a fantástica experiência de carolina helena

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A FANTÁSTICA EXPERIÊNCIA DE CAROLINA HELENA Novela - ficção Sonia Rodrigues registrado na Fundação Biblioteca Nacional sob o n323415 livro 592 folha 75 Ministério da Cultura - Escritório de Direitos Autorais

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Entertainment & Humor


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A FANTÁSTICA EXPERIÊNCIA

DE CAROLINA HELENA

Novela - ficção

Sonia Rodrigues

registrado na Fundação Biblioteca Nacional sob o n323415 livro 592 folha 75

Ministério da Cultura - Escritório de Direitos Autorais

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I Desde que começaram os preparativos para a Abertura da Nova Era o Céu

estava uma bagunça. Nuvens esparramadas, penas de anjos por tudo quanto era canto, poeira estelar acumulada – uma balbúrdia.

Leonardo da Vinci, que se esmerava nos efeitos especiais, era em parte responsável pela confusão. Walt Disney, que dirigia o espetáculo, reclamava o tempo todo que toda a equipe podia e devia fazer melhor, bem melhor! Afinal, eram os melhores especialistas de todos os séculos. Tinham de se superar!

Renoir, Tintoreto e Salvador Dali, ocupados com seus pincéis e cores, nem escutavam as reclamações do perfeccionista que ousava criticar a Perfeição; antes selecionavam as cintilações da aurora boreal e a sensação gelada do branco dos fiordes noruegueses para suas paletas.

Beethoven e os Beatles reuniam-se com Brahms e Tchaikovski; em outro canto, falecidos integrantes do balé Bolschoi e dos Meninos cantores de Viena estudavam suas canções. Estavam debruçados sobre o Brasil, porque a Nova Era de Prosperidade e Alegria começaria na Amazônia com a Dança das Águas e o Canto da Passarada.

Júlio Cotazar, Luís Borges, Dias Gomes e Monteiro Lobato suplicavam a Deus que trouxesse Ariano Suassuna e Tatiana Belinki para auxiliar o roteiro.

Deus respondia categoricamente: não! Ele decidira que esses dois dariam alento e diversão à Era que ora se findava, e fariam parte da nova geração agraciada com a imortalidade; como fossem velhinhos, receberiam a graça adicional do rejuvenescimento. Pois a nova geração humana não mais procriaria nem morreria; eternamente jovens, usufruiriam para sempre as delícias da Terra, que voltaria a ser um paradisíaco jardim, desta vez sem árvore do conhecimento, pois Jeová, mais velho e mais sábio, aprendera que criatividade, elogios e liberdade são preferíveis a proibições e castigos.

Kafka e Ionesco, ao lado de Dostoievski, inclinavam-se sobre o planeta, refinando, aqui e ali, tragédias e absurdos. Picasso ajudava a pincelar o caos. O fim de uma era também necessita de toques de mestres.

Fídias, Michelangelo e Rodin esculpiam incessantemente. Havia centenas de outros artistas de todas as épocas e de especialidades em

todo o tipo de coisas por toda parte. O pobre Disney explodiu: - Não posso pensar em meio a toda esta sujeira! Alguém pare e limpe isto! Charles Chaplin passou de braços dados com Geene Keler, colocou uma

vassoura nas mãos do diretor e pendurou em sua frente uma das vinhetas de seus filmes mudos: ‘Você é o único que está por aqui sem fazer nada, portanto...’

Bernard Shaw aplaudiu, o mesmo fazendo Shakespeare. Os mais ocupados pareciam ser Betinho e Chico Mendes, em companhia de

Bruno Bettelheim, Carl Jung e Milton Erickson. Os brasileiros humanistas auxiliavam os especialistas na psique humana a burilar pensamentos que circulariam pelo planeta no futuro, pensamentos alegres e sadios, de amor, satisfação e sucesso.

Tudo porque Deus resolvera descansar! No início da Criação, Deus trabalhara demais e deu no que deu. Anjos caídos,

pecado original, dilúvio. Agora, mais experiente, Deus resolvera delegar funções. Tantas centenas de cérebros competentes, criados à imagem e semelhança do Altíssimo, dariam conta do recado. A Deus restava aparecer para supervisionar os retoques finais, assinar a obra e aposentar-se.

Sim, porque Deus pretendia aposentar-se.

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No entanto, o escandaloso Disney tanto gritou que Deus resolveu dar o ar de sua divina graça:

- Menos, americano, menos! Nós já estamos no Guinness. E eu já estou ensaiando a vida em ritmo de Bahia, que é assim um tempo que já parou faz tempo, compreende? Quanto à sujeira, relaxe, homem! É tudo Deus, tudo divino, tudo parte de um mesmo Todo...

Lágrimas rolaram dos olhos do ex-americano por ver que nem Deus levava seu sofrimento a sério.

- Se quer sofrer, vá para o inferno – sugeriu Deus, lendo os seus pensamentos – O céu é para quem sabe viver zen.

Nisto, para espanto geral, ouve-se uma voz terrena: - Bah! Que rico, tchê! Deus virou-se, admirado. Uma moça alta, de longos cabelos negros, voltou para ele uns olhos bem verdes

e perguntou: - Que plagas são estas? Tu podes me responder? “MIGUEL! RAFAEL! PEDRO!” Deus pensou tão alto que seus três assistentes mais chegados rolaram

incontinente a seus pés, surpresos. - O que esta gauchinha está fazendo aqui? São Pedro balançou a cabeça: - Por mim ela não passou, não. Nem pelos outros portões, porque as células

fotoelétricas não acusaram nenhuma invasão. – e consultou rapidamente sua agenda eletrônica.

Gabriel verificou em seu laptop: - Não há nenhuma Carolina Helena entre os desencarnados de hoje. - Ela está viva. – avisou Miguel – É seu corpo astral que estamos vendo. Ou ela

andou lendo Carlos Castañeda ou aprendeu a ter sonhos lúcidos. Deus abriu e fechou a boca, sem emitir nenhum som, lívido, irado. - O Mestre não tolera que se mencionem bruxos ou feiticeiros – lembrou

Gabriel. Com um gesto que inspirava temor, reproduzido pelos pintores que o retrataram

expulsando Adão e Eva do Paraíso – gesto que também expulsou muito menino e muita menina do Caminho do Bem – o pensamento de Deus bramou, em um silêncio terrível:

“Cadê o cordão de prata?” Por milênios toda criatura viva tinha sua alma unida ao corpo por uma tênue

linha prateada, que se rompia na hora da morte. - Esta moça não tem o cordão de prata porque os jovens escolhidos para povoar

o planeta na Nova Era são imortais – lembrou Miguel, em pose de respeito e submissão, pose que também escondia maravilhosamente o seu sorriso.

Pois Deus esquecera. Deus às vezes se esquecia das coisas e Miguel, nessas ocasiões, ria escondido, como um menininho inocente. Mas Deus não deu o braço a torcer. Deus nunca admitia seus esquecimentos. Deus era matemático e criara as saídas pela tangente:

- O que o corpo astral de um ser humano está a fazer no céu? Como ninguém respondesse, Deus perguntou à moça: - O que você faz na vida? - Sou feliz. - Qual sua missão?

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- Trazer alegria ao mundo. A moça sorriu e uma luz dourada irradiou-se alguns metros a seu redor. - E quem é você? - Eu sou um pensamento de amor. Deus me pensou e eu nasci. Deus sorriu, orgulhoso de sua criatura. Vendo o interesse de Deus, filósofos de toda parte acorreram, espantados com a

convicção com que a moça declarara sua missão e sua identidade. Apenas Platão e Sócrates permaneceram serenos. Os outros debatiam entre si e desafiaram a moça com toda sorte de perguntas:

- Você acredita no livre-arbítrio? - Qual a solução para o problema do mal no mundo? - Como você utiliza a epistemologia do conhecimento? - Como o Ser adquire consciência política? A moça voltou-se para Deus, espantada: - São... são... - Não se impressione com a seriedade deles, no fundo eles não sabem é nada,

mas eu criei as palavras e era preciso que alguém utilizasse as palavras. Então esta gente elabora teorias, se exprime por metáforas e cria toda sorte de hipóteses e polêmicas; escreve compêndios que gente normal não lê e quando morre vem poluir o céu. Você, mocinha, não estude Filosofia com muito afinco.

A moça ficou um pouco embaraçada ao responder: - Eu gosto de filosofia. Filosofia é lindo. Eu me emociono quando ouço meu

pai falar, quando escuto certas palestras em que há entusiasmo, quando sinto no filósofo o sentimento vivo, o sentido da vida, na emoção da hora. É gostoso, mas...

- Você sempre tirou notas altas em Filosofia – comentou Deus. - Sim, porém... - Você quer escrever um livro – interrompeu Gabriel. Ele não estava

cometendo nenhuma indiscrição em revelar o que lia na mente de Carolina, pois no Céu os pensamentos e sentimentos das pessoas são absolutamente transparentes.

- Eu quero escrever um livro de humor. - É mesmo? – disse o Altíssimo. Deus sorria, abandonando o papel de Senhor dos Exércitos para assumir sua

aparência de Amor. E como Ele sentou-se em pose de ‘vinde a mim as criancinhas’.

Carolina Helena sentou-se nas nuvens e apoiou os braços nos joelhos divinos: - Eu quero que as pessoas leiam os meus livros, que se interessem pelas minhas

idéias. Os livros de humor vendem bastante, as pessoas gostam de coisas alegres e procuram dar boas risadas. Os melhores filósofos, em minha opinião, são bem humorados, como Voltaire. As piores verdades são aceitas quando ditas com humor a até as ironias ferinas têm lá a sua utilidade. Certas tiradas humorísticas são verdadeiras sacadas filosóficas, o Senhor não acha?

Deus ria, mas os filósofos estavam jururus, horrorizados com a pouca consideração da jovem, e decepcionados com seu ponto de vista tão rude.

- E depois – continuou Carolina – estes filósofos discutem tanto sobre detalhes bobos e às vezes tão sem importância...

- E o que é importante, Carolina? Porque me parece você não tem religião. Um murmúrio de desaprovação percorreu metade da platéia. Bernard Shaw

levantou as sobrancelhas, interessado, e Sócrates piscou um olho para Platão. - Religião é outra bobagem. Religião não tem nada a ver com Deus. Deus une

as pessoas e a religião as separa. As religiões ficam se preocupando com uma porção de coisinhas à toa e no fundo falam todas as mesmas coisas. Deus é amor, seja bom,

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viva uma boa vida. Se toda religião fala a mesma coisa, tanto faz esta como aquela. Rezar é sempre rezar, seja no templo, na igreja, na mesquita, na sinagoga. Eu rezo ao ar livre, onde bem entendo, e Deus sempre me escuta, não é verdade?

- Eu sempre escuto você – Deus passou a mão pelo queixo de Carolina, carinhosamente – Mas voltando a falar de Filosofia, pelo que entendi de suas palavras, sua maior crítica é a seriedade dos filósofos.

- É a chatice deles, mesmo. Alguns são intragáveis de ler. Sabe, para mim, o problema é que os filósofos não entendem Platão.

Com um gesto, Deus congelou o protesto dos Kants e dos Schopenhauers presentes. Sócrates riu dionisiacamente e Platão sorriu para Carolina com simpatia apolínea.

- Quer dizer, Carolina, que você entende Platão melhor que... - Oh, claro que não! Mas eu sei o que Platão quis dizer quando ele se referiu à

Filosofia como sendo o ‘caro deleite da alma’. - O ‘caro deleite da alma’ – repetiu Deus, e um silêncio de satisfação espalhou-

se pelo céu afora e fez-se um momento de perfeito prazer. Os filósofos foram dispersados, bem como os artistas, e Deus manteve a seu

lado apenas os arcanjos e a moça. - Meu caro Gabriel, já desvendaste o mistério? Por que esta jovem está aqui? - Na hora em que começou o incêndio na universidade russa, a moça pulou pela

janela, mas escapou do corpo e veio levitando para cá. - Ah! – lembrou-se Ele – A universidade... o incêndio, é claro! Carolina estava

feliz e também aterrorizada. Tanto o terror quanto a felicidade fazem as pessoas levitarem. Temos de levá-la de volta lá para baixo o quanto antes.

- Está muito frio em Moscou – reclamou Carolina. - Minha querida, você adora neve, lembre-se. – Deus apontou para seu coração,

para sua cabeça e constatou – Que confusão aqui! E aqui! Estes neurônios estão todos embaralhados e estas freqüências fora de sintonia.

- Excesso de estudo. – concordou Gabriel – Estes pobres jovens têm de ler em semanas o que os sábios descobriram em décadas e têm de ter todo este conhecimento na pontinha da língua para os tais testes de seleção disto e daquilo – vestibular, bolsa de estudos, estágio, defesa de tese... Dá nisso. Indigestão cerebral.

- Não se preocupe, Carolina Helena, você passará por um processo de cura antes de voltar para a Terra. As horas passadas aqui em cima serão retiradas de sua memória. Você terá apenas uma vaga reminiscência. Será como acordar de um sonho.

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II Muitas vezes Carolina tinha sonhos tão interessantes que ela os aproveitava

para seus textos e composições. Algumas idéias vindas em sonhos eram simplesmente geniais, como esta que se segue.

Deus resolveu tirar férias. A Humanidade caminhando para a Nova Era de Luz permitiria a Ele usufruir

com tranqüilidade das delícias de sua Criação, tomando uma aguinha de coco ao sol dos trópicos ou esquiando nas Montanhas Rochosas durante o inverno. Havia centenas de paisagens belíssimas naquele planetinha azul para um Criador degustar com satisfação e contemplar amorosamente, na alegria de quem sabe que fez bem feito.

Ora, para substituir Deus, há milênios tronos, serafins e potestades estudavam devotadamente. Deus passou os olhos pela lista dos anjos com doutorado, mestrado e pós-graduação, sem dar-se por satisfeito.

Havia o Serafim Pontifício, que protegia Karol Wojtyla desde o nascimento. Havia o Trono Ayurvédico, que acompanhara Madre Teresa de Calcutá, São Francisco de Assis , Cícero, Gandhi e centenas de anônimos que se bateram pela justiça e pelo melhor relacionamento entre os homens. Deus, contudo, torceu o nariz. Lembrem-se, Ele é perfeccionista.

A seu lado, São Pedro coçou a cabeça e opinou, em voz alegre, com um sorriso feliz:

O Mestre corre o risco de ficar mais algumas centenas de milênios aí encarapitado em seu trono de nuvens...

A verdade – murmurou Deus bem baixinho – é que somente Lúcifer estaria à altura de meu cargo. Um verdadeiro líder, você sabe, não aceita ordens, forma seu próprio partido.

A rebelião de Lúcifer era a pedra no sapato do divino pé. No fundo, Deus sempre apostava na conversão ideológica de seu adversário.

O arcanjo Gabriel apareceu num raio de luz branco total balançando os belíssimos cachos dourados como o brilho do sol. Deus olhou meio zangado, em parte porque a vaidade era um pecado capital, em parte porque Gabriel só aparecia pelo céu em emergências emergentíssimas.

- Pai, venho comunicar-lhe que Ahasverus... - Menos, Gabriel, menos. – Deus, num gesto magnífico, reduziu a luminosidade

de seu arcanjo predileto e prostrou-o ao pé do trono. – Isto é muito tedioso. Ahasverus, o judeu errante, mais uma vez tenta escapar a seu castigo e pede clemência.

- Não. - Não??? - Ahasverus juntou-se a Al Qaeda, aprendeu a pilotar aviões e neste momento

está em Nova Iorque. - Ah! – Deus suspirou aliviado. – Por um momento pensei que ele estava na

Europa. Esqueça, Gabriel. O pessoal do FBI e da CIA vai ter, sim, um pouco de trabalho, mas, e daí? Sossegue. Você bem sabe que o Império Americano está estrebuchando. Vá, vá...

- E se Ahasverus resolve... São Pedro bondosamente pegou o arcanjo, reduzido ao tamanho de uma

imagem de presépio, e o soprou na direção da Terra:

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- No momento o Mestre só tem ouvidos clementes para os excluídos do Terceiro Mundo. E eles são da competência da Potestade Saravá-Deus-nos-acuda.

Porque aquilo lá estava mesmo um deus-nos-acuda de tanta barbárie e violência, Deus colocara São Expedito e Santa Rita dos Impossíveis para orientarem centenas de anjinhos com a função de preservar a pureza de coração de centenas de jovens que viviam entre drogados, criminosos, famintos e ignorantes. A potestade Saravá-Deus-nos-acuda coordenava os trabalhos; por isso Chico Mendes e Betinho viveram o suficiente para se tornarem internacionalmente conhecidos, e algumas mulheres boas de briga chegaram a comandar ministérios e ainda permaneciam lá!!

- Taí – exclamou Deus – governar o universo é trabalho de equipe. Chamo aqui o Lúcifer, o trono Ayurvédico, o Serafim Saravá-deus-nos-acuda e a Potestade Amazônica e eles governam o mundo em conjunto.

-,Potestade Amazônica? Quem é? – estranho São Pedro. - Como é mesmo o nome daquela potestade que...sabe, Pedro, esta estória de

botar apelidos nos outros dá nisso: a gente se esquece dos nomes verdadeiros... E Deus bocejou, pois estava muito cansado; fechou os divinos olhos e teve um

divino sonho durante um divino cochilo.

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III

. Estamos em Moscou, no ano de 2003, na Universidade Patrice Lumumba,

também conhecida como Universidade da Amizade entre os Povos. Esta universidade recebe alunos de várias partes do planeta, para cursos, congressos e intercâmbios vários.

Carolina Helena, estudante de Relações Internacionais, participava de um congresso cujo tema era O Destino da Terra e os Novos Paradigmas da Humanidade no Século XXI. Sua função, nos últimos dias, fora ouvir estudantes de Filosofia, Física Quântica e Sociologia, burilar suas idéias e escrever um roteiro para o encerramento do encontro, no final da quinzena.

Compreender era o objetivo primeiro da estudante que se sentava na primeira fila da platéia, de gravador em punho

Carolina Helena abandonara o palco anos antes, no entanto não perdera o amor à arte. Com o primeiro capítulo de seu roteiro alinhavado, ela aceitou alegremente o convite dos colegas atores para subir ao palco e auxiliar no que seria ao mesmo tempo debate, oficina e primeira leitura do seu texto.

Só para ajudar o dar o clima, ela deitou-se, interpretando o Ser Humano Que Dorme. Sua deixa para levantar-se era a fala do sueco de olhos cor de mel:

- Acorda, ó mortal! - Embalado pelas areias do tempo... Carolina Helena deixou-se levar pelos próprios pensamentos, uma virtude ou

vício com as mais aleatórias conseqüências. Meio que ouvindo as palavras das pessoas reais, meio que ouvindo seus próprios pensamentos a ressoar em paralelo dentro de seu crânio, a imaginação da moça dava saltos imprevisíveis, ora geniais, ora desastrosos.

Carolina Helena via Morpheu1 a remexer um imenso caldeirão, onde atirava misteriosas ervas perfumadas e sua criatividade elaborava toda uma cena paralela, assim:

- Shakespeare disse que a vida humana é um sonho, que tem a duração de nosso sono.

Sentado ao lado direito do palco, quem assim falava era um jovem loiro, vestido com uma túnica curta e sandálias rústicas, que observava Morpheu a remexer o imenso caldeirão fumegante ao centro.

Morpheu sorria, e ia jogando na mistura cheirosa livros, jóias, flores e.... - Uma gota do mais puro néctar2, para incentivar o gosto da imortalidade e o

desejo da bem-aventurança. Assim se sonha uma vida útil. Na platéia, entre centenas de jovens, uma moça na primeira fila observava

atentamente. Era uma dessas moças que nas aulas sentam-se lá no fundão, desinteressada, mas no teatro era tiete, mesmo em se tratando de um ensaio. O jovem loiro apontou para ela:

- Quer subir ao palco, por favor? Preciso de um voluntário para ser o Mortal Que Dorme.

A jovem animou-se: - O que tenho de fazer?

1 Morpheu – o deus grego dos sonhos. 2 Néctar – a bebida dos deuses do Olimpo, que tornava imortal quem o bebesse..

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- Você se deita ali, e finge dormir, até que eu toque em seu ombro e diga: Acorda, ó mortal. Essa é a sua deixa, e estas as suas falas.

A jovem pegou as folhas, leu rapidamente e deitou-se onde lhe foi indicado. Fechou os olhos e ficou a escutar a fala dos demais atores. Só que ao final, o loiro a chamou:

- Acorda, ó mortal! E ela nem se mexeria. - Acorda, ó mortal! Apesar das sacudidelas e das insistentes chamadas, a jovem se enroscaria

gostosamente e iria até roncar. - E agora, Morpheu? - Agora é sonhar. Deixa dormir, rapaz, um dia todos acordam. Sonhar é preciso. Mas aquilo parecia um mau plágio de Fernando Pessoa, e o difícil truque de

contar uma estória dentro de outra estória exigia o talento de um Malba Tahan. Carolina Helena então voltava à realidade e lembrava-se de que a princípio

pensara neste enredo e no título A Fábrica dos Sonhos, imediatamente abortado por ser capitalista, pois ela buscava uma imagem atemporal e universal. As Areias do Tempo, contudo, parecia agora ser um tema igualmente limitado, quer dizer, areia pode parecer natural e ecológico, mas quem pensa em ‘areias’ nunca pensa em esquimós ou bosquímanos. O complemento ‘do tempo’ limita ainda mais o

simbolismo das ‘areias’ porque obrigatoriamente remete o ouvinte à noção de

transitoriedade, de filosofia. Quem está para lazer em uma praia não associa a ‘areias’ a expressão ‘do tempo’, portanto quem ouve ‘areias do tempo’ não imagina

pessoas na praia em atividades esportivas, iates e veleiros, ao contrário, é induzido a visualizar tendas, camelos, árabes e lentas caravanas engolidas pelos ventos do deserto, homens de turbantes olhando compenetrados para o horizonte...

Que agonia a do escritor, sempre a lutar com palavras que são mais do que símbolos! Uma imagem que retrata a realidade a ponto de confundir-se com ela torna a ficção um fiel espelho da realidade, e há imagens de ficção mais fortes que as verdadeiras, capazes de impactar a realidade, eis a genialidade das metáforas!

Shakespeare firmou que a vida humana é um sonho com a duração do nosso sono.

O significado da palavra sonho, por exemplo. ‘Fenômeno fisiológico que

ocorre durante o sono’ é algo bem diferente de ‘fantasia’ ou ‘desejo não

concretizado’. Realidade, outro exemplo. Em seu significado de ‘o que pode ser

concretamente percebido pelos sentidos’ deixa a desejar, pois os sentidos não

percebem ao ultra-sons ou as ondas de rádio, que nem por isso deixam de existir. Já a definição ‘oposto ao sonho’ é uma completa bobagem, pois se registramos o sonho

fisiológico em nossos aparelhos médicos, já o definimos como real. Se uma pessoa imagina uma estória, escreve um texto, atores representam uma

peça sobre um palco, temos aí uma realidade. Atores de verdade sobre um palco de verdade interpretando palavras escritas em um livro de verdade; pessoas rindo ou comovendo-se, bem, onde está o sonho, onde está a realidade?

A emoção do espectador é real, mas ele ri ou chora por algo que não aconteceu? Bem.. algo tem de ter acontecido, não é?

Um homem olha um campo e diz ‘que belo local para um hotel assim e assim’.

Depois de alguns meses seu hotel de sonho, que só existia em sua fantasia, está ali, de verdade, construído de tijolos e telhas.

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A realidade não constrói casas, pontes, trens, livros e toda sorte de invenções. O sonho é que constrói. A mente humana sonha primeiro e realiza depois. O sonho cria a realidade.

Portanto, quando falamos do mundo dos sonhos, estamos falando de algo mais real e mais importante. E quando Platão3, no mito da caverna, afirma que o homem, em sua realidade de caverna, está iludido; que precisa sair da caverna para ver o mundo real, ou seja, o mundo das idéias, está de certa forma afirmando que chamamos a realidade de sonho e o sonho de realidade.

Tudo o que existe e foi criado, existiu antes na mente de alguém, imaginado ou sonhado, seja uma cadeira ou uma equação matemática.

Quando o sábio chinês diz que não sabe se é um sábio sonhando ser borboleta ou uma borboleta sonhando ser sábio, está brincando com uma metáfora poderosa, pois a borboleta é a realidade da lagarta, como a vida espiritual é a realidade do corpo humano.

Quando, no sonho fisiológico, Kekulé encontrou a fórmula do anel benzênico, e Singer a solução para a agulha da máquina de costura, não estariam ambos mais conectados à realidade ao dormir que no estado de vigília?

Quando os teosóficos dividem a humanidade entre adormecidos, sonhadores e despertos, estão definindo:

Aqueles que vivem para a realidade dos sentidos – trabalhadores braçais que comem feijão com arroz.

Aqueles que prestam atenção às idéias e reconhecem o mundo intangível – imaginam, criam, filosofam.

Aqueles que vivem o sonho, entendendo que o mundo real é apenas o reflexo do mundo das idéias, como já dizia Platão.

Uma vez que o ser reconhece o sonho como realidade, será que pode transcender o espaço-tempo? Ou escolher o momento da passagem, como os iluminados mestres budistas? Ou sair do corpo a seu bel-prazer e viajar por outros planos mais interessantes de existência?

As possibilidades mais ousadas ganham atualmente o respaldo da física quântica, que relaciona os inexplicáveis saltos evolutivos com os quanta de energia necessários para que uma partícula mude de orbital. Os paradigmas das diversas eras, arquétipos, profecias, metafísica, tudo o que é fantástico se correlaciona maravilhosamente com o modêlo atômico.

A realidade é sonho. Sonhando é que podemos plasmar na realidade novos desejos e aspirações.

E quanto aos sonhos lúcidos? Há sonhos em que sonhamos estar sonhando. Há aqueles em que sabemos estar

sonhando. Outros sonhos nos parecem mais reais que a própria realidade do estado de vigília.

Sem dúvida sonhos assim anunciam que o sonhador está próxima a despertar para o fato de que o sonho é a verdadeira realidade. E então...

Carolina resolveu prestar atenção ao enredo que se desenrolava no palco. Afinal, era um privilégio poder dirigir seu próprio espetáculo. E esperar a sua deixa:

- Acorda, ó mortal! E tão realisticamente interpretou seu papel que logo O Mortal Que Dorme

estava até roncando.

3 Platão – filósofo grego. Comparou a humanidade a um grupo de homens vivendo dentro de uma escura caverna, de costas para a luz, podendo ver apenas as escuras sombras projetadas nas paredes da caverna.

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IV

Como Carolina Helena correra! Conseguira chegar antes do último horário do

metrô. Era seu primeiro dia em Londres, e, se perdesse aquele trem, não saberia se orientar pelas ruas estrangeiras, e estava realmente muito longe do alojamento. E sozinha.

O brasileiro a seu lado, que ela acabara de conhecer em um pub, repetiu: - Se fosse mais cedo, eu acompanharia você até o seu hotel, mas a esta hora, se

eu fizer isto não poderei voltar para casa. Você entendeu direitinho? Você desce duas estações depois que eu e pega a linha verde.

Neste instante o metrô parou, o rapaz desceu e Carolina Helena viu as portas se fecharem, com a pergunta engatilhada na boca entreaberta. Desceu dois pontos depois e procurou a linha verde, embarcou no sentido centro-subúrbio e suspirou.

Por doze horas só ouvira idiomas estranhos e fora um alívio encontrar outro brasileiro. Ela fora para o pub com a italiana com quem dividia o quarto, Bárbara, fora de carros com amigos dela, mas o grupo decidira ir jantar e Carolina Helena quisera ficar no pub. Na hora parecera-lhe tão simples encontrar sozinha o caminho de volta!

Em frente a ela, um distinto bigodudo de óculos lia um jornal. Carolina Helena sentiu uma sensação peculiar, como se houvesse uma presença

protetora a seu redor. Ela se arrepiava, um tanto receosa, olhava para todos os lados, às vezes parecia ver sombras ou vultos, como em um quadro impressionista, pincelados em luz tênue e alegre. O mundo parecia mergulhar no silêncio mais absoluto e nunca acontecia nada. Uma sensação curiosa, que Carolina Helena guardava para si mesma através dos anos.

O homem abaixou o jornal e olhou diretamente para ela, dizendo boa noite em inglês.

Encorajada, Carolina Helena apresentou-se e pediu a direção de seu hotel. O outro explicou com palavras e gestos:

- Suba a escada rolante, saia pela direita e siga em frente três quarteirões. A terceira rua é a do seu hotel.

Como os ingleses não costumam gesticular, Carolina Helena imaginou que o homem estava usando mímica por ter percebido que ela era estrangeira, para facilitar a explicação, o que era muito gentil da parte de um estranho.

- Eu descerei com você e vou até o seu hotel, assim você não se perderá. - Não faça isso, senhor! Este é o último trem de hoje. Eu compreendi

perfeitamente. Subo a escada rolante, saio pela direita, sigo em frente por três quarteirões e esta é a rua de meu hotel. Eu o agradeço.

Carolina Helena usava palavras um pouquinho diferentes para que o homem percebesse que ela compreendera e não se limitava a repetir como quem decora os sons. Ele levou a mão à aba do chapéu, sorrindo. Ela se despediu, desceu na estação correta e encontrou seu rumo sem grande dificuldade.

A noite londrina estava clara e enluarada. Cadê aquela romântica e misteriosa névoa? Caminhando sonhadoramente, Carolina Helena estava a uma quadra do hotel quando percebeu os árabes. Eram uns dez, silenciosos, envoltos em amplas e esvoaçantes vestes brancas, diretamente atrás dela, na rua onde não se avistava mais ninguém.

Carolina Helena apressou o passo, mas os árabes andavam em passos mais rápidos e largos, aproximando-se cada vez mais. Carolina Helena correu. Ela não

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pensava na Al Qaeda, nem em terrorismo, mas lembrava-se das estórias de raptos de mulheres. Ouvira dizer que, nos países árabes, mulheres são objetos à disposição dos homens. Lembrava-se da jornalista inglesa que sumira à luz do dia no Cairo e só reaparecera quatro anos mais tarde, quando conseguiu enviar uma carta por um padre inglês que cruzara seu caminho no deserto. Um califa ou sheik a pegara à força, jogara-a em sua limusine ou camelo, Carolina Helena não estava bem certa, e a trancafiara em seu harém porque ela era uma mulher bonita que não tinha dono. Diplomatas ingleses custaram a convencer o árabe de que as mulheres ocidentais eram donas de seus próprios narizes e a respectiva inglesa era uma repórter conceituada, estava no Egito a trabalho etc. O homem ria como criança que escuta uma anedota engraçada.

Uma amiga de Carolina Helena, casada com um egípcio, visitara as pirâmides enfiada em uma burca e agarrada ao braço do marido, tal o medo que o rapaz sentia de ter a linda esposa raptada.

Carolina Helena jogou-se contra a porta do hotel e em seu nervosismo não conseguia encontrar a maçaneta nem a campainha e gritava por um porteiro que não existia. Cada hóspede recebia sua própria chave, e cadê tranqüilidade para abrir a mochila, sacar da carteira, procurar pela chave no compartimento fechado a zíper? Carolina Helena já se imaginava na garupa de um dromedário, indo em direção a uma tenda, em um oásis à luz das estrelas, e a cena não lhe parecia nada romântica.

- Socorro! Socorro! – ela golpeava e esmurrava a porta envidraçada, gritando em português mesmo, e o rapazinho da recepção andou – ANDOU – em seu socorro.

Quando ele finalmente abriu a porta, Carolina Helena entrou e apressou-se a fechá-la com suas próprias mãos, e lembrou-se de falar em inglês.

- Eu sou Carolina Helena, do quarto 202, sou hóspede deste hotel, uma estudante brasileira. Não deixe os árabes entrarem.

Para seu terror, um dos árabes abriu a porta e entrou. Era um mocinho muito charmoso, que disse educadamente ‘boa noite’ e dirigiu-se para o elevador.

Os ingleses são contidos, mas Carolina Helena viu o rápido cintilar de um riso nos olhos do funcionário que lhe disse com uma inflexão neutralíssima:

- O príncipe Ali do Kweit é hóspede do hotel.. Não creio que ele pretenda raptar a senhorita.

Carolina Helena dirigiu-se ao saguão, entre constrangida e aliviada, e percebeu um vulto que se tornava cada vez mais sólido. Como?

Depois de tamanha emoção, sua imaginação bem poderia estar-se divertindo com ela. Uma sombra qualquer no sofá, criada pela oscilação dos faróis lá fora, deveria estar desaparecendo, porém uma mulher falara com a sombra e esta imediatamente se tornara tão sólida quanto um corpo humano.

Carolina Helena já se assustara tanto quanto era possível a um mortal assustar-se em um único dia, sua cota de pavor esgotara-se e portanto não sentiu medo. Aproximou-se.

Conhecia, ou pensou conhecer, aquela roupa, aquele jornal, aqueles sapatos. Decididamente abaixou o jornal e viu-se diante do homem bigodudo do metrô.

- O senhor! Como é possível? Eu o deixei no metrô. E não venha me dizer que desceu logo atrás de mim porque não desceu. Eu olhei para trás e vi o senhor dentro do vagão quando o trem partiu.

- Meu nome é Ahasverus – disse o homem. - E ...? - Ahasverus, o judeu errante. Como se isto explicasse tudo. O homem continuou:

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- Você não conhece a lenda de Ahasverus? - Não sou cristã. Nem judia. – acrescentou rapidamente, sem saber se a estória

de Ahasverus estaria na Bíblia ou na Torah. - Em nenhum dos dois livros – respondeu o homem, como se pudesse adivinhar

seus pensamentos. – Você sabe ao menos que Cristo carregou a Cruz até o Calvário? - Sei. - Em um determinado momento, quando Jesus caiu, um soldado romano pediu

a um judeu que ajudasse o prisioneiro a carregar a Cruz. Eu me recusei. - Como? - Esse judeu, que se chamava Ahasverus, recusou. E Deus em castigo o

condenou a vagar eternamente pela terra, sem nunca morrer. Um judeu errante. Sou eu, Ahasverus, que não morro nem envelheço.

- Este é um sonho muito interessante – disse Carolina Helena – Eu sei que não estou louca, e sei que o senhor não pode estar aí, porque ficou no metrô. Então, tudo isto é um sonho e nós podemos conversar. Por que você está me seguindo?

- Para dar descanso a seus anjos da guarda. - A meu anjo da guarda! Muito curioso. - No seu caso, é plural. Anjos da guarda. Você tem dado tanto trabalho a seus

anjos que ele têm tido estranhas idéias para anjos. Deus não sabe mais o que fazer com eles. Seus anjos estão pedindo férias, licença médica por estresse e até aposentadoria. E no seu caso eles não podem ser substituídos por qualquer carinha bonita de cachinhos dourados porque somente anjos altamente graduados trabalham com o Serafim Metatron. Lá no seu país ele recebeu o apelido de Anjo do Corpo Fechado.

- Eu não estou entendendo nada. - Um dia você teria de descobrir. Com todo trabalho que você dá para ser

protegida, um dia acabaria vendo algum de sua equipe. Um vulto aqui, uma asa acolá, todo o cenário que muda a sua volta por interferência, conveniência e benemerência divina...

- Bem, às vezes eu sinto uma sensação ... e penso ver vultos.... - O fato é que não sou tão bom para me disfarçar quanto os anjos. Você me

flagrou. Isto me parece que seria mesmo inevitável. E depois, não há muito perigo, porque se você falar de nós ninguém vai acreditar em você. Também podemos jogar o pó dos sonhos em você e confundir sua memória. O Serafim..

- O quê? - Serafim. Você sabe o que é. - Um tipo de anjo, acho. Tronos, serafins, potestades, arcanjos e querubins.

Tem uma hierarquia assim. Já ouvi falar. - O Serafim Metatron é uma espécie de comandante de um esquadrão especial

encarregado de defender alguns jovens, nesta época de violência, para que eles continuem vivos até o fim deste período de Medo e de Ignorância. Você é a pessoinha que mais dá trabalho ao Serafim, e eu me ofereci para dar um descanso à equipe. Afinal, eu tenho uma qualidade que eles não têm: um corpo vivo. Muito útil em certas situações.

- Por que você faria isso? - Como assim? - Se você se recusou a ajudar Jesus, você é uma pessoa ruim. - Não necessariamente! – protestou Ahasverus – Medroso. Covarde.

Preguiçoso. Pode me chamar destas coisas. Pode dizer que eu não acreditei um Jesus. Você nem tem idéia de quantos judeus loucos andavam pela Galiléia com as

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Escrituras nas mãos dizendo ser o Messias, naquela época. E os romanos não eram brincadeira. Como é que uma pessoa comum ia saber quem era o Messias verdadeiro, afinal? Se nem os fariseus o levavam a sério! Quer saber? Deus foi excessivamente rigoroso comigo.

O homem mostrava-se irritado. Carolina Helena permaneceu calada. Então ele olhou para ela e começou a rir:

- Aqueles árabes fizeram você correr pra valer, não? - Não achei engraçado. - Você percebe o trabalho que dá para os anjos? Eles precisaram esconder as

asas sob aqueles montes de panos e convencer o príncipe Ali a correr.... porque afinal, anjos são invisíveis, na maior parte do tempo, pelo menos.

- Anjos? Não eram árabes? - Só havia um árabe. Os outros eram imagens holográficas. Mas... se fossem

árabes de verdade, seria muito engraçado se raptassem você. Você viraria uma lenda do deserto. A odalisca brasileira.

- Não é nada polido de sua parte. - Carolina Helena estava zangada. - Eu não preciso ser polido porque não sou inglês. - E você também pensa que eu não sou uma lady. Você pensa que todas as

brasileiras saem nuas pelas ruas ao som do samba em um carnaval eterno, - De jeito nenhum! É que você, minha pequenininha, você é tão desastrada, que

um sheik que a levasse para o harém desistiria rapidinho, tantos os desastres que ... Ahasverus engasgou-se de tanto rir e Carolina Helena começou a rir também: - É verdade, eu já escapei de tantos acidentes e tanta coisa engraçada acontece

comigo! - Você seria devolvida! Os árabes pagariam para sua família receber você de

volta! Carolina fez biquinho de choro, mas subitamente exclamou: - Até que o príncipe Ali é bonitinho. Será que ele está na excursão para a

Escócia neste domingo? - Você não corre risco algum de ser raptada por um árabe, Carolina Helena –

afirmou categoricamente Ahasverus, mas acrescentou - Na Inglaterra. - Você quer virar anjo? - Não, eu estou cansado da imortalidade. Você sabe, nos primeiros séculos foi

divertido. Andei pelo mundo todo. Fiz turismo. Depois cansei. Não posso ficar perto de meus amigos nem das mulheres que amo, porque os outros envelhecem, e eu não, e é muito esquisito. Eles morrem, eu fico. Estou sempre sozinho. Aprendi de tudo. Falo todas as línguas. Exerci todas as profissões. Li todos os livros. Não há um só centímetro deste planeta que eu não conheça como a palma de minha mão. Quero poder morrer nem que seja para ir para o inferno, e Deus ali, irredutível. É rancoroso, o sujeitinho.

- Então você resolveu auxiliar os anjos que protegem os jovens especiais porque o mundo está em uma espécie de Idade Média. É isto? Que esquisito!

- Uma era de violência. - Eu sou uma das jovens protegidas, então eu sou especial? - Não, você é normal. Sinto desapontá-la, mas especial é a Madre Teresa de

Calcutá. As pessoas especiais não precisam de proteção. Elas têm sua própria luz. São como anjos encarnados.

- Oh! - As pessoas normais morrem se não tiverem proteção. E eu lhe garanto, o

mundo vai precisar de algumas centenas de pessoas normais vivas no começo da

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Nova Era. Ainda não compreendi porque Deus não quer a extinção da raça humana. Enfim, o Criador é Ele.

- Então você entrou como reforço na minha escolta de anjos. - Eu propus a Deus... Bem, Ele precisa de mim e eu estou aqui. Isto corrige o

meu erro anterior, suponho. Então ele me permitirá esquecer e viver uma vida humana normal com direito a um último suspiro como qualquer mortal. Enquanto isto, eu cuido de você, posso ficar invisível quando quero e aparecer ao vivo e em cores quando for conveniente, o que em seu caso, eu garanto, é algumas vezes necessário. E você só me surpreendeu porque eu não pude desaparecer a tempo, porque não percebi aquela senhora se aproximando.

- Ahasverus, se não havia nenhum árabe atrás de mim, se não há perigo algum aqui... não há perigo algum, não é?

- Ahasverus olhou para ela com bondade: - Era preciso que você pegasse o último metrô, descesse na estação certa e

chegasse ao hotel antes de uma hora. Carolina Helena olhou para o relógio, cujos ponteiros marcavam exatamente

uma hora. A seguir ela olhou através da porta envidraçada do hotel e viu, lá fora, um carro de polícia passar atrás de um carro de bombeiros, mas quando virou-se para perguntar a Ahasverus o que lhe aconteceria se ela ainda estivesse nas ruas, o sofá estava vazio.

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V Carolina pensou em quantas e quantas vezes escapara da morte, sem suspeitar

que em seu auxílio intervinham seres extracorpóreos. Pôs-se a imaginar o que estaria ocorrendo no plano além da vida.

Carolina apreciava mitologia grega. Ela era, aliás, apaixonada por estórias, fossem estas de fadas, bíblicas, folclóricas ou reais. Os gregos eram caros a seu coração, por isso ela acrescentara o apelido Helena ao nome escolhido por sua mãe na pia batismal, Carolina. Helena porque a Antiga Grécia chamava-se Hélade e seus habitantes eram os helenos.

Os gregos tinham uma interessante alegoria para o frágil fio da vida. Eles imaginavam que a existência humana estava nas mãos de três divindades menores, as moiras, três irmãs que se chamavam Lachasis, Cloto e Átropos. Lachasis tecia o fio que Cloto ia enrolando até que Átropos o cortasse com sua implacável tesoura.

Ahasverus disseta que Carolina era um desastrada e que os anjos intercediam freqüentemente por ela. Assim, a moça imaginou que o trabalho das moiras estaria sendo constantemente interrompido por seus anjos guardiões.

A tesoura aberta de Átropos aproxima-se do fio que Lachasis fia. O Serafim segura a mão de Átropos e ficam os dois a observar o portal à sua frente, emoldurado pela névoa com que Zeus adorna o visor do planeta Água, moldura esta absolutamente inútil, mas que, como efeito especial é esteticamente interessante. E dentro desta moldura, poderiam seguir as desventuras da desastrada gauchinha.

No centro do portal encantado, o caminhão brecou, desviou e parou a milímetros de uma Carolina Helena assustada que correu imprudentemente por entre os carros da Regent Street, ao lado da Piccadilly Circus Station. Uma série de freadas bruscas e um interessante mosaico de carros em zigue-zague acompanhara os educadíssimos protestos dos motoristas britânicos.

O Serafim Metatron sorriu, pois sua equipe de anjos doutorandos em ‘salva-vidas de adolescentes’ atuara com sucesso.

Carolina Helena não compreendia. Ela olhara tão cuidadosamente antes de atravessar a rua! Dali por diante olharia SEMPRE para os DOIS lados. Meses mais tarde, ao conversar com a mãe, o clink da ficha caindo com atraso se faria ouvir lá no céu, para diversão dos anjos guardiões. Carolina Helena diria inocentemente à sua mãe:

- Curioso como em Londres ninguém é multado por dirigir na contra-mão. - Como assim, na contramão? Você esqueceu que lá as mãos são invertidas? - Quer dizer que eles dirigem mesmo do lado contrário da rua? Eu pensei que

mão invertida queria dizer que o motorista sentava-se do lado do acompanhante. - O motorista realmente se senta do lado do acompanhante PORQUE ele dirige

do lado contrário da rua. Meu Deus, Carolina Helena, eu expliquei isto a você. Como você pôde sobreviver em Londres sem esta informação básica?

Carolina ficaria vermelha, lembrando-se do acontecido na Regent Street, e a mãe ficaria extremamente pálida e agradecida ao anjo da guarda da filha. Nenhuma delas sabia que, para Carolina, fora montado todo um esquema especial de segurança supervisionado pelo Serafim apelidado de Corpo Fechado.

Átropos suspirou, deixando cair a tesoura, e o Serafim partiu. As moiras observaram suas asas perderem-se na distância, cada vez mais alto, em direção ao sol.

Átropos pegou sua tesoura com a luva virtual, consultou no computador os desencarnados daquele instante e fez um gesto decidido contraindo a mão; na sala

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abaixo centenas de tesouras reais fecharam-se sobre centenas de fios reais e enviaram centenas de almas humanas para o Reino de Hades. Lá, Éaco, Minos e Radamanto, os três implacáveis juízes, redirecionavam cada um segundo sua crença. Os antigos gregos iam para os Campos Elíseos, os índios para as Terras das Boas Caçadas, os bons cristãos eram enviados ao Éden, os muçulmanos ao Jardim das Delícias – esses jardins situavam-se em regiões distintas. Os judeus agrupavam-se em um limbo, onde eternamente aguardam a vinda do Messias em frente a uma réplica do Muro das Lamentações. Penélope em pessoa recebe os espíritas, pois eles a identificam com um espírito de luz que os desvia do Umbral e os guia em segurança por entre as diversas moradas do Pai Celestial. Estas diversas moradas são de fato decoradas por Morpheu, para quem é um prazer inigualável providenciar sonhos os mais mirabolantes para estes fervorosos crentes, com o auxílio de Mnésis.

Cérbero se encarrega de forçar os políticos para o Inferno, onde pacientemente Aristóteles lhes ensina Ética e Sócrates insistentemente demonstra para eles a diferença entre falácia, sofisma e proposição e pergunta em vão o significado da justiça e da verdade. O tormento maior para os políticos é escutar as inflamadas e entusiásticas preleções de Platão sobre a Utopia, porque, estando mortos, não podem adormecer nem cabecear de sono, e desejam poder de novo morrer, desta vez de tédio, pois são incapazes de reconhecer o mérito alheio. Os tormentos ali, como é fácil deduzir, são adequados aos delitos. Os Catilinas permanecem mudos, os políticos americanos invisíveis e os brasileiros condenados a sobreviver com o salário mínimo nordestino em uma réplica da Suíça.

Zeus, lá do Olimpo, aplaude, e envia ao irmão a mensagem solidária: Dante não fora capaz de imaginar suplícios mais adequados.

Se o que Ahasverus dissera era verdade, estava explicada a presença misteriosa que Carolina sentia a seu lado em diversas ocasiões. A presença era real, um anjo protetor, ou vários deles.

Carolina Helena sentira esta presença nas situações perigosas de sua vida, e não foram poucas essas ocasiões.

Certo dia de verão, o ventilador de teto da classe despencara e passara a centímetros do rosto de Carolina Helena.

Durante uma festa à beira da piscina, um primo saltara com Carolina Helena ao colo para dentro d’água e a cabeça dela passara a milímetros da borda cortante de ladrilhos. Carolina Helena só entendeu porque o tio proibira os saltos e mergulhos quando assistiu ao filme da festa e verificou quão próximo esta inocente brincadeira estivera da tragédia.

À medida que Carolina Helena crescia, e precisava enfrentar sozinha um mundo onde o Horror e o Medo eram companheiros inseparáveis da guerra entre Crime Organizado e Sociedade Civil, as milagrosas salvações se multiplicaram.

A bem da verdade, em algumas ocasiões o anjo da guarda chamara-se mesmo Mãe Autoritária, Chata e Incompreensiva. Aos treze anos, Carolina Helena quisera pegar carona com uns amigos que dirigiam moto. Sem capacete. Quem precisa de capacete na cidade só para andar duas quadras até o clube às duas da tarde em ruas praticamente desertas de um bairro tranqüilo? Pois, nas ruas desertas do bairro tranqüilo, o motoqueiro sem capacete virou devagar a esquina e encontrou um caminhão estacionado; ao desviar, a moro derrapou e o rapaz caiu sobre os ganchos ponteagudos da lateral do caminhão, resvalou para o solo, bateu a cabeça e, embora tendo sido imediatamente levado ao hospital, morreu uma hora depois.

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A casa da Mãe Autoritária, Chata e Incompreensiva.encheu-se de colegiais assustadas e chorosas, porque Carolina Helena vira o acidente e as meninas saboreavam horrivelmente fascinadas cada detalhe macabro.

Dois meses depois, uma banda da moda, a Raimundos, apresentou-se em um badalado clube local e Carolina Helena foi terminantemente proibida de ir porque a mãe detestava multidões:

- Onde há multidões, pode haver pânico. Um possível pânico é altamente improvável. Dentro do clube é seguro, mãe.

Todo mundo vai. Nem todo mundo foi porque ‘mãe que não entende’ era uma realidade também

para outras desafortunadas coleguinhas de Carolina Helena. Afortunadas, em verdade, pois o altamente improvável aconteceu. À saída do espetáculo houve pânico, muitos correram ao mesmo tempo para a mesma escada, o corrimão cedeu e dezenas de jovens despencaram uns sobre os outros, na maior gritaria. O saldo da tragédia: seis mortos por asfixia e dezenas de feridos, alguns graves. Entre os mortos, uma vizinha de Carolina Helena, de quinze anos.

No mesmo verão, quando a cidade pensava que já houvera mortes demais, o prefeito, como era costume, autorizou a montagem de palcos na areia da praia para espetáculos musicais gratuitos. Carolina Helena queria muito assistir uma banda em particular e, mais esperta, resolveu nem pedir permissão; foi até a casa de uma amiga, onde a turma resolveu de última hora ir ver o show na praia, e ela acompanhara, porque não vira nada de errado na idéia. Teria sido um plano perfeito, se duas gangues inimigas não houvessem resolvido se enfrentar na areia durante a apresentação da banda. A polícia estava de prontidão em locais estratégicos e imediatamente cercou os marginais, que reagiram. O tiroteio durou várias horas, enquanto uma multidão em pânico corria. Os bandidos ocuparam a avenida da praia; os policiais armados, a faixa de areia. Ao público restou o mar. E Carolina Helena lá ficou com as amigas, gritando e correndo como todos, dentro d’água, até a

madrugada. Quando ela conseguiu chegar em casa, excitada e assustada, a mãe a abraçou e comentou apenas:

- Onde há multidão, pode haver pânico. Carolina Helena ficou grata por ter sido poupada do ‘eu bem que avisei’ e dos

castigos que foram infligidos a algumas de suas amigas. Houve outras ocasiões que Carolina Helena nunca poderia evitar. Como aquela

tarde em que voltava da aula de inglês e duas moças altas a rodearam, a pegaram pelo braço e queriam por força carregá-la para um construção abandonada. Carolina Helena começou a gritar e a espernear, mas teria levado a pior se um casal não aparecesse à sua frente e se dirigisse direto a ela:

- Você precisa de ajuda? Quem são estas duas? ‘Essas duas’ a largaram e correram. O casal acompanhou Carolina Helena até a

esquina de sua casa. Provavelmente, anjos. De outra vez Carolina Helena saía do supermercado, virou a esquina no exato

momento em que o homem baleado caía ao chão. Carolina Helena gritou e, ao invés de retroceder, continuou seu caminho pulando por cima do ferido e passando por entre os bandidos, como se um túnel protetor houvesse sido aberto expressamente para ela passar. O fato é que os assaltantes não atiraram nela, e a sirene da viatura já se fazia ouvir.

De outra feita, Carolina Helena se encontrara com a mãe à saída do plantão. A mãe de Carolina Helena trabalhava em um Pronto Socorro e estava a dobrar seu avental quando um pessoal passou correndo e gritando pelo corredor, fugindo aos

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tiros aleatórios de algum maluco. Uma recepcionista entrou e escondeu-se debaixo de uma maca. Carolina Helena inocentemente espiou o homem armado lá fora, até sua perigosa curiosidade ser interrompida pela mãe, que fechou a porta e comentou com a recepcionista:

- Não faz a menor diferença você estar embaixo da maca, bobinha. É melhor empurrarmos o armário para escorar a porta.

No entanto, a polícia já rendera o maluco. - Mãe, era um policial que estava atirando – contou Carolina Helena. Tratava-se realmente de um policial em surto psicótico, reagindo à morte de um

irmão. Carolina Helena não sentira medo. Sentira-se protegida. A presença

reconfortante estava ali. Houve outra ocasião em que Carolina Helena ficou espiando com a mãe, pela

janela da copa, os bandidos que chutavam os carros estacionados no pátio do hospital e xingavam os médicos, até a polícia chegar a acabar com a baixaria.

Mas certamente o mais engraçado acontecera com o primo Paulo. Paulo havia sido assaltado por duas vezes em um mês e estava muito, muito

zangado. Dentro de uma loja de CDs um rapaz bem vestido, de sua idade, o abraçara dizendo em voz alta ‘há quanto tempo’ enquanto lhe enfiava o cano da arma nas costelas. Na semana seguinte, Paulo saía de casa às sete da manhã, rumo à escola, quanto dois outros rapazes de sua idade o renderam com revólver em punho e levaram seu tênis, seu relógio e o dinheiro do lanche.

Bem, Paulo e Carolina Helena iam de ônibus ao cinema, quando um rapaz em frente a eles virou-se e, de modo a não ser visto pelo cobrador, ameaçou os dois com algo apontado por debaixo da camiseta. Paulo perguntou em voz alta:

- Qual é a deste moleque? - Abaixa a voz que é um assalto. Passa a carteira. - Assalto, é? E cadê a arma? O cobrador olhou, Carolina Helena pôs-se a rir nervosamente e o pretenso

assaltante rosnou: - Quer morrer, meu? Não entendeu ainda? - Entendi, sim! Você disse que é um assalto – Paulo agora gritava e todos no

ônibus olhavam para eles – Pois se é um assalto eu quero ver a arma. Mostre a arma! O moleque desenxabido levantou-se e foi para a porta de saída. Alguns

passageiros gritavam. O motorista parou o ônibus e abriu a porta. Paulo correu e empurrou o moleque para fora com quanta raiva sentia. O outro, não esperando tal reação, estatelou-se na calçada. Paulo ainda gritou para os que estavam no ponto:

- Não tenham pena, não, que isto aí é bandido. E sentou-se, muito satisfeito, ao lado da prima: - Agora estou vingado.

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VI Rememorando sua curta existência,, Carolina Helena lembrava-se de que

algumas vezes ouvira estudiosos do comportamento humano afirmarem que violência é sinal de incompetência. Era assim como dizer que bandido é bandido por ser burro, vai ser bandido porque não serve para nada, e este que tentara pegar a carteira de Paulo sem arma nem mesmo para assaltante levava jeito...

Carolina Helena ficou pensando nesta hipótese que fazia sentido, sim. Menino esperto arruma padrinho, arruma trabalho, faz charme e ganha comida. A violência é o último recurso do desespero.

Talvez nem sempre. Deve haver gente que já nasce com o cérebro distorcido. Se não fosse assim, não existiria bandido rico. Rico pode comprar; se rouba é pelo prazer, pela aventura, pelo risco.

Carolina Helena pensou que se houvesse mais clubes de alpinismo, escolas de mágicos e cinemas, haveria menos crimes. Muito cérebro distorcido encontraria seu risco e seu prazer se aventurando em perigosas escaladas ou fazendo esportes radicais. Aqueles que gostam de enganar poderiam saciar seu prazer em mentir fazendo mágicas ou interpretando os mais perigosos papéis sem usar dublês.

Porém, se.é verdade que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, estes criminosos todos não estão nos contando que Deus é um trapaceiro? Violento Ele é, pois provocou o dilúvio, expulsou Lúcifer do céu e Adão do Paraíso, matou os primogênitos dos egípcios....Ele é pelo menos um camarada impaciente.

Como Deus não pode ser mau, pensou Carolina Helena, vai ver que a frase está ao contrário, e o homem é quem criou Deus à sua imagem e semelhança.

Enquanto Carolina Helena assim meditava, lá nas nuvens o Serafim Metatron desabafou:

- É por isso que eu digo que esta mocinha por dentro está uma só confusão. É Deus, é Zeus, são moiras, são anjos, que salada de crenças! E para complicar eu encontrei em seu cérebro esta perigosa crença, lida em um livro de Hermann Hesse chamado Sidarta ‘o oposto de cada verdade é igualmente verdade’.

O Serafim estava conversando com Esculápio, o deus grego da medicina, introspectivo e sério, o tipo do estudioso dedicado, que comentou:

- Nós sabemos que isto é verdade. No fundo tudo é a mesma coisa. Tudo é Ele. Tanto faz.

- É perigoso para os mortais chegarem assim tão próximo à verdade, você sabe. Há um motivo para que Ele se apresentasse de diferentes formas em diferentes épocas e falasse de modo diferente para cada povo.

- Mas, Serafim, se você trouxe esta moça para Epidauro, em meu templo, para um processo de cura, diga-me: porque eu? Ela não estaria melhor nas mãos da Deméter, nos ritos do Êleusis? Afinal, Deméter, a deusa da fertilidade, é a mais feminina das deusas gregas.

- Oh, não, nem me fale nisso, Deméter é Terra demais, protetora demais, brava demais, e esta criatura aqui precisa é de sonhos, de muitos sonhos, de ousadia e muita imaginação.

- Porque ela é assim tão importante? - Porque ela será a primeira mulher a presidir a Nova Ordem Planetária,

organismo que vai substituir a ONU, extinguir as fronteiras e difundir o esperanto. - Estou vendo que este coração tem uma imensa sede de justiça e uma vontade

enorme de celebrar e compartilhar a vida. É por isso, Serafim, que, embora nascida

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no Brasil do século vinte e um, esta garota tem esta inclinação nata para os mitos gregos.

- Como? - Oh, você sabe, nada existe neste planeta que um grego não tenho intuído

antes. - Bah! - O povo grego foi o único a intuir a verdade sobre o Divino. - Explique. - O povo grego sempre deixou um altar em aberto para o deus desconhecido.

No fundo, o povo grego sempre soube que os deuses mitológicos são caminhos dentro do psiquismo humano, mas Ele... Ele é, sempre foi e sempre será O Mistério.

- Vamos voltar para Carolina Helena – resmungou o Serafim, inconformado em partilhar a eternidade com as outras deidades não-cristãs.- Carolina Helena tem muita curiosidade em saber o como das coisas. Talvez fosse bom se a levássemos a algumas reuniões de anjos.

- Ela sempre poderá pensar que foi apenas um sonho, não é? - Isso não me preocupa. Eu até acho bom que ela saiba que existem os parceiros

angelicais, aqueles seres humanos de bom coração que ... pare de bocejar, Esculápio, que coisa feia!

- Esta conversa melosa está me dando sono. Eu prefiro os homens de ação aos homens de contemplação. ‘Quem sabe faz a hora’ como diz aquele brasileiro dez, o Edu Lobo.

- Bem amigo, chegou a hora deste planeta. E esta jovem vai poder fazer uma porção de coisas boas por lá. Depois que você colocar a cabecinha dela em ordem, é claro, e banhá-la nas águas sagradas.

- Viva a Nova Era!

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VII Carolina Helena aproximou-se, curiosíssima, ansiosa para ver como assistir

uma reunião de anjos. Entrou em uma sala grande, com flores, decorada com bom gosto. Uma

melodia de cachoeira e cantos de pássaros, em volume baixo, convidava o corpo a relaxar.

Ela leu, em um quadro branco: “Nosso poder são nossas escolhas”. As pessoas que chegavam tinham idade, sexo, raça e condição social variáveis.

Os anjos presentes, invisíveis para os humanos, formavam um círculo branco de luz em volta da sala, além do qual furiosos pensamentos negros ricocheteavam; só pensamentos coloridos penetravam no espaço reservado à reunião.

As pessoas se abraçavam, riam e conversavam descontraidamente. Os anjos se posicionaram muito compenetrados, um ao lado de cada mortal. O

líder humano da reunião bateu palmas e convidou os outros ao silêncio. Durante a próxima música, que durou aproximadamente três minutos, o grupo fechou os olhos e meditou.

Carolina Helena observou que o círculo de luz se expandiu até abranger todo o quarteirão e a seguir, toda a cidade.

Um anjo tocou o cotovelo de Carolina Helena e ela subiu até poder observar de cima todo o planeta. Centenas de pequenos círculos de luz se expandiam e se interligavam, dando à Terra a aparência de uma renda. O anjo sussurrou:

- Aqui e ali, por toda parte, sementes do bem frutificam. A visão cessou rapidamente e Carolina Helena viu-se de volta à reunião. As pessoas, risonhas, tinham a pele mais macia e luzes rosas cintilavam em

frente a cada coração. A música terminou. Uma das pessoas foi até o centro do círculo e disse: - A mente mente. O coração integra. Vamos então nos integrar ao universo. Aconteceu então um pequeno ritual. Uma pessoa por vez fazia um gesto e dizia

uma frase, sendo imitada pelos outros. A seqüência era mais ou menos assim: - Eu sou Luz – mãos abertas, palmas para cima. - Eu sou Beleza – punhos fechados sobre o peito. - Eu sou meus pensamentos alegres – dedos sobre a fronte. - Minha vontade e a sua vontade são uma só – mãos em posição de oração em

frente ao peito. - Eu sou Vida – mãos sobrepostas sobre o abdome. - Eu sou a Doce Verdade – dedos sobre os lábios. - Uno tudo isso – mãos em prece em frente à testa. - Vivo a partir de meu coração – mãos sobrepostas sobre o coração. - Só vejo o que é Iluminado – dedos sobre os olhos. - E ofereço tudo como meu presente a Deus – braços elevados ao Céu. - E dou todo meu amor ao mundo – o mesmo gesto inicial. Houve uma pausa agradável. Alguns papéis foram distribuídos para todos e uma pessoa disse: - Sabemos que saúde é paz interior. Curar é abandonar o medo. O Agora é o

único instante que existe e por isso é agora que vamos estudar a lição de hoje: Eu nunca estou transtornado pela razão que imagino.

Alguém então leu:

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“Sou tentado a acreditar que estou irritado por causa do que outras pessoas fazem ou por causa das circunstâncias e eventos que parecem estar fora de meu controle. Posso sentir que estou sendo perturbado por raiva, ciúme, depressão e ressentimento. Na verdade, todos estes sentimentos representam uma forma de medo que sinto. Quando reconheço que sempre tenho a escolha entre sentir medo e sentir Amor, estendendo este Amor aos outros, não preciso mais me sentir perturbado por nada”.

Todos os presentes falaram, um de cada vez, sobre o que quiseram, sem ser interrompido por qualquer manifestação. Nenhum elogio. Nenhuma crítica. Nenhum conselho. Um anjo explicou para Carolina Helena que a reunião era isso mesmo – só escutar. Escutar era muito difícil para os seres humanos.

Uma mulher disse que, por muito tempo, sentira raiva do marido até que se perguntou porquê se casara com tal homem. Bem, ela escolhera casar-se com tal homem porque ele tinha algumas coisas boas. Ela resolveu focalizar a sua atenção nestas qualidades e percebeu que ele continuava a ser o rapaz bem humorado e decente com quem ela se casara. Ela estava descontente porque queria muito que ele participasse de alguns projetos como redecorar a casa, fazer pequenas excursões e organizar uma biblioteca para os filhos. Ela pensou e pensou até perceber que nada a impedia de realizar seus projetos, desde que desistisse de exigir a participação do marido. Ela já mudara a decoração da casa, incluindo uma estante no quarto dos filhos. Trabalhava como monitora de escoteiros nos finais de semana, como voluntária e se matriculara em um curso para guia turístico, o que no futuro lhe permitiria ter um emprego mais interessante e mais de acordo com suas preferências. Seu casamento melhorara muito e também seu relacionamento com os filhos.

Um rapaz confessou que passara os últimos dias doente de tanto criticar seu professor de matemática e agora percebia que seu verdadeiro problema era a frustração em aprender, pois tinha sérias deficiências em seu aprendizado básico. Percebia que a solução era estudar desde o primeiro capítulo, com aulas de reforço, pois queria completar o curso com boas notas. Ele admitiu que ficava por muitas horas em frente ao televisor assistindo filmes e jogos, e que pretendia reorganizar seu horário e seu lazer.

Uma jovem criticou virulentamente seus pais. Um velho reclamou estar abandonado pelos filhos. As pessoas escutavam solidariamente, sem retrucar, exceto Carolina Helena,

que, impaciente, interrompeu a reunião para falar tudo o que era óbvio, mas, como ninguém pudesse perceber a presença dela, Carolina Helena voltou a seu lugar, frustradíssima. No entanto, o anjo a seu lado fez um gesto e ela pôde ver, no espaço a sua frente, os pais da moça conversando, gente simples e trabalhadora, sinceramente satisfeitos de terem economizado o suficiente para pagar estudo aos filhos, que agora freqüentavam ambientes refinados e tinham bons empregos. Também pôde ver os filhos do velho, que se revezavam em receber o pai como hóspede em suítes confortáveis e o escutavam com paciência, apesar de terem sido em crianças espancados e privados de coisas básicas porque o pai fora alcoólatra.

Carolina olhou interrogativamente para o anjo, que comentou: - Não é chegado o momento da verdade desses dois. Porém eles chegarão lá,

pois estão procurando o caminho do Bem. O velho já se curou do alcoolismo e a moça já admitiu para o namorado atual que seus pais não sabem ler. Há um ano atrás, ela mentia, dizia ser de outra cidade, ou órfã, coisas assim.

A troca de experiências terminou quando a dona da casa disse:

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- O mundo hoje está um caos. Uma porção de coisas erradas por todo canto. Quando os pensamentos ruins ameaçam invadir meu coração com tristeza, ciúme, medo e outras porcarias, eu me lembro de que posso fazer escolhas. Eu poderia ver paz em ver disso. Eu poderia ver amor em vez disso. Escolho ver soluções em vez de problemas e sigo fazendo a minha parte. O resto é com Deus.

As pessoas se abraçaram em demonstração de apoio, alguém sugeriu uma canção alegra, todos cantaram batendo palmas, rindo, a seguir se abraçaram em despedida e se foram.

Carolina Helena admirou-se: - Então é assim que vocês, anjos, melhoram o planeta? - Não – responderam eles – É assim que vocês, humanos, melhoram o planeta.

Os anjos só aparecem quando são chamados e permanecem por aqui vibrando Amor. Um dos anjos provocou Carolina Helena: - O que você imaginava? Discurso? Música de harpas? - Não é muito religioso, não é? – comentou a moça. - Você sabe muito bem que a religião não é importante. A religião foi criada

pelos homens e na maioria das vezes só atrapalha. Carolina Helena pensou um momento e respondeu: - Alguém deveria acrescentar no Gênesis: “E o homem inventou a religião e

não percebeu que era uma coisa ruim, que fomentava fanatismos e guerras. Jesus então desceu e avisou: è bastante simples: amai-vos uns aos outros. E vinte séculos mais tarde a Humanidade começou a pensar a respeito. É burrinha, a Humanidade...

- Há outros caminhos para a espiritualidade – lembrou um dos anjos – A arte, por exemplo.

- Nem tudo o que é arte me agrada - Carolina Helena torceu o nariz – E tem coisa que nem é feita com boa intenção, mesmo.

- A Arte, com A maiúsculo, Carolina Helena, não falo de arte ‘travessura’. Arte

é sempre Beleza. O difícil de conversar com vocês, seres humanos, é que estão sempre do contra, procurando as exceções e se perdendo em significados paralelos. Arte...

- A arte! Sabe, anjo, que eu viajei para a Rússia e ainda não vi o balé Bolschoi? Este, sim é Arte de primeira, com A maiúsculo, como você disse. Posso ir agora? Eu tenho ingressos para hoje à noite.

- É claro. Vou deixar você com Ahasveurs, que, no momento está um pouco entediado, e você melhora muito o mau humor deste velho mortal .

E Carolina Helena viu-se agasalhada, penteada e maquiada, em meio a pessoas elegantemente vestidas, ao lado de Ahasverus, com seus convites à mão.

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VIII

O balé Bolschoi era simplesmente magnífico. Carolina Helena estava em

estado de graça quando saiu da apresentação. A moça contemplou a neve e as estrelas do Norte sentindo-se plena. Aquela era

uma noite perfeita, em que o mundo parecia ser, como ela lera em um dos evangelhos apócrifos, o reino do Pai, que se estende por toda parte e os homens não vêem.

Foi então que Ahasverus surgiu, enorme em seu pesado capote de peles sintéticas, e intimou-a a ir tomar uma sopa quente.

- Quero voltar a meu quarto e aquecer-me, pois este frio é cruel. - Logo estará tão quente no prédio da universidade que é o calor que parecerá

cruel. - Que quer dizer com isso, Ahasverus? - Hoje é vinte e três de novembro de 2003. Você não deve voltar ao alojamento

hoje. Vai haver um incêndio na Universidade Patrice Lumumba. O fogo começará no segundo andar, no quarto de três estudantes africanas. Muitos alunos ficarão feridos, alguns vão morrer. Você fica comigo.

Carolina correu para os colegas e contou a eles sobre o incêndio: - Avisem a todo mundo e esvaziem o prédio. Os outros riram e a chamaram de louca, cigana, bêbeda. Frustrada, Carolina

Helena chorou. Ahasverus entrou em um restaurante e pediu mesa para dois, no canto, próximo

à lareira. Carolina Helena enxugou as lágrimas no guardanapo: - Meus amigos vão morrer? - Não. Três deles ficarão queimados, com ferimentos leves. Eles vão pular do

fogo para a neve, levar um tremendo susto, mas vão viver. - De que adianta saber o futuro se ninguém acredita no profeta? Ahasverus deu de ombros: - De minha parte, acho as profecias completamente inúteis. O coitado do

profeta tem lá suas visões, sofre, é chamado de louco e a tragédia acontece exatinho como estava previsto, sem que mude uma só vírgula. Até mesmo nos sonhos proféticos de José, o faraó não escutou as profecias para salvar o povo da fome, sim para glorificar José e seu deus Jeová.

- Neste caso eu não deveria estar aqui. - Você está aqui porque seu nome não consta da lista dos mortos ou feridos. Uma fumegante porção de borsh chegou e Carolina Helena provou-a

distraidamente. - Então terei de passar a noite aqui com você. - Isto não é muito polido de sua parte. Do jeito como você fala, eu me sinto um

velho urso encapotado. - Você é um velho encapotado e para urso nem faltam os pêlos. E quando o

restaurante fechar, nós nos sentaremos em um banco na praça e nos tornaremos personagens de Noites Brancas.

- Menos, Carolina. Eu não pretendo me apaixonar por você. - É bom mesmo, porque já há muitos rapazes apaixonados por mim. Carolina Helena começou a tagarelar alegremente sobre seus amigos e sua

faculdade.

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- Um brinde – propôs Ahasverus –Ao início da Nova Era e ao fim de meu suplício.

- Como assim? Você vai morrer? - Não hoje – sorriu o judeu – À meia-noite volto a ser um mortal e recomeço a

envelhecer. Você não me verá mais. O mundo está menos violento, as vibrações de amor do planeta aumentam em proporção geométrica e os anjos do céu em breve poderão voltar a suas harpas.

- Que chatice! Tomar conta de mim e de todos os outros jovens com certeza terá sido mais emocionante.

- E mais cansativo também. Talvez eles convençam Deus a criar um novo Éden, com direito a serpente, pecado original e alguns diabos à solta, para aliviar o tédio.

Carolina Helena olhou o companheiro com simpatia. Ele tinha senso de humor. Ao saírem do restaurante, apesar de aquecidos pela vodca, o vento gelado veio

lembrar que esta era uma madrugada russa. A continuar a andar, Carolina Helena viu o amigo partir. Seu vulto ficou

pequenino e desapareceu em uma esquina. Carolina Helena queria andar, mas estava entorpecida. Sabia que tinha de se

mexer para não congelar. Seus óculos de neve haviam ficado no seu quarto e ela sentia-se cansada e com sono. Muito sono...

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IX Em seu torpor Carolina Helena sentia-se enregelada e parecia-lhe que estava

também agasalhada e protegida. Uma curiosa sensação, tal como oscilar em um túnel turbilhonante de neve, estreito e sombrio.

O corpo de Carolina, muito leve, oscilava na mesma enregelante e excitante leveza dos teleféricos das montanhas.

E uma sucessão de imagens pipocava ao redor dela, como se todas as coisas importantes de sua vida, seus mais caros afetos e crenças, as idéias mais mirabolante, revolucionárias e divertidas, estivessem a ser consultadas com urgência e processadas velozmente, em uma faxina mental inusitada.

Carolina Helena queria conservar todas estas riquíssimas memórias, então simplesmente relaxou, de olhos fechados, imaginando um livro que se escrevia, se fechava e se catalogava automaticamente em sua biblioteca mental. Era dessa forma que ela lidava com as imagens hipnagógicas – aquelas confusas impressões entre o sono e o despertar- tão frágeis mas tão essenciais aos artistas e pensadores de todos os tempos.

Os ruídos do mundo exterior aos poucos invadiu seu universo mental. Um desconforto, quase dor, alastrou-se por suas costas até a nuca.

Então, Carolina escutou uma voz conhecida dizer com alegria: - Enfermeira, corra aqui! Ela está acordando! Carolina Helena sentou-se na cama de uma só vez, totalmente desperta e alerta.

Era a voz do príncipe Ali, do Kweit. O rapaz segurava as mãos dela com carinho e beijou-a com uma paixão nem

um pouquinho fraterna. - Alah seja louvado! Carolina Helena está viva! Quente como uma labareda, Carolina Helena lembrou-se. Do incêndio, do

pânico, da fuga. Quando o fogo começou, ela estava no alojamento árabe jantando com Ali.

Com a facilidade de esquecer todas as coisas ruins que lhe aconteciam, Carolina Helena olhou para o gracioso diamante azul que cintilava em sua mão direita e gargalhou. As boas lembranças começaram a fluir.

Ela lembrou-se do dia em que chegara a Moscou. Estavam descarregando a bagagem, no saguão de entrada da universidade e, com a espontaneidade que lhe era natural, Carolina Helena estava brincando com suas amigas de dizer uma lista de coisas que jamais fariam na vida.

- Uma coisa que eu jamais faria na vida é casar-me com um árabe! Quando Carolina Helena disse isto, em alto e bom som, o príncipe Ali chegava

com sua comitiva. Ele a chamou: - Você aí, garota. Repita o que disse. - Eu não me casaria com um árabe por dinheiro nenhum deste mundo! Ele sorriu de uma maneira encantadora e disse com meiguice: - Espero que você cumpra o que disse. Ela ficou desconcertada, cônscia de ter sido grosseira e politicamente incorreta: - Você espera que eu não me case com um árabe? - Eu espero que você se case comigo, mas espero que não se case comigo pelo

meu dinheiro. Muitas vozes gargalharam ao redor. O príncipe retirou-se depois de uma

elegante e irônico salamaleque e Carolina Helena cumprimentou-se pelo extraordinário talento de colocar-se em situações ridículas.

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O congresso começara, os jovens se enturmaram e Carolina Helena teve muitas oportunidades de conversar com Ali.

Ele não se mostrava zangado com ela. Não se aborrecera por sua desastrada declaração. Ao contrário, ria-se da total ignorância ocidental frente aos assuntos árabes.

- Mohamed, o profeta, declara no Corão que mulheres e homens tem as mesmas capacidades, os mesmos direitos e os mesmos deveres. – explicava ele.

Carolina Helena descobriu que Ali conhecia toda a obra de Simone de Beauvoir, admirava Platão e declamava Shakespeare com a eloqüência de um Laurence Olivier. Quando ele discorria sobre política, Carolina Helena descobriu que ele pensava como ela, idealizando a convivência entre os povos, cimentada no respeito e na tolerância pela diversidade que enriquecia a cultura do planeta.

Pouco antes de o incêndio começar, Ali pedira Carolina Helena em casamento. - Com a condição de você não botar nenhuma outra esposa em sua vida que sou

latina, possessiva e muito ciumenta. O rapaz rira e depois respondera: - “Eu apreciava o canto dos pássaros, mas agora, como posso ouvir os pássaros

cantarem, agora que ouvi tua voz? Ó minha amada, eu cultivava rosas em meu jardim; como posso agora apreciar o perfume das rosas, agora que senti o teu perfume, meu amor?”

Esta era uma tradução livre de um dos mais belos poemas árabes que Carolina Helena já lera. Comovida, ela sentiu que lhe vinham lágrimas aos olhos.

Ali estava diante dela, seu noivo amado, e Carolina Helena o aceitara pela sua filosofia de vida, pelos seus ideais, pela sua cultura, inteligência e bom humor.

Os dois jovens tinham muitas afinidades, é verdade; no entanto, para ser absolutamente sincera consigo mesma, Carolina Helena admitia – e isto a fazia corar violentamente – que se apaixonara por Ali pelo mais fútil dos motivos.

O príncipe Ali era um homem bonito.

FIM