a expressão da natureza na obra de paul cézanne

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CAPA

i com muito interesse o estudo de Marcelo Duprat A expresso da natureza na obra de Paul Czanne. Trata-se de uma reflexo que busca apreender aspectos fundamentais da experincia realizada por aquele artista, um dos fundadores da linguagem moderna da pintura. Essa reflexo feita com lucidez e competncia, demonstrando perfeito domnio das complexas questes nela implicadas. O autor no se furta a abordar os aspectos mais difceis da experincia czanneana mas, pelo contrrio, os examina, os esmia e os torna mais acessveis nossa compreenso. Isso s se faz possvel porque ele parte de uma compreenso cabal do fenmeno artstico em suas manifestaes mais legtimas. Ferreira Gullar 15/04/98

L

Ilustrao da Capa: rvores inclinadas sobre rochas. Aquarela, 1892. National Gallery of Art, Washington.

MARCELO DUPRAT PEREIRA

A EXPRESSO DA NATUREZA NA OBRA DE PAUL CZANNE

SumrioPREFCIO ......................................................................................... I IMPRESSO E EXPRESSO ......................................................... 1 A RUPTURA COM O ESPAO TRADICIONAL ......................... 10 UM CLSSICO SOBRE A NATUREZA ....................................... 29 TRADIO E NATUREZA ..................................................... 37 UM PROCEESSO DE FORMAO PELA COR ......................... 55 A LGICA EM AO .............................................................. 63 O MUNDO COMO ESTRUTURA CROMTICA .................. 67 A NATURALIDADE DA NATUREZA .......................................... 75 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................ 88

PREFCIO

I

PREFCIO

Aqui, beira do rio, os motivos se multiplicam, o mesmo tema sob um ngulo diferente oferece um objeto de estudo do mais vivo interesse e to variado, que acho que poderia ocupar-me durante meses, sem mudar de lugar, inclinando-me ora um pouco direita, ora um pouco esquerda. P. Czanne

A observao que Czanne registra numa carta datada de 1906 e endereada a seu filho, subsidia minha reflexo sobre a presente obra de Marcelo Duprat Pereira. que de incio pode se ver com um certo ceticismo a possibilidade de se publicar algo que ainda no tenha sido escrito sobre o artista, que apontado, pela maior parte dos crticos e historiadores, como o pai da modernidade. O prprio Czanne vem em nosso auxlio e nos assegura que um mesmo tema sob ngulo diferente oferece um objeto do mais vivo interesse.

II

A EXPRESSO DA NATUREZA NA OBRA DE PAUL CZANNE

Esta a primeira impresso que posso descrever aps ter lido o trabalho de Marcelo. Trata-se de uma obra do mais vivo interesse. A expresso da natureza na obra de Paul Czanne, ttulo do livro, discute a arte de Czanne observando-a em seu vis expressivo, que se manifesta como o resultado das impresses objetivas do artista na observao direta da natureza, segundo palavras do autor. Para desenvolver suas reflexes Marcelo Duprat Pereira recorre sua condio tridica, de professor, terico e, sobretudo, artista. Talvez resida aqui o ponto nodal da realizao desta obra. Ela o resultado de uma viso trplice do autor que capaz de dialogar entre si. Marcelo professor de pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ. Nesta condio seu olhar procura o objeto e nele se detm para extrair alguma possibilidade de ensino. Observo como ele utiliza os conceitos, abrindo-os imediatamente aps seu uso, em explicaes claras, onde qualquer hermetismo vedado. Sua objetividade no conhece a superfcie. Antes, prefere o desafio das guas profundas. Por esta razo ele no escolheu o caminho das simplificaes para tornar fcil a leitura, nem o de uso de palavras incomuns para sublinhar os pontos polmicos. Antes, a facilidade se impe apesar da complexidade das questes. Aqui encontramos a posio do mestre que vai se utilizar de recursos, tais como desenhos de cubos perspectivados, para

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III

discutir a verdade na distoro das formas em Czanne. H uma didtica implcita no texto de Marcelo que nos coloca, imediatamente, na condio de discente, absorvendo o ensino que nos oferecido com tanta generosidade. Contudo, se nos inclinarmos um pouco mais para a direita, vamos encontrar a viso do terico. Alis, este trabalho nasceu num curso ministrado no Mestrado em Histria da Arte da EBA/UFRJ. Marcelo dosa com muita propriedade o embasamento terico que utiliza. Ele no se detm em longas citaes, nem oferece parcerias de seu texto, introduzindo mltiplos recortes que descaracterizem a corporeidade de seu trabalho. O aporte terico solicitado apenas como respaldo necessrio confirmao de seus pensamentos, de modo a possibilitar o prosseguimento de suas reflexes. Mas a posio mais confortvel acontece quando o autor permite que sua viso de artista veja por ns. Se para Meyer Shapiro, a grandeza de Czanne no repousa na perfeio de suas obras isoladas, est, tambm na qualidade de toda a sua realizao, para Marcelo, o que sua obra traduz no so suas impresses ou suas expresses, mas o enigma da visibilidade, que no se alicera no mundo nem tampouco no sujeito, mas no fenmeno da Existncia que os precede, conforme assegura o autor no pargrafo final deste livro. que este enigma de visibilidade foi percebido pela inclinao, um pouco mais para a esquerda, que sinaliza a presena do artista Marcelo

IV

A EXPRESSO DA NATUREZA NA OBRA DE PAUL CZANNE

refletindo sobre o mesmo objeto. A riqueza de observaes consubstancia os argumentos utilizados, permite que se estruture o pensamento e nos aproxima da obra de Czanne. Para falar do mtodo utilizado pelo artista, o autor recorre a uma de suas naturezas mortas. Contudo, diferente de Shapiro que observa os acentos simblicos de desejos reprimidos nas mas de Czanne, Marcelo parte para um caminho onde a pintura apresentada pelo discurso da prpria pintura. Ele nos traz a natureza morta pela cor que se l no texto. A mesa se esverdeia, a fruta absorve o Terra Siena da mesa. Ou, ainda, um pouco mais frente. A laranja sobre o tecido azulado cria um peso visual de complementares to intenso que equilibra todo o tom alaranjado da ampla rea de Terra de Siena da mesa. Neste ponto ele ainda ensina, o Siena composto de laranja com preto. A fuso do professor que se estimula na pesquisa, do terico que busca o conhecimento e do artista que se agiganta na humildade de um trabalho que j reconhecido no meio artstico brasileiro, possibilitou o surgimento de um autor mpar que vem nos oferecer agora uma obra do mais vivo interesse. Permanece, pois, a minha primeira impresso.

Angela Ancora da Luz

IMPRESSO E EXPRESSO

1

IMPRESSO E EXPRESSO

Refletir sobre a expresso na obra de Paul Czanne, examin-la como um dado no subjetivo, como o resultado das suas impresses objetivas recolhidas na observao direta da natureza este o propsito que norteia nossas consideraes. Deparamos, de imediato, com dois termos que denotam duas atitudes distintas diante do fazer artstico: impresso e expresso. O primeiro evocaria o instante em que o olhar capta os fenmenos da natureza, numa atitude receptiva e objetiva, indicando antes um ouvir do que um dizer. J a expresso, em contrapartida, representaria um instante posterior, em que as impresses recebidas so elaboradas, transformadas e devolvidas pelo pintor, de modo que a imagem pintada no mais reflete o mundo objetivo, passando a expressar a viso-de-mundo exclusiva do pintor. Esta tem sido a diferenciao corriqueira utilizada para caracterizar as duas atitudes bsicas. Ela peca, entretanto,

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pela simplificao, pois no esclarece se um artista da escola expressionista, ao eleger o mundo como referncia, estaria expressando apenas a si mesmo ou to somente traduzindo o que apreendeu do mundo que lhe serve de modelo. Em outros termos, o pintor expressionista buscaria exprimir o mundo atravs de uma linguagem pessoal ou, inversamente, tentaria transmitir seus contedos particulares amparandose numa representao do mundo? Esta vontade de comunicar por meio da pintura uma viso-de-mundo pessoal no sempre caudatria desse mesmo mundo? E, no outro extremo, como poderia um pintor impressionista, por mais passivo e dcil que fosse s suas impresses sensveis, no interferir na imagem que elabora com seus contedos pessoais? O ver no encerra tambm uma maneira-de-ver, uma viso-de-mundo inevitavelmente particular? Paul Czanne ocupa o centro destas questes. Sem enquadrar-se como um artista impressionista e tampouco como um expressionista, ele se localiza num ponto intermedirio, etiquetado vagamente de ps-impressionista. Do ngulo desta leitura usual, que situa os pintores em uma seqncia histrica, tanto Czanne quanto Van Gogh e Gauguin so considerados precursores do modernismo. Por adotarem deliberadamente uma atitude de ruptura com os dogmas do realismo e da representao, plantaram os alicerces do expressionismo, conquistando o crdito de uma verdadeira revoluo. No entanto, precipitado afirmar que

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o objetivo destes pintores ps-impressionistas visava uma ruptura com a esttica realista. Esta leitura s foi possvel a partir da perspectiva moderna que encara a transformao dos estilos como um requisito da arte, e a criao como uma re-elaborao dos meios de expresso. Nesta tica, a representao vista como uma mera duplicao desprovida de arte, enquanto a construo formal passa a ser adotada como o principal critrio do valor artstico. Paul Klee, discorrendo sobre a diferena de objetivos entre a arte impressionista e a expressionista, caracteriza a abordagem moderna nos seguintes termos: Conseqncia suprema da atitude expressionista , efetivamente, a de colocar a construo na categoria de meio de expresso, de carter operatrio. O impressionismo puro ignorava a construo. Empenhava-se em restituir para o estado bruto os fenmenos colorsticos do mundo exterior, o temperamento do artista decidia a respeito da eleio de tais fenmenos e de sua acentuao. Algumas pocas anteriores j haviam se distinguido, ao contrrio, pela predominncia da construo, mas a ttulo de apoio: meio e no fim.1 A utilizao da construo como meio ou apoio demonstra que a preocupao maior dos pintores anteriores aos impressionistas se concentrava no tema tratado, ou, em outras palavras, no contedo iconogrfico da obra. O fim,1 Paul Klee Theorie de lart Moderne. (ref. bibliogr. 13). p.10.

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para estes artistas, situava-se mais no tema representado do que no carter operatrio da elaborao da construo. No que suas construes no fossem expressivas, mas a expressividade da construo se identificava e amoldava expressividade do tema. J para o artista moderno, que procura neutralizar o contedo literrio e narrativo da obra, a expresso reside sobretudo na re-elaborao dos meios de expresso, ou seja, da linguagem tradicional. Assim, ao afirmar que o expressionismo transforma a construo em expresso, Klee sublinha uma propriedade do modernismo como um todo: minimizar a expresso narrativa e converter a construo da obra em tema. Para os artistas modernos no existe uma idia nova sem uma construo nova. A expresso, para o pintor moderno, est ligada aos meios de elaborao da forma. Ora, este raciocnio, que valoriza a expresso da construo, j tido como uma evidncia na pintura de Czanne. Em suas obras o ritmo, a ordem e a vitalidade plstica mostram-se mais significativos do que a simples imitao da natureza. A partir de Czanne at os abstracionistas ortodoxos, pode-se traar facilmente uma linha esttica em que a orquestrao plstica e a forma significativa e expressiva so vistas como o objetivo essencial da obra. Mas correto dizer-se a partir de Czanne? H na atitude de Czanne uma real interveno quanto realidade sensvel? No seria precipitado identificar nele qualquer objetivo expressionista ou moderno?

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Esta indagao parece se justificar, pois Czanne no era um revolucionrio por natureza, ao contrrio, todos os seus comentrios sobre a pintura traem uma inteno fundamentalmente realista. Pretendendo traduzir o mundo tal como , ele orienta suas pesquisas para a apreenso do real, tentando objetivar, atravs da pintura, aquelas sensaes confusas que trazemos conosco ao nascer2. De fato, s arbitrariamente se pode considerar como uma tentativa deliberada de afastamento da natureza, as obras de um pintor que chega a afirmar: os esboos, as telas, se eu os fizesse, no passariam de construes copiadas, baseadas nos meios, sensaes e desenvolvimentos sugeridos pelo modelo3. Mas, se por um lado Czanne est firme e intencionalmente ligado a uma esttica anterior, empenhada em representar a realidade sensvel, rejeitando qualquer interferncia subjetiva, ou seja, querendo apreender objetivamente4 o mundo, por outro lado podemos tambm assegurar, bastando para isso observar suas obras, que ele um dos primeiros pintores a colocar a construo na2 Paul Czanne. Carta a Henri Gasquet. Correspondncia. (ref. bibliogr. 5). p.203. 3 Idem. Carta ao filho. Correspondncia. (ref. bibliogr. 5) p.271 4 Herbert Read observa, no mesmo sentido, que o movimento moderno comea com a determinao obstinada de um pintor francs [Czanne] de ver o mundo objetivamente. In: Histria da pintura moderna. (ref. bibliogr. 19) p.11

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categoria de meio expresso de que fala Klee. Todos os historiadores concordam que Czanne interfere na estrutura do real com o intuito de organizar uma slida construo plstica, e que sua pesquisa da realidade acaba por afast-lo dos meios tradicionais de representao. Como conciliar estas duas posturas, a do artista que copia a construo do mundo e a do que reconstri os dados ao seu alcance? O que Czanne quer dizer com construes copiadas e sensaes e desenvolvimentos sugeridos pelo modelo? Se ele se vincula a uma esttica de imitao, por que foi to grande a sua influncia sobre o modernismo que a rejeita? Rainer Maria Rilke observa que, na experincia de Czanne, a percepo e a apropriao pessoal do visvel conjugam uma unidade. Em paisagens ou naturezas mortas, mantendo-se intencionalmente diante do objeto, capturava-o somente com rodeios complicados ao extremo. Comeava pelo colorido mais escuro, cobria sua profundidade com uma capa de cor que conduzia at um pouco alm daquele, e sempre mais longe, expandindo cor sobre cor, chegava a um outro elemento contrastante do quadro, com o qual, desde um novo centro, procedia de modo anlogo. Parece-me que nele os dois procedimentos o da captura observadora e firme, e o da apropriao, o uso pessoal do capturado apiam-se um contra o outro, talvez

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segundo uma tomada de conscincia, de tal modo que os dois, por assim dizer, comeam a falar ao mesmo tempo, em interrupes contnuas e discrdias constantes.5 O pintor, ao contemplar os objetos, sempre o faz a partir de um ponto de vista determinado. Todos ns, pintores ou no, invariavelmente vemos o mundo atravs de um olhar que, em si, j ativo. O olhar seleciona. A percepo no apreende o mundo na totalidade, mas somente os aspectos que se ajustam a determinada perspectiva histrica do ver (por exemplo, a terra j foi considerada plana e o mundo povoado de deuses). Neste sentido, a viso-de-mundo no s direciona mas antes funda a percepo. A captura observadora e firme sempre ocorre a partir de uma perspectiva pessoal, isto , de uma compreenso do real, mas esta, por sua vez, no existe idealmente, fora do contato com uma diversidade de objetos sensveis. Deste modo, cada pintor, sem considerar escola ou poca, tende a direcionar o seu olhar para determinados aspectos da realidade que sua perspectiva histrica enfoca. A percepo se d em comum acordo com esta perspectiva, com esta viso, que sempre histrica e s v o que aprendeu a ver ou o que determinada circunstncia lhe possibilita ou

5 Rainer Maria Rilke. Cartas sobre Czanne. (ref. bibliogr. 21) p 51

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A EXPRESSO DA NATUREZA NA OBRA DE PAUL CZANNE

induz a ver. Em outras palavras: verdade que vemos apenas o que procuramos, mas tambm verdade que s procuramos aquilo que podemos ver.6 A viso do mundo no um espelho que nunca se modifica, mas uma capacidade de compreenso, cheia de vida, que possui sua prpria histria interna e passou por diversas etapas de evoluo.7 Czanne certamente um bom exemplo de uma destas etapas de evoluo8 destacadas por Wolfflin. Colocando seu pensamento em contato com a natureza, ou antes, identificando-o com sua percepo, ele demonstra que a percepo sensvel no um simples dado passivo, biolgico, mas sim uma ativa e criativa compreenso. Assim, lcito supor que sua obra furta-se das definies que a lgica simplista gostaria de atribuir-lhe. Sua obra transcende (no sentido de ultrapassar a partir de) a dicotomia, insistentemente enfatizada pela perspectiva moderna, entre o sujeito e o mundo, entre a impresso e a expresso ou entre a criao e a imitao.

6 Heinrich Wolfflin. Conceitos fundamentais da histria da arte. (ref. bibliogr. 22) p.256 7 Idem, ibidem. p.251 8 Melhor seria dizer transformao, pois a palavra evoluo trs consigo um juzo de valor que de modo algum deve ser aplicado a viso de mundo de uma poca.

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Mas mesmo a reflexo de Rilke, com a qual se identificam os objetivos aqui propostos, no conclusiva quanto aos meios especficos, oferecidos pela linguagem da pintura, com os quais Czanne resgata esta unidade originria entre mundo e pensamento, entre impresso e expresso, isto , entre a captura observadora e firme, e (...) a apropriao, o uso pessoal do capturado. Delinear uma perspectiva fora desta dicotomia esse o foco desta investigao.

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A RUPTURA COM O ESPAO TRADICIONAL

A mais evidente das transgresses de Czanne frente aos sistemas de representao tradicionais certa distoro da perspectiva geomtrica e, em conseqncia, uma alterao nas propores dos objetos pintados. Ora alongando o brao do Rapaz com colete vermelho (1890-95), ora arredondando as elipses de pratos e copos, ora achatando o espao plstico de suas paisagens, Czanne desenvolve uma concepo prpria tanto das formas quanto do espao. Alguns vem nisto um gesto deliberado de deformao ou abstrao, uma fuga intencional dos meios de representao em prol de uma linguagem mais moderna, mais ligada expresso do que iluso, o que , no mnimo, uma leitura precipitada. Nestas distores da perspectiva, no h ainda a determinao moderna de recriar as formas e nem tampouco a de preservar o plano bidimensional do quadro no intuito de romper com a iluso de profundidade. Czanne fala de

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linhas paralelas ao horizonte [que] do a extenso1 enquanto as linhas perpendiculares a esse horizonte do a profundidade2, fala de uma natureza que, para os homens, se apresenta mais em profundidade do que em superfcie3, que necessrio em determinadas etapas da construo da obra se acrescentar uma quantidade suficiente de azulado para fazer sentir o ar4, e ainda em cilindros , cones e esferas 5, que so formas tridimensionais, e no em retngulos, tringulos e crculos como seria de se esperar. Qual ento o sentido deste achatamento do espao que presenciamos em suas obras6 e que foi to influente e decisivo para o desenvolvimento do modernismo? uma mera transgresso das leis da perspectiva, do realismo, da arte como imitao? Tendo em vista tanto as citaes acima referidas quanto as obras pintadas, justo supormos que a questo espacial que Czanne tenta resolver seja mais relevante que uma mera vontade de inovao ou transgresso da esttica em voga. Tudo indica que ele percebe na natureza uma lgica diversa daquela utilizada at ento.1 Paul Czanne. Carta a mile Bernard. Teorias da Arte Moderna. (ref. bibliogr. 6) p.16 2 Idem, ibidem. 3 Idem, ibidem. 4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 6 Comparar a Montanha de Sainte-Victoire pintada por Czanne com a de Renoir. Figuras 7 e 8

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Vrios autores denunciam a falsidade da perspectiva geomtrica. Herbert Read, por exemplo, observa que os clssicos, procurando representar o mundo como ele realmente , em realidade o interpretavam: ...o artista introduzia faculdades extra-visuais podia ser sua imaginao, que o habilitava a transformar os objetos do mundo visvel e criar assim um espao ideal com formas ideais; ou podia ser seu intelecto, que o habilitava a construir um mapa cientfico, uma perspectiva, em que ao objeto podia ser atribuda uma situao exata. [...] semelhana de um mapa, serve para guiar o intelecto, a perspectiva no nos d qualquer lampejo da realidade.7 Merleau Ponty, numa crtica aberta a Malraux, igualmente caracteriza a perspectiva, no como uma descoberta, mas como uma inveno: Malraux, por vezes, fala como se os dados dos sentidos jamais houvessem variado atravs dos sculos, e como se, enquanto a pintura a eles se referisse, a perspectiva clssica se impusesse. No h, contudo, dvida de que esta perspectiva uma das maneiras de projetar o mundo inventadas pelo homem, no o seu decalque. uma interpretao facultativa da viso espontnea, no que o mundo percebido desminta suas leis e imponha outras, mas antes por que no exige lei alguma e no existe ao modo de leis.87 Herbert Read. Histria da pintura moderna. (ref. bibliogr. 19) p.13 8 Merleau Ponty. A linguagem indireta e as vozes do silncio. (ref. bibliogr. 15) p.148

A RUPTURA COM O ESPAO TRADICIONAL

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Mas em que, efetivamente, tais afirmaes se fundamentam? Quais so os limites da perspectiva geomtrica? Como se d esta viso espontnea de que fala Merleau Ponty?

FIG. 1

No exemplo da figura 1 fica evidente a qualquer estudante de desenho a distoro ocorrida nos cubos medida em que eles se afastam do ponto de fuga o lado hachurado nunca permaneceria paralelo linha do horizonte, mas inclinar-se-ia como o cubo C da figura 2. A rigor at o cubo A da figura 1 est errado, pois se o ponto de fuga sair do centro do cubo, sua base j se inclina, mesmo que imperceptivelmente. Uma outra soluo possvel, a da figura 2, tem tambm suas limitaes, pois quando nossa representao comea a

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FIG.2

se aproximar de um dos pontos de fuga, como os cubos A e B, comeam tambm a ocorrer distores. O cubo A est evidentemente distorcido. J o cubo B est aparentemente correto mas, na percepo sensvel as arestas da base que so vistas, nunca formariam um ngulo igual ou menor que 90 graus, que o ngulo mnimo de uma vista de topo.

FIG. 3

A RUPTURA COM O ESPAO TRADICIONAL

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A soluo apresentada na figura 3 seria a mais verdadeira pois, medida que olhamos mais lateralmente, o ponto de fuga X, localizado fora do quadro, se aproximaria do ponto de fuga Y. Entretanto, esta a soluo de aparncia mais falsa. Os cubos no parecem posicionados lado a lado seguindo uma mesma linha, mas distorcidos por uma lente fotogrfica do tipo olho de peixe. Por sinal, uma mquina fotogrfica pode confirmar perfeitamente as trs verses aqui apresentadas. Entretanto, no olhamos o mundo como a mquina fotogrfica ou subordinados s regras da perspectiva geomtrica, olhamos o mundo mediados pelo tempo. A fotografia ilustra claramente o que ocorre. A mquina fixa a direo do olhar em um nico ponto por uma frao de segundo. Quando deslizamos os olhos sobre uma foto, a sua perspectiva no muda continuamos observando o mesmo ponto fixado pelo olhar da mquina. A estrutura dos vrios objetos que surpreendemos numa foto determinada por um outro olhar, vemos os objetos como se estivssemos observando um outro lugar. Ao contrrio, quando pintamos um objeto e, em seguida, mudamos para um outro dentro da mesma composio, o olhar no permanece esttico diante de um ponto nossa frente. Ao olharmos para o segundo objeto, mudamos nosso ponto de vista e, com isso, alteramos todas as relaes entre os pontos de fuga que antes serviam para estruturar o primeiro objeto.

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a

b

FIG. 4

y

x

b aFIG. 5

A figura 4 d uma idia do que ocorre. Nela temos um suposto pintor diante de uma mesa na qual esto dispostos dois cubos. Posicionado diante do cubo A o pintor iniciaria sua marcao utilizando um ponto de fuga central. Ao observar o cubo B, entretanto, ele perceberia que pode visualizar duas de suas faces e que nenhuma delas est posicionada frontalmente, mas inclinadas em direo s fugas. Ento, neste objeto, teria de recorrer a dois pontos de fuga. A coerncia deste processo se mostra limitada se indagamos como poderia o pintor representar a borda da

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mesa. As bordas dos cubos sendo paralelas a da mesa devem, certamente, acompanhar suas alteraes, como na figura 5, evidentemente errada. A lgica deste sistema nos leva, ainda, a concluir que, ao deslocar o olhar de um a outro objeto, se sucedem diversos espaos intermedirios, cada qual contendo seus prprios pontos de fuga onde se poderiam acrescentar novos cubos. Deste modo a melhor representao da borda da mesa no seria em verdade um fragmento de reta na horizontal aqui e outro inclinado ali, mas uma curva. Se a borda da mesa curva, tambm o so as arestas dos cubos que lhe so paralelas e, assim, acabamos por concluir que tudo o que reto deve ser representado em curva. Como ento pintar um conjunto como este de modo coerente? A realidade tal como se apresenta? Como pintar dois cubos vizinhos e paralelos tal como os vemos espontaneamente? Quando pintamos um segundo objeto no quadro, olhamos necessariamente para ele. Para garantir uma comunho entre um e outro objeto, para pintar, por exemplo, o cubo B da figura 5 e mant-lo convincentemente paralelo ao cubo A, seria necessrio traz-lo um pouco para a frente, reduzir sua inclinao mudando um pouco o ponto de fuga, esquecer que existem distores inerentes ao prprio objeto alm de aumentar tambm seu tamanho; sem contar que um terceiro objeto eventualmente introduzido teria de se adequar aos outros dois, impondo assim novas modificaes no

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conjunto. Seria conveniente, ento, que as formas no se definissem precipitadamente, que os vrios objetos fossem articulados ao mesmo tempo e no um depois do outro. No seria este justamente o propsito de Czanne ao afirmar que, em geral, coloca tudo em recproca relao, em um s esforo e de uma s vez.9? No seria este o motivo de iniciar seu quadro somente com rodeios complicados ao extremo10? Czanne busca um espao coerente sem utilizar a perspectiva geomtrica; organiza o espao tendo como cincia a sua sensibilidade, sem que nenhuma regra estabelea o espao em que as formas vo se articular. Ele quer o espao, mas questiona os meios convencionais de obt-lo. Em uma carta a mile Bernard, Czanne expe seu mtodo: Para fazer progressos, s atravs da natureza, e o olho se educa no contato com ela. Torna-se concntrico custa de observar e trabalhar. Quero dizer, em uma ma, uma bola, uma cabea, h um ponto culminante; e esse ponto apesar do efeito terrvel: luz e sombra, sensaes colorantes o mais prximo do nosso olho. As bordas dos objetos fogem em direo a um centro localizado no nosso horizonte.119 Paul Czanne. Conforme Joachim Gasquet. Documentos para la comprensin del arte moderno. (ref. bibliogr. 12) p.28 10 Ver nota 5, p. 7 11 Paul Czanne. Carta a mile Bernard. Correspondncia. (ref. bibliogr. 5) p.248

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Por nossas observaes percebemos que, ao falar de um ponto culminante nos objetos e localizando esse ponto no local mais prximo de nosso olho, como se Czanne pretendesse acrescentar ao cone tico tradicional da perspectiva, que foge em direo linha do horizonte, um outro, cujo pice o olho inquieto do pintor. No h, como no cubismo, uma transgresso completa da profundidade, tentando representar as vrias vistas do objeto, mas simplesmente um olhar, do mesmo ponto, para cada um dos objetos pintados, sem ter de represent-los como se estivesse observando um ponto fixo no horizonte; seu objetivo representar o que se v tal como se v, vale frisar no tempo. A questo do espao importante para a compreenso da obra de Czanne. A cincia da perspectiva j datava de muitos sculos e se ele insistia to freqentemente neste assunto, devido ao fato de perceber o espao atravs de uma tica mais sensvel, mais ligada s impresses do que aos conceitos. Empiricamente Czanne descobre as regras da perspectiva geomtrica. Descobrir, aqui, deve ser entendido em seu sentido estrito; Czanne pe a descoberto as regras que at ento eram tidas como verdade e no como regras. A perspectiva geomtrica, encarada usualmente como uma descoberta renascentista que traduzia o mundo tal qual nos atinge os olhos, aparece como uma inveno, um simulacro

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ilusionista que de modo algum natural, mas uma abstrao humana regida por um conjunto de regras preestabelecidas. O dilogo que Czanne manteve com mile Bernard esclarece seus objetivos em relao linguagem pictrica. Devemos criar uma tica, devemos ver a natureza como ningum viu antes... afirma Czanne a Bernard. Este levanta uma objeo: No resultar isso, numa viso demasiado pessoal, incompreensvel aos outros? Afinal de contas, no a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma lngua que voc. Ser que me compreenderia se eu tivesse criado uma lngua nova, desconhecida? com esta lngua comum que devemos expressar novas idias. Talvez seja este o nico meio de torn-las vlidas e aceitveis. A pergunta de Bernard traduz o senso comum que acredita que a arte est contida nas novas idias, como se estas existissem idealmente, como puras significaes. Czanne responde a Bernard: Por tica quero dizer uma linguagem lgica, isto , sem nada de absurdo. Bernard por sua vez insiste: (Bernard) - Mas em que baseia sua tica, Mestre? (Czanne) - Na natureza. (Bernard) - O que quer dizer com esta palavra, tratase de nossa natureza ou da natureza em si?

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Note-se que nesta pergunta Bernard distingue e separa o objetivo do subjetivo. A natureza em si liga-se a uma atitude de imitao das aparncias do mundo objetivo, enquanto a nossa natureza denota uma atitude de apropriao do mundo que visa projetar uma viso pessoal, subjetiva, sobre a obra. Czanne responde: (Czanne) - Trata-se de ambas. (Bernard) - Portanto o senhor concebe a arte como unio do Universo com o indivduo? (Czanne) - Concebo-a como uma percepo pessoal. Coloco esta percepo na sensao e peo que a inteligncia a organize numa obra. (Bernard) - Mas de que sensaes o senhor fala? Daquelas que esto em seus sentimentos ou daquelas que provm da sua retina? (Czanne) - Acho que no pode haver separao entre elas. Alm disso, sendo pintor, apego-me primeiro sensao visual.12 Para Czanne, portanto, a objetividade da percepo retiniana e a subjetividade da sensao compem uma unidade essencial linguagem. A partir deste mesmo dilogo, Merleau Ponty observa, com muita propriedade, que Czanne procura sempre escapar s alternativas prontas que Bernard lhe prope. Czanne diz Merleau Ponty:

12 mile Bernard. Teorias da arte moderna. (ref. bibliogr. 6) p.10

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No quer separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matria ao tomar forma, a ordem nascendo de uma organizao espontnea. Para ele, a linha divisria no est entre os sentidos e a inteligncia mas entre a ordem espontnea das coisas percebidas e a ordem humana das idias e das cincias.13 Percebemos assim, amparados em Merleau Ponty, que Czanne, sem abdicar dos sentidos (postura impressionista) ou da inteligncia (postura clssica), opta por uma ordem espontnea na qual no interferem as idias da cultura ou a cincia. A inteligncia que organiza a sensao em obra nada tem a ver com um pensamento vido de domnio ou controle, sempre em busca de um procedi-mento que assegure o xito de uma pintura trata-se antes de compreend-la como um modo de pensar originrio que, lanado sobre o mundo, ainda no separou a percepo da razo, a forma do contedo, o objetivo do subjetivo, o corpo da alma. Czanne se afasta das linguagens constitudas (das leis da perspectiva geomtrica, das idias e das cincias) que, originrias de outras conscincias, traduziam o mundo com uma viso estranha sua sensao. Guardemo-nos, entretanto, do equvoco de ver este afastamento como fruto de uma deciso premeditada em busca de uma nova13 Merleau Ponty. A dvida de Czanne. (ref. bibliogr. 15) p.116

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linguagem, como se a inovao fosse para ele o que se tornou para os modernos um valor em si14. Gombrich, por exemplo, observa, com um enfoque genrico: Czanne deixara de aceitar como axiomticos quaisquer mtodos tradicionais de pintura. Decidira partir do zero, como se nenhuma pintura tivesse sido feita antes dele. [...] A inveno de Brunelleschi da perspectiva linear no o interessou excessivamente. E jogou-a fora quando descobriu que ela dificultava o seu trabalho.15 As observaes de Gombrich so aparentemente corretas, entretanto fazem crer que o abandono da perspectiva geomtrica se deu a partir de uma deciso. Efetivamente, percebe-se que Czanne, observando a natureza, se afasta dos mtodos tradicionais, mas to somente pelo fato de no encontrar verdade alguma nesses mtodos de representao. No uma rejeio pura e simples o que ocorre, e sim a descoberta da falsidade destes mtodos que no se ajustam realidade tal como ele a assimilava. No h uma deciso de criar suas prprias regras, mas uma necessidade; h uma transcendncia da perspectiva geomtrica que, mais do que se esquivar das dificuldades, as assume, mais do que jogar fora e partir do zero, perscruta seu fundo. Czanne desmonta14 A rigor no so as novas idias (como sugere Bernard) o que Czanne procura mas uma nova tica. 15 Gombrich. A histria da arte. (ref. bibliogr. 10) p.433

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a lgica da perspectiva geomtrica por sua prpria lgica representar a realidade tal qual ele quer a verdade da representao no espao, mas no a encontra na perspectiva geomtrica. O fato que a perspectiva geomtrica, sendo mais ilusionista do que realista, mais intelectual do que sensvel, por ele questionada como verdade e se mostra como simples mtodo de representao. Czanne mostra que a verdadeira realidade no apreensvel por uma linguagem estratificada. Sua importncia para o modernismo no , portanto, a inovao ou a inveno de uma linguagem que se transforma, ela prpria, num novo cdigo. Mostrando que a representao na pintura no , nunca foi, nem pode ser, um reflexo passivo da realidade atravs de um sistema, ele indica o abismo que se abre diante de todo o real e o quanto ilusria qualquer tentativa humana de dominar e assegurar a apreenso e a compreenso do real.

FIG. 6 Nicolas Poussin. Jpiter criana amamentado pela cabra Almathea. 97 x 133 cm. Museu Dahlen, Berlin.

FIG. 7 Paul Czanne. A montanha de Sainte-Victoire. 65 x 81 cm. Coleo Particular.

FIG. 8 Auguste Renoir. A montanha de Sainte-Victoire. 53 x 64 cm. Yale University Arte Gallery, New Haven.

FIG. 9 Paul Czanne. Natureza Morta com Cntaro. 53 x 71 cm. Tate Gallery, Londres.

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A procura de uma nova concepo do espao afasta Czanne a um s tempo da esttica clssica e da impressionista. Este afastamento no , note-se, uma rejeio mas, como vimos, uma absoro, fuso e superao. Os impressionistas empenhavam-se na reconstituio dos fenmenos cromticos do mundo com uma preocupao fundamentalmente tica e sensorial. Distanciando-se de uma pintura anterior mais artificial, atrelada aos temas nobres (mitolgicos, histricos, etc.) que articulava suas composies de modo teatral, eles se concentraram no mundo simples do cotidiano procura de uma imagem mais espontnea e natural. Entretanto, como nos adverte Klee1, a atitude do artista impressionista, no que se refere construo, era fundamentalmente passiva. Ligando-se s impresses, eles abdicavam de interferir na estrutura do visvel, problematizando sobretudo o tratamento da imagem no plano da fatura e da cor.1 Ver nota.1, p.3

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J em Czanne, pressentimos uma atitude bem diversa. Czanne aprendera com os impressionistas que a pintura um estudo preciso das aparncias praticado diretamente sobre a natureza. Isto, sem dvida, foi de grande valia para a evoluo de sua linguagem pictrica, pois levou-o a desenvolver um raciocnio mais plstico, mais voltado para uma pesquisa da pura visibilidade, que acaba por afast-lo da tendncia literria de sua fase inicial romntica, preocupada antes com os contedos e a mensagem transmitida pela obra do que com os problemas eminen-temente formais. Mas Czanne tambm se afasta da esttica impressionista ele se nega a assumir passivamente a estrutura do mundo visvel como um dado e a se identificar com o princpio impressionista de alterar a cor e a luz de acordo com as variaes atmosfricas e as mudanas da luz no decorrer do dia. Seu processo de construo por demais lento para acompanhar efeitos to fugazes. Pelo contrrio, ele suprime cada vez mais todo o acidental e procura acentuar os elementos construtivos que estabilizam o esqueleto estrutural da obra, tal como na pintura dos antigos. importante assinalar que Czanne apreciava os pintores clssicos que continham fortes ritmos estruturais, tais como Poussin, Delacroix, Tintoretto, Carravagio e El Greco. Ele chega mesmo a afirmar que seu desejo repintar Poussin a partir inteiramente da natureza2. Poussin era um pintor que dinamizava2 Paul Czanne. Citado por mile Bernard. Czanne - Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. 3) p.15

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claramente a estrutura compositiva de suas obras. essa elaborao estruturada da obra, que percebemos em Poussin e que correspondia to bem aos seus prprios dons, que Czanne pretendia resgatar para fazer do impressionismo uma arte slida e durvel como a arte dos museus3. Estes artistas, que tanto o influenciaram (Czanne freqentava o Louvre assiduamente sempre que se encontrava em Paris), estudavam a natureza, para depois, no ateli, construrem uma composio independente. A articulao dos vrios elementos compositivos (figuras, objetos e elementos da paisagem) no acompanhava a estrutura compositiva presente na natureza mas antes um princpio abstrato de arranjo. Amparando-se nos elementos estudados, eles desenvolviam uma composio que veiculasse a mensagem exigida pelo tema de maneira formalmente expressiva, ou seja, eles mesclavam o contedo formal com o iconogrfico. Se analisarmos uma pintura de Poussin como, por exemplo, Jpiter criana amamentado pela cabra Amalthea (figura 6), percebemos o quanto ela destoa das intenes impressionistas. um tema mitolgico tratado de maneira teatral, uma encenao imaginria tal como as primeiras obras de Czanne. A anlise desta obra certamente nos auxiliar a compreender as intenes de Czanne.

3 Idem. Citado por Merleau Ponty. A dvida de Czanne. (ref. bibliogr. 15) p.116

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A linguagem utilizada por Poussin realista, mas a estrutura desta cena nada tem de natural, tudo planejado para funcionar formalmente. A princpio, nossa ateno logo orientada para o pequeno Jpiter, lanado no ponto de maior peso da composio. Este efeito de peso, que absorve o nosso olhar, obtido por vrios recursos. A saturao e o contraste cromtico entre o azul da saia da personagem feminina e o amarelo alaranjado de sua tnica, atraem de imediato a ateno para o local onde est a criana. Para ali voltam-se tambm os olhares das duas personagens do primeiro plano. A rvore do segundo plano nitidamente articulada como um eixo diagonal (ascendente) que atravessa o quadro e equilibra a rea anteriormente referida; note-se que o brao da mulher que ampara a criana acompanha este mesmo eixo. Para contrabalanar este eixo, Poussin estrutura, atravs do corpo da mulher de branco, uma segunda diagonal, que se prolonga pelo brao da personagem masculina, atravessa o ventre da cabra, continuando pelo limite entre o cho e o rio. O eixo do corpo do pequeno Jpiter acompanha paralelamente esta mesma diagonal, auxiliando assim o equilbrio estrutural da obra, perigosamente ameaado pela forte e explcita tenso diagonal da rvore. Pela atrao entre as cores de uma mesma qualidade, o azul do rio (canto inferior direito) se entrelaa com a cor do cu, enfatizando a mesma diagonal descendente. Esta grande rea de tons frios do plano do fundo equilibrada, por sua vez, pela intensidade do azul da saia (esta sensao de intensidade obtida

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pela proximidade do tom alaranjado da tnica que lhe complementar), como se uma pequena quantidade de azul intenso equilibrasse uma grande rea de azul menos saturado. Poussin, o tempo todo, procura criar ritmos e caminhos para os olhos. Acompanhe-se o ritmo dos brancos, o dos pretos. Note-se que h uma horizontal, exatamente no centro do quadro, que participa tanto do ltimo plano, onde se encontra a base da montanha, quanto do primeiro plano, onde serve de base para as colunas, prolongando-se ainda pelas pregas do vestido branco. Note-se o ritmo das curvas formado pela rvore para um lado e as costas da personagem masculina para o outro, recurso que cria um ritmo secundrio em S sobre a diagonal ascendente. Enfim, h uma pluralidade de ritmos articulados, nada casual. A pintura de Poussin ostenta ordenao e disciplina. As figuras idealizadas e a paisagem (que j no pode ser considerada simples moldura para as aes humanas) so articuladas em uma ntima relao de ritmos plsticos. As dinmicas compositivas do quadro resultam de uma imaginao potica que harmoniza o contedo plstico com o contedo das figuras e do tema. Entretanto, mesmo sem degenerar no virtuosismo fcil ou em artifcios amaneirados, pois Poussin nada sacrifica ao desejo de ostentar sua habilidade, este jogo formal inventado no ateli e no extrado da natureza. Czanne quer pintar Poussin, mas sobre a natureza:

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...um Poussin feito de novo a partir inteiramente da natureza, e no pintado a partir de notas, desenhos e fragmentos de estudos. Afinal um verdadeiro Poussin, feito ao ar livre, com luz e cor, em vez de uma dessas obras preparadas no estdio, onde tudo apresenta uma dominante acastanhada resultante da falta de luz e da ausncia de reflexos do cu e do sol.4 Tal como os impressionistas, Czanne no interfere na composio oferecida pelo mundo. Ele quer criar o mesmo jogo formal de Poussin, mas fora do estdio, captando a estrutura slida e durvel do mundo, dele extraindo sua composio, para articular, de maneira natural, com uma organizao espontnea5, os elementos abstratos da pintura linha, tom e cor. Em outras palavras, enquanto Poussin utiliza a natureza referencialmente, articulando de maneira abstrata as formas naturais, em Czanne, como veremos, se d justamente o oposto os elementos articulados so abstratos e a composio natural. Os clssicos, observa Czanne; substituam a realidade pela imaginao e pela abstrao que a acompanha, faziam quadros, e ns tentamos um pedao da natureza6. Por esta citao, percebemos que pintar Poussin sobre a natureza aponta para a fuso da percepo do mundo com o pensamento4 Paul Czanne. Conforme mile Bernard. Czanne - Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. 3) p.40 5 Ver nota 13, p. 22 6 Paul Czanne. Conforme Merleau Ponty. A dvida de Czanne. (ref. bibliogr. 15) p.115

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construtivo, para o casamento do naturalismo impressionista com a abstrao clssica. Tudo indica que a prpria percepo para Czanne s se d a partir da compreenso da natureza como uma estrutura de inter-relaes formais. Observando as duas montanhas (figuras 7 e 8) pintadas por Czanne e por Renoir7 no mesmo local, percebemos que de fato os dois artistas percebem a realidade de modo diverso. Notem-se, por exemplo, as rvores: na obra de Renoir os troncos parecem mais naturais, ele observa a variao de direes dos galhos, o volume das copas; j em Czanne os troncos so linhas verticais, que no contexto estrutural da obra representam a rigidez dos troncos mais apropriadamente do que uma linha sinuosa, alm de sustentarem perfeitamente a massa de verdes das copas. Estas, por sua vez, no se apresentam como na obra de Renoir, sugerindo volumes compactos, mas atravs de pequenas pinceladas de verde mescladas como outras de azul, sugerindo que as copas so massas leves e plenas de ar8, tal como na realidade. O fato, sem qualquer juzo de valor, que os dois artistas tm registros diferentes da natureza. Se lembrarmos ainda do que foi visto no captulo anterior, em que verificamos que a fotografia do local de modo algum7 Em 1989 Paul Czanne passa o inverno no Jaz de Bouffan juntamente com Auguste Renoir, que aluga por alguns meses a propriedade do cunhado de Czanne. Os dois amigos trabalharam juntos sobre o tema da montanha de Sainte Victoire que foi amplamente desenvolvido por Czanne. 8 Ver nota 4

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apresentaria essa realidade mais verdadeiramente que as duas interpretaes pictricas, visto que ela congela o olhar de maneira esttica e artificial, perceberemos a dificuldade em avaliar qual das representaes seria a mais realista. Por certo que esta questo totalmente desprovida de sentido ou mrito para a arte, entretanto ela demonstra que no faz sentido observar a obra de Czanne como uma abstrao da realidade. No se trata somente de uma concepo de espao diferente ou de uma interpretao singular. como se os dois pintores tivessem uma viso-de-mundo distinta. Quem poderia dizer que estas impresses devem-se ao subjetivismo de cada pintor ou a uma percepo mais realista da natureza? Quem poderia afirmar que Czanne abstrai a realidade movido simplesmente pela vontade de estruturar a composio da obra, ou que estas abstraes devem-se a uma maior autonomia de sua linguagem plstica confrontada com o modelo da natureza? O que o fato plstico evidencia simplesmente que Czanne capta as impresses no s da superfcie colorida das coisas, como procedem os impressionistas, mas compreende a estrutura, o esqueleto linear (como os troncos das rvores e sua relao com o peso das copas), tambm a partir da impresso, como fruto da sensao, tal como as cores. Suspeitando que a estrutura das formas no existe de maneira independente de quem as percebe, Czanne mostra que o prprio mundo, em sua realidade e densidade, s se apresenta como um dilogo com a sensao.

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Tradio e naturezaA tradio histrica tende a compreender a linguagem da pintura como um conhecimento que nada tem de natural, como um dado cultural que reflete uma ordem humana9, um cdigo que os indivduos utilizam para se comunicarem, um meio de expresso de novas idias. Em outras palavras, tende a confundir linguagem e vocabulrio, esquecendo que a linguagem vocabulrio em ao e transformao permanente. Refletindo na transformao dos estilos, percebemos na sucesso de tradies e rupturas da arte ocidental um ciclo inevitvel. A princpio, h uma elaborao criativa do vocabulrio, depois, uma consagrao deste e, finalmente, a sua utilizao como um sistema de signos convencionais usados para a comunicao. Nesta ltima etapa, no se problematizam os meios de expresso, eles so aceitos como um corpo de linguagem dado e o fim passa a ser a mensagem transmitida o contedo discursivo e educativo da arte. No h mais, por parte do pintor, uma procura, um ouvir a potencialidade de expresso dos meios, mas um dizer em que o artista comunica o que j sabe (suas idias) com uma linguagem adquirida, dominada. Contra isto rebelam-se outros artistas que, acreditando na criao como uma renovao da linguagem, na arte como uma forma de conhecimento e pesquisa de novos contedos abertos e oferecidos pela prpria linguagem da pintura, perpetuam o ciclo de tradies e rupturas.9 Conforme Merleau Ponty nota 13, p. 22

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Esta viso da arte como pesquisa de novos meios de expresso, tpica do modernismo, acaba por fomentar uma tradio da ruptura10, que em muito explica a acelerada sucesso de estilos no incio do sculo XX. Entretanto, ela contm algo de artificial a crena na arte como negao das linguagens constitudas. Mas, se a arte fatalmente reformula a linguagem, rompendo com a tradio, como compreender a obra de um pintor como Fra Anglico, ou de Ingres e mesmo a de Czanne, to ligado ao passado a ponto de afirmar que a busca da novidade e originalidade uma necessidade artificial que apenas deriva da banalidade e ausncia de temperamento11? Esta questo nos auxiliar a compreender a obra de Czanne assim como sua importncia para o modernismo. Vimos que Czanne no utiliza passivamente as linguagens constitudas. Entretanto, a criao, para ele, tambm no se d no sentido moderno do termo, que a v como uma projeo de um sujeito que inventa um novo estilo a partir de si mesmo, de sua imaginao. No h, em Czanne, uma inteno deliberada de inovar, mas apenas de ver com seus prprios olhos. De fato, ele parte dos estilos constitudos e s os transcende medida que a necessidade de acatar suas sensaes o impele a construir sua viso. A criao, para Czanne, simples esforo para trazer10 Este interessante conceito de tradio da ruptura como uma contradio em termos, foi desenvolvido por Otvio Paz em seu livro Os filhos do barro. (ref. bibliogr. 17). 11 Paul Czanne. Conforme Lo Languier. Czanne - Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. 3) p.46

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luz uma viso que tem origem na sua petite sensation12, que, como sensao, prpria, mas tambm trespassada pelo mundo e pelos meios de expresso histricos que manipula. H assim uma re-elaborao da linguagem plstica, apreendida dos estilos de Poussin, dos impressionistas e de tantos outros, mas que Czanne identifica com o mundo. Isto quer dizer que, se por um lado, ao questionar os meios de representao tradicionais, Czanne se identifica com o princpio modernista de reformulao constante dos meios de expresso, por outro, a necessidade de ver o mundo tal como ele , a atitude que indaga e procura desvelar os mecanismos do visvel, o aproxima do esprito originrio do classicismo13. A questo que aqui se impe sabermos por que a representao do mundo deve ser conquistada pela reelaborao da linguagem tradicional. A ruptura com a perspectiva geomtrica, vista no captulo anterior, j nos d um indcio de que a adequao entre linguagem e mundo no to simples como parece a princpio. De fato, a noo da existncia prvia de um objeto real, que o pintor simplesmente imita, extremamente problemtica. O pensamento histrico sobre as obras de arte, particularmente, mostra o quanto ambgua a distino entre a realidade e o modo como ela representada. Existem vrias anedotas sobre o realismo em pintura que hoje parecem extravagantes e at incompreensveis.12 Idem. Arte moderna. (ref. bibliogr. 1) p.110 13 Neste mesmo sentido Argan observa que o impressionismo integral de Czanne no seno um classicismo integral. ibidem. p.11

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Boccaccio (1313 1375), por exemplo, escreveu sobre Giotto: ... ele era um esprito to excelente que, ainda que a natureza, me de todos, sempre operante pela contnua revoluo dos cus, modelasse o que bem entendesse, ele, com seu estilo, a sua pena e o seu lpis, o retrataria de tal modo que parecesse no a semelhana, mas a prpria coisa, de maneira que o sentido visual dos homens freqentemente se enganava a seu respeito, tomando por verdadeiro o que era apenas pintado14. luz dos realismos posteriores, percebe-se claramente o exagero na exaltao do realismo de Giotto. Boccaccio acreditava que a representao de Giotto se ajustava perfeitamente realidade. Hoje percebemos que esta representao pouco tinha a ver com uma cpia fidedigna do real. Mas isto a que chamamos de naturalismo-realista da pintura hoje em dia (como o realismo de Courbet, por exemplo), no seria tambm uma representao relativa que nosso pensamento acredita se adequar fielmente realidade? Devemos acreditar em uma evoluo dos meios de representao, cada vez mais identificados com a natureza? As anlises de Heinrich Wolfflin em Conceitos fundamentais da histria da arte so particularmente preciosas para o pensamento da arte, pois mostram que a transformao dos estilos no se deve a um apuro e a uma adequao dos14 Giovanni Boccaccio. Esttica e teoria da arte. (ref. bibliogr. 16) p. 56

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meios de representao a uma natureza dada. Wolfflin observa, por exemplo, que o sculo XVI desenvolveu uma pintura linear, na qual a ateno do pintor se concentra no contorno ou limite das formas, enquanto o sculo XVII elaborou uma pintura eminentemente pictrica (tonal), onde a viso privilegia o volume das formas. Os estilos lineares e pictricos refletem vises fundamentalmente diferentes. So duas vises de mundo orientadas de forma diversa quanto ao gosto e interesse pelo mundo; no obstante, cada uma delas capaz de oferecer uma imagem perfeita do visvel15. A identidade dos objetos, quer seja resultante de seu contorno ou de seu volume, o que possibilita sua representao perfeita atravs de ambas as configuraes. Quer isto dizer que a verdade do visvel algo que est alm do modo como ele visto? Podemos supor que a realidade pode ser vista de ambas as maneiras e que o modo de ver nada tem com a verdade deste real? De modo algum, trata-se antes de compreender o mundo como algo que pode ser visto desta ou daquela maneira, e que ambas vem o verdadeiro mundo, pois este no se mostra nunca fora da viso. Tanto os clssicos como os barrocos representavam fielmente o visvel atravs de um modo de ver particular. Portanto, se a imitao do visvel no fruto de um apuro gradual dos meios de representao, cada vez mais identificados com o15 Heinrich Wolfflin Conceitos fundamentais da histria da arte. (ref. bibliogr. 22) p. 21

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real, podemos supor que a representao perfeita deste real pode ocorrer de mltiplas maneiras e que nenhuma delas mais evoluda ou verossmil do que as demais. Entretanto, se por um lado o pintor representa o que v tal como v, por outro, tambm v a partir de um sistema de representao e interpretao que direciona seu olhar. Imitar a natureza, pintar o que se v, uma maneira de interpret-la a partir de um sistema de representao. Podemos constatar esse fenmeno acompanhando os primeiros passos dos pintores que, a princpio, aprendem a ver no somente os entes reais (figura, paisagem, natureza-morta), mas tambm os entes visuais (linha, tom e cor). Nas primeiras sesses de modelo-vivo de um estudante, a compreenso analtica da realidade freqentemente interfere na configurao. Por saber que o globo ocular branco, o estudante assim o representa, sem perceber que quase nunca o olho o ponto mais iluminado de um rosto. Por saber que uma mo tem cinco dedos, o estudante desenha cinco dedos, mesmo que a distncia seja tal que impossibilite distinguir visualmente qualquer dedo. O pintor, portanto, aprende a ver atravs do descondicionamento da viso comum. Aprender a ver como pintor pode, por certo, tornar-se tambm um condicionamento. Entretanto, esta primeira mudana de perspectiva mostra que aquilo que o pintor desenvolve criativamente sua prpria viso-de-mundo. Ora, representao e viso-de-mundo compem um ncleo que freqentemente mascara e distorce a realidade. Nunca

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temos certeza se representamos o que vemos ou vemos o que representamos. Giotto foi considerado realista por seus contemporneos, mas comparado a Leonardo da Vinci ele se apresenta, antes, ligado tradio talo-bizantina. Leonardo, mesmo pintando a Mona Lisa sem sobrancelhas, ainda hoje considerado por alguns como realista. Mas o que era o realismo de Leonardo da Vinci ou de Giotto seno a criao de uma linguagem, a inveno de um sistema de representao e interpretao da natureza? Leonardo observa: O pintor h de fazer uma pintura de pouca excelncia, se por modelo tomar a pintura alheia, mas, se aprender das coisas naturais, ter bom fruto; como veremos nos pintores depois dos romanos, os quais sempre um ao outro imitavam, e de idade para idade fizeram a arte declinar. Depois deles, veio Giotto florentino, o qual, nascido em montes solitrios s por cabras e semelhantes animais habitados, inclinado que, por natureza, era a tal arte, comeou a desenhar nas pedras aes das cabras que guardava; e assim comeou a fazer todos os animais que no pas encontrava, de tal modo que, aps muito esforo, veio a sobrepujar no s os mestres de sua poca, mas todos os de muitos sculos passados. Depois dele, voltou a arte a cair, porque todos imitavam as figuras feitas e, assim, de sculo em sculo, foi declinando, at que Tomas florentino, apelidado Masaccio, mostrou, por perfeita obra, que em vo se fatigavam quando modelo outro tomavam que no fosse a natureza, mestra de mestres.1616 Leonardo da Vinci. Filosofia da arte. (ref. bibliogr. 2) p. 176

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O contexto no qual est inserida a famosa frase de Leonardo da Vinci (a natureza, mestra dos mestres) deixa clara a rejeio do pintor s linguagens estabelecidas. Leonardo indica que a representao da natureza no se d a partir do simples uso de uma linguagem estratificada, mas como pesquisa e descoberta da natureza, melhor meio de salvaguarda-la da rotina de uma imitao de si mesma. A natureza registrada pelo olhar renascentista diferia muito do que hoje captamos. Sob muitos aspectos, ela se mantinha velada. Leonardo ajudou a desenvolver vrias disciplinas que buscavam desvendar a natureza: a anatomia, a perspectiva geomtrica, a tica, a geologia, a botnica, as teorias do claro escuro, e outras no to intimamente ligadas arte da pintura, como a astronomia, a msica, etc. Tomemos a anatomia como exemplo: por certo a estrutura anatmica do corpo humano sempre existiu, mas naquela poca ainda permanecia obscura. O homem no era entendido como um organismo composto de rgos que funcionam de maneira precisa e integrada, melhor seria imagin-lo, nesta poca, como um monte de carne cheio de esprito. Para que o conhecimento da anatomia influenciasse e informasse o gesto do pintor e, antes, para que a estrutura anatmica do corpo humano pudesse ser equacionada claramente, foi necessria a elaborao de uma linguagem especfica. Assim, at mesmo as linguagens da objetividade, que,

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mais tarde, justamente por se pretenderem objetivas, se transformariam nas cincias, foram na sua origem puras criaes. Leonardo no aceitava a linguagem como um dado, no seguia regras acadmicas, ele criava linguagens que, mais do que manifestar ou refletir, instauravam junto uma viso-de-mundo. Esta viso-de-mundo no estava pronta, mas era, antes de tudo, uma inquieta compreenso da natureza como um mistrio. Buscando a verdadeira natureza, ele elaborou um modo de ver revelador que, por isso, mostra o mundo como algo obscuro, que tem de ser desvendado. Por um lado, a linguagem deixa de ser experimentada como um cdigo preestabelecido ou um dado da cultura, visto que ela uma pesquisa sobre a natureza. Por outro, o mundo re-interpretado atravs de um novo sistema de representao em elaborao. A criatividade de Leonardo da Vinci reside no modo de ver a natureza, e a linguagem que inventa o meio pelo qual esta viso se elabora. Leonardo da Vinci foi um criador de linguagens e, atravs delas, de uma viso-demundo que interferiu na prpria compreenso da realidade. Deste modo, podemos constatar que o estudo da natureza foi para Leonardo da Vinci uma fuga das interpretaes constitudas e fixas, um embate com o abismo da realidade na suspeita de que a verdadeira natureza se esconde atrs das aparncias. Mas a desconfiana em relao ao mundo sensvel, a suposio de que a verdadeira realidade se oculta atrs das aparncias, assume um relevo peculiar no pensamento de

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Leonardo da Vinci. Ao criticar os cdigos fixos determinados pela cultura e ao incentivar a pesquisa direta sobre a natureza, Leonardo acusa, tambm, as representaes do pensamento como um obstculo que impede a viso clara do real. Em outras palavras: visto que os objetos do mundo sensvel so sempre conhecidos atravs de um sistema de representao e interpretao, que uma codificao humana, no teria o mundo uma existncia relativa, dependente sempre de nosso pensamento? No seria ele um mero conjunto de representaes de nosso pensamento? E afinal, o que a realidade em si, independente de uma viso-de-mundo que interpreta? Estas especulaes escapam aos limites dos nossos propsitos, mas o que vimos j nos adverte para o prprio contra-senso da questo. O real no se apresenta nunca separado do interpretar, isto , fora da compreenso de um sentido, de uma razo de ser. O mundo nunca aparece todo, inteiro, na ntegra, mas somente na dimenso de uma viso-de-mundo, que seleciona, que parcial, que sempre observa de um ngulo prprio, que sempre se encontra em uma perspectiva. O mundo permeado pela conscincia, isto , ele cogito, representao. Nunca temos certeza se o que vemos o objeto externo real ou uma mediao, o ser pensado, o pensamento, representao particular, uma interpretao. Por outro lado, a conscincia se mantm sempre em relao com objetos, mesmo que no se trate de objetos

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concretos, apreensveis pela percepo sensvel, mas de entes do tipo palavras, pensamentos, sentimentos. Ter conscincia travar contato com entes, isto , ver no amplo sentido de perceber compreendendo. S se tem conscincia do que, pelo menos uma vez, se apresentou, no para a conscincia (como se o mundo existisse de um lado e a conscincia de outro), mas como conscincia-de. Por isso a viso-de-mundo no autnoma nem capaz de criar livremente um mundo a partir de si mesma, mas somente interpretar e, assim, formar, conformar ou deformar o que compreende como mundo. Nesta relao existencial entre vidente, visvel e viso no h independncia. O mundo nunca aparece fora do ver e o ver no acontece independente do mundo. A anatomia, a perspectiva, a tica, etc. no pertencem somente ao mundo ou tampouco cultura humana, no so invenes da conscincia nem cpias do real, so um entre, um permeio sempre renovado que, sendo anterior diviso entre sujeito e objeto, fundamenta tanto o mundo quanto o ver. A viso-de-mundo se mostra, assim, no como propriedade de um sujeito, mas como um acontecer, um lidar, um estar e ser em meio, que ver-interpretar, que simultaneamente funda o vidente e o mundo. Ora, a conscincia da viso-de-mundo como origem de toda compreenso tanto do mundo quanto do sujeito, ganhou um forte impulso com o surgimento dos primeiros museus no sculo XIX. Mostrando aspectos culturais de diversos povos e momentos histricos, o museu despertou a suspeita da relatividade

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dos modos de ver e interpretar. Cada povo tem sua prpria compreenso do belo, do mundo, da divindade. Cada povo, ao interpretar a natureza a seu modo, funda seu mundo. Esta compreenso histrica, que se projeta para fora do tempo tentando alcanar uma perspectiva para alm das circunstncias momentneas, tornou-se latente em toda a cultura do final do sculo XIX. A partir dela, num autntico jogo de espelhos, o intrprete se v de fora, na incmoda posio de interpretar-se a si mesmo e, assim, suspeitar de sua prpria viso como uma mera interpretao. Com isso o real sofre um abalo e, por isso mesmo, o mundo, novamente, se abre e se oferece como possibilidade e liberdade. Para fundamentar um pouco mais esta afirmao, gostaria de citar um pequeno texto, elaborado a partir de uma mesa redonda, em que Michel Foucault prope discutir as tcnicas de interpretao em Marx, Nietzsche e Freud17. Foucault observa que: (...) a interpretao no aclara uma matria que, com o fim de ser interpretada, se oferece passivamente; ela necessita apoderar-se, e violentamente, de uma interpretao que est j ali, que deve trucidar, revolver e romper a golpes de martelo. Isto j se observa em Marx, que no interpreta a histria das relaes de produo, mas interpreta uma relao que17 Michel Foucault . Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum. (ref. bibliogr. 9) p.17-18

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se d j como uma interpretao, porque se oferece como natural. Inclusive Freud no interpreta smbolos, mas interpretaes. (...) Desta mesma forma, Nietzsche apodera-se das interpretaes que so j prisioneiras umas das outras. No h para Nietzsche um significado original. As mesmas palavras no so seno interpretaes, ao longo da sua histria, antes de converterem em smbolos, interpretam, e tm significado, finalmente, porque so interpretaes essenciais. (...) tambm este sentido no qual Nietzsche diz que as palavras foram sempre inventadas pelas classes superiores; no indicam um significado, impem uma interpretao.18 A indicao sugestiva de Foucault de que Freud, Nietzsche e Marx, trs pensadores de grande importncia para o mundo moderno, tm em comum o suspeitar dos sistemas de interpretao vigentes em sua poca, esclarecedora. De fato, Marx no inventa a luta de classes nem Freud o inconsciente e nem Nietzsche o poder das palavras. Tudo isto j estava presente no mundo. E, entretanto, nada disto teria consistncia nem seria perceptvel sem a elaborao de um discurso que retirasse estes entes do indiferenciado, do fundo amorfo da natureza de onde provm todo o real. Note-se ainda a semelhana entre a sugesto de Foucault de que Marx no interpreta a histria das relaes de produo, mas interpreta uma relao que se d j como uma interpretao, porque se oferece como natural, e a de18 Idem, ibidem.

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Leonardo da Vinci19, que indica o perigo de se imitar a pintura alheia. Ambos sugerem que o sistema de interpretao de uma poca tende a se impor como o real e que esta tendncia, ao se tornar comum e natural, acaba por impedir uma viso clara do real. Isto quer dizer que a interpretao no nem inveno do sujeito nem uma descoberta de algo dado pela natureza que o intrprete simplesmente mostra e imita. Trata-se de uma concordncia eternamente reformulada entre o intrprete e o interpretado, em que ambos se fundam e afirmam. Atentando para o que foi dito acima, percebemos que o modo como esta concordncia se d a linguagem. ela que engendra uma nova perspectiva de leitura e retira os entes do indiferenciado da natureza. Mas, apoiando-nos ainda no texto de Foucault, podemos dizer que no s a linguagem que nos abre uma outra possibilidade de interpretao, pois: ... h muitas outras coisas que falam e que no so linguagem. Poder-se-ia dizer que a natureza, o mar, o sussurro do vento nas rvores, os animais, os rostos, os caminhos que se cruzam, tudo isto fala; pode ser que haja linguagens que se articulem em formas no verbais.20 Compreendendo o termo Linguagem em amplo sentido, percebemos que as linguagens particulares da pintura, da msica,

19 Ver nota 16, p. 41 20 Michel Foucault. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum. (ref. bibliogr. 9) p. 6

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da religio, etc. fazem parte da edificao do sistema de interpretao de uma poca. Por este motivo, a cultura grega exerce ainda grande fascnio. Imaginamos facilmente um povo criador por natureza, a construindo para si uma pintura, uma escultura, uma arquitetura, como tambm uma filosofia, uma tica, um teatro, uma mitologia, uma potica, uma geometria, uma matemtica, uma dana e uma msica, um sistema econmico e de jogos, uma poltica e uma oratria, enfim, criando as mais diversas linguagens que contriburam como componentes ativos para a constituio de seu mundo. E no sem motivo que Plato prefere exilar de sua Repblica idealizada o poeta. Em uma poca em que o mito se concretizava em meio poesia, o poeta poderia, fazendo versos, desvelar novos deuses e, assim, mudar o mundo poder que Plato reivindica para o filsofo. Portanto, como nos ensina Nietzsche, a Linguagem no um simples meio de expresso inofensivo, mas o elemento estruturador das relaes do homem com o real, que instaura o mundo de um povo histrico. V-se logo que a ruptura com o realismo-naturalista do final do sculo XIX, no resultou de uma simples vontade de inovar e romper com o passado, na crena de que o novo necessariamente artstico. Tal ruptura foi, antes e mais originalmente, o fruto de uma desconfiana em relao consistncia do real, aberta e fundada pela perspectiva histrica que se impunha.

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Czanne segue esta mesma trilha. Suspeitando tanto do realismo tradicional quanto do impressionismo21, ele naturaliza a linguagem plstica e encara a realidade como uma questo. Procurando ver a natureza como ningum viu antes22, ele restaura a opacidade de um mundo que normalmente tende a se apresentar como um dado fixo. Para Czanne, o mundo se apresenta como algo incerto, posto que sempre visto atravs de uma tica prpria. Mas esta tica desenvolve-se pelo estudo da natureza que o ensina a ver. Czanne observa a mile Bernard: Ora, a tese a ser desenvolvida que seja qual for a nossa sensibilidade ou fora diante da natureza temos de transmitir a imagem do que vemos, esquecendo tudo o que tenha existido antes de ns. Este trecho, que em muito se assemelha ao incio do dilogo transcrito por Bernard (nota 12, pgina 21), faz parte de uma carta que termina com uma observao solta: A ptica desenvolve-se em ns pelo estudo, nos ensina a ver.23 Sabemos21 mile Bernard cita uma conversa com Czanne onde este observa: Quanto a mim, quando entrei em contato com os Impressionistas percebi que voltara de novo a ser estudante do mundo, para me fazer uma vez mais estudante. Nunca mais imitei Pissarro e Monet, como j tinha feito com os mestres do Louvre. Tentei produzir obra original minha, sincera, singela, de acordo com as minhas capacidades e viso prpria. Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. p.3) p.42 22 Conforme nota 12, p. 20-21. Devemos criar uma tica, devemos ver a natureza como ningum viu antes. 23 Paul Czanne. Carta a mile Bernard. Correspondncia. (ref. bibliogr. 5) p.257

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que Czanne estudara cuidadosamente os mestres do passado no Louvre, mas esta pesquisa insuficiente para ensin-lo a ver. De fato, o estudo rigoroso da linguagem pictrica uma etapa necessria sem a qual a pintura e o olhar de pintor no se abrem ou oferecem, mas, para Czanne, estas pesquisas devem ser esquecidas, ultrapassadas. O estudo real e prodigioso a ser empreendido a diversidade do quadro da natureza.24 o estudo da natureza que o ensina a ver e, note-se, ensina a ver tambm, com mais apuro e profundidade, as pinturas. Por um lado, o ver aprende com a pintura; esta ensina a ver a natureza que, por seu turno, ensina a ver a pintura. Mas, se admitimos que tanto a natureza quanto a pintura no existem fora de uma viso-de-mundo, foroso reconhecer que a viso um fenmeno precedente, originrio co-origina o mundo, a pintura e o pintor. Assim, o que Czanne apreende do impressionismo mais uma atitude do que um estilo. O que o impressionismo lhe recomenda e ensina o voltar-se atento para o mundo. Czanne procura diligentemente uma estrutura ordenada, mas no se conforma com as linguagens prontas dos mestres do passado ou dos impressionistas. A cincia da perspectiva, da anatomia, as teorias pontilhistas, ou quaisquer disciplinas preestabelecidas pela tradio, logo constitudas em cdigos, so revitalizadas pela natureza. Deste modo, ele mostra que a linguagem uma busca24 Idem, ibidem. p.246

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incessante, permanente, uma inquietao, pois se a natureza da viso nunca se d por terminada, a linguagem, do mesmo modo, se re-elabora em cada obra e em cada momento da formao da obra. Esta dinmica da elaborao da pintura identifica-se com a dinmica da viso-de-mundo. Por isso a esttica czanniana toda externa, naturalista, mas tambm resultado de uma viso prpria, de uma compreenso do visvel a partir de um ntimo e concentrado acorde afinado com o mundo natural. Ele observa: Na minha tela, cada pincelada deve corresponder a um sopro do mundo, luminosidade das rugas no seu rosto. Devemos viver em harmonia juntos, o meu modelo, as minhas cores e eu, combinando-se em cada momento fugaz.25 A viso-de-mundo se elabora no pintor e a viso do pintor, no mundo. Portanto, pintando que Czanne vem a ser Czanne e que o mundo expressa sua realidade.

25 Paul Czanne. Conforme Joachim Gasquet. Czanne - Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. 3) p. 66

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Ao transcender o espao tradicional e fundir o impressionismo com o classicismo, Czanne assume uma postura em relao linguagem; uma disposio de criar uma linguagem prpria, mas lgica, sem nada de absurdo, quer dizer, to objetiva e coerente quanto o mundo. Czanne demonstra que, para o pintor, o ato da percepo, a sensao e o pensamento so uma mesma coisa. Ao questionar as linguagens tradicionais e, por extenso, os sistemas de interpretao de sua poca, Czanne mergulha na origem fecunda da linguagem procura de um sentido a um s tempo lgico e potico da representao, que para ele mesmo permanece oculto. Desenvolvendo um trabalho lento e penoso, pleno de dvidas e hesitaes, sem nenhum referencial preestabelecido, contando apenas com sua intuio, Czanne procura uma pintura que traduza suas sensaes.

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Eu nunca soube para onde ia, para onde gostaria de ir com esta maldita vocao. Qualquer teoria me deixa perturbado...1 afirma Czanne. Em seus desenhos coloca mltiplos contornos, para que o olhar, saltando de um para o outro, obtenha uma leitura mais natural e espontnea. Em suas pinturas a vibrao da cor que sugere o ar, a profundidade. O desenho e a cor no so mais distintos, pintando desenha-se, mais a cor se harmoniza mais o desenho se precisa... Realizada a cor em sua riqueza, atinge a forma sua plenitude.2 O espao de Czanne exclui a distncia (a gestalt, mais tarde, viria a explicar que, na percepo sensvel, ao contrrio da viso fotogrfica, os objetos distantes parecem maiores e os prximos menores). A luz e o espao so expressos pelas cores, e nenhuma marcao da estrutura linear ou tonal precede sua aplicao, como do procedimento comum. Outrora encerrada em um contorno, a cor em suas obras transborda do objeto para se ligar s reas vizinhas. A imagem satura-se, liga-se, desenha-se, equilibra-se. Tudo se articula em ntima interao. O vermelho de uma ma, por exemplo, passa pelo amarelo, o alaranjado e o violeta; no por uma vontade de colorir, mas pela reao aos outros objetos do1 Paul Czanne. Conforme Joaquim Gasquet. Czanne - Os artistas falam de si prprios. (ref. bibliogr. 3) p.70 2 Ibidem. A dvida de Czanne. (ref. bibliogr. 15). p.118.

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quadro. No h, como em Poussin, uma separao entre reas estanques, cada uma contendo sua cor; todas as reas contm uma ampla gama de cores como nunca antes fora usada. A rigor, sequer podemos falar de reas em sua pintura. Observando um de seus desenhos, como a figura 10 (pgina seguinte), percebemos que sua concepo da forma aberta, no h separao entre a figura e o fundo, tudo vibra em conjunto, o vazio do fundo participa da forma, a linha de contorno d lugar a uma multiplicidade de linhas que pressupem um contorno na realidade inexistente. Como preencher tal figura com determinada cor, sem perder esta abertura que d tanta vida e movimento ao desenho? Este problema de romper com a rigidez da linha de contorno, que separa a figura do fundo, sem perder a densidade da forma, j havia surgido desde o Renascimento. A linha de contorno contnua tende a manter as figuras no plano bidimensional do quadro, dificultando a percepo do volume e da profundidade. Suprimir a linha de contorno seria abdicar da densidade das formas. Colocar vrias linhas uma soluo apropriada para o desenho, mas na pintura, onde geralmente a cor da figura difere da cor do fundo, ela se torna intil. A soluo usual, amplamente desenvolvida no perodo barroco, aproximar o valor tonal da figura com o do fundo. Aproveitando as sombras e as luzes das formas e aproximando o tom do fundo a estes valores, cria-se uma passagem que integra as duas reas dando a sensao de um

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FIG 10 - Paul Czanne. Estudos sobre Milo de Crotona. 1883. Lpis conte, 12 x 21 cm. Kunstmuseum, Basel.

espao coeso. O limite entre as diversas reas de cor, assim, permanece oculto na dinmica de luz ou sombra que serve de ponte entre a figura e o fundo. Vrios artistas e vrios estilos de poca desenvolveram suas obras utilizando este mesmo recurso. Ele resume um conflito natural entre a linha, que define o limite e a forma, e o tom, que sugere o volume e a luz, mas que tambm cria

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uma dinmica independente das formas3 tal como duas vozes de um coral, que cantam frases musicais diferentes, mas que compe uma unidade harmnica. A diferena de Czanne consiste em que ele tenta resolver este problema pela cor e no pelo tom: Aqui est, sem contestao possvel tenho plena certeza: no nosso rgo visual produz-se uma sensao ptica que nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos representados pelas sensaes colorantes. A luz, portanto, no existe para o pintor. 4 Para Czanne, a luz no existe de fato, ela uma abstrao. A luz algo que no se pode reproduzir, mas que se deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo quando descobri isso.5 Ao invs de modelar as formas sugerindo o volume atravs do claro-escuro, Czanne prope modular as formas sugerir a forma (e conseqentemente a linha) e a luminosidade (e conseqentemente o tom), atravs dos contrastes criados por pequenos mdulos de cor.3 Ver os conceitos de linear e pictrico de Heinrich Wolfflin em: Conceitos fundamentais da histria da arte. (ref. bibliogr. 22) 4 Paul Czanne. Carta a mile Bernard. Correspondncia. (ref. bibliogr. 5) p.251 5 Idem. Czanne - Grandes artistas. (ref. bibliogr. 8) p. 131

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A natureza morta inacabada da figura 9 um excelente exemplo do mtodo de Czanne. Nesta obra as formas ainda se encontram abertas, em pleno desenvolvimento. A construo se d a partir de pequenas pinceladas de cor. Observando-se as frutas sobre o prato, percebemos que Czanne no parte do contorno das formas para depois preench-las com a cor, mas, pelo contrrio, procura a forma a partir da cor. A ltima fruta da direita mostra com clareza o processo de determinao das formas a partir dos contrastes de cor entre as vrias reas, evitando, entretanto, que a forma apresente uma cor especfica diversa do fundo. A mesa se esverdeia, a fruta absorve o Terra de Siena da mesa. Czanne parte do contraste entre as cores complementares, que j est articulado desde o incio, e determina toda a dinmica da obra. H um jogo de diagonais semelhante ao desenvolvido por Poussin. No entanto em Czanne este jogo articulado sobretudo pelas cores e no pelas formas. H uma diagonal de cores quentes, dada pela mesa e por algumas frutas, e uma diagonal de cores frias, definida pelos verdes e azuis do cntaro e do fundo, que interagem com as frutas verdes do primeiro plano. A laranja sobre o tecido azulado cria um peso visual de cores complementares to intenso que equilibra todo o tom alaranjado da ampla rea de terra de Siena da mesa (o Siena composto de laranja com preto). Este contraste cromtico cria uma tenso diagonal sobre a qual se

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encontram os dois vermelhos mais intensos da obra (das frutas sobre o prato) que, por sua vez, se chocam com os verdes das outras frutas que lhes so complementares e comandam o eixo diagonal descendente. O raciocnio plstico articulado por Czanne semelhante ao de Poussin, e, em verdade, ao da grande maioria dos mestres. Em Czanne, contudo, este jogo no dado pelas formas delimitadas, mas por pequenas pinceladas de cor independentes das formas. A cor, alm de encerrar em si um valor tonal (o vermelho, por exemplo, mais escuro que o amarelo), aplicada deste modo, em pequenos mdulos, contm tambm um limite, uma linha. Formalmente este processo o aproxima da articulao cromtica de Poussin em que a cor delimita reas. Todavia em Poussin, as reas de cor pertencem aos objetos (as roupas, a pele das personagens, o cu, as nuvens...), enquanto em Czanne as cores criam ritmos independentes dos objetos. Czanne radicaliza o princpio compositivo de Poussin. Cada pincelada ou mdulo de cor funciona como uma pequena rea. Este processo cromtico difere tambm do processo impressionista. No quadro de Renoir, por exemplo, a copa da rvore maior tem um tom mais quente que se relaciona ao grupo de rvores alaranjadas da esquerda. Esta interao cromtica entre reas de cores similares, entretanto, comparada desenvolvida por Czanne, no s ainda

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tmida como articulada atravs de uma contnua e suave passagem. Os mdulos de cor de Czanne, por sua vez, fundam um ritmo mais marcante, o limite das pinceladas contrastantes estabelece um ritmo salteado, percussivo, como o ritmo de um tambor. Note-se tambm que, comparado s obras de Poussin e de Renoir, o claro-escuro de Czanne, de fato, conduzido pela cor. Em Poussin e Renoir, o modelado se articula sobre as reas de cor. Em Czanne, pelo contrrio, a luz, sendo uma conseqncia da cor, que modela. Ele observa: No existe nenhuma linha, no existe nenhum modelado, s existem contrastes. Mas os contrastes no so de branco e preto, mas movimentos cromticos. Modelar no mais que a exatido na relao dos matizes cromticos. Se esto corretamente justapostos, e esto todos ali, o quadro se modela por si s.6 A afirmao no existe nenhuma linha poderia parecer forada em vista da Natureza Morta Com Cntaro. Mas as linhas que encontramos neste quadro, alm de serem coloridas (como observa Rilke, Czanne comeava pelo colorido mais escuro7), se assemelham s do estudo sobre Milo de Crotona (figura 10, pgina 56). Elas so abertas,6 Paul Czanne. Conforme Maurice Denis. Documentos para la comprensin del arte moderno. (ref. bibliogr. 12) p.27 7 Ver nota 5, p. 7

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no contornam as formas. Funcionam como veios de um matiz cromtico escuro onde o desenho no est dissociado da cor. No canto superior esquerdo do quadro, podemos observar um procedimento que se desenvolve pelo restante da composio aps lanar uma linha, Czanne a dissolve, a arrasta para formar um plano de cor a linha funciona como o limite de um contraste cromtico. Em Czanne no h autonomia entre linha, tom, e cor. Em um s esforo, de uma s vez8, a cor forma, modela e estabelece a dinmica da obra. um trabalho direto, franco, inteirio, em que a cor rege a gnese do quadro.

A lgica em aoAnalisemos, agora mais detidamente, a Montanha de Sainte-Victoire de Czanne (figura 6). Nela se percebe quanto a perspectiva vacila entre projetar-se em um espao profundo e permanecer no plano do quadro. O espao dado pelos contrastes entre as pequenas pinceladas de cor que, como vimos, no pertencem a rea alguma, mas se distribuem criando ritmos independentes das formas.

8 Ver nota 9, p. 18

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A forma da montanha enfatiza por si s a estrutura piramidal da composio. Esta tenso de elevao contrabalanada por uma segunda pirmide invertida que permanece oculta, pois sugerida apenas pelo ritmo das cores. Uma das arestas desta pirmide invertida dada pela vegetao do canto direito, que se eleva verticalmente e retm os azuis do cu projetando-os para baixo. interessante notar que os azuis tambm se misturam com os verdes da vegetao, acrescentando-se assim uma quantidade suficiente de azulado para fazer sentir o ar9. O olhar, assim projetado para baixo, acaba por encontrar-se em meio a um ritmo de verticais dado pelos troncos das rvores que, sendo pretos, mantm este grupo em primeiro plano (em uma paisagem, as reas distantes tendem a permanecer em uma gama de meios tons, enquanto o primeiro plano tende a apresentar contrastes de luz e sombra, logo de preto e branco, mais intensos). No centro do quadro, levados pelo ritmo destas verticais, encontramos o pice da pirmide invertida, uma nota de cor avioletada da mesma qualidade do tom avioletado da montanha. A outra aresta da pirmide invertida permanece mais velada ainda; ela sugerida sobretudo por uma fatura mais agitada de pinceladas de qualidade fria que atravessam o alaranjado do vale. Nela h tambm um ritmo de pretos, alguns confusos no primeiro plano, uma nota atrs da casa que aparece no vale, uma outra na horizontal que9 Ver nota 4, p. 11

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separa o vale da montanha, seguida de outra no canto extremo esquerdo da montanha, que, pela proximidade, conduz o olhar para as reas escuras das nuvens logo acima. Note-se agora a distribuio das cores como um todo. A composio se articula em faixas horizontais. No topo, temos uma faixa azul e na base uma outra verde, predominando as cores frias. A faixa central quente, representada pelos laranjas do vale. Os violetas na montanha articulam uma passagem para os azuis do cu (os violetas so formados pela soma de vermelhos e azuis, logo, por cores quentes e frias), enquanto a vegetao do primeiro plano funciona tambm como passagem para o campo da base totalmente verde. Esta passagem, entretanto, no dada por uma cor intermediria determinada, mas pelos ritmos de cores quentes e frias colocadas lado a lado. A esta dinmica de cores na horizontal, contrape-se um veio de tenso vertical no centro do quadro, que une todas as faixas horizontais, rompendo-as. Nele a montanha perde o limite em relao ao cu e ao vale, que, por sua vez, perde o limite em relao faixa de vegetao. Esta se mistura com o gramado atravs de uma nota clara colocada no pice da pirmide invertida. um veio de dissoluo dos limites que convida o olhar a escalar a montanha. Observe-se que o cu mais violeta de um lado e azul do outro, ou ainda as variaes mais sutis de luz e cor no gramado do primeiro plano, que no esto ali ao acaso.

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Percebe-se, resumindo, que h uma infinidade de ritmos articulados. Assim como em Poussin, Czanne cria relaes e caminhos para os olhos. Entretanto, estas relaes no so abstraes, mas percepes cromticas. O calor avioletado da montanha que se esfria medida que se eleva, os azuis nas copas das rvores sugerindo o ar, o veio horizontal de azuis escuros no cu, que toca o topo da montanha sugerindo que ela se eleva at as nuvens, as reas avioletadas sob as rvores que nos do a sensao da terra nua sombra... tudo isso articula uma dinmica formal na obra, mas tambm traduz a essncia do prprio mundo. Mas encerremos nossa anlise por aqui. Quantas pginas seriam necessrias para analisarmos todos os ritmos e sentidos contidos nesta obra? E isto possvel ou vlido? Este tipo de leitura formal comum nas anlises da obra de Czanne, entretanto elas no esgotam sua leitura. Se radicalizamos estas anlises, perguntando pelo sentido de cada pincelada, percebemos que h tambm em suas obras relaes formais estranhas, que escapam lgica compositiva mas que, entretanto, funcionam. H tanto sentido para cada toque, cada um devendo conter o ar, a luz, a cor, o objeto, o plano, o carter, o desenho e o estilo10, que como se o pintor atingisse o limite do lgico, o seu delrio.10 mile Bernard descrevendo a infinidade de condies que cada pincelada de Czanne deveria satisfazer. A dvida de Czanne. (ref. bibliogr. 15). p.118.

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Assim, estas anlises ajudam-nos a compreender o processo criativo de Czanne mas no o esgotam, pois h algo mais que orienta o seu fazer para alm de uma lgica complexa. Sua obra suscita a intuio de uma dinmica no determinada ou dominada pelo pensamento humano. No somente a determinao de tal ou qual ritmo compositivo o que fica articulado, mas uma matriz de ritmos, plena de sentidos abertos. Como a prpria natureza que lhe serve de motivo, suas obras se abrem a mltiplas leituras. A diversidade das relaes estabelecidas, transcendendo a lgica da anlise, nos envolve no processo de construo da obra e nos projeta para dentro do acontecimento da criao, deixando transparecer a procura de uma lgica da ao. Paradoxalmente ressoa em sua obra a vontade construtiva, a busca da ordem, mas, do mesmo modo, a dvida e o questionamento, o descontrole, o deixar-se conduzir pela pintura e o deixar que a pintura seja conduzida pelo mundo.

O mundo como estrutura cromticaA cor em Czanne funciona como um princpio. Isto ocorre medida que a aplicao das pequenas reas de cor rege e conduz o desenho e o claro escuro das formas. bem verdade que a distribuio da cor em pequenas pinceladas j era um procedimento tpico do impressionismo, como

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podemos constatar na obra de Renoir, e sobretudo na fase fi