a fÉ e a razÃo na política: conservadorismo e … · relação com a sociedade civil organizada,...

3
A FÉ E A RAZÃO NA POLíTICA: CONSERVADORISMO E MODERNIDADE DAS ELITES CEARENSES A costumados à interpreta- ção coronelista, genera- lizada indistintamente a todos os Estados do Nordes- te, somos aqui surpreendidos pela tentativa audaciosa de J osênio Parente de buscar um modelo alternativo de explicação da realidade sócio- política cearense que seja ca- paz de enquadrar mais satisfatoriamente a "fragilidade estrutural" das nossas elites. Afinal, mesmo que percorramos todas as bibliotecas, o fato é que, segundo o autor, "não existe um trabalho representativo sobre o coronelismo que tenha sido produzido a partir da realidade cearense" (p. 28). A literatura é pródiga em estudos sobre cangaço, reli- giosidade popular ou poder familiar, mas nunca se conseguiu traçar a história das oligarquias cearen- ses sem deixar grandes e inexplicáveis lacunas. No entanto, o estado do Ceará é governado há 14 anos por uma elite eminentemente empresarial, nascida da rejeição das "forças do atraso", de perfil extre- mamente moderno (como quer o autor) e que no vigor de sua adolescência não deixa transparecer nenhum sinal de fragilidade. O trabalho do professor Parente - de- fendido como Tese de Doutoramento em Ciência Política na USP - parte do pressuposto de que a sociologia do Nordeste construiu a idéia de oligar- quias estáveis e duradouras a partir do estudo acer- ca da economia canavieira. Essa compreensão foi equivocadamente estendida aos estados mais liga- DE JOSÊNIO PARENTE A ea razão na política: conservadorismo e modernidade das elites cearenses. Fortaleza: Edições UFC I Edições UVA, 2000. dos à pecuária e a culturas de sobrevivência, especialmente Ceará e Rio Grande do Nor- te, os quais estão quase com- pletamente inseridos na zona de sertão de caatinga. Para compreender esses dois esta- dos talvez seja necessário outro modelo, algo que in- corpore mais particularmen- te a dinâmica de suas economias e o papel de suas elites ao longo dos séculos. Seu ponto de partida é o "argumento da fra- gilidade estrutural das elites cearenses". Nossas eli- tes são frágeis, heterogêneas, dependentes e localizadas, rotineiramente submetidas ao proces- so de "circulação das elites", sempre que determi- nadas condições o permitirem. A razão principal dessa fraqueza está localizada na economia cearense, especialmente devido ao fenômeno da seca. Isso fez com que a economia cearense se organizasse muito lentamente (desde a colonização tardia) e de forma polarizada (em cidades como Icó, Aracati, Sobral, etc), favorecendo a dispersão e a desarticulação das elites. Esse fenômeno, além de seus efeitos devasta- dores sobre a mão-de-obra, foi também responsá- vel pelo enfraquecimento das forças dominantes. Fragmentadas, desarticuladas e divididas, as elites quase nunca conseguiram agir com a homo- geneidade e a centralização necessárias a todo pro- cesso de dominação. A tese tem implicações severas. Até mesmo a mais famosa oligarquia cearense, sob o comando POR JOSÉ ESTEVÃO ARCANJO Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC ARCANJO, JOSÉ ESTEVÃO. A FÉ E A RAZÃO NA POLlTICA: CONSERVADORISMO E MODERNIDADES... P. 139 A 141 139

Upload: buicong

Post on 26-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: A FÉ E A RAZÃO NA POLíTICA: CONSERVADORISMO E … · relação com a sociedade civil organizada, seu pro-jeto de industrialização e sua expressão nacional. Em todo esse processo

A FÉ E A RAZÃO NA POLíTICA:CONSERVADORISMO E MODERNIDADE DAS

ELITES CEARENSES

A costumados à interpreta-ção coronelista, genera-lizada indistintamente a

todos os Estados do Nordes-te, somos aqui surpreendidospela tentativa audaciosa deJosênio Parente de buscarum modelo alternativo deexplicação da realidade sócio-política cearense que seja ca-paz de enquadrar mais satisfatoriamente a"fragilidade estrutural" das nossas elites. Afinal,mesmo que percorramos todas as bibliotecas, o fatoé que, segundo o autor, "não existe um trabalhorepresentativo sobre o coronelismo que tenha sidoproduzido a partir da realidade cearense" (p. 28). Aliteratura é pródiga em estudos sobre cangaço, reli-giosidade popular ou poder familiar, mas nunca seconseguiu traçar a história das oligarquias cearen-ses sem deixar grandes e inexplicáveis lacunas. Noentanto, o estado do Ceará é governado há 14 anospor uma elite eminentemente empresarial, nascidada rejeição das "forças do atraso", de perfil extre-mamente moderno (como quer o autor) e que novigor de sua adolescência não deixa transparecernenhum sinal de fragilidade.

O trabalho do professor Parente - de-fendido como Tese de Doutoramento em CiênciaPolítica na USP - parte do pressuposto de que asociologia do Nordeste construiu a idéia de oligar-quias estáveis e duradouras a partir do estudo acer-ca da economia canavieira. Essa compreensão foiequivocadamente estendida aos estados mais liga-

DE JOSÊNIO PARENTE

A fé e a razão na política: conservadorismo emodernidade das elites cearenses.

Fortaleza: Edições UFC I Edições UVA, 2000.

dos à pecuária e a culturas desobrevivência, especialmenteCeará e Rio Grande do Nor-te, os quais estão quase com-pletamente inseridos na zonade sertão de caatinga. Paracompreender esses dois esta-dos talvez seja necessáriooutro modelo, algo que in-corpore mais particularmen-

te a dinâmica de suas economias e o papel de suaselites ao longo dos séculos.

Seu ponto de partida é o "argumento da fra-gilidade estrutural das elites cearenses". Nossas eli-tes são frágeis, heterogêneas, dependentes elocalizadas, rotineiramente submetidas ao proces-so de "circulação das elites", sempre que determi-nadas condições o permitirem. A razão principaldessa fraqueza está localizada na economia cearense,especialmente devido ao fenômeno da seca. Isso fezcom que a economia cearense se organizasse muitolentamente (desde a colonização tardia) e de formapolarizada (em cidades como Icó, Aracati, Sobral,etc), favorecendo a dispersão e a desarticulação daselites. Esse fenômeno, além de seus efeitos devasta-dores sobre a mão-de-obra, foi também responsá-vel pelo enfraquecimento das forças dominantes.Fragmentadas, desarticuladas e divididas, as elitesquase nunca conseguiram agir com a homo-geneidade e a centralização necessárias a todo pro-cesso de dominação.

A tese tem implicações severas. Até mesmoa mais famosa oligarquia cearense, sob o comando

POR JOSÉ ESTEVÃO ARCANJO

Professor do Departamento de Ciências Sociaisda UFC

ARCANJO, JOSÉ ESTEVÃO. A FÉ E A RAZÃO NA POLlTICA: CONSERVADORISMO E MODERNIDADES... P. 139 A 141 139

Page 2: A FÉ E A RAZÃO NA POLíTICA: CONSERVADORISMO E … · relação com a sociedade civil organizada, seu pro-jeto de industrialização e sua expressão nacional. Em todo esse processo

de Nogueira Accioly, no início do século, poderiaassim ser considerada uma oligarquia frágil. Man-teve-se apenas enquanto encontrou apoios nacio-nais e foi derrubada por uma oposição sempre fortee combativa, nunca submetida.

É interessante notar que para o autor a seca,além de seus efeitos nefastos e de seu poderdesarticulador de elites, teve também um enorme"impacto modernizante" na economia cearense. Ocombate à seca propiciou o início do processo deformação de um quadro técnico voltado para asquestões regionais. Com a construção do Açude doCedro, a fundação do IFOCS e a criação da Facul-dade de Agronomia, por exemplo, iniciou-se a cons-tituição de uma elite mais técnica, cada vez maisindependente da propriedade rural, dividindo ain-da mais as elites e abalando o mandonismo local.

Isso permite afirmar que as elites das regiões"subdesenvolvidas" também podem ser fortes, es-pecialmente naqueles momentos em que se esfor-çam para se integrar ao sistema político-econômiconacional. Em "ambiente ideológico" favorável e apartir de uma atitude pedagógica de preparação téc-nica de elites é possível que as mesmas ajam de for-ma coesa, tendo em vista um projeto comum queextrapole inclusive seus limites regionais.

Para o autor isso aconteceu no Ceará na dé-cada de 30 e está acontecendo agora, nos anos 90,momentos em que suas elites agiram homoge-neamente e chegaram a ter influência nacionalinconteste. Como condição indispensável essesmomentos tiveram como fundo ideológico, respec-tivamente, o processo de romanização dirigido peloconservadorismo católico e o nacional-desenvol-vimentismo nascido nos anos 50. Funcionaramcomo "escolas" de treinamento e formação de uma"elite técnica" o Círculo Católico de Fortaleza(CCF) e o Centro Industrial do Ceará (CIC). Esseprocesso só foi possível graças a forças articuladorasexternas de grande pressão, respectivamente, oVaticano e organismos internacionais como OEAe Banco Mundial.

Parente procura mostrar, então, como cadaum desses agentes articulou sua ação. A Igreja Ca-tólica ocupou o lugar das elites, funcionando como

140 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.32 N. 1/2

seu "agente de socialização e treinamento" (afirma-ção que mereceria tratamento mais detalhado porparte do autor). O grande ideólogo desse processofoi D. Manuel da Silva Gomes, posteriormente re-forçado pelas contribuições de D. José Tupinambáda Frota, em Sobral e D. Quintino Rodrigues, noCrato. Já nos anos 90 a modernidade defendida pelojovem empresariado do CIC somou-se à políticade recursos humanos do Banco do Nordeste doBrasil, influenciada por aqueles organismos inter-nacionais, no intuito de gerar um "elite técnica"apta a administrar racionalmente o estado. O Ban-co do Nordeste está na raiz da modernidadecearense. De seus quadros saíram os principais téc-nicos dos governos pós-86: "O BNB foi mais doque um banco de desenvolvimento, sendo a forçade irradiação da ideologia de modernidade paraoutros setores da sociedade, destacando-se as Uni-versidades e as próprias empresas" (p. 129).

Note-se que a semelhança entre os dois perí-odos é apenas estrutural, em razão de determina-das condições favoráveis à unidade e mobilizaçãodas elites. No plano ideológico, 30 e 90 são, con-forme Parente, totalmente díspares. Os anos 30 sãoa era do conservadorismo; já com o CIC instaura-se a modernidade na política cearense.

Nesse raciocínio o período 1945 -1986 trans-forma-se em período de transição entre o conser-vadorismo e a modernidade, personificado na figurade Virgílio Távora, obstinado defensor da consoli-dação industrial do Ceará, porém signatário do"acordo dos coronéis" celebrado entre ele, AdautoBezera e César Cals. Vislumbra-se aí o início doprocesso de modernização: "os coronéis prepararamo cenário da modernidade" (p. 110).

Com a vitória eleitoral de Tasso J ereissati,em 1986, "tem início a face cearense da moder-nidade" (p. 152). O quarto grande estadista da his-tória cearense (depois de Accioly, D. Manuel eVirgílio), chega ao poder sem obedecer, entretan-to, uma linha de continuidade oligárquica, o quereforça a tese da "fragilidade estrutural", permitin-do que se pense que as elites cearenses circularammais que outras. Tasso é o grande responsável pelonovo ciclo hegemônico. São características de sua

2001

Page 3: A FÉ E A RAZÃO NA POLíTICA: CONSERVADORISMO E … · relação com a sociedade civil organizada, seu pro-jeto de industrialização e sua expressão nacional. Em todo esse processo

-modernidade a gestão empresarial do estado, suarelação com a sociedade civil organizada, seu pro-jeto de industrialização e sua expressão nacional.

Em todo esse processo de circulação funcio-na, assim como no Brasil inteiro, um sistema parti-dário de três bases, onde coabitam duas forçasprincipais e uma terceira que faz a alternância depoder. Assim, já é possível ao autor vislumbrar asuperação do período tassista, a partir de dissidênci-as no próprio bloco hegemônico. Duas figuras sãoapontadas como possíveis protagonistas do processo:Ciro Gomes, que age quebrando a homogeneidadedo grupo e Amarílio Macedo, outro ex-presidente oCIC, que, principalmente através da criação do Pac-to de Cooperação, questiona o modelo centralizadode fazer política de Tasso Jereissati.

Temos diante de nós uma tese, de fato, bemformulada e audaciosa quando procura uma inter-pretação global sobre a política cearense. Será umareferência indispensável a todos os estudiosos donordeste brasileiro.

No entanto, três questionamentos nos parecemfundamentais. Em primeiro lugar, talvez fosse neces-sário esclarecer melhor o que Parente entende pormodernidade. Não está muito claro se a modernidadedo CIC ultrapassa a reforma do Estado e o projetoindustrializante subordinado ou não passa do "imagi-nário ideológico de modernidade" que o grupo doCIC administra com extrema competência e o legiti-ma como uma estratégia de sobrevivência.

Por outro lado, pode-se dizer que essamodernidade tem como inspiração o nacional-

desenvolvimentismo dos anos 50? O discurso hojeaponta mais para uma integração econômicamundializada bastante diferente de quatro déca-das atrás. Também é difícil identificar nesse novoempresariado o apoio ao modelo estatal próprioda ideologia desenvolvimentista. Ademais, pare-ce temeroso somar nacional-desenvolvimentismocom Banco Mundial e congêneres. Basta ver osdilemas enfrentados desde a criação da CEPALpara atestar a que seus interesses quase nunca fo-ram coincidentes.

Por fim, talvez seja possível fazer uma leituradistinta do processo de formação da elite técnicanordestina. Inúmeros órgãos, o DNOCS por exem-plo, sempre foram vistos como estruturas arcaicas,cooptadas pelas elites mais tradicionais. Se aSUDENE e o BNB tentaram se diferenciar isso nãoimplica que tenham conseguido. Não só essa experi-ência de desenvolvimento regional foi capaz de for-jar um quadro tecnicamente competente. Comodizem alguns analistas, muitos países precisam hojeimportar técnicos para realizar o ajuste neoliberaldos anos 90; outros, como o Brasil, entretanto, jáforam capazes de constituir suas equipes internas.Até que ponto tais "benebeanos" não seriam espéciede technopols dessa mesma modernidade conserva-dora? Os mesmos técnicos já não superpovoaram osgabinetes da ditadura e dos coronéis? Até que pontotiveram êxito aqueles inúmeros programas de desen-volvimento (pOLONORDESTE e Cia dirigidopelos mesmos técnicos e apoiadas pelas mesmas or-ganizações internacionais)?

ARCANJO, JOSÉ ESTEVÃO. A FÉ E A RAZÃO NA POLlTICA: CONSERVADORISMO E MODERNIDADES.•• P. 139 A 141 141