos. Não é de admirarque Emanuel Kant, ao ler em 1755, uma traduçãoalemã dos trabalhos de. David Hume, tenha ficadochocado com êsses resultados e tenha sido despertado,

4. Citado em Royee, The Spirit or Moaern Phdosophy (O Espi-rito da Filosofia Moderna), Boston 1892; p. 98.

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como disse ele próprio, da "sonolência dogmática" naqual aceitava sem indagações as partes essenciais dareligião e as bases da ciência. Teriam então a ciênciae a religião de ser entregues aos céticos: O que sepoderia fazer para salvá-las?

3. DE ROUSSEAU .-NTÉ KANT

Ao argumento do fluminismo de que a razão trazo materialismo , Berkelev ensaiou a resposta de que amatéria não existe. Mas isso conduzira, em Hume, àréplica de que da mesma forma não existe também aMente. Urna outra resposta era possível -- a de que arazão não é a prova final. Existem algumas conclusões

teóricas contra as quaistodo nosso ser se re-bela; não temos o di-reito de supor que essesclamores de nossa na-tureza têm que serabafados pelos ditamesde uma lógica quenão é afinal de con-tas senão a interpreta-ção recente de umafrágil e enganadoraparte de nós. Quantasvêzes nossos instintos esentimentos empurrampara o lado os peque-nos silogismos que de-sejariam que nós noscomportássemos comofiguras geométricas e

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amássemos com precisão matemática! Sem dúvida háocasiões, — e muito particularmente nas novas com-plexidades e artificialismos cia vida urbana — em quea razão é o melhor guia; mas nas grandes crises davida e nos grandes problemas de conduta e de crença,confiamos antes em nossos sentimentos que em dia-gramas. Se a razão é contra a religião, pior para arazão!

Esse era na verdade o argumento de Jean-JacquesRousseau (1712-1778), que quase sozinho, na França,combateu o materialismo e o ateísmo do lluminismo.Que destino para unia natureza delicada e neuróticao ser atirado m> meio do robusto nacionalismo equase brutal hedonismo (') cios enciclopedistas! Rous-seau Iara um jovem doentio, levado à meditação eintim ersão por sua fraqueza física e a atitude poucocompreensis a de seus pais e professores; abrigara-sedas aguilhoadas da realidade num mundo de sonhos,onde a imaginação lhe oferecia as vitórias a êle nega-das na vida no amor. Sua obra Confissões revela uniirreconciliável complexo do) mais refinado sentimen-talismo) com um sentido) de decência e honra e mis-tu •ado a isso tudo uma convicção imaculada de sua

superioridade moral. (")Em 1749. a .Academia de Dijon ofereceu um

prêmio a um ensaio sobre o tema, "Contribuiu o Pro-gresso das Ciências e das Artes para Corromper oupara Purificar a Conduta Moral?"' O ensaio apresen-tado por Rousseau ganhou o prêmio. A cultura émuito antes um mal do que um bem, afirmou êle,cont tôda a intensidade e sinceridade de alguém que,

5. A doutrina de que todo comportamento é motivado pelabusca do prazer.

6. Vide Confissões, livro X; vol. II, p. 184.

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vendo estar a cultura fora de seu alcance, propõe-seprovar que ela não tem valor. Consideremos as ter-ríveis perturbações que a imprensa produziu naEuropa. Onde quer que surja a filosofia a saúde mo-ral da nação entra em decadência. "Corre mesmo umdito entre os filósofos de que desde que surgiram oshomens cultos, não se encontra homem honesto emlugar nenhum." "Atrevo-me a declarar que um estadode reflexão é contrário à natureza e que um homempensante" . (um "intelectual" como diríamos agora) "éum animal depravado." Seria melhor abandonarmos.nosso super-rápido desenvolvimento do intelecto e terantes como finalidade o treinamento do coração e dasafeições. A educação não torna bom uni homem, fazapenas com que fique esperto — em geral para másações. O instinto e os sentimentos são mais dignos deconfiança do que a razão.

Em sua famosa novela, La Nauvelle Héloise(1761), Rousseau explicou extensamente a superio-ridade dos sentimentos sôbre o intelecto; o sentimen-talismo tornou-se moda entre as senhoras da aristo-cracia e entre alguns dos cavalheiros nobres; a Françadurante uni século foi regada com lágrimas, a prin-cípio literárias e depois reais, e o grande movimentodo intelecto europeu do século dezoito deu passagemà literatura romântico-emotiva de 1789-1848. A cor-rente carregava consigo um poderoso renascimentode sentimentos religiosos; os êxtases do Génie duChristianisrne (1802), de Chateaubriand, eram mera-mente um eco das "Confissões de Fé do Vigário deSavóia", que Rousseau incluíra em seu marcanteensaio sôbre a educação, Émile (1762). A alegação deConfissões era em resumo o seguinte: ainda que arazão possa estar contra a crença em Deus e na imor-

talidade, os sentimentos estavam avassaladoramenteem seu favor e porque então não deveríamos nessecaso confiar no instinto, de preferência e nos entre-garmos ao desespero de um ceticismo ávido?

Quando Kant leu Émile, abandonou seu passeiodiário sob as tílias para poder terminar logo o livro.Foi um acontecimento em sua vicia encontrar ali umoutro homem que estava apalpando seu caminho para

lora da escuridão do ateísmo L que bravamente afir-mava a prioridade do sentimento sôbre a razão teóricanesses assuntos supra-sensoriais. Aqui, finalmente.estava a segunda metade da resposta à irreligião:agora, finalmente, todos os zombadores e levantadoresde dúvidas seriam dispersados. Unir êsses fios de.trgumentação, juntar as idéias de Berkelev e Hume

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com os sentimentos de R,ousseau, salvar a religião darazão e ao mesmo tempo salvar a ciência do ceticismo— esta era a missão de Emanuel Kant.

Nlas quem era Emanuel Kant-f

CAPITULO II

BANT, ÉLE PRÓPRIO

"(ANA' nasceu em 1724 eni Kiinigsberg, Prússia.

Com a exceção de uni pequeno período em queensinou numa aldeia próxima, êsse sossegado profes-sor, que gostava tanto de discorrer sôbre a geografia

e etnologia de terras distantes, nunca saiu de suacidade natal. Pertencia a uma familia pobre que saírada Escócia uns cern anos antes do nascimento deEmanuel. Sua mãe era Pietista, isto é, membro de uma

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seita religiosa que, como a dos Metodistas da Ingla-terra, fazia questão de um rigor e severidade abso-lutos nas práticas e na crença religiosa. Nosso filósofofoi tão mergulhado em religião da manhã à noite quepor um lado teve uma reação que o levou a manter-seafastado de igrejas durante tôda sua vida adulta; poroutro lado conservou até ao fim o cunho sombrio dopuritano alemão e sentiu, ao ir envelhecendo, umforte desejo de preservar para si mesmo e para omundo as partes essenciais , ao menos, da fé tão pres•fundamente nêle inculcada por sua mãe.

Mas um jovem que se desenvolveu na era deFrederico e de Voltaire não podia isolar-se da correntecética daquela época. Kant foi profundamente in-fluenciado até mesmo por homens a quem mais tardepretendeu refutar e talvez mais do que todo pelo seuinimigo favorito, Hume; veremos mais adiante oextraordinário fenômeno de uni filósofo transcen-dendo o conservadorismo de sua maturidade e retor-nando cai seu quase último trabalho, próximo àidade de setenta anos, a uni liberalismo viril que lhehaveria trazido o martírio se sua idade e fama não oprotegessem. Mesmo no meio de seu trabalho derestauração religiosa ouvimos, com surpreendentefreqüência, Os sons de um ou outro Kant a quempoderíamos quase confundir com uni Voltaire. Scho-penhauer achava "não ser o menor dos méritos deFrederico o Grande o fato de que sob seu govêrnoKant pudesse se desenvolver e ousar publicar suaCritica da Razão Pura. Dificilmente, sob qualqueroutro govêrno, poderia um professor assalariado"(conseqüentemente, na Alemanha, um empregado dogovêrno) "aventurar-se a tal coisa. Kant foi obrigadoa prometer ao sucessor imediato do grande Rei que

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não escreveria mais." (5 Foi em gratidão a essa liber-dade que Kant dedicou a Critica a Zedlitz, o avançadoe progressista Ministro da Educação de Frederico.

Em 1755, Kant começou seu trabalho conto ins-trutor da Universidade de Künigsberg. Durante quinzeanos deixaram-no neste pôsto subalterno; duas vêzesfoi recusado seu pedido de se tornar professor. Final-mente, ein 1770, foi nomeado professor de lógica emetafísica. Após muitos anos de experiência cornoprofessor, escreveu um livro didático sôbre pedagogiae costumava dizer dêle que continha muitos preceitosexcelentes nenhum dos quais êle jamais aplicara.E no entanto foi talvez um melhor professor do queescritor; duas gerações de estudantes aprenderam aamá-lo. Uni de seus princípios práticos era prestarmais atenção aos alunos de capacidade média; ostolos, dizia êle. não podiam ser auxiliados, e os gêniostratariam de si mesmos.

7. O Mundo como Vontade e Representação, Londres. 1883; vol.II, p. 133.

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Ninguém esperava que ele espantasse o mundocom um nôvo sistema metafísico; espantar qualquerpessoa parecia ser a última coisa que esse tímido emodesto professor faria. Êle próprio não parecia tergrandes esperanças nesse setor; na idade de quarentae dois anos escreveu: "Tenha a sorte de ser umamante da metafísica; mas minha amante até agorapoucos favores me dispensou." (8) Nesse tempo falavano "abismo sem fundo da metafísica" e da metafísicacomo "um oceano escuro sem praias ou farol," jun-

cacto de muitos destroços filosóficos. ( g) Chegava até aatacar os metafísicos como sendo aqueles que habitamas altas rôrres da especulação, 'onde em geral há

8. Citado por Royce, The Spirit of Modern Philosophy (C Espi-rito da Filosofia Moderna); Boston 1892; p. 120.

9. Citado por Paulsen, Emanuel Kant; Nova Iorque, 1910; p. 82.

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muito vento." ( 10) Êle não previu que a maior detôdas as tempestades metafísicas seria provocada porseu próprio sôpro.

Durante esses anos sossegados seus interesses eramantes físicos do que metafísicos. Escrevia sôbre plan-tas , terremotos, incêndios, ventos, éter, vulcões, geo-

grafia, etnologia e uma centena de outras coisas dessetipo que não se confunde facilmente com metafísica.Sua Teoria dos Céus (1755) propunha algo muitosemelhante à hipótese oebular de Laplace e tentavauma explicação mecânica de todo movimento e desen-volvimento sideral. Todos os planetas, achava Kant,foram ou serão habitados e aqueles mais afastados dosol, tendo passado por uni período mais longo de cres-

10. Ibid., p. 56.

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cimento, terão provàvelmente uma espécie mais ele-vada de organismos inteligentes do que os até agoraproduzidos em nosso planeta. Sua Antropologia, (com-posta em 1798, das conferências de tôda uma vida),sugeria a possibilidade da origem animal do homem.Kant argumentava que se a criança, nas épocas remo-tas quando o homem ainda estava à mercê das ferasselvagens, chorasse tão alto ao chegar ao mundo comoo faz agora, teria sido descoberta e comida pelos ani-mais ferozes; conseqüentemente, o provável era que ohomem, de início, tivesse sido muito diferente daqueleem que se transformara na civilização. E aí Kantprosseguiu, sutilmente: "Como a natureza agiu paraproduzir esse desenvolvimento e como foi auxiliadanós não sabemos. Esse comentário nos leva longe.Sugere a idéia de que talvez o atual período da histó-ria, por ocasião de alguma grande revolução física,possa ser seguido de um terceiro, no qual um orango-tango ou um chimpanzé desenvolveriam os órgãos queservem para andar, tocar e falar, transformando-os naestrutura articulada de um ser humano com um órgãocentral a ser utilizado para a compreensão, e gra-dualmente iriam progredindo sob o treinamento dasinstituições sociais." Terá esse emprego do condicionalsido a cautelosa maneira indireta de Kant apresentarseu ponto de vista sob o modo como o homem real-mente se desenvolvera partindo do animal? (11)

Assim, observamos o desenvolvimento lento dessehomem pequenino, com cêrca de um metro e meio,modesto, encolhido e contendo no entanto em suacabeça, ou gerando dentro dela, a revolução de maioralcance na filosofia moderna. A vida de Kant, diz um

11. Isso é o que sugere Wallact — Kant, Filadélfia, 1882, p. 115

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de seus biógrafos, passou como o mais regular dosverbos regulares. "Levantando, tomando café, escre-vendo, lecionando, jantando, andando," diz Heine, —"cada um tinha sua hora determinada. E quandoEmanuel Kant, num casaco cinzento, bengala na mão,surgia à porta de sua casa e dirigia-se para umapequena avenida de tílias, que ainda é chamada o"Passeio do Filósofo", os vizinhos sabiam que eramexatamente três e meia. Passeava assim para cima epara baixo, durante tôdas as estações do ano; quandoo tempo estava sombrio ou nuvens cinzentas ameaça-

vam chuva, seu velho empregado Lanlpe era vistoseguindo-o ansiosamente, com um vasto guarda-chuvadebaixo do braço, como o símbolo da Prudência."

Seu físico era tão frágil que tinha de submeter-sea um severo regime de vida: achava mais seguro faze-lo

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sem médico e assim viveu até aos oitenta. Aos setentaescreveu uni ensaio, -Do Poder da Mente em Dominara Sensação de Doença por Fórça de Decisão. - Uni deseus principios favoritos era respirar sOmente atravésdo nariz, especialmente quando ;to ar assimsendo, no outono, inverno e primavera não permitiaque ninguém lhe dirigisse a palavra durante seus pas-seios diários; é preferível o silêncio a um resfriado.Aplicava filosofia até na maneira de segurar suasmeias -- por tiras que entravam nos bolsos das calças,onde terminavam em elásticos contidos em pequenas..:rixas. (' 2.) Fie pensava a lurado sôbre as coisas antesde agi ' e, conseqüentemente, ficou solteiro a vidatida. Duas vezes pensou em pedir a mão de alguém;mas refletia tanto tempo que, num dos casos, a senho-rita casou-se com um cavalheiro mais ousado e nooutro a jovem mudou-se de Kiinigsberg antes de ofilósofo chegar a uma decisão. Talvez achasse, «imoNieusche, que o casamento o atrapalharia na buscahonesta da verdade: "'um homem casado" , costumavadizer tallevrand, -fará qualquer coisa por dinheiro.-E Kant escrevera, aos vinte e dois anos , com (0,3 0 oentusiasmo sadio da mocidade onipotente: "Já medecidi quanto á linha que pretendo manter. tomareimen rumo e nada me impedirá dc segui-lo." (1:5

E assim persistiu. llli:1■eNsalitto a pobreza e aobscuridade , rascunhando, escre■endo e reescrevendosua magnum opus durante quase quinze anos: termi-nando-a sOmente t-ni 1781. quando estava com cin-qüenta e sete anos. Nunca um homem amadureceutão lentamente, mt ,.s, também, nunca um livro sur-preendeu e perturbou [amo o inundo

12. Introdução à Crítica da Razão Pratica: Londres 1909; p. XIII.13. Wallace, p. 100.

CAPÍTULO III

A CRÍTICA DA RAZÃO PURA (14)

Q UAI, o significado desse titulo? Crítica é empre-gado nesse caso com a idéia de análise crítica;

Ka n t não está prOpriamente atacando a "razão pura",exceto, no final, para mostrar suas limitações; eleantes tem a esperança de mostrar suas possibilidadese-de colocá-las acima do conhecimento impuro quenos vem através dos canais deformantes dos sentidos.Pois razão "pura" significa o conhecimento que nãovem através dos sentidos e é independente de tôda aexperiência sensorial; o conhecimento que nos per-tence pela natureza e estrutura inerentes à mente.

Logo de início então, Kant lança um desafio aLocke e à Fscola Inglêsa; o conhecimento não é tododerivado dos sentidos. Hume achava que havia de-

14. Urna palavra sôbre o que é mais indicado ler. O próprio Kant,é quase ininteligível ao novato porque seu pensamento élibado por uma terminologia bizarra e intrincada (dai opequeno número de citações diretas neste ensaio). Talveza apresentação mais simples sela Kant de Wallace, nos Clás-sicos Filosóficos de Blackwood. Mais pesado e lá mais adian-tado é Immanuel Kant, de Paulsen. A obra Immanuel Kant,de Chamberlain (2 volumes, Nova Iorque, 1914), é interes-sante, porém digressita. Uma boa crítica de Kant pode serencontrada em o Mundo como Vontade e Representação:vol. II.

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monstrado não haver alma e não haver ciência; quenossas mentes não são senão nossas idéias num segui-mento e numa associação e que nossas certezas nãosão senão probabilidades sob o risco perpétuo deviolação. Essas conclusões falsas, diz Kant, são o resul-tado ele premissas falsas: presumes que todo conheci-mento vem de sensações "separadas e distintas"; natu-ralmente. elas não podem te dar a necessidade ou se-qüências invariáveis das quais possas ter certeza eternae, naturalmente, não podes esperar "ver" a tua alma,mesmo com os olhos do sentido interior. Concedamosser impossível uma certeza absoluta de conhecimento setodo conhecimento advém de sensações, de uni mundoexterno independente que não nos deve nenhumcompromisso de regularidade de comportamento. Mas,e se possuímos conhecimento que é independente daexperiência sensorial, conhecimento cuja verdade estácerta para nós mesmo antes da experiência — a priori?Aí então a verdade absoluta e a ciência absolutaseriam possíveis, não seriam? Existe êsse conhecimento

absoluto? Êsse é o problema da primeira Crítica "Mi-nha indagação é o que podemos esperar alcançar coma razão quando todo o material e a assistência da expe-

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riência são retirados." ( 15) A Crítica torna-se urnabiologia detalhada do pensamento, um exame da ori-gem e evolução dos conceitos, uma análise da estru-tura herdada da mente. Isso, conforme acredita Kant,é todo o problema da metafísica. "Neste livro tivecomo objetivo principal a plenitude e ouso afirmarque não deve existir nenhum único problema meta-físico que não haja sido solucionado aqui ou para asolução do qual não haja ao menos sido oferecida achave." ( 100 ) Exegi nionninentuin acre perennius!Com um tal egotismo a natureza nos incita à criação.

A Crítica vai logo ao assunto. "A experiência nãoé de todo o Único meio ao qual o nosso entendimentopode ser confinado. A experiência nos diz aquilo queé, mas não que aquilo tem de ser necessariamentecomo é e não de outra forma. Conseqüentemente, elanunca nos dá quaisquer verdades realmente gerais enossa razão, que anseia especialmente por essa classede conhecimento, é por ela antes despertada do quesatisfeita. As verdades gerais que têm, ao mesmotempo, o caráter de necessidade interior, têm que serindependentes da experiência, — claras e certas nelasmesmas." (") Isso é, elas têm que ser verdadeirasqualquer que venha a ser nossa experiência posterior;verdadeiras mesmo antes da experiência; verdadeiras

priori. "Até que ponto podemos avançar indepen-dentemente de tôda experiência, num conhecimentoa priori, é demonstrado pelo brilhante exemplo damatemática." (18) O conhecimento matemático é ne-cessário e certo; não podemos conceber que seja

15. Critica da Razão Pura, prefácio, p. XXIV.16. Ibid., p. XXIII.17. Ibid., p. 1.18. P. 4.

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violado por unia experiência futura. Podemos acre-ditar que o sol "se levantará" no oeste amanhã ou que_algum dia, em algum mundo de asbesto, o fogo nãoqueimará a madeira; mas não podemos de formaalguma acreditar que duas vêzes dois alguma vezpoderá ser outra coisa que não quatro. Essas verdadessão verdadeiras antes da experiência; não dependemde experiência passada, presente ou por vir. São con-seqüentemente verdades independentes e necessárias;é inconcebível que algum dia deixem de ser verda-deiras. Mas de onde tiramos êsse caráter de indepen-

ciência e neceSsidade% Não da experiência; pois aexperiência não nos dá nada a não ser sensações eacontecimentos separados, que podem alterar sua

seqüência no futuro. ( 19) Essas verdades derivam seucaráter necessário da estrutura inerente às nossasmentes, da maneira natural e inevitável pela qualnossas mentes têm que funcionar. Pois a mente dohomem (e aqui está afinal a grande tese de Kant)não é uma céra passiva sôbre a qual a experiência e assensações escrevem sua vontade absoluta e mi entantocaprichosa: nem é ela uni mero nome abstrato paraa série eu grupo de estados mentais: ela e uni órgãoativo que molda e coordena as sensações em. idéias,uni órgão que transforma a multiplicidade caótica daexperiência na unidade ordenada do pensamento.

Mas de que forma?

1. ESTÉ11( A I RANSCENDENTAL

O esfórço para responder essa pergunta, paraestudar a estrutura inerente à incute ou às leis inatasdo pensamento, é o que Kant chama de "filosofiatranscendental", porque trata-se de um problema quetranscende à experiência sensorial. "Chamo transcen-dental ao conhecimento que se ocupa não tanto dosobjetos como dos nossos conceitos a priori dos obje-tos," (,'") -- com nossas fornias de correlacionarnossas experiências transformando.as em conhecimento.Há dois graus ou estágios nesse processo de transfor-mação da matéria-prima da sensação no produtoacabado do pensamento. O primeiro estágio é a coor-denação das sensações aplicando-se a elas as formas

19. A essa altura, o "Empirismo radical" James, Dewey, etc.)entra na controvérsia e sustenta contra Hume e Kant quea expeziencia nos dá relações e seqüências tanto quantosensações e ocorrências.

20. Critica da Razão Pura, p. 10.

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de percepção — espaço e tempo; o segundo estágio éa coordenação das percepções assim desenvolvidas pelaaplicação a elas das formas de concepção — as "cate-gorias" de pensamento. Kant, empregando a palavraestética em seu sentido original e etimológico, comoindicando sensação, denomina o estudo do primeirodesses estágios de "Estética Transcendental"; e empre-gando a palavra lógica como significando a ciência dasformas do pensamento, denomina o estudo do segundoestágio de "Lógica Transcendental". Essas palavrasterríveis irão tomando sentido à medida que avançaa argumentação; uma vez ultrapassado esse obstáculoo caminho até Kant ficará relativamente claro.

Agora, exatamente o que se quer dizer com sen-sações e percepções? — e como age a mente para trans-formar as primeiras nas segundas? Uma sensação porsi mesma é meramente a consciência de um estímulo;

temos um gosto na língua, um cheiro nas narinas, umsom nos ous idos, uma temperatura na pele, um clarãode luz na retina , unia pressão nos dedos; ela é ocomeço rude, cru da experiência; ela é o que a criançasente nos princípios de sua tateante vida mental; elaainda não é o conhecimento. Mas quando essas váriassensações agrupam-se à 'solta de uni objeto no espaçoe no tempo — digamos esta maçã; quando o cheire)nas narinas, o gosto na língua, a luz na retina e apressão reveladora do io mato nos dedos e na mãounem-se e se agrupam à volta desta "coisa", aí entãohá unia consciencta não tanto de um estimulo comode uni objeto especifico; há unia percepção. A sensa-ção passou a conhecimento.

Mas, e essa passagem, êsse agrupamento, foi auto-mático? Coloca rani-se as sensações por si próprias,espontânea e naturalmente, nesse conjunto e numaordem e assim passaram à percepção? Sim , alirmaramLocke e Hume; de forma alguma, diz Kant.

Pois essas várias sensações chegam a nós atravésde canais variados de sentidos, através de mil "nervosaferentes" que passam da pele, olhos, ouvidos e línguapara o cérebro; que misturada de mensageiros devemconstituir ao abrirem caminho para as câmaras damente, pedindo atenção! Não é de se admirar quePlatão tenha falado na "tumultuada multidão dossentidos". E entregues a si mesmas, elas permanecemuma tumultuada multidão, unia caótica diversidade,lamentâvelmente impotente, esperando serem orde-nadas para adquirirem sentido, finalidade e poder.Seria tão possível como as mensagens trazidas a umgeneral de uni milhar de setores da linha de frenteentrelaçarem-se sem auxílio até obterem compreensãoe comando. Não; há um legislador para essa multidão,

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o poder diretor e coordenador que não recebe, apenas.mas sim toma esses átomos de sensações e os modelanum significado.

Observa, primeiro, que nem zôdas as mensagenssão aceitas. Unia miriade de fôrças cerca teu corponeste momento; uma tempestade de estimulos martelaas extremidades dos nervos que, como unia ameba,estendes para experimentar o mundo exterior; tuasnem todos que chamam são escolhidos; são selecio-nados sõmente aquelas sensações que podem ser mode-

Iodas em percepções apropriadas à tua finalidade domomento OU que trazem mensagens imperiosas deperigo e que são sempre relevantes. O relógio estáandando e não o ouves; mas êsse mesmo ruído, nemWH pouco mais alto do que antes, será imediatamenteouvido se teu objetivo o desejar, mãe que dormejunto to berço do filho está surda ao turbilhão da

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vida; mas se o pequenino se mexe, a mãe logo encon-tra o caminho para o despertar atento tal como ummergulhador que sobe apressadamente para a super-fície do mar. Se o objetivo fôr a soma, o estimulo"dois e três" produzem a resposta "cinco"; se a finali-dade fôr a multiplicação, o mesmo estímulo, as mesmassensações auditivas, "dois e três" produzem a resposta"seis". associação de sensações ou de idéias não sedá meramente pela contigüidade no espaço ou notempo, nem pela similaridade, nem pela qualidade deser recente, pela freqüência ou intensidade da expe-riência: ela é acima de tudo determinada pelo obje-tivo da Mente. AN sensações e os pensamentos sãocomo servos, ficam à espera de nosso chamado, elasnão vêm, a menos que necessitemos delas. Há umagente de seleção e direção que as utiliza e é o seuautor. Em acréscimo às sensações e às idéias existe amente.

Esse agente de seleção e coordenação, segundo aopinião de Kant, utiliza antes de tudo dois simplesmétodos para a classificação do material que lhe éapresentado: o sentido) de espaço e o sentido de tempo.Assim como o general dispõe as mensagens que lhesão tratidas conforme o lugar de onde vieram e a horaem que foram escritas e desse modo encontra unianrdem e uni sistema para textos elas, assim tambéma mente distribui suas sensações no espaço e no tempo,atribui-as a este objeto aqui ou àquele acolá, a 'estetempo presente ou àquele passado. Espaço e temponão são coisas percebidas, tuas modos de percepção,mrneiras de dar sentido à sensação; espaço e tempo.5o, órgãos de percepção.

Eles são (1 priori porque toda experiencia orde-nada os implica e os pressupõe. Sem eles, as senso-

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çü'es nunca pocteriàm chegar a percepções. Eles sãoa pn júri porque é inconcebível que jamais tenhamosalguma expet lenda futura cm que não estejam envol-vidos. E por serem a priori, suas leis, que são as leisda matemática, são a priori, absolutas e necessárias,para todo o sempre. Não é meramente provável, écerto que nunca encontraremos unta linha reta quenão seja a distância mais curta entre dois pontos. Amatemática, ao menos, está a salvo do ceticismo des-truidor de 1)avid Hume.

Poderão tôdas as ciências ser igualmente salvas?Sim, se se puder demonstrar ser o seu princípio bá-sico, a lei da causalidade — de que unia causa deter-minada tem ,s(3npre que ser seguida de um efeitodeterminado — tal conto o espaço e o tempo , tãoinerente em todos os processos do entendimento quenão se possa conceber nenhuma experiência futuraque o viole ou que dele escape. É a causalidade, tam-bém, a priori, uni requisito essencial e condição indis_pensável a todo o pensamento?

2. ANALiTICA. TRANSCENDENT.XL

Passamos então do largo campo da sensação epercepção à estreita e escura câmara do pensamento;da "estética transcendental" a "lógica transcendental";e em primeiro lugar a denominação e análise daqueleselementos em nosso pensamento que não são tantopassados à mente pela percepção como passados apercepção pela mente; aquelas alavancas que elevamo conhecimento "perceptivo" dos objetos ao conheci-mento "conceituai das ligações, seqüências e leis:ésses instrumentos da mente que depuram a experién-

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cia em ciência. Tal como as percepções distribuíramas sensações ao redor dos objetos no espaço e no tempo,assim a concepção arruma as percepções (objetos eacontecimentos) ao redor das idéias de causa, unidade,relação recíproca, necessidade, contingência, etc.;essas e outras "categorias" são a estrutura na qual aspercepções são recebidas e através da qual são clas-sificadas e moldadas nos conceitos ordenados dos pen-samentos. São eles a própria essência e o caráter damente; mente é a coortlenação da experiência.

E observam novamente aqui a atividade dessamente que para Locke e Hume era mera "cêra pas-siva" sob os impactos da experiência sensorial. Con-siderem um sistema de pensamento como de Aristó-teles; será concebível que essa ordenação quase cós-mica de dados poderia surgir pela espontaneidade

anárquica, automática dos dados eles próprios? Vejamesse formidável catálogo das fichas da biblioteca.ordenado inteligentemente numa seqüência pela fina-

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lidado humana. Depois imaginem tôdas essas fichasjogadas no chão, tôdas essas fichas espalhadas na maiordesordem. Podem agora conceber essas fichas espalha-das colocando-se de pé, tal como numa história deMünchausen, dirigindo-se tranqüilamente para seuslugares alfabéticos e tópicos nas suas caixetas apro-priadas e cada caixeta para sua localização apropriadano arquivo? Que história milagrosa é afinal de contasessa que nos ofereceram os céticos?

Sensação é o estimulo desorganizado, percepçãoé a sensação organizada, concepção é a percepção or-ganizada, ciência é o conhecimento organizado, sabe-doria é vida organizada: cada uni é uni grau maiorde ordem, seqüência e unidade. De onde vêm essaordem, essa seqüência, essa unidade? Não das coisaselas próprias; pois nós as conhecemos apenas pelassensações que passam através de mil canais, ao mesmotempo, em multidão desordenada; é a nossa finali-da:le que dá ordem, seqüência e unidade a essa desor-dem importuna; somos nós, nossas personalidades,nossas mentes, que trazem a luz a esse oceano. Lockeestava errado quando disse: "Não há nada no inte-lecto exceto o que existiu primeiro nos sentidos";Leibnitz estava certo quando acrescentou, "nada,exceto o próprio intelecto." "Percepções sem concep-ções", diz Kant, "são cegas". Se as percepções se orga-nizassem automàticamente em pensamento ordenado,se a mente não fôsse um estôrço ativo forjando aordem no caos, como poderia acontecer que a mesmaexperiência deixasse medíocre a um homem e numaalma que fôsse mais ativa e incansável fôsse elevadaà luz da sabedoria e à bela lógica da verdade?

O mundo, então, tem ordem, não por si mesmo,mas porque o pensamento que conhece o mundo é

em si mesmo uma ordenação, o primeiro estágionaquela classificação da experiência que no final éa ciência e a filosofia. As leis do pensamento são

também as leis das coisas, pois sabemos das coisasapenas através desse pensamento que tem que obe-decer a essas leis, já que eles e elas são unos e a lógicae a metafísica se fundem. Os principios generalizadosda ciência são necessários porque fundamentalmenteêles são leis do pensamento que estão implícitas epressupostas em tódas as experiências, passal pre-sentes e futuras. A ciência é absoluta e a .ade éeterna.

3. TRANSCENDEN'TAL

No entanto, essa certeza, essa peremptoriedade,das mais elevadas generalizações da lógica e da ciên-cia, são, paradoxalmente, limitadas e relativas: litni-

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tadas estritamente ao campo da experiência real erelativas estritamente à nossa modalidade humana deexperiência. Isto porque se nossa análise foi correta,o mundo como nós o conhecemos é uma construção,uni produto retocado, quase que se poderia dizer umartigo manufaturado, para o qual a mente, pelas suasformas modeladoras, contribui tanto quanto contribuia coisa pelos seus estímulos. (Assim percebemos otôpo da mesa como sendo redondo, enquanto quenossa sensação é a de uma elipse). O objeto corno êleparece a nós é uni fenômeno, urna aparência, talvezmuito diferente do objeto externo antes de estardentro do alcance de nossos sentidos; o que o objetooriginal era, nunca podemos saber: a "coisa-em-si"

pode ser um objeto do pensamento ou uma inferên-cia (uni "número"), mas não pode ser experimentada,pois ao ser experimentada seria transformada pela

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sua passagem através dos sentidos e do pensamento."Permanece inteiramente desconhecido a nós o queos objetos podem ser por si mesmo e separadamenteda receptividade de nossos sentidos. Não conhecemosnada a não ser nossa modalidade de percebê-los; sendoessa modalidade peculiar a nós e não compartilhadanecessariamente por todos os sêres, porém sem dúvidapor todos os sêres humanos. (21 ) A lua como nós áconhecemos é meramente um feixe de sensações (comoviu Hume), unificadas (como Hume não viu) pelanossa estrutura mental nata através da elaboração dassensações em percepções e destas em concepções ouidéias; resultado, a lua é, para nós, meramente, nossasidéias. ( 22) Não que Kant jamais ponha em dúvidaa existência da "matéria" e do mundo exterior; masêle acrescenta que não sabemos nada de certo acercadeles, exceto que existem. O conhecimento detalhadoque possuímos é acêrca de sua aparência, de seusfenômenos, das sensações que dêles temos. Idealismonão significa , como julga o homem comum, que nãoexiste nada além do sujeito que percebe; mas simque uma boa parte de cada objeto é criada pelasformas de percepção e compreensão: conhecemos oobjeto tal conto é transformado em idéia; o que eleé antes de ser assim transformado não podemossaber. A .ciência é, afinal, ingénua; ela supõe estarlidando com coisas em si, em sua vigorosamente ex-terna e incorronipida realidade; a filosofia é umpouco mais sofisticada e compreende que todo o

21. Critica, p. 37. Se Kant não houvesse acrescentado essaúltima cláusula, sua alegação da necessidade do conheci-mento não ficaria de pé.

22. Assim, John Stuart Mill, com tôda sua tendência inglêsapara o realismo, foi levado por fim a definir a matéria como.meramente, "uma possibilidade permanente de sensações."

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material da ciência consiste antes de sensações, per-cepções e concepções do que de coisas. "O maiormérito de Kant", diz Schopenhauer, "é distinguir ofenômeno da coisa-em-si." (2%)

Segue-se que qualquer tentativa, seja pela ciên-cia ou pela religião, de dizer exatamente o que e arealidade fundamental, tem que cair na mera hipó-tese; "a compreensão não pode nunca passar doslimites da sensibilidade." (24 ) Uma ciência assimtranscendental perde-se em "antinomias" e uma teo-logia assim transcendental perde-se em "paralogis-mos". A cruel função da "dialética transcendental" éexaminar a validade dessas tentativas da razão de seevadir do círculo circundante de sensação e aparênciapara o inundo, que não se pode conhecer, das coisas"em si".

Antinomias são os dilemas insolúveis nascidos deunia ciência que tenta passar por cima da experiência.Assim, por exemplo, quando o conhecimento tentadecidir se o inundo é finito ou infinito no espaço, opensamento rebela-se contra ambas as suposições:somos levados a conceber, além de qualquer limite,algo mais longínquo, interminàvelmente; e, no en-tanto, a infinidade é em si mesma inconcebível. Eentão: teve o inundo um começo temporal? Não pode-mos conceber a eternidade; mas não podemos tambémconceber nenhum ponto no passado sem sentir ime-diatamente que antes dele existia algo. Ou terá aquelaseqüência de causas, que a ciência estuda , um co-meço, urna Causa Primeira? Sim, pois uma cadeiainterminável é inconcebível; não, pois uma primeiracausa não causada é igualmente inconcebível. Há

23. O Mundo como Vontade e Representação; vol. II, p. 7.24. Critica, p. 215.

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alguma saída desses becos do pensamento? Há, dizKant, se nos lembrarmos que espaço, tempo e causasão modalidades de percepção e concepção que têm

que eturar em tôda nossa experiência, já que são ateia e á estrutura da experiência: esses dilemas sur-gem de se supor que espaço, tempo e causa são coisasexternas independentes da percepção. Nunca teremosqualquer experiência que não seja por nós interpre-tada em termos de espaço, tempo e causa; mas nuncateremos unia filosofia se esquecermos que êsses ele-mentos não são coisas, mas sim modalidades de inter-pretação e entendimento.

Assim também como os paralogismos da teologia"racional" — que tenta provar pela razão teoréticaque a alma é uma substância incorrompível, que avontade é livre e está acima da lei de causa e efeito eque existe uni "ser necessário", Deus, como a pressupo-

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lição de tôda a realidade. A dialética transcendentalttan que lembrar à teologia que substância. causa enecessidade são categorias finitas, modalidades dearranjo e classificação que a mente aplica à expe-riência sensorial e com validez digna de confiançaapenas para os fenômenos que aparecem a unia expe-riência desse tipo: não podemos aplicar essas concep-ções ao mundo numeral (ou meramente inferido econjecturado). A religião não pode ser provada pelarazão teorética.

Termina assim a primeira Critica. Podemos bemimaginar David Hume, uni galés ainda mais manhoso

do que o próprio Kant. observando os resultados comuni sorriso sardônico. Ali estava UM livro tremendo.oitocentas paginas , repleto quase que aléns do supor-

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tável de unia terminologia pesada, propondo-se asolucionar todos os problemas da metafísica e ronco-initantemente a salvar a peremptoriedade da ciênciae a verdade essencial da religião. O que havia o livrorealmente feito% Havia destruído o mundo cândido daciência e o limitado, se não em grau, certamente emilcance — e a uni mundo confessadamente de merasuperfície e aparência, além do qual podia elase manifestar sinnente em "antinomias" caricatas:assim foi "salva" a ciência! Os trechos mais elo-qüentes e incisivos do livro haviam argumentadoque os objetos da fé — a alma livre e imortal e um

criador benevolente — nunca poderiam ser demons-trados pela razão: assim foi "salva" a religião! Não édf, se admirar que os padres da Alemanha protestas-sem energicamente contra essa salvação e se vingas-sem dando o nome de Emanuel Kant a seus Ca-

chorros! (21t)E não é de se admirar que Heine comparasse o

pequeno professor de KíMigsberg ao terrível Robes-pierre: esse último havia meramente causado a mortede um rei e de alguns milhares de franceses — o queuni alemão pode perdoar: mas Kant, disse Heine, haviadestruído Deus e solapado os mais preciosos argu-mentos da teologia. "Que contraste violento entre avida exterior desse homem e seus pensamentos des-truidores e abaladores do mundo! Tivessem os cida-dãos de Kiinigsberg vislumbrado todo o significadodesses pensamentos teriam êles sentido um receio maisprofundo na presença cresse homem do que na do car-rasco que meramente mata seres humanos. Mas aquelaboa gente nada via nele a não ser uni professor de

25. Wallace, p. 82.

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filosofia; e quando na hora marcada ele dava seupasseio, cumprimentavam-no amistosamente e acer-tavam seus relógios." (26)

Terá isso sido urna caricatura ou uma revelação?

CAPITULO I V

A CRITICA DA RAZÃO PRÁTICA

S E A RELIGIÃO não pode ser baseada na ciênciae na teologia, no que então o poderá ser? Na

moral. A base na teologia é insegura demais; é melhorque seja abandonada, ale mesmo destruída; a fé tem

que ser colocada além do alcance ou domínio darazão. Mas, conseqüentemente, a base moral da reli-gião tem qup ser absoluta, não pode ser derivada de

26. Heine. Prose Miseellarnes, Friadélfia, 1876, p. 146.— 55 —

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experiências sensoriais passíveis de dúvidas ou infe-rências precárias; nem corrompida pela mistura coma razão falível; ela tem que ser derivada do ser inte-rior pela intuição e percepção direta./ Temos queencontrar unia ética universal e necessária; princípiosde moral a priori tão absolutos e certos como a mate-mática. Temos que mostrar que "a razão pura podeser prática, isto é, pode determinar por si mesma avontade independentemente de todo elemento empí-rico," ( 2 ) que o senso moral é inato e não derivadoda experiência. O imperativo moral de que necessi-tamos como base da religião tem que ser tini impe-rati vo absoluto, categórico.

,Agora, a mais surpreendente realidade em tôdanossa experiência é justamente nosso senso moral,nossa sensação inevitável, diante da tentação, de queisso ou aquilo é errado. Podemos ceder, mas a sensa-ção não obstante estará lá. 1,e ',latiu je tais des pro_jets et le sol) . je frlis des sottises; (- 8) mas sabemos queelas são soltises e tornamos a tomar resoluções. O queé que traz a picada do remorso e as novas resoluções?É o imperativo categórico dentro de nós, a ordemincondicional de nossa consciência de "agir como sea IlláX111111 de nossa ação fôsse se tornar por nossavontade uma lei universal da natureza." ( 29) Sabemos,não pelo raciocínio, mas por uma sensação intensa eimediata, que temos de evitar um comportamentoque, se adotado por todos os homens, tornaria impos-sível a vida em sociedade. Quero escapar de um com-promisso com uma mentira? Porém "ainda que. possadesejar a mentira, não posso de forma alguma desejar

27. Critica da Razão Prática, p. 31.28. "De manhã tomo boas resolucões e de noite faço tolices."29. Razão Prática, p. 139.

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que mentir seja unia lei universal. Pois (0111 unia tallei não haveria de todo promessas." ( 3") Dai a sensa-ção em mim de que não devo mentir, mesmo que meseja vantajôso. A prudência é hipotética; seu lema é"Sinceridade quando essa é a melhor política; mas alei moral em nossos corações é incondicional eabsoluta.

E unia ação é boa não porque tem bons resul-tados ou porque é sábia, mas sim porque é feita emobediência a êsse sentido interior de dever, essa leimoral que não provém ele nossa experiência pessoal,mas rege imperiosamente e a priori todo nosso com-portamento, passado, presente e futuro. A única coisaa bsolutamente boa neste mundo é unia vontade boa— a vontade de seguir a lei moral . indiferentementeaos lucros ou perdas para nós mesmos. Não te preo-cupes com tua felicidade; tare teu dever. "Moralidadenão é prõpriamente a doutrina de como podemos nostornar felizes, mas sim de como podemos nos tornardignos da felicidade." ("') Busquemos a felicidade dosoutros: mas, para nós, a perfeição — quer ela nostraga felicidade ou dor. ( 2 ) Para conseguir a perfei-cão em ti mesmo e a felicidade nos outros, "age detorna a tratar a humanidade, quer na tua própriapessoa ou na de um outro, em todos Os casos comotini fim. nunca apenas como uni meio." ( : 's ) — issotambém, como sentimos diretamente, é parte do (i(i)irni-perativo categórico. Vivamos eis conformidadeum tal princípio e muito em breve criaremos uniacomunidade ideal de séres racionais: para criá-la pre-cisamos apenas agir como se já pertencessemos a ela:

30. Ibid., p 19.31. Ibid., p. 227.32. Prefácio aos Elementos Metafísicos da Ética.33. Metafísica dos Costumes.

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temos que aplicar a lei perfeita no estado imperfeito.uma ética dura, dizes, — essa colocação do dever

acima da beleza, da moralidade acima da felicidade;mas é só assim que podemos cessar de ser animais ecomeçar a ser deuses.

Reparem, entretanto, que esse absoluto comandodo dever.prova enfim a liberdade de nossa vontade:como poderíamos jamais ter concebido uma tal noçãode dever se não nos sentíssemos livres? Não podemosprovar essa liberdade pela razão teorética; provamo-laao senti-la diretamente na crise da escolha moral.Sentimos essa liberdade como a própria essência denosso ser interior, do "Ego puro"; sentimos dentrode nós a atividade espontânea de uma mente mode-lando as experiências e escolhendo as metas. Nossas

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ações, unta vez que as iniciamos, parecem seguir leisfixas e invariáveis, mas isso apenas porque percebemosseus resultados através dos sentidos que vestem tudo.que transmitem nas vestes daquela lei causal quenossas próprias mentes elaboraram. Não obstante,estamos além e acima das leis que fazemos a fim decompreender o mundo de nossa experiência; cada umde nós é um centro de fôrça iniciadora e poder cria-dor. De um modo que sentimos, mas não podemosprovar, cada um de nós é livre.

E também, apesar de não o poder provar, senti-mos que somos imortais. Percebemos que a vida nãoé como essas peças de teatro tão queridas pelo povo

— nas quais todo vilão é punido a tôda ação virtuosatem sua recompensa; todo dia aprendemos de nôvoque aqui a astúcia da serpente funciona melhor do

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que a mansidão da pomba e que qualquer ladrão podetriunfar se roubar bastante. Se a mera utilidade econveniência mundanas fôssem a justificativa da vir-tude, não seria sábio ser bom demais. E no entanto,sabendo disso tudo, sendo-nos isso atirado ao rostocom insistência brutal, ainda assim sentimos o co-mando à retidão, sabemos que devemos fazer o bemdesvantajoso. Como poderia sobreviver esse sentidodo dever se em nossos corações não sentissemos seresta vida apenas urna parte da vida, este sonho ,terrenoapenas um prelúdio embriônico de um nôvo nasci-mento, um nôvo despertar;- se não soubéssemos vaga-mente que naquela vida posterior e mais longa o equi-líbrio será restabelecido e nem um copo d'água serádado generosamente sem que seja mil vezes devolvido?

Finalmente, e pelo mesmo indício, existe umDeus. Se o senso do dever implica a crença em re-compensas futuras e a justifica, "o postulado daimortalidade... tem que levar à suposição da existên-cia de uma causa adequada a esse efeito; em outraspalavras, tem que postular a existência de Deus." (34)Isso também não é prova por meio da "razão"; o sensomoral, que trata com o mundo de nossas ações, temque ter prioridade sôbre aquela lógica teorética quefoi desenvolvida apenas paia tratar com os fenô-menos sensoriais. Nossa razão nos deixa livres decrer que por trás da coisa-em-si há uni Deus justo;nosso senso moral ordena que acreditemos nisso.Rousseau tinha razão: acima da lógica da mente estáo sentimento no coração: o coração tens razões pró-prias, como disse Pascal, que a mente nunca Poderácompreender.

34. Razão Prática. p. 220.

CAPITULO V

DA RELIGIÃO E RAZÃO

p ARECE isso vulgar, tímido e conservador? Masnão o era: pelo contrário, essa negação ousada

da teologia "racional", essa redução franca da religiãoà esperança e à fé moral, provocou protestos de todos

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os ortodoxos da Alemanha. Enfrentar essa "fôrça dequarenta clérigos" (como teria dito Byron) exigiamais coragem do que normalmente se associa ao nomede Kant.

Ser ele bastante valente foi demonstrado clara-mente quando publicou, aos sessenta e seis anos, suaCritica da Faculdade de Julgar, e, aos sessenta e noveanos, sua A Religião dentro dos Limites da RazãoPura. No primeiro desses livros Kant volta à discus-são do argumento do traçado que, em sua primeiraCrítica, rejeitara como prova insuficiente da existên-cia de Deus. Começa correlacionando traçado e beleza;o belo, julga ele, é qualquer coisa que revela simetriae unidade de estrutura, como se houvesse sido traçadopela inteligência. Observa de passagem (e aqui Scho-pcnhaucr aproveitou-se bastante de sua teoria da arte)que a contemplação de uni traçado simétrico semprenos dá uni prazer desinteressado; e que "uni interessepela beleza da natureza por ela mesma é sempre unisinal de bondade." (°) Muitos objetos na naturezademonstram uma tal beleza , unia tal simetria e uni-dade que quase nos leva à idéia de um traçado sobre-natural. Mas por outro lado, diz Kant, existem tam-bém na natureza muitos exemplos de desperdício ecaos, de multiplicação e repetição desnecessária; anatureza preserva a vida, mas a custa de quanto sofri-mento e mortes! A aparência de um traçado externo,então, não é uma prova conclusiva da Providência.Os teólogos que usam tanto essa idéia deviam aban-doná-la e os cientistas que a abandonassem deveriamusá-la; unta indicação magnífica e conduz a cen-tenas de revethções. Pois existe sem dúvida um ira-

çado; mas é um traçado interno, o traçado das partespelo todo; e se a ciência interpretar as partes de umorganismo em termos de sua significação para o todo,ela terá um saldo admirável para aquele outro prin-cípio heurístico — a concepção mecânica da vida —que também é fértil para descobertas, mas que,sôzinho, nunca poderá explicar nem mesmo o cresci-mento de uma fôlha de grama.

O ensaio sabre religião é uni trabalho extraordi-nário para um homem de sessenta e nove anos; é tal-vez o mais ousado de todos os livros de Kant. Já quea religião tem que ser baseada não na lógica da razãoteorética, mas sim na razão prática do senso moral,segue-se que qualquer bíblia ou revelação tens que ser

julgada por seu valor para a moralidade e não podeela própria ser o juiz de um código moral. Igrejas edogmas têm valor só na medida em que assistem odesemolvimento moral da raça. Quando meras dou-trinas ou cerimônias usurpam a prioridade vibre aexcelência moral como 11111 teste de religião, a religiãodesapareceu. A igreja verdadeira é unia comunidadede pessoas, por mais espalhadas e divididas que este-jam, que estão unidas pela devoção à lei moral comum.Foi para estabelecer unia tal comunidade que Cristoviveu e morreu; foi essa igreja verdadeira que eleexibiu em contraste ao clericalismo dos fariseus.Mas uni outro clericalismo quase oprimiu essanobre concepção. "Cristo trouxe o reino de Deus maispara perto da terra; mas êle foi mal interpretado e emlugar do reino de Deus foi estabelecido o reino dopadre entre nós." (") Doutrina e ritual substituíramnovamente a -vida reta; e em vez de os homens serem

35. Critica da Faculdade de Julgar. 36. Citado em Immanuel Kant, de Chamberlain; vol. I, p. 510.

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ligados pela religião, estão divididos em mil seitas;e tôdas as formas de "tolices piedosas" são inculcadascomo "uma espécie de prestação de serviços na côrtecelestial através da qual pode se conseguir por meiode lisonjas a proteção do governante do céu." (37)Além disso, milagres não podem provar a religião,pois nunca podemos confiar inteiramente nas decla-rações que os sustentam; e a oração é inútil se suafinalidade é a suspensão das leis naturais que vigoram

para tôdas as experiências. Finalmente , o nadir daperversão é atingido quando a igreja torna-se uminstrumento nas mãos de uni govêrno reacionário;quando os sacerdotes, cuja função é consolar e guiar37. Em Paulsen. 366.

A FILOSOFIA DE EMANUEL KANT 65

uma humanidade atribulada com a fé religiosa, aesperança e a caridade, são usados como instrumentosdo obscurantismo teológico e da opressão política.

A audácia dessas conclusões estava no fato de queera precisamente isso o que havia acontecido na PI-1'1s-

sia. Frederico o Grande morrera em 1786 e seusucessor fôra Frederico Guilherme II, a quem asações liberais de seu predecessor pareciam cheirarimpatriõticamente ao Iluminismo francês. Zedlitz, queRira Ministro da Educação sôbre Frederico, foi demi-tido e seu cargo foi dado ao pietista Woliner, a quemFrederico havia acusado de ser 'uni sacerdote intri-gante e traidor" que dividia seu tempo entre a alqui-mia e mistérios rosacruzistas e que subiu ao poderoferecendo-se Como "um instrumento indigno" paraa política do nõvo monarca de restabelecer a fé orto-doxa pela compulsão. ( is ) \\T ollner expediu, em 1788,uni decreto que proibia qualquer ensinamento, noscolégios ou universidades, que divergisse da formaortodoxa do protestantismo luterano; êle estabeleceuurna severa censura sôbre todos os tipos de publica-ções e ordenou a dispensa de todos os professõres sus-peitos de qualquer heresia. Kant, a principio, foi dei-xado em paz porque éle era uni homem velho e —como disse uni conselheiro cia côrte — só poucas pes-soas o liam e essas não o compreendiam. Mas o ensaiosôbre a religião era muito compreensível; e, apesarde ressoar com fervor religioso, revelava um estiloque lembrava demais Voltaire para passar pela novacensura. O Berliner Monatsschrift, que planejarapublicar o ensaio recebeu ordem de não o fazer.

Kant agiu então com um vigor e uma coragem

38. Enciclopédia Britânica. item "Frederico Guilherme II".

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difíceis de se acreditar num homem que havia quasecompletado setenta anos. Enviou o ensaio a alguns

amigos seus ein lena eatravés deles conseguiupublicá-lo na seção deimprensa da Universi-dade de lá. lena eslavatora da Prússia, soba jurisdição daquelemesmo liberal Duquede Weimar que agoratomava conta de Goe-the. O resultado foique cm 1794 recebeuuma eloqüente ordemdo gabinete do ReiPrussiano, que dizia oseguinte: "Nossa pessoamais elevada teve gran-de desprazer eni obser-var como o senhor dáuni mau emprego àsua filosolia utilizan-do-a para minar e des-

truir limitas das mais importantes e fundamentaisdoutrinas das Sagradas Escrituras e do Cri s tianismo.Exigimos que nos dê imediatamente unia explicaçãoprecisa e esperamos que no futuro não mais de taismotivas de ofensa, mas sim que, conforme é seu dever,empregue seu talento e autoridade de forma a quenossa finalidade paternal seja mais e mais alcançada.Se continuar a se opor a essa ordem poderá contarcom conseqüências desagradáveis, - (39 ) Kant respon-

deu que todo estudioso deveria ter o direito de for-mar opiniões independentes sôbre assuntos religiosose de fazê-las conhecidas; mas que durante o reinadodo atual imperador ele se manteria em silêncio.Alguns biógrafos que sabem ser muito valentes porprocuração, condenaram-no por essa concessão: masdevemos-nos lembrar que Kant estava com setentaanos, que tinha pouca saúde e não estava apto a urnaluta; além disso, já tinha difundido sua mensagempara o mundo.

39. Em Paulsen. p. 49.

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CAPrFULO VI

DA POLÍTICA E DA PAZ ETERNA

O GOVERNO prussiano poderia ter perdoadoa teologia de Kant se êle não fôsse também

culpado de heresias políticas. Três anos após o acessode Frederico Guilherme II, a revolução francesafazia tremer todos os tronos da Europa. Numa oca-sião em que a maioria dos mestres das universidadesprussianas apressara-se em apoiar a monarquia legí-tima, Kant, na idade de sessenta e cinco anos, saudaracom alegria a revolução com lágrimas nos olhos edizia aos amigos: "Agora posso dizer como Simeão,`Senhor, deixai agora Vosso servo partir em paz poismeus olhos já viram Vossa Salvação." (40)

Ele havia publicado, em 1784, uma breve expo-sição de sua teoria política sob o título "O PrincípioNatural da Ordem Política considerada em conexãoCOM a Idéia de uma História Cosmopolita Universal";o titulo em si já era uma porção considerável doensaio. Kant começa reconhecendo, naquela luta decada um contra todos que tanto havia chocado aHobbes, o sistema da natureza de desenvolver as40. Wallace, p. 40.

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capacidades ocultas de vida; a luta é o acompanha-mento indispensável do progresso. Se os homens fôs-sem inteiramente sociais, o homem ficaria estagnado;uma certa mistura de individualismo e competição énecessária para fazer com que a espécie humana

sobreviva e se desenvolva. "Sem qualidade-, de tipoanti-social... os homens poderiam ter levado uniavida arcádica de pastôres numa total harmonia,satisfação e amor mútuo; mas nesse caso seus talentosteriam ficado para sempre escondidos no embrião."(Kant não era, conseqüentemente, uni servil seguidorde Rousseau). "Graças sejam dadas então à naturezapor essa característica anti-social, por êsse ciúme inve-joso e essa vaidade, por êsse desejo insaciável de possee de poder... O homem deseja a concórdia; mas a

natureza sabe melhor o que é bom para a espécie;e ela deseja a concórdia, para que o homem seja im-pelido a um nôvo esfôrço de seus podêres e a umdesenvolvimento adicional de suas capacidades na-turais.

A luta pela existência não é, então, totalmente,uni mal. Os homens, todavia, logo percebem que elatem que ser restringida dentro de certos limites eregulada por regras, costumes e leis: daí a origem eo desenvolvimento da sociedade civil. Mas aí "amesma característica anti-social que forçou os homensa uma sociedade torna-se novamente a causa de cadacomunidade assumir a atitude de liberdade incontro-lada em suas relações exteriores, — isto é, como umEstado em suas relações com outros Estados; e, conse-qüentemente, qualquer uni dos Estados tem que espe-rar de qualquer uni dos outros a mesma espécie demales que anteriormente oprimiu os indivíduos e osobrigou a entrar numa união civil regulamentada

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pela lei." ( 41 ) É tempo que as nações, tal como oshomens , emerjam do estado selvagem da natureza eentrem eni acôrdo para manter a paz. Todo o sentidoe evolução da história é a sempre maior restrição dacombatividade e vio:encia , e continua ampliação daárea de paz. "A história da raça humana, vista cornoum todo, pode ser considerada corno a realização deum plano oculto da natureza para produzir umaconstituição po:iticit, interna e externamente perfeita,com()() único estado em que tôdas as capacidades porela implantadas na humanidade possam ser integral-mente desenvolvidas." ( 42 ) Se não ocorre um tal pro-

41. Paz Eterna 'e Outros Ensaios; (Eternal Peace and OtherEssays); Boston, 1914; p. 14.

42. Ibid.. p. 19.

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gresso, os trabalhos das civilizações sucessivas sãocomo os de Sísifo, que outra vez e mais outra vez"empurrava uma imensa pedra redonda até ao alto deum morro íngreme", apenas para que ela rolasse devolta quando estava quase no cume. A História entãonão seria nada mais do que uma loucura interminávele tortuosa: "e poderíamos supor, como os hindus, quea terra é um lugar para a expiação de velhos e esque-cidos pecados." (43)

O ensaio sôbre a. "Paz Eterna" (publicado em1795, quando Kant tinha setenta e um anos) é umnobre desenvolvimento desse tema. Kant sabe cornoé fácil rir dessa frase; e sob o título êle escreve: "Essaspalavras foram uma vez colocadas por um estalaja-deiro holandês no seu quadro de avisos, como umainscrição satírica, sôbre um cemitério." ( 44) Kant, an-teriormente havia-se queixado, como aparentementeo faz cada geração, de que "nossos governantes nãotêm dinheiro para gastar com a educação pública...porque todos os seus recursos já estão colocados nasdespesas da próxima guerra." ( 45) As nações não serãorealmente civilizadas até que todos os exércitos per-manentes sejam abolidos. — A audácia dessa propostaressalta quando nos lembramos que foi a própriaPrússia que, sob o pai de Frederico, o Grande, fôraa primeira a estabelecer o recrutamento militar."Exércitos permanentes incitam os países a sobrepujarum ao outro no número de seus homens armados, oque não tem limite. Devido às despesas por isso oca-sionadas, a paz torna-se finalmente mais opressiva doque uma pequena guerra: e os exércitos permanentes

43. P. 58.44. P. 68.45. P. 21.

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são por conseguinte a causa das guerras de agressãoempreendidas a fim de se livrar dêsse fardo." ( 46) Poisem tempo de guerra o exército se sustentaria com os

produtos do campo, por requisição, aquartelamentoe pilhagem; de preferência no território do inimigo,mas, se necessário, em sua própria terra; até mesmoisso seria melhor do que sustentá-la com os fundosdo governo.

Uma grande parte dêsse militarismo, na opiniãode Kant, devia-se ao fato de ter a Europa se expan-dido na América, África e Ásia, com as resultantesdisputas dos ladrões sôbre as novas prêsas. "Se compa-rarmos os exemplos- bárbaros de inospitalEoilid-Rde...com o comportamento cruel dos Estados civilizados, eespecialmente dos comerciais, as injustiças praticadaspor êle mesmo em seu primeiro contato com terrase povos estrangeiros enchem-nos de horror; sendounia simples vista a êsses povos considerada por elescomo o equivalente a uma conquista. A América, asterras dos negros, as Ilhas Molucas, o Cabo da Boa

46. P. 71.

Esperança, etc..... ao serem descobertos, foram tra-tados como países que a ninguém pertenciam; pois oshabitantes aborígines foram considerados como nada...E tudo isso foi feito por nações que fazem grande es-tardalhaço quanto à sua santidade e que, ao mesmotempo em que sorvem iniqüidades como água, querem

ser olhadas como as próprias eleitas da fé orto-doxa." (47) A velha rapôsa de KOnigsberg ainda nãofôra reduzida ao silêncio!

Kant atribuía essa cobiça imperialista à consti-tuição oligárquica dos Estados europeus; as prêsasiam para uns poucos selecionados e continuavam a sersubstanciais mesmo depois da divisão. Se fôsse esta-belecida a democracia 2 ‘todos participassem do podeipolítico, as presas do assalto internacional teriamque ser tão subdivididas que passariam a ser uma

47. P. 68.

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tentação resistível. Daí "o primeiro artigo peremptóriodas condições da Paz Eterna" ser o seguinte: "A cons-tituição civil de todo Estado será republicana e aguerra não será declarada a não ser por um plebiscitode todos os cidadãos." 9) Quando aqueles que têm(4que enfrentar a luta tiverem o direito de decidir entrea guerra e a paz, a história não mais será escrita comsangue. "Por outro lado, numa constituição onde Osúdito não e um membro votante do Estado, o qualconseqüentemente não é republicano, a resolução deir à guerra é um assunto de somenos importância nomundo. Pois neste caso, o governante, que, como tal,não é um mero cidadão, mas o dono do Estado, não

precisa sofrer pessoalmente em nada com a .guerra,nem tens êle que sacrificar seus prazeres da mesa ouda caça, ou seus agradáveis palácios, festivais da côrte,48. Pgs. 76-77.

ou coisas similares. Ele pode, portanto, decidir pelaguerra por razões insignificantes, como se ela nãofôsse senão uma expedição de caça; e, quanto ao queconcerne à sua conveniência, ele pode deixar suajustificação, sem se preocupar por isso, ao corpo diplo-mático, que está sempre por demais pronto a prestarseus serviços para essa finalidade." (49) Como a ver-dade é contemporânea!

A vitória aparente da Revolução sôbre os exér-citos da reação, em 1795. deu a Kant a esperança deque as repúblicas iriam agora multiplicar-se por tôdaa Europa e que uma ordem internacional surgiriabaseada numa democracia sem escravidão e sem ex-ploração, devotada à paz. Afinal de contas, a funçãodo governo é auxiliar e fazer progredir o indivíduo,e não servir-se dele. "Todo homem tem que ser res-peitado como um fim absoluto em si mesmo; e é umcrime contra a dignidade que lhe pertence como serhumano, usá-lo como um mero meio para algumafinalidade externa." (50) Isto também é uma parte eparcela daquele imperativo categórico sem o qual areligião é uma farsa hipócrita. Kant, conseqüente-mente, clama pela igualdade: não de aptidão, mas deoportunidade para o desenvolvimento e aplicação daaptidão; ele rejeita tôdas as prerrogativas de nasci-►ento e classe e dá como origem de todos os privilé-gios hereditários alguma conquista violenta no pas-sado. No meio do obscurantismo da reação e da uniãode tôda a Europa monárquica vara esmagar a Revo-lução, ele torna posição, a despeito de seus setentaanos, a favor da nova ordem, pelo estabelecimento dademocracia e liberdade em tôda a parte. Nunca antes

49. Ibid.50. Em Paulsen i p. 340.

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CAPÍTULO VII

CRITICA E AVALIAÇÃO

E COMO se ►an-tém, nos dias

de hoje, esta complexaestrutura de lógica,metafísica. psicologia,ética e política, depoisque as tormentas filo-sóficas de uni século aaçoitaram? É agradávelpoder responder que ogrande edifício perma-nece; e que a "filosofiacrítica" representa uniacontecimento de im-portância permanentena história do pensa-mento. Mas muitos de-talhes e revelins da es-estrutura foram aba-lados.

Primeiro, então, éo espaço un ta mera

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falara com tanta bravura a velhice com a voz damocidade.

Mas ele agora estava exausto: correra sua corridae combatera sua luta. Foi fenecendo lentamente numasenilidade que por tini passou a ser unia insanidade

inofensiva: uni a uni, seus sentidos e seus podêres odeixaram; e, em 1804, na idade de setenta e noveanos, morreu, tranqüila e naturalmente, corno umafôlha caindo de uma árvore.

r•

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"forma da sensibilidade", não tendo uma realidadeobjetiva independente da mente perceptiva? Sim enão. Sim, pois o espaço é um conceito vazio quandonão está cheio de objetos percebidos; "espaço" signi-fica meramente que certos objetos estão, para a menteperceptiva, em tal e tal posição, ou distância, comrelação a outros objetos percebidos: e não é possívelunia percepção externa a não ser dos objetos noespaço: o espaço é então, sem dúvida , uma "formanecessária da faculdade de percepção externa." E não,pois é certo que tais fatos espaciais, como o circuitoelíptico anual, à volta do sol, que faz a terra, apesarde determináveis apenas pela incute, são indepen-dentes de qualquer percepção; o profundo e escuroOceano azul agitava-se antes que Bvron lhe dissessepara fazê-lo e depois que êle deixou de existir. Nemé O espaço urna "construção" da mente através dacoordenação de sensações fora do espaço; percebemosO espaço diretamente através de nossas percepçõessimultâneas de diferentes objetos e diversos pontos— como quando ventos um inseto movimentando-scnum fundo imóvel. Da mesma bonita: o tempo comounia sensação de antes ou depois, ou tinia medida demovimento , é evidentemente subjetivo e altamenterelativo; mas unia árvore envelhecerá, fenecerá eapodrecerá quer o lapso) de tempo seja ou não medidoou percebido. A verdade é que Kant estava ansiosodentais em provar a subjetividade do espaço, contoum refúgio do materialismo: receava o argumentode que se o espaço é objetivo e universal, Deus temque existir no espaço e„conseqüentemente, ser espa-cial e material. Poderia ter-se contentado com o idea-lismo crítico que mostra que tôda realidade torna-seconhecida a nós primáriamente como nossas sensações

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e idéias. A velha rapõsa abocanhou mais do que podia

amastigar. (11)Ele poderia também muito bem ter-se conten-

51. A persistente vitalidade da teoria do conhecimento, de Kant,comprova-se na sua aceitação total por parte de um cien-tista tão positivo como Charles P. Stelnmetz: "Tôdas nossaspercepções sensoriais são limitadas pelas concepções do tempoe do espaço e a elas ligadas. Kant, o maior e o mais criticode todos filósofos, nega que tempo e espaço sejam o produtoda experiência, e demonstra serem éles categorias — con-cepções nas quais nossa mente veste as percepções senso-riais." (O respeitável cientista está um tanto confuso nesseponto.) "A física moderna chegou à mesma conclusão nateoria da relatividade, de que espaço absoluto e tempoabsoluto não têm existência, sendo que o tempo e o espaçoexistem ~ente tanto quanto as coisas ou acontecimentosos enchem: isto é, êles são formas de percepção." — Confe-rencia realizada na Igreja Unitária, Schenectady, 1923.

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tado com a relatividade da verdade científica, semfazer tanto esfôrço na direção daquela miragem, oabsoluto. Estudos recentes como os de Pearson, na11%1a-terra, Mach , na Alemanha, e Henri Poincaré, naFrança, concordam antes com Hume do que comKant: tôda ciência, até mesmo a mais rigorosa mate-mática, é relativa na sua verdade. A ciência, ela pró-pria, não se preocupa com essa questão; um elevadograu de probabilidade a contenta. Talvez, afinal decontas, o conhecimento -necessário" não seja neces-sário.

O grande feito de Kant é o de ter mostrado, umavez Dor tôdas, que todo o mundo externo nos é conhe-cido apenas como sensação; e que a mente não é merae impotente tabula rasa, a vítima inativa da sensação,mas sim um agente positivo que seleciona e recons-trói a experiência quando ela chega. Podemos fazersubtrações dessa realização sem ferir sua grandezaessencial. Podemos sorrir, como Schopenhauer, dianteda dúzia exata de categorias, tão lindamente arru-madas em trincas, e depois esticadas, encolhidas einterpretadas tortuosa e implacavelmente para seajustarem e cercarem ilidas as coisas. (52 ) E podemosmesmo pôr em dúvida se essas categorias, ou formasinterpretativas do pensamento, são inatas , existindoantes da sensação e experiência: talvez assim seja noindivíduo, como o concedeu Spencer, apesar de adqui-ridas pela raça; e, provàvelmente, também adquiridaspelo indivíduo: as categorias podem ser rotinas depensamento, hábitos de percepção e concepção, gra-dualmente produzidos pelas sensações e percepção aose ajeitarem automitticamente, a princípio de [ima

52. Op. cit., vol. II, p. 23.

A FILOSOFIA DE EMANUEL KANT 83

desordenada, depois por uma espécie de seleção natu-ral de métodos de disposição, de forma ordenada,ajustável e esclarecedora. É a memória que classificae interpreta as sensações transformando-as em percep-ções e as percepções em idéias; mas a memória é umacréscimo. Aquela unidade de mente que Kant julgainata (a "unidade transcendental da apercepção") éadquirida — mas não por todos; e pode tanto ser per-dida como obtida, — como na amnésia, ou na perso-nalidade alternadora ou ainda na insanidade. Os con-ceitos são uni feito, não um dom.

O século dezenove tratou com dureza a ética deKant, a sua teoria de uni senso moral absoluto, inato,a priori. A filosofia da evolução sugeriu irresistivel-

mente que o senso de dever é uni depósito social noindivíduo; o conteúdo da consciência é adquirido.anula que a vaga disposição a uma conduta social seja

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84 WILL DURANT 1inata. A pessoa moral, o homem social, não é uma"criação especial" originando-se misteriosamente dasmãos de Deus, mas sim o produto último de urnaevolução vagarosa. Os preceitos morais não são abso-lutos; eles são um código de conduta desenvolvidomais ou menos acidentalmente para a sobrevivênciade grupo e variando conforme a natureza e as cir-cunstâncias do grupo: um povo cercado por inimigos,por exemplo, considerará imoral—aquele mesmo indi-vidualismo entusiasmado e inquieto que uma , naçãojovem e segura em sua prosperidade e isolamentoaprovará como um ingrediente necessário na explo-ração dos recursos naturais e na formação do caráternacional. Nenhuma ação é boa em si mesma, como osupõe Kant. (•'") Sua infância pietista e sua vidasevera de deveres infindáveis e divertimentos poucofreqüentes. deram-lhe uma inclinação moralista; êlepor fim advogou o dever pelo próprio dever e assimcaiu sem querer nos braços do absolutismo prus-siano. (54 ) Há qualquer coisa de um severo calvinismoescocês nessa oposição do dever ã felicidade; Kant dácontinuação a [Altero e à Reforma Estóica, comoVoltaire dá continuação a Montaigne e à RenascençaEpicurista. "Ele representava un em reação severa contrao egoísmo e o hedonismo no qual Helvécio e Holbachhaviam formulado a vida de sua -era dissipada, talcomo Lutem-o reagira contra a luxúria e relaxamentoda Itália mediterrânea. Mas após um século de rea-ção contra o absolutismo da ética de Kant, encontra-mo-nos novamente num turbilhão de sensualismo eimoralidade urbana, de individualismo implacávelnão moderno pela consciência social ou sentimento

53. Razão Prática, p. •1.54. Vide Prof. Dewey: German Philosophv and Politic4.

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de honra aristocrático e talvez chegue em breve o diaem que uma civilização em desintegração receba debom grado novamente o chamado ao dever de Kant.

A maravilha da filosofia de Kant é seu vigorosorestabelecimento, na segunda Crítica, daquelas idéiasreligiosas de Deus, liberdade e imortalidade, que aprimeira Crítica havia aparentemente destruido. "Nasobras de Kant", diz Paul Ree, amigo muito ferino de

N ietzsche, "sentimo-nos como se estivéssemos numafeira ue diversões. Pode-se comprar dele qualquercoisa que se queira — liberdade de vontade e inde-pendência de vontade, idealismo e uma refutação doidealismo, ateísmo e o bom Deus. Tal como umprestidigitador com uma cartola vazia, Kant tira doconceito de dever uni Deus, imortalidade e liberdade,

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para grande surpresa de seus leitores." ( 55 ) Schope-nhauer também faz- sua zombaria a respeito da deri-vação de imortalidade da necessidade de recompensa:"A virtude de Kant, que a princípio se mantinha tãotirai amente na direção da felicidade, perde :fiais tardesua independência e estica a mão para uma gor-jeta." ( 5 ") O grande pessimista acha que Kant era naverdade um cético que, havendo deixado (te crer hesi-tava em destruir a fé do povo, por receie das conse-qiiências para a moral pública. "Kant desvenda a faltade base da teologia especulativa e deixa intacta ateologia popular, aliás, não, ele até coloca numaforma mais nobre como lona fe baseada no sentimentomoral. Isto posteriormen t e foi destorcido pelos falsosfilósofos em apreensão racional, consciência de Deus.etc... .; enquanto que Kant, ao demolir velhos erespeitados erros, sabendo o perigo de O fazer, tinhaantes o desejo de, através da teologia moral, mera-mente substituir alguns poucos e fracos suportes tem-porários, de maneira a que a ruína não caísse sôbreele e tivesse tempo de fugir." (57) Também Heine,no que é sem dúvida uma caricatura intencional,representa Kant, após ter destruído a religião, saindopara uma volta com seu empregado Lampe e perce-bendo siibitamen t e que os olhos do velho estão cheiosde lágrimas. "Então Emanuel Kant sente compaixãoe mostra que não é apenas uni grande filósofo, maslambem um bom homem; e meio bondosa e meio iréi-nicamente, diz: "O velho Lampe precisa ter um Deusou então não poderá ser feliz, diz a razão prática; deminha parte, a razão pratica pode, então, garantir a

55 Em Untermann, Science and Revolution, Chicago, 1905, p. 81.56. Em Paulsen, p. 317.57. O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, p. 129.

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existência de Deus." (") Se essas interpretações fôs-sem verdadeiras teríamos que adaptar o título de uniaseção da primeira Critica e chamar tôda a segunda

Critica de unia Anestética Transcendental. E Kant.sem dúvida , errou ao procurar resguardar a religiãode ataques, propondo, como ele diz, "fazer a fé inde-pendente do conhecimento." (55 Que consôlo eternopara as solteironas! — mas de nenhum auxílio para

qualquer crença masculina.Mas essas aventurosas reconstruções do Kant

interior não precisam ser levadas muito a sério. Ofervor do ensaio sôbre "A Religião dentro dos limitesda Razão Pura" indica unia sinceridade intensa demaispara ser posta em dúvida e a tentativa de mudar abase da religião da teologia para a moral, do credopara a conduta, só poderia ter sido feita por uniamente profundamente religiosa. "É realmente ver-

58. Citado por Paulsen, p. 8.59. Ibid., p. 7.

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dade", escreveu êle a Moisés Mendelssohn em 1776,"que acho muitas coisas com a mais clara convic-ção,... que nunca tenho coragem de dizer; unas nuncadirei algo que não ache." ( 60) Naturalmente, um tra-tado longo e obscuro como a grande Crítica presta-sea interpretações rivais; um dos primeiros comentáriossôbre o livro (feito por Reinhold uns poucos anosapós o aparecimento da Crítica) disse tanto quantose pode dizer atulmente: "A Crítica da Razão Purafoi proclamada pelos dogniatistas como a tentativa deum cético que solapa a certeza de todo conhecimento:— pelos céticos como uma peça de presunção arro-gante que intenta erigir uma nova forma de dogma-tismo sôbre as ruínas dos sistemas prévios; — pelossupernaturalistas como uni artificio sutilmente pla-nejado para deslocar os fundamentos históricos dareligião e estabelecer o naturalismo sem polêmicas:— pelos naturalistas conto uma nova escora para aagonizante filosofia da fé; — pelos materialistas comounia contradição idealista da realidade da matéria: —pelos espiritualistas como unia injustificável limita-ção de tôda realidade ao inundo corpóreo, dissimuladosob o nome do domínio da experiência." ( 61 ) E naverdade a glória do livro está em sua apreciação detodos esses pontos de vista; e a uma inteligência tãopenetrante como a de Kant, pode bem parecer queele realmente os havia reconciliado todos e os fundidonuma tal unidade de vontade complexa como a filo-sofia nunca havia visto antes em tôda sua história.

Quanto à sua influência, todo pensamento filo-sófico do século XIX girava à volta de suas especula-ções. Após Kant, tôda a Alemanha começou a falar

60. Em Paulsen. p. 53.61. Ibid., p. 114.

em metafísica. Schiller e Goethe o estudaram; Beetho-ven citou com admiração suas famosas palavras sôbreas duas maravilhas da vida — por sôbre mim o céuestrelado; em mim a lei moral"; e Fichte, Schelling,Hegel e Schopenhauer produziram, em rápida suces-são, grandes sistemas de pensamento construídos sôbreO idealismo do velho sábio de Kõnigsberg. Foi nessarepousante época da metafísica alemã que Jean PaulRichter escreveu: "Deus deu aos franceses O solo, aosingleses o luar, aos alemães o império do ar." A cri-

tica da razão feita por Kant e sua exaltação do sen-timento prepararam o terreno para o voluntarisniode Schopenhauer e Nietzsche, o intuicionismo deBergson e o pragmatismo de William jaines; suaidentificação das leis do pensamento com as leis darealidade deram a Hegel todo tini sistema de filosofia;e sua incognoscível "coisa-em-si" influenciou Spencermais do que o próprio Spencer . percebeu. Muito daobscuridade de Carlyle deve-se à sua tentativa de

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interpretar ategõricarnente o já obscuro pensamentode Goethe e de Kant — de que as diversas religiõese filosofias não são senão as vestes diferentes de uniasó verdade eterna. Caird, Green, Wallace, Watson,Bradlev e muitos outros na Inglaterra devem suainspiração à primeira Critica; e até mesmo o furiosa-mente inovador Nietische tira sua epistemologia do"grande Chinês de Kiinigsberg", cuja ética estática êleIão veementemente condena. Após um século de lutaentre 0 idealismo de Kant, com várias reformas, e omaterialismo do Iluminismo , com várias reformula-ções, a vitória parece ser de Kant. Até mesmo ogrande materialista Helvécio escreveu, paradoxal-mente: "Os homens, se posso ousar diiê-lo, são oscriadores da matéria." (9 A filosofia nunca mais serátão ingênua como nos seus primeiros e mais simplesdias; de agoi a em diante, ela terá que ser sempre dite.rente e mais profunda porque Kant existiu.

62. Em Chamberlain, vol. I, p. 86

CAPITULO VIII

UMA NOTA SÔBRE HEGEL

N ÃO FAZ muito tempo, era costume dos historia-dores da filosofia darem aos sucessores ime-

diatos de Kant — a Fichte, Schelling e Hegel — tantorespeito e espaço quanto a todos seus predecessores nopensamento moderno. desde Bacon e Iles,al i cs ;t Vul-

- 61 —

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taire e Hume. Hoje em dia, nossa perspectiva é umpouco diferente e apreciamos talvez um pouco viva-mente demais a acusação lançada por Schopenhaueraos seus rivais bem sucedidos na competição por cargosrio magistério. Lendo Kant, disse Schopenhauer, "opúblico foi compelido a ver que aquilo que é obscuronão é sempre sem significação." Fichte e Schellingaproveitaram-se disso e imaginaram grandiosas teiasde aranha de metafísica. "Mas o máximo da audáciaem apresentar pura tolice, em colocar de enfiada urnaconfusão extravagante e sem sentido de palavras, comoanteriormente só fora visto em hospícios, foi final-mente atingido por Hegel, tornando-se o instrumentoda mistificação geral mais deslavada que jamais ocor-reu,• com um resultado que parecerá fabuloso à pos-teridade e que permanecerá como um monumento àestupidez germânica." ("") Será isso justo?

Jorge Frederico Guilherme Hegel nasceu emStuttgart, em 1770. Seu pai era um pequeno funcio-nário do departamento de finanças de Würtemberg,tendo Hegel crescido cot» os hábitos pacientes e me-tódicos daqueles funcionários cuja modesta eficiênciatem dado à Alemanha as cidades melhor administra-das do mundo. O jovem era um estudante incansável;fazia análises completas de todos livros importantesque lia e copiava dê/és longos trechos. verdadeiracultura, dizia, tem que começar com o apagamentoda própria pessoa; como no sistema de educação dePitágoras , no qual durante os primeiros cinco anossolicitava-se do aluno que não perturbasse...

Seus estudos da literatura grega provocaram-lheum entusiasmo pela cultora ática que conservou

63. Caird, Hegel, nos Clássicos Filosóficos de Slaeltwood: PP5-8. A biografia segue o dito por Caird.

quando quase todos os outros entusiasmos haviamarrefecido. "Diante do nome da Grécia", escreveu, "oalemão culto sente-se em casa. Os europeus tiraramsua religião de uma fonte mais distante, do Oriente;...mas o que está aqui, o que está presente, — ciência earte, tudo que torna satisfatória a vida e a eleva eadorna — tiramos, direta ou indiretamente, da Gré-cia." Durante algum tempo preferiu a religião dosgregos à cristandade e antecipou-se a Strauss e Renanescrevendo urna Vida de Jesus na qual Jesus é consi-derado como filho de Maria e José, sendo ignorado oelemento milagroso. Mais tarde êle destruiu o livro.

Também na política demonstrou um espirito derebelião difícil de suspeitar sua posterior santifi-cação do staius (lua. Quando estudava em Tubingen,éle e Schelling defendiam ardentemente a Revolução

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Francesa e saíram de manhã cedo, um dia, para plan-tar uma árvore da Liberdade na praça do Mercado."A nação francesa, pelo banho de sua revolução",escreveu, "foi libertada de muitas das instituições queo espírito do homem deixou para trás, corno seus sapa-tinhos de bebê, e que, conseqüentemente, pesavamsôbre como ainda pesam sôbre outras, como penassem vida." Foi nesses dias cheios de esperança. "quandoser moço era o próprio céu," que ele teve um namôro,tal como Fichte, com unia espécie de socialismo aris-tocrático e entregou-se, com característico vigor.corrente romântica na qual tôda a Europa estavaimersa.

Terminou o curso em Tubingen, com um certi-ficado declarando que éle era uni homem de talentoe caráter, versado em teologia e filologia, mas semaptidão na filosofia. Era pobre e tinha que ganharseu sustento ensinando em Berna e Franclurt. Êssesforam seus anos de crisálida: enquanto a Europa des-pedaçava-se em pedaços nacionalistas, Hegel se con-centrava e crescia. Aí, então. (1799), seu pai morreue Hegel, tendo herdado uns $1.500, considerou-se umhomem rico e deixou de ensinar. Escreveu a seu amigoSchelling pedindo que lhe aconselhasse onde 'deve-ria se fixar e explicando querer tini lugar onde hou-vesse comida simples, abundância de livros e "uniaboa cerveja". .Schelling recomendou Iena, que erauma cidade com uma Universidade e sob a jurisdiçãodo mesmo Duque de Weimar que era amigo e patronode Goethe. Em Jena, Schiller ensinava história; Tieck,Novalis e os Schlegels pregavam o romantismo; eFichte e Sclw/ling batiam suas filosofias. Hegel foipara lá em 1801 e, em 1803, tornou-se professor naUniversidade.

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Ainda estava lá, em 1806, quando a vitória deNapoleão sôbre os prussianos lançou a confusão e oterror na pequenina cidade devotada aos estudos.Soldados franceses invadiram a casa de Hegel e ele,como bom filósofo, tratou de se retirar, levando con-sigo o manuscrito de seu primeiro livro importante,Fenomenologia do Espírito. Durante algum tempoficou em situação tão difícil que Goethe disse aKnebel que lhe emprestasse um dinheiro para aju-dá-lo a vencer aquele transe. Hegel escreveu quaseque com amargor a Knebel: "Tomei para estrela guiao conselho bíblico, cuja verdade aprendi por expe-riência própria. Procurai primeiro alimento e vestese o reino dos céus vos será acrescentado." Durantealgum tempo editou um jornal em Banberg: depois,em 1812, tornou-se diretor do ginásio de Nürnburg.Foi lá, talvez, que as necessidades estóicas do trabalhoadministrativo fizeram esfriar nele o ardor do roman-ticismo e o tornaram, como Napoleão e Goethe, ummarco clássico numa idade romântica. E foi lá queescreveu sua Lógica (1812-161, que encantou a Ale-manha por sua ininteligibilidade e lhe valeu a cátedrade filosofia em Heidelberg. Em Heidelberg escreveusua imensa Enciclopédia das Ciências Filosóficas(1817), o que fez com que fôsse levado em 1818 paraa Universidade de Berlim. Dessa ocasião até ao fim desua vida dominou o mundo filosófico tão indiscuti-velmente como Goethe o mundo da literatura eBeethoven o reino da música. Seu aniversário caía nodia seguinte ao do de Goethe e a Alemanha todo anofestejava uni duplo feriado para os dois.

Uma vez, um francês pediu a Hegel que resu-misse sua filosofia numa frase e éle não foi tão bemsucedido quanto o frade que, ao lhe solicitarem que

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definisse o cristianismo enquanto se mantinha numpé só, disse simplesmente, "Amai vosso próximo comoa vós mesmo." Hegel preferiu responder em dez volu-

mes e quando 'esses estavam escritos e publicados,sendo discutidos por todos, ele queixou-se de que "sóum homem me compreende e nem mesmo êle." (84)A maioria de seus escritos, como os de Aristóteles,consiste em notas de conferências; ou, o que é pior,em notas tomadas por discípulos que assistiram a suasconferências. Sômente a Lógica e a Fenomenologia sãode seu punho e essas são obras-primas de obscuridade,turvadas pela abstração e condensação de estilo, porunia terminologia misteriosamente original e porurna modificação supercautelosa de cada afirmaçãocom uma riqueza gótica de frases restritivas. Hegeldescreveu sua obra como "unia tentativa de ensinar afilosofia a falar em alemão." (9 Êle o conseguiu.

64. Críticos impiedosos, como era de se esperar, põem em dúvidaa autenticidade dessa história.

65. Wallace: Prolegomena to the iode of Hegel. p. 10.

A Lógica é uma análise não dos métodos de ra-ciocínio, mas sim dos conceitos usados no raciocínio.Hegel os considera como sendo as categorias denomi-nadas por Kant — Ser, Qualidade, Quantidade, Re-lação, etc. A primeira obrigação da filosofia é dissecaressas noções básicas que são tão discutidas em todonosso pensamento. Entre tôdas, a de maior penetra-ção é a Relação; tôda idéia é um grupo de relações;só podemos pensar numa coisa relacionando-a comoutra e percebendo suas semelhanças e diferenças.Uma idéia sem relações de qualquer espécie é vazia;

isso é tudo que se quer significar ao se dizer que "OSer puro e Nada são a mesma coisa": O Ser absoluta-mente destituído de relações ou qualidades não existee não tem nenhum significado. Esta proposição pro-duziu unia infindável cadeia de graçolas que aindaproliferam e demonstrou ser ao mesmo tempo umobstáculo e um incentivo ao pensamento de Hegel.

De tôdas as relações, a mais universal é o con-traste ou oposição. Tôda condição de pensamento oude coisas — tôda idéia e tôda situação no mundo —leva irresistivelmente ao seu oposto, unindo-se depoiscom ele para formar um todo mais elevado ou com-plexo. Êssse "movimento dialético" está em tudo queHegel escreveu. É, naturalmente, uma velha idéia,prefigurada por Empédocles e encarnada no "justomeio termo" por Aristóteles, que escreveu que "oconhecimento dos opostos é um só." A verdade (como

um eléctron) é uma unidade orgânica de partes opos-tas. A verdade do conservadorismo e do radicalismoé o liberalismo — uma mente aberta e a mão caute-losa; a formação de nossas opiniões em questões im-portantes é unia oscilação decrescente entre extremos;e, em tôdas as questões discutíveis, veritas in media

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stat. O movimento da evolução é um desenvolvimentocontínuo dos opostos e sua fusão e reconciliação.Schelling tinha razão — há uma "identidade deopostos fundamental; e Fichte tinha razão — tese,antítese e síntese constituem a fórmula e segredo detodo desenvolvimento e tôda realidade.

Pois não apenas os pensamentos se desenvolveme evoluem de acôrdo com êsse "movimento dialético",mas acontece o mesmo com as coisas; cada estado decoisas contém uma contradição que a evolução temque resolver por uma unidade reconciliadora. Então,não há dúvida de que nosso sistema social atual se-creta uma contradição autocorrosiva: o individua-lismo estimulante exigido num período de adolescênciaeconômica e recursos não explorados, desperta, numaépoca posterior, a aspiração a uma comunidade coope-rativa e o futuro não verá nem a realidade presentenem o ideal imaginado, mas sim uma síntese na qualum pouco de cada um contribuirá para juntos produ-zirem urna vida melhor. E êsse estágio mais elevadotambém se dividirá numa contradição produtiva e seerguerá a níveis ainda mais sublimes de organização,complexidade e unidade. O movimento do pensa-mento, então, é o mesmo que o movimento das coisas;há, em ambos, uma progressão dialética da unidade,através da diversidade, para a diversidade-na-unidade.Pensamento e ser seguem a mesma lei; e lógica e meta-física são uma unidade.

A mente é o órgão indispensável para a percepçãodêsse processo dialético e essa unidade na diferença.A função da mente, e a tarefa da filosofia, é descobrira unidade que jaz em potencial na diversidade: a tarefada ética é unificar caráter e conduta e a tarefa dapolítica é unificar os indivíduos em um Estado. A ta-

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reta da religião é atingir e sentir aquele Absoluto noqual todos% os opostos são reduzidos a uma unidade,aquela grande soma de seres na qual a matéria e amente, o subjetivo e o objetivo, o bem e o mal, sãoum só. Deus é o sistema de correlacionamentos noqual tôdas as coisas se movimentam e têm sua exis-tência e significado. No homem, o Absoluto se elevaà consciência de si mesmo e passa a ser a Idade Abso-luta — isto é, o pensamento realizando-se como partedo Absoluto e conseqüentemente transcendendo aslimitações e finalidades individuais e captando, porsob a contenda universal, a harmonia oculta de tôdasas coisas. "A Razão é a substância do universo; ... otraçado do mundo é positivamente racional." (66)

Não que a luta e o mal sejam meros produtosimaginários negativos; não bastante reais; mas êlessão, dentro da perspectiva da sabedoria, estágios parao contentamento e o bem. A luta é a lei da natureza;o caráter é forjado na tempestade e violência domundo e o mundo atinge sua plenitude ~ente atra-vés de coações, responsabilidades e sofrimento. Atémesmo o sofrimento tem sua razão física; é um sinalde vida e um estímulo à reconstrução. A paixão tam-bém tem seu lugar na razão das coisas: "sem paixãonada de grande foi conseguido no mundo"; ( 67) emesmo a ambição egoísta de um Napoleão contribuiinconscientemente para o desenvolvimento das na-ções. A vida não é feita para a felicidade, mas simpara as realizações. "A história do mundo não é oteatro da felicidade; os períodos de felicidade sãopáginas em branco, pois êles são os períodos de liar-

66. Hegel — Filosofia da História, Bohn ed. pp. 9, 13.67. Ibid., p. 26.

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monia"; (68) e êsse contentamento insípido é indignodo homem. A história é feita sómente nesses períodosem que as contradições da realidade estão sendo fun-didas pelo crescimento, ao mesmo tempo que ashesitações e inépcia da juventude passam ao desem-baraço e ordens da maturidade. A História é ummovimento dialético, quase que uma série de revo-luções, na qual, povo após povo e gênio após gênio,tornam-se instrumentos do Absoluto. Os grandes ho-

meus são menos geradores do que parteiras do futuro;a mãe do que êles produzem é o Zeitgeist, o Espíritoda Época. O gênio, simplesmente, coloca mais umapedra sôbre a pilha, como outros o fizeram; "dealgum modo a sua tens a sorte de vir por último equando ele coloca a sua pedra o arco fica de pé sus-tentado por si mesmo." "Tais indivíduos não tinhamconsciência da Idéia geral que estavam desdobran-do;... aias tinham uma visão das exigências de seu

68. Ibid., p. 28.

tempo — daquilo que estava maduro para ser desen-volvido. Isto era a própria Verdade para sua época,para seu mundo; a espécie que viria a seguir porordem, por assim dizer, e que já estava formada noventre do tempo." (69)

Uma tal filosofia da história parece levar a con-clusões revolucionárias. O processo dialético faz amodificação no princípio cardeal da vida; nenhumestado é permanente; em cada estágio de coisas háuma contradição que ~ente a "luta dos opostos"pode resolver. Conseqüentemente, a lei mais profundada política é a liberdade — uma avenida aberta paraa mudança; a história é o crescimento da liberdade eo Estado é, ou deveria ser, a liberdade organizada.Por outro lado, a doutrina de que o "real é racional"tem um tom conservador; cada estado de coisas. aindaque destinado a desaparecer. possui a correção divinaque lhe pertence por ser um estágio necessário naevolução; num certo sentido é brutalmente verda-deiro que "o une quer que exista, existe certo:" Ecomo a unidade é a meta do desenvolvimento, aordem é o primeiro requisito da liberdade.

Se Flegel, ao atingir uma idade mais avançada,inclinou-se antes para as referências conservadoras desua filosofia do que para as radicais, foi em parteporque o Es pírito da Época (para usarmos sua pró-pria expressão histórica) estava cansado de mudançasem demasia. A pós a Revolução de 1830, êle escreveu:"Finalmente, depois de 40 anos de guerra e confusãoincomensurável, um velho coracão pode se alegrarao ver o fim de tudo isso e o início de um período decontentamento pacífico." (TO) Não ficava muito bem

69. Ibid.. p. 31.70. Em Caird, p. 93.

Page 52: A FILOSOFIA DE EMANUEL KANT - visionvox.com.br · standing (Ensaio sôbre a Compreensão Humana). (1689), a razão, pela primeira vez no pensamento mo-derno, voltara-se para si mesma

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que o filósofo da luta como dialética do crescimentose tornasse o advogado do contentamento; mas aossessenta anos um homem tem o direito de querer apaz. Todavia, as contradições no pensamento deRegei eram profundas demais para que houvesse apaz e, na geração seguinte, seus seguidores dividiram-secom fatalismo dialético na "Direita Hegeliana" e"Esquerda Hegeliana". Weisse e o mais jovem Fichteencontraram, na teoria do real como sendo racional,uma expressão filosófica da doutrina da Providênciae urna justificação para unia política de inteira obe-diência. Feuerhach, Moleschott, Bauer e Marx retor-naram ao ceticismo e "crítica mais elevada" da moci-dade de Hegel e desenvolveram a filosofia da histórianuma teoria de luta de classes conduzindo por urnaespécie de necessidade Hegeliana, ao "socialismo ine-vitável". Em lugar do Absoluto como determinadorda história através do Zeitgeist, Marx oferece movi-mentos da massa e fôrças econômicas como as causasbásicas de tôda mudança fundamental, quer nomundo das coisas ou na vida do pensamento. Hegel,o professor imperial, havia chocado os ovos socia-listas.

O velho filósofo acusou os radicais de sonhadorese escondeu cuidadosamente seus primeiros ensaios.Aliou-se ao Govêrno prussiano, abençoou-o comosendo a mais recente expressão do Absoluto e aque-ceu-se ao sol de seus favores acadêmicos. Seus inimigoso chamavam "o filósofo oficial". Êle começou a pensarno sistema Hegeliano corno parte das leis naturais domundo; esqueceu-se do, que sua própria dialéticacondenava ésse pensamento à impermanência e pere-cimento. "Nunca cio filosofia assumira um tom tãoaltaneiro e nunca haviam suas honras reais sido tão

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integralmente reconhecidas e asseguradas como em1830", em Berlim. (71)

Mas Hegel envelheceu ràpidamente naquelesanos felizes. Tornou-se tão distraído como os gêniosdos livros; urna vez entrou numa sala de conferênciascom um sapato só, tendo perdido o outro, sem per-cebê-lo, na lama. Quando uma epidemia de cóleraatingiu Berlim, em 1831, seu corpo enfraquecido foium dos primeiros a sucumbir ao contágio. Depois deapenas um dia de doença morreu repentina e trad-qüilamente durante o sono. Assim como no espaçode um ano havia ocorrido o nascimento de Napo-leão, Beethoven e Hegel, assim nos anos de 1827 a1832 a Alemanha perdeu Goethe, Hegel e Beethoven.Isso foi o fim de uma época, o último admirável es-fôrço da maior época da Alemanha.

71. Paulsen, Immanuel Kant, p. 385.