a face do morto atual · À forma literária de dizer parte destas histórias é o que pode-mos...

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ELENILDO PEREIRA

A FACE DO MORTOE OUTROS CONTOS

2005

CapaRICARDO BERTOLDO

Ilustração da CapaENOQUE

Ilustrações InternasRILDO BEZERRA

ENOQUE

RevisãoROSENÁLIA CARVALHO

ANDRÉA ALVES

Copyriht by Elenildo PereiraA Face do Morto e Outros Contos

BIBLIOTECÁRIA: NELMA CARVALHO - CRB-5/1351

Pereira, Elenildo

P436f A face do morto e outros contos / Elenildo Pereira. -- Aracaju – SE: Textopronto, 2005.

140 p. : il. Inclui prefácio do jornalista e poeta Jozailto Lima. Inclui biografia do autor na orelha da obra. Inclui comentário do Jornal Cinform na orelha da obra.

1. Literatura brasileira – Contos. 2. Literatura sergipana. I. Título. CDU 821.134.3(817.3)-34

Para Eva Vilma,com amor, garantindo ser oautor um pouco menos loucoque suas estórias

PREFÁCIOA face (viva) dos mortos - Jozailto Lima *

Não há como negar que a narrativa literária curta exerce sobreos humanos um fascínio desmedido. Há nela um segredar rápido,eficaz e, quando bem feito, com todos os condimentos que alguémnecessita para se animar diante do narrado. Não há povo, emqualquer parte do mundo, que não preserve em sua fala oral, ou naescrita, causos nascidos de suas vivências, de suas memórias,ou de sua mais funda invencionice. É como se a necessidade decontar um caso fizesse parte visceral do ato de existir. E faz.

À forma literária de dizer parte destas histórias é o que pode-mos chamar de conto, uma modalidade que ganha sempre maisespaço na produção de escritores e na linha editorial do mundointeiro. Ele se difere do romance, do poema, do teatro e da novela.E se difere muito, e por vários aspectos. Segundo Luzia de MariaReis, esta modalidade pode se apresentar em diversas anatomi-as - “como forma simples, expressão do maravilhoso, linguagemque fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitido de gera-ções a gerações’ com ‘o conto adquirindo uma formulação artísti-ca, literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem parao universo do estilo individual de um certo escritor”. (Em ‘O que é oconto’. São Paulo: Brasiliense, 1987, página 10’.)

Neste ‘A Face do Morto’, que o leitor tem em mãos, primeiraviagem do jovem autor Elenildo Pereira, há um pouco de tudo isso,naturalmente resvalando ‘do domínio coletivo da linguagem para ouniverso do estilo individual’ deste escritor. Elenildo Pereira, 37anos, é um sergipano de São Cristóvão e estudante de Letras daUniversidade Federal de Sergipe, que busca dar um pouco de suor,talento e emoção às letras através dos 14 contos que enfeixa nestasua primeira obra.

Numa análise precisa, e sem muita exigência, Elenildo Pereiraé um contista que promete. Sabe conceber a história, sabe condu-zi-la até o final e, o que é mais importante, sabe preenchê-la deexpectativa, apesar de prenunciar um pouco as surpresas. O quemais chama atenção no livro deste jovem estreante vem logo en-trevisto no título ‘A Face do Morto’: são 14 contos calcados na tal da‘indesejada das gentes’. Morrer, quem não há de?

Mas não pense o leitor que, pelo fato de ter a morte - o fim detudo - como começo de sua carreira literária, Elenildo Pereira ve-nha para assombrar, se travestindo num coveiro geral, num es-pantoso Zé do Caixão e afastando leitores. Muito pelo contrário. Aofalar de morte, seus 14 contos nos premiam – nalguns momentoscom muita magia – com o significado da vida.

Peguemos o que dá título ao livro. É a história – providencial-mente passada em 1897, uma espécie de Idade Média ainda parao Brasil – na qual o farmacêutico Afanásio – sugestivo nome – quer

afanar a vida de Justino Sávio, seu sócio majoritário e sem herdei-ros, para ficar com os 60% da parte que ele tem na ‘botica’. O quese tem é a ‘morte’ dos dois, bem tecida do ponto de vista da litera-tura, e a dizer abertamente - e este é um dos defeitos de Elenildo –que a avareza não vale a pena.

Mas por que dizer as coisas abertamente pode ser considera-do um dos defeitos de Elenildo Pereira? Porque em alguns mo-mentos sua ânsia ética é tão à flor de pele que ele priva o leitordaquele ‘além do dito, para a descoberta de um sentido do não-dito’ que deve estar implícito no conto.

A arte do conto moderno exige uma história dentro da outra,mas entredita, que prenda e conduza o leitor ao espante final.Elenildo tem ‘a virtude defeituosa’ de facilitar as coisas para o leitor– aliás, defeito no qual eu também incorro ao justificar-me em cadapoema que escrevo. Mas se é assim que ele e eu sabemos fazer,paciência.

Um prefácio que se preze deve preservar o autor do livro e osseus eventuais leitores - espero que Elenildo Pereira venha a tê-los em abundância - de detalhes maiores das histórias que vãoser lidas. Dizer tudo é como contar final de filme. Digo apenas quehá 14 motivos para ler este livro – e isto é marcante, numa quadraonde muitos publicam livros que não nos convidam à leitura. Mascomo ocorre em todas as publicações, há contos que chamammais a atenção que outros – não que os demais sejam desmere-cedores de leitura.

Portanto, não me recuso a mencionar ‘Seiva e Sangue’, queabre a coletânea. Nele, Elenildo Pereira consegue momentos ex-celentes, que o elevam à aproximação dos melhores feitos da lite-ratura fantástica dos hermanos de América Latina, como Borges,Cortazar ou até Gabriel García Marques. ‘Os Dois Faróis de Taba’,‘Um Sorriso de Mãe’ e o excelente ‘Ódio de Pássaros’ são momen-tos altíssismos, que valem pelo todo.

Como Elenildo Pereira promete, é muito dedicado, estuda aárea, creio que vai descobrir novos caminhos e se encaixar melhorna anatomia do conto. Deixar apenas entrevisto até o fim, e nadúvida, o que vai acontecer, é algo que deve lhe socorrer, paradissipar nele aquela tal ‘virtude defeituosa de facilitar para o leitor’.Este, na verdade, quer ser enredado pela surpresa, e só contem-plado no final. Creio também que seus leitores terão dele visõesmais duras e menos tenras e dóceis no futuro. Para isso, lê osmestres já pode ser uma providencial mão na roda. E para come-çar, Antônio Carlos Viana, com seu ‘Aberto está o inferno’ e nenhu-ma concessão, é uma pedida sob medida.

* Jozailto Lima é jornalista e poeta, autor de três publicados, omais recente ‘Retrato Diverso’, vencedor do Santo Souza de 2003pela Secretaria de Estado da Cultura.

SUMÁRIO

Seiva e Sangue .........................................................Um Sorriso de Mãe .................................................Flores de Deus .........................................................A Face do Morto .....................................................Os Dois Faróis de Taba ............................................Dormir para Sempre ................................................Ilhado ......................................................................Servir com Doçura ..................................................O Fantasma da Casa 666 .........................................Sem Inspiração ........................................................Ódio de Pássaros .....................................................Desvendando Mistérios ...........................................Dúvida Eterna .........................................................Fidelidade Canina ....................................................

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SEIVA E SANGUE

— Viva a vida! Viva a vida!Por mais que estivesse distraído ou apressado

para chegar ao trabalho, não conseguia vedar osouvidos àquele brado que me guiava os olhos nadireção de João do Grito. Todas as manhãs, aopassar pela praça da matriz, era impossível nãofitar a angustiante imagem daquele homem. Suaenorme barba e o aspecto imundo de suas rou-pas denunciavam o abandono em que vivia e cau-savam asco aos que por ali transitavam. Dia apósdia, lá estava ele, embaixo do grande tamarindei-ro. Nutria pelo gigantesco vegetal muito carinhoe era dele uma espécie de guardião, não deixandoque ninguém se aproximasse. Abraçava-se demo-radamente ao seu tronco e, como se retribuísseaos carinhos, a árvore, numa flagrante cumplici-dade, deixava cair folhas e frutos no chão da pra-ça; era a principal fonte de alimento daquele infe-liz. João do Grito devorava as folhas e os frutos,de sabor ácido, como se fossem a maior das ma-

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Elenildo Pereira

ravilhas culinárias. Deixava que um sorriso de sa-tisfação tomasse conta do seu rosto para, logoem seguida, fazer ecoar seu berro.

Aquele “viva a vida!”, que lhe rendera o apeli-do, soava irônico aos ouvidos de quem miravaaquela criatura em farrapos. Qual o seu verdadei-ro nome? Nunca soube. O pouco que conheci desua história pregressa, ouvi numa conversa nabanca de jornal. Relatava que aquele homem foraum respeitado engenheiro agrônomo, professoruniversitário que, num momento trágico de suavida, perdera esposa e filhos num acidente aéreo.Depois do triste episódio, nunca mais foi o mes-mo. Deixou de interagir com as pessoas, seu vo-cabulário reduziu-se à frase que feria os ouvidosdos que passavam pela praça da matriz. Passou aviver só e miseravelmente. O tamarindeiro pare-cia emprestar-lhe a única raiz que ainda o ligavaao mundo. Porém, a vida de João do Grito pare-cia mesmo predestinada ao infortúnio. Visando aconstrução de uma quadra de esportes, a prefei-tura resolveu derrubar algumas árvores da praçae, entre elas, constava o grande tamarindeiro.

Foi uma tarde de horror aquela em que ocorreuo corte. Não me sai da cabeça o estado de deses-pero que tomou conta de João do Grito. Trans-tornado, agarrou-se ao tronco da árvore, na ten-

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tativa de impedir a morte do seu amigo vegetal.Tornou-se violento, passando a agredir os funci-onários da prefeitura. Numa última tentativa, su-biu até o galho mais alto, de onde parecia dispos-to a não sair. Chamaram o Corpo de Bombeiros.Foi preciso muito trabalho e a força de quatrohomens para colhê-lo do alto da copa, urrandoalucinadamente. Aplicaram-lhe um sedativo e ocolocaram numa camisa de força, conduzindo-o,em seguida, para o manicômio da cidade. O fatomais estranho desse ocorrido ainda estaria poracontecer. Livres do inconveniente João do Gri-to, os homens da prefeitura começaram o massa-

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cre ao tamarindeiro. Todos os que estavam napraça presenciaram, perplexos, o chão ser inun-dado por um vermelho intenso. A cada golpe demachado, fortes esguichos encarnavam o solo eo fardamento dos trabalhadores, dando-lhes oaspecto de açougueiros que acabaram de abaterum animal de grande porte. No dia seguinte, umanotícia intrigante no jornal deixaria a todos bo-quiabertos. Um certo paciente, conhecido comoJoão do Grito, havia desaparecido inexplicavelmen-te do hospício. Os médicos afirmaram ter coloca-do o insano numa cela individual, devidamentevestido numa camisa de força. A princípio, seusurros eram ouvidos por todo o manicômio. Emseguida, um longo período de silêncio transcor-reu. Preocupados, os enfermeiros foram até a cela,de onde afirmavam ser impossível alguém fugir.Ficaram impressionados ao abrir a porta e nãoencontrar João do Grito. Na cela, muitas folhasverdes pelo chão e uma camisa de força enchar-cada de seiva.

Na praça da matriz, a quadra de esportes foiconstruída, mas se mantém sem uso. Assustados,os que tentam utilizá-la afirmam ser comum ou-vir-se um “viva a vida!”, em alto e bom som, eco-ar do alto das árvores. Por diversas vezes, tam-bém tenho a impressão de ouvir esse grito.

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UM SORRISO DE MÃE

Letícia acordou muito cedo e, como fazia to-das as manhãs, correu para o quarto de sua mãe.Levava no coração a esperança de que algo tives-se mudado. Naquela manhã, especialmente, suaesperança parecia maior. O curto intervalo de tem-po gasto no corredor, até chegar ao leito de Sole-ne, era suficiente para que ela fizesse uma súplica:Senhor, meu Deus, mesmo sendo hoje meu ani-versário, peço-Te o mesmo presente que costu-mo pedir todos os dias; o único que realmentedesejo: eu quero um sorriso de minha mãe. Peçoque ela acorde brilhando como o sol, o Sol deSolene, e me lance um raio de luz em forma deum lindo sorriso, amém!

— Bom dia, mamãe!Solene continuava ali, deitada na cama, imóvel.

Vinha da fraca respiração o único som que emi-tia, o único sinal de vida. Estava assim desde odia que dera à luz Letícia, há exatamente 10 anos.

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Vítima de erro médico, sofrera uma reação alérgi-ca à anestesia, entrando em estado de coma pro-fundo. Passou dois anos internada. Os médicosnão davam esperanças. Segundo eles, é muito di-fícil alguém retornar ao estado normal depois detanto tempo ausente. Assim, acharam melhor queSolene fosse tratada em casa, recebendo amor ecuidados da família. Os últimos oito anos passaraali, naquela cama, sendo cuidada pela mãe Euláliae pela pequena Letícia que, apesar de saber detoda a história que envolveu seu nascimento, nãose sentia culpada pelo ocorrido. Costumava dizerque sua mãe só estava dormindo e, a qualquerhora, iria despertar. Recebera de sua avó Euláliauma educação baseada no amor e na religiosida-de. A fé de Letícia era inabalável. Apesar de nãoreceber, logo pela manhã, o presente de aniversá-rio tão almejado, agradeceu ao Senhor. Acredita-va na sabedoria divina e tinha certeza de que, aqualquer momento, seria agraciada com o tão so-nhado sorriso de mãe. O dia é longo e está sócomeçando. Quem sabe o que pode aconteceraté chegar a noite? – pensava.

Desceu a escada e, na cozinha, sobre a mesa,Letícia encontrou um pequeno bilhete de sua avódando-lhe parabéns pelo dia e, ao mesmo tempo,pedindo desculpas por não estar presente no

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momento. Tinha saído, como fazia todas as ma-nhãs, antes mesmo de o sol nascer e só voltariano final da tarde. Não podia se dar ao luxo defaltar ao expediente em sua pequena loja de do-ces, mesmo sendo aniversário de sua única e ama-da neta. Os negócios não iam muito bem e apobre senhora precisava manter a casa e o trata-mento da filha. As despesas com sessões de fisio-terapia e medicamentos eram muitas e consumi-am todo o lucro dos doces de dona Eulália. Nemmesmo o pai de Letícia as ajudava, afastou-se logodepois do incidente com Solene. Em sua igno-rância, culpava a pobre criança. Não quis sequerolhar para a filha recém-nascida, abandonando-a.Casou-se novamente e sumiu no mundo sem dei-xar pistas.

O coma, ao tempo que escravizava Solene aoleito, prendia a pequena Letícia à casa. Enquantodona Eulália trabalhava na loja de doces, ela cui-dava da mãe e dos serviços domésticos. Era umarotina muito dura para uma criança. Por tudo isso,já passara da idade de entrar na escola. Tudo queaprendera até o momento fora ensinado pela avóque, mesmo cansada da jornada de trabalho, nuncaia dormir sem antes dar aulas e conselhos à pe-quena neta. Dentre os conselhos de dona Eulália

Um Sorriso de Mãe

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um, em especial, era repetido com veemência to-das as noites:

— Nunca deixe estranhos entrar na casa du-rante minha ausência.

A obediente criança seguia rigorosamente osconselhos da avó e, mesmo vivendo num regimede semi-escravidão, sem fazer amizades com ou-tras crianças, tinha um aspecto muito feliz. Gos-tava de cuidar da mãe e por ela, somente por ela,praticava, diariamente, um ato que consideravaerrado: todas as manhãs, aproveitando um bura-co feito na cerca e a ausência de moradores, pas-sava para o quintal da casa vizinha; colhia lindasrosas e enfeitava todo o quarto de Solene. Dessa

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forma conseguia encher de perfume e vida aqueleespaço da casa que, quase sempre, emanava umintenso cheiro de morte. Para que seu deslize nãofosse descoberto pela avó, recolhia todas as rosasdo quarto, ao por do sol, e as enterrava no fundodo quintal. Porém, justamente no dia do seu 10ºaniversário, viu-se na iminência de ser descober-ta. Após já haver ultrapassado o buraco na cercae colhido um grande número de rosas, dirigia-sede volta ao seu quintal quando percebeu que, dajanela dos fundos da casa vizinha, uma mulher aobservava. Ficou apavorada e, rapidamente, cor-reu para dentro de casa, deixando que as florescaíssem e se espalhassem pelo chão. Como podeser? A casa estava vazia há tanto tempo e eu nãopercebi nenhum movimento ou som de mudan-ça. E agora? Aquela mulher certamente vai revelara minha avó que eu invadi o quintal alheio. Preci-so fazer alguma coisa. Depois de muito pensar,decidiu que o melhor a fazer era ir até a casa vizi-nha e tentar, de alguma maneira, se desculpar.Acreditava que poderia contornar a situação, evi-tando que sua avó tomasse conhecimento doocorrido. Não suportava a idéia de contrariá-la.Assim, partiu decidida em direção à casa vizinha.Ao chegar no portão da frente, notou que a velhae conhecida placa de “aluga-se”, desgastada pelo

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tempo, continuava lá, plantada na grama alta emal cuidada. Tenho certeza que vi aquela mulher.Por que será então que essa placa continua aí?Vestida de saias daquele jeito não pode ser o se-nhor Osmar, o proprietário. Muito menos a es-posa dele que, segundo a minha avó, falecera háquase quinze anos. Será que o senhor Osmar ven-deu a casa? Só tem um jeito de ficar sabendo.Trimmm, trimmm... Uma senhora muito simpá-tica abriu a porta com um belo sorriso no rosto e,para a surpresa de Letícia, trazia nas mãos umlindo buquê de rosas. Aquela imagem deixou amenina apreensiva. Um frio estranho percorreusua coluna, arrepiando-lhe os pêlos da nuca. Porum momento ficou imóvel a observar aquela mu-lher, não conseguia lembrar de onde, mas tinha aimpressão de conhecê-la. Trêmula e quase semvoz, dirigiu-se a ela:

— Bom dia, senhora!— Bom dia, querida! Pode me chamar de Ivna.

Em que posso ajudar essa linda mocinha?Com o tom amistoso embutido na voz macia

e agradável da senhora a sua frente, Letícia, numafração de segundo, sentiu-se mais à vontade pararelatar o motivo de estar ali. Falou do constrangi-mento em ter sido flagrada colhendo flores quenão lhe pertenciam e do receio que sua avó ficas-

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se sabendo de tudo que ocorrera. Não suportariadar tamanho desgosto. Porém, antes mesmo deter tempo de pedir desculpas, com um sorriso ain-da mais generoso, Ivna estendeu os braços ofere-cendo à criança o buquê que trazia nas mãos.

— Aqui estão, querida, as rosas são suas; tenhocerteza de que você tem um bom motivo para terfeito o que fez. Afinal, vim aqui só conhecer estacasa, pois pretendo comprá-la. Fique tranqüila, nãocontarei nada a sua avó. Esse passa a ser o nossosegredo.

A feição apreensiva de Letícia desfez-se com-pletamente, diluiu-se num suspiro aliviado. Pas-sou a conversar com Ivna como se amigas ínti-mas fossem. Confessou que, há muito tempo, ti-nha o hábito de colher aquelas rosas e com elasenfeitar o quarto da sua querida mãe. Revelou aIvna a situação em que se encontrava Solene. Porfim, prometeu que, daquele dia em diante, nuncamais voltaria a entrar no jardim dos fundos dacasa. Ouvindo essas palavras, Ivna, num movi-mento suave, virou-se para Letícia e olhou-a fixa-mente nos olhos, falando com voz aveludada:

— Eu sei, querida! Eu sei!Continuaram a conversar e trocar confissões,

nem se davam conta do tempo que passava rapi-damente. Letícia falou do seu aniversário e de

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como gostaria de receber um sorriso de sua mãenaquele dia. Pelo brilho no olhar, quando falavade Solene, não era difícil perceber quão imensoera o amor que a criança sentia pela mãe. Comose fossem espelhos, os olhos de Ivna refletiam omesmo terno e úmido brilho. A emoção pareciatomar conta das duas com a mesma intensidade.Letícia fora conquistada rápido e apaixonadamen-te por Ivna. Gostaria que ela conhecesse minhamãe, mas Vó Eulália certamente desaprovaria.Tomadas pela emoção do diálogo, sorriam comos olhos mareados. Afagando a pequena mão deLetícia e sempre a olhando no fundo dos olhos,Ivna demonstrava carinho e atenção imensos.

— Que tal se formos até sua casa? Fazemosum lindo bolo e aproveitamos para que me apre-sente Solene. Comemoramos as três, juntas, o seuaniversário. E, quem sabe, posso até lhe dar ummaravilhoso presente.

Ao ouvir a proposta, Letícia ficou realmentetentada. Não era essa a minha vontade? Seriamaravilhoso! Mas, como posso desapontar mi-nha avó? Não, não posso fazer isso! E se eu pe-disse a Ivna para guardar mais esse segredo? Nãovejo nada de errado. Que mal essa senhora tãobondosa poderia fazer a mim e a minha mãe?Rendeu-se, então, à proposta.

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— Vamos agora mesmo fazer um deliciosobolo de chocolate!

Partiram as duas, de mãos dadas. Ao chegar àporta da frente, Letícia ainda pensou no conselhodiário de sua avó Eulália. Porém, fixando os olhosno lindo sorriso de Ivna, sentiu-se muito segura.Retirou do bolso a chave colocando-a na fecha-dura e, com dois giros rápidos, abriu passagem,pela primeira vez em sua vida, para que alguém,além de sua avó, entrasse na casa. Nem mesmo omédico de Solene entrava lá, na ausência de donaEulália. Passaram para o corredor e, enquanto an-davam, Ivna observava tudo atentamente. De-morava-se a olhar os quadros e porta-retratos queencontrava. Tomou nas mãos um deles e, parasurpresa de Letícia, deixou escapar dos lábios umnome de mulher acompanhado de uma lágrima:

— Solene!— Como a senhora sabe?— Eu sei, querida! Eu sei! Reconheço nessa

foto a descrição que você me deu da sua mãe. Sópode ser ela. É realmente linda como você disse.

— É sim, mamãe é linda! Prometo que a leva-rei até lá em cima para conhecê-la pessoalmente.Mas só depois que fizermos o meu bolo. Estábem?

— Claro, querida!

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Juntaram todos os ingredientes e, após algunsminutos no forno, o bolo estava pronto – Ficoulindo! – sorriam, radiantes de satisfação. Chegaraa hora de Ivna conhecer Solene. Letícia sentia emsua mão a umidade e tremor dos dedos de Ivna.Será que ela está com medo de mamãe? Chega-ram ao quarto e, como era de se esperar, lá estavaSolene: semblante sereno, parecia, realmente, sóestar dormindo. Ivna, com os olhos cheios delágrimas, pegou carinhosamente a sua mão.

— Olá, querida! Finalmente!Ivna debruçou-se sobre Solene num carinhoso

abraço. Um aconchegante clima de paz reinou portodo o quarto que, naquele momento, exalava umsaboroso perfume de flores, um aroma puro, livredo cheiro mórbido de outros dias. Com a vozembargada, Ivna pediu que Letícia fosse até a co-zinha e lhe trouxesse um copo com água. A me-nina prontamente desceu as escadas deixando asduas a sós. Voltou trazendo, numa pequena ban-deja, o copo com água solicitado. Antes mesmode chegar à porta do quarto, ouviu a voz de Ivnasussurrar baixinho algumas palavras, porém nãoconseguiu decifrá-las. Achou estranho, mas ficourealmente atônita, a ponto de deixar que a ban-deja caísse das mãos quando, respondendo às pa-

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lavras indecifradas de Ivna, outra voz femininaclaramente chegou aos seus ouvidos:

— Eu sei, querida! Eu sei!Letícia ficou pasmada diante da cena: Solene,

de olhos abertos, conversava com Ivna, seguran-do em sua mão. Uma enorme alegria tomou con-ta do coração da menina. Emocionada, quase nãoconseguia se mover. Obrigada, Senhor! Mamãeestá de volta! Notando a menina paralisada, Ivnafoi até ela e pegou-a pela mão, aproximando-a deSolene.

— Veja, querida, esta linda mocinha é Letícia,sua filha!

— Eu sei, querida! Eu sei!E, com um sorriso ainda mais lindo, Solene deu

um forte abraço na filha. As lágrimas e sorrisosencheram todo o quarto. O momento tão aguar-dado por Letícia finalmente chegara.

— Obrigada, Ivna! Hoje é o dia mais feliz daminha vida. Você trouxe minha mãe de volta.

— Não, Letícia, não fui eu! Deus atendeu o seupedido e nos deu esse presente maravilhoso. Asua fé colocou esse lindo sorriso no rosto de Sole-ne, proporcionando grande felicidade para todosnós. Portanto, não me agradeça, mas me prome-ta uma coisa: aconteça o que acontecer, hoje vocênão vai ficar triste.

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— Eu prometo, Ivna! É claro que prometo!Como poderia ficar triste, logo hoje, o dia em querecebi o melhor presente da minha vida: um sor-riso da minha mãe?

Letícia não se continha de tanta felicidade. Issosó pode ser um milagre! Solene, por sua vez, erasó sorrisos. Trocavam carinhos e confissões to-madas de muita emoção quando, de repente, sãointerrompidas pelo som da campainha.

— Vó Eulália chegou! E agora? Ela vai encon-trar Ivna aqui dentro. Ivna! Ivna!

Antes de atender a porta, Letícia saiu à procurade Ivna. Olhou por toda a casa e não a encon-trou. Onde será que ela está? Como saiu assim,sem que percebêssemos, sem se despedir? Só meresta então abrir a porta para a vovó.

— Vovó! Vovó! Venha rápido! Mamãe acor-dou! Ela acordou!

— Oh, meu amor, você deve estar sonhando!— Venha, vovó! Veja!A criança pegou a avó pela mão, levando-a

apressadamente em direção ao quarto de Solene.E, lá chegando, para decepção de Letícia, encon-traram Solene imóvel na cama, como sempre es-tivera há anos. Dona Eulália aproximou-se da fi-lha e, como fazia todos os dias, deu-lhe um beijona face. Notou, porém, que algo estava diferente:

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Solene não respirava. Pegou-a pelo pulso e confir-mou, com pesar, sua suspeita. Tentou disfarçarpara que Letícia não percebesse as lágrimas que jáenchiam seus olhos. A criança, lembrando-se daspalavras de Ivna, aproximou-se, passando a mãonos cabelos da avó.

— Eu sei, vovó! Eu sei! Mas não vamos ficartristes! Mamãe estava muito cansada! Deus sabeo que faz!

— Eu sei, querida! Eu sei!Dona Eulália foi até o armário e de um com-

partimento, que sempre trazia trancado a chave,tirou um pequeno baú e o entregou a Letícia.

— Isso pertencia a sua mãe e, a partir de hoje,pertence a você.

— E o que tem aí dentro, vovó?— Nem eu sei! Abra e veja você mesma!Letícia abriu o baú e ele estava repleto de cartas

e fotos. Para a surpresa da menina, a maioria dascartas era endereçada a ela. Dona Eulália explicouque Solene, quando estava grávida, escrevia car-tas para a filha que ia nascer, dizendo o quanto aamava. Disse também que não as entregou à netaantes para atender a um pedido de Solene: queenquanto ela vivesse ninguém, além dela, abririaaquele pequeno baú. Dentre as cartas, Letícia en-controu várias endereçadas pelo seu pai a Solene,

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antigas cartas de amor do tempo em que eles seconheceram e começaram a namorar. Porém, numenvelope maior, com formato de coração e semendereço de remetente, Letícia viria a encontrar amais intrigante de todas as cartas:

“Querida Solene,Quero, antes de tudo, pedir-lhe perdão pela

ausência. Tenho muito medo de ser rejeitada porvocê. Mas saiba: tudo que quero é poder, um dia,estar a seu lado e merecer o seu amor. Um dia,vou criar coragem e olhar você nos olhos. Achoque ainda não me perdoei por tê-la abandonado.

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Não vou tentar explicar os motivos, porque hojeeu sei que não existe motivo no mundo que pos-sa justificar uma mãe abandonar uma filha. Umbeijo carinhoso da sua mãe que, talvez você nãoacredite, te ama demais. Assinado: Ivna”.

Ao ler aquela carta, Letícia olhou, cheia de dú-vidas, para sua avó Eulália.

— Vovó, a senhora conhece essa Ivna? E porque ela está chamando a mamãe de filha se a ma-mãe é filha da senhora?

Dona Eulália, meio sem jeito, pegou o envelo-pe da mão de Letícia e dele tirou uma fotografia.

— Eu gostaria que você me perdoasse queridapor não ter falado antes, mas preciso lhe contarum segredo. Eu te amo muito e, para mim, você ée sempre será minha querida netinha, porém So-lene era minha filha adotiva. Eu a peguei para cri-ar quando ela foi deixada, ainda um bebê, em mi-nha porta. Veja: esta é a foto de Ivna, sua verda-deira avó.

Ao olhar aquela foto, Letícia reconheceu a fisi-onomia da mulher que estivera com ela durantetoda a tarde. Pensou em contar tudo para donaEulália, mas temia revelar que deixou alguém en-trar na casa. Resolveu guardar consigo aquele se-gredo. Perguntou, então, para a avó o que ela sa-bia sobre Ivna. Dona Eulália respondeu que, quan-

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do Solene estava grávida, Ivna a procurou ten-tando uma aproximação. Porém, Solene tinha di-ficuldades em aceitá-la, preferindo manter distân-cia. Ivna ficou muito decepcionada com a atitudeda filha e, com muita tristeza, se afastou. Depoisque Solene entrou em coma, Ivna voltou a apare-cer e, a partir dali, todos os dias a visitava. Passoucerca de três meses nessa rotina. Até que um dia,enquanto se dirigia ao hospital, sofreu um terrívelacidente automobilístico, que causou a sua morte.A coitada não teve tempo de receber o perdãoda própria filha.

Ouvindo as palavras de dona Eulália, Letíciaficou ainda mais confusa. Resolveu que, definiti-vamente, não contaria à dona Eulália sobre a visi-ta que recebera à tarde. Como seria possível al-guém acreditar numa história dessas? Foi quan-do, de repente, lembrou-se do bolo sobre a mesae das flores que esquecera de tirar do quarto damãe. Temeu que dona Eulália os descobrisse. Po-rém, ao olhar a sua volta, percebeu que as floresnão se encontravam no quarto. Correu até a cozi-nha e, como já desconfiava, o bolo também nãoestava lá. Voltou ao quarto, sentou-se ao lado dedona Eulália e deu-lhe um forte abraço. Fizeramjuntas uma oração pedindo a Deus pela alma deSolene. Silenciosamente, Letícia pediu, em oração,

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pela alma de Ivna. Desistindo de tentar entendero que realmente acontecera naquele dia, preferiuacreditar que Deus enviou Ivna para libertar a fi-lha da prisão que era aquela cama. Prometeu aIvna e a Solene que, daquele dia em diante, come-çaria uma nova vida, iria estudar, brincar, se di-vertir como as outras crianças.

Dona Eulália tomou as providências para ovelório de Solene. Reuniu algumas amigas e juntasfizeram uma corrente de orações, que se estendeudurante toda a noite. Letícia foi a única que, nãosuportando o cansaço do dia, adormeceu. Acor-dou pela manhã e, de súbito, veio nela uma von-tade incontrolável de ir até o quintal. Era como sealguma força a levasse até a porta dos fundos dacasa. Chegando lá, ficou encantada ao ver que nolocal onde costumava enterrar as flores, no intui-to de escondê-las de dona Eulália, havia floresci-do um lindo jardim. O buraco na cerca, pelo qualcostumava passar, estava fechado. Observou poruma fresta e viu o proprietário da casa vizinha nomesmo local onde havia visto Ivna no dia anteri-or. Resolveu então ir até lá. Chegando à frente dacasa, notou que a placa de “aluga-se” não mais seencontrava lá. Foi até à porta: trimmm, trimmm...

— Bom dia, seu Osmar!

Um Sorriso de Mãe

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Elenildo Pereira

— Bom dia, Letícia. Soube o que aconteceucom sua mãe. Eu sinto muito!

— Obrigada! Está tudo bem, seu Osmar, amamãe só descansou! O senhor poderia me daruma informação?

— Claro, querida! O que você gostaria de sa-ber?

— O senhor vendeu esta casa?— Não! Não vendi! Acontece que, há mais de

dois anos, ninguém me procura demonstrandointeresse em comprá-la. Sendo assim, resolvi vol-tar a morar aqui. Serei novamente seu vizinho.

— Que bom, seu Osmar! Obrigada pela infor-mação!

Letícia voltou para casa, colheu lindas flores emseu novo jardim e enfeitou toda a casa. A meninaabraçou dona Eulália e disse-lhe o quanto a ama-va e que a considerava a mais verdadeira de todasas avós e que, a partir daquele momento, ela seria,também, sua mãe. Ouvindo essas palavras, donaEulália, emocionada, olhou para Letícia com umlindo sorriso no rosto. Naquele sorriso, Letícia viauma beleza toda especial. Uma beleza que nascedo amor. A mesma beleza que teve a oportunida-de de ver no rosto de Solene e no rosto de Ivna.Uma beleza só encontrada em um sorriso de mãe.

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FLORES DE DEUS

Sentia-me incomodado em morar vizinho aoantigo sobrado dos Marins, principalmente porconhecer a história trágica da família que ali habi-tara. Voltavam de um feriado quando, num mo-mento de infelicidade, o carro em que viajavamfoi violentamente arrebatado da pista por umônibus que fazia uma ultrapassagem proibida. Pai,mãe e dois filhos: ninguém escapou. Desde en-tão, aquela casa permanecia vazia; dava um ar as-sustador à rua. O meu incômodo transformou-seem receio quando, por conta de um entupimentonos esgotos, a prefeitura precisou abrir toda a rua.Vendo aquela tubulação exposta, em frente a mi-nha casa, atentei para algo que nunca me ocorre-ra: todas as casas da vizinhança estão, de certaforma, interligadas pelos tubos de esgoto. Paraminha fértil imaginação de criança que mal com-pletara 8 anos, tal fato apresentava-se como ame-açador. A tubulação funcionaria como túneis de

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Elenildo Pereira

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