a explicação da crise energetica segundo os telejornais

Upload: ricardo-freitas

Post on 09-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    1/14

    QUEM EXPLICA O QU, PARA QUEM E COMO?

    A EXPLICAO DA CRISE ENERGTICA BRASILEIRA EM 2001SEGUNDO OS TELEJORNAIS

    Denise LINO DE ARAJO (Doutoranda/USP Professora UF deCampina Grande PB)

    ABSTRACT: This paper aims at discussing the way to news programsexplain the power crisis (blackout). The theoretical fields of AppliedLinguistics, Journalism and Educations are concerned. The analysisshows that both programs play a didatic role on informing the shortagegoals to the public.

    KEYWORDS: Journalism, Applied Linguistics, Social Communication.

    0 Introduo:

    Os estudos em lingstica aplicada realizados no Brasil sobre aexplicao e a transposio didtica tm se voltado principalmente para assituaes de repasse de informao na escola (Signorini 1991 e 1994,Reinaldo 1994, Rafael 2001). Situaes nas quais a explicao tem sidomuito usada para o repasse de informao, como determinados gneros deprogramas televisivos e experincias no escolares de ensino do tipotrabalho artesanal, entre outros, tm sido pouco exploradas. Este trabalhofocaliza a explicao em outro mbito, nos telejornais. Para isso, apia-senos estudos citados e tambm nos realizados pela escola de Neuchtel(Ebel 1981, Borel, 1980 e 1981, Grize 1980) sobre o mesmo tema tendoem vista responder a seguinte pergunta: como esses informativosexplicam temas que requisitam a apresentao, o desdobramento, acomplementao e a ampliao de informaes?

    Os dados aqui analisados integram um trabalho mais abrangentee referem-se crise energtica brasileira de 2001, mais conhecida comoApago, e foram gravados em VHS no momento da sua exibio em doistelejornais: Jornal Nacional, veiculado pela Rede Globo de Televiso, e oJornal da Record, veiculado pela Rede Record de Televiso. O subgrupoaqui analisado faz parte de um corpus ampliado, que conta com 33

    Este trabalho apresenta dados parciais da minha tese de doutoramento Umprofessor no horrio nobre: estudo da explicao em telejornais, defendida naFaculdade de Educao da USP, em abril de 2004.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    2/14

    edies completas gravadas no perodo de abril a junho de 2001, commais de 50 reportagens e comentrios didticos. Dentre os gnerostelejornalsticos que se baseiam na exposio, apenas esses dois foramcontemplados neste trabalho. Quanto perspectiva de anlise, este umestudo de cunho interpretativo, pois valoriza a interpretao em lugar damensurao.

    1. Histrico da crise e fundamentao terica

    A crise energtica ocorrida no Brasil, no ano de 2001, mas

    especificamente nos meses de maio a agosto, foi um fato econmico,social, poltico, jurdico, histrico e enunciativo. Muito antes de seroficialmente reconhecida e gerenciada, peridicos especializados e osprincipais jornais impressos vinham divulgando que a capacidade degerao de energia no Brasil entrava num nvel considerado crtico porvrios motivos (cf. Rosa 2001, Solik 2001). Em sntese, para osespecialistas, a crise era esperada e j dera sinais de que se instalaria.Finalmente, a partir de abril de 2001, devido s poucas e esparsas chuvasdaquele ano, a crise do apago foi uma realidade para trs regies do pas o sudeste, o nordeste e o centro-oeste.

    No se sabe ao certo quando as notcias sobre o apagocomearam a circular, porm como um relatrio do ONS1com o alerta deblecaute generalizado foi entregue ao governo em maro daquele ano provvel que, com o vazamento da notcia, tenha comeado a especulaopor parte da imprensa, forando o governo a se manifestar.

    Finalmente, em 10 de maio daquele ano, foi instalada a Cmarade Gesto da Crise de Energia (CGE) que se ocupou do gerenciamento dacrise, implantando o sistema de cotas de consumo, para evitar ospropalados apages. Isto feito estava posto o problema para a imprensaque era exatamente desfazer, junto populao, a idia dos apages, paraos quais boa parte j estava influenciada, at com a aquisio doschamados kits (lanternas, lmpadas de emergncia, pilhas, etc). Diga-sede passagem, a imprensa foi em parte responsvel pela idia de apages ekits. Ao desfazer essa idia, uma outra precisava ser construda: a daeconomia (racionamento e/ou racionalizao) do uso de energia eltrica.O siteenergiabrasil informa que o arcabouo do plano ficou pronto emapenas 10 dias e nele se mudou a perspectiva de apago para a gesto dedemanda (ou auto-apago, como preferem os que do um tom maisirnico questo) e diz ainda a imprensa realizou um trabalho exemplar

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    3/14

    no acompanhamento do racionamento, dando ampla divulgao smedidas, preparando cartilhas de orientao e, quase diariamente,acompanhado a situao em relao curva guia. O trabalho daimprensa, em particular dos telejornais, foi, com raras excees, o deensinar o telespectador a se ajustar crise, racionando o consumo e, decerta forma, se sentindo responsvel pelo sucesso ou fracasso do plano.

    Ao levar em considerao este tema, este trabalho buscouidentificar como a explicao do racionamento foi construda por partedos telejornais. Segundo Amsterdanski (1996: 159 179) as condiesgerais para a existncia da explicao incluem a presena de uma situaode desequilbrio de conhecimentos, sendo o caso primeiro a explicao deX para algum. No entanto, para que se consolide, a clareza, i.e, a

    possibilidade de compreenso, o acrscimo de informao, a restituiode causas e justificativas, condio sine quae non. Para isso, no bastaser mera informao, preciso que esteja adequada e modifique acondio inicial daquele que busca ou pede explicao, portanto, naspalavras do autor (p. 156), preciso estudar as condies que aexplicao deve preencher para colmar as lacunas do conhecimento2.

    Entendendo que a atividade de divulgao de informaes e/ourepasse de conhecimento compe uma dessas esferas, sendo a que faz amediao entre a esfera cientfica e a vida cotidiana, por exemplo, ou aesfera poltica e a ao social, considera-se, no contexto deste trabalho,legtima a discusso sobre explicao (sua formulao, perspectivas,caractersticas e funes) no mbito do discurso telejornalstico.

    Ebel (1981: 16) afirma que, de modo geral, a explicao estrelacionada causalidade. Nesse sentido, em suas palavras, explicartende a se confundir com os verbos dizer e repetir. De outro lado, tododiscurso pode ser compreendido como o desenvolvimento de outrosdiscursos que visam a esclarecer.

    De forma geral, os autores da escola de Neuchtel adotam umaperspectiva enunciativa e interacionista para os fenmenos da linguageme admitem que um evento comunicativo no explicativo em si mesmo,mas pode assimilar uma dimenso explicativa decorrente da situao deinterlocuo. a situao de comunicao social que instaura ou no anecessidade de a interlocuo assumir uma dimenso explicativa. No casodas situaes de ensino, seja institucional ou no, essa dimenso seapresenta como inerente ao repasse de informao.

    Essa perspectiva tambm admite que h uma associao entreexplicao e efeito didtico, de modo que todo procedimento explicativo,ainda que no seja um evento didtico, guarda, em tese, a inteno defazer algum compreender algo.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    4/14

    Nesta perspectiva, o que legitima a explicao a noo deenunciao, na qual est imbricado o valor que os coenunciadores seatribuem, bem como a noo de prticas sociais e discursivas3. Dessemodo, uma narrativa, uma piada, assim como uma explanao terica euma reportagem pode ter valor explicativo dependendo das condiesenunciativas em questo. Portanto, o efeito explicativo se constri no jogolingstico quando os interlocutores se engajam na sua construo. Pode-se dizer que se a inteno explicativa posta mesmo que por apenas umadas partes, seja aquela que solicita ou aquela que pode apresentar aexplicao, o efeito, ento, tem possibilidades de se estabelecer. Nessesentido, a explicao uma seqncia discursiva naturalmentecooperativa.

    Doumazane (1985: 27 34), assim como outros autores, admiteque uma das principais atividades jornalsticas consiste em explicar osfatos e no apenas descrev-los. Para Peytard (1984), a explicao de umamatria nos (tele)jornais uma atividade decorrente da reformulao detextos. Esse autor (op cit. p. 27) destaca o trabalho realizado pelosjornalistas e tambm pelos professores na reformulao de textoscientficos, apresentando-os como agentes primrios desse processo. Oautor considera ainda que jornalistas so tambm, em certa medida,professores por que tm como escopo do seu trabalho explicar, esclarecer,estabelecer relaes. Diz que da prtica de transformao de textos,comum nas redaes, resulta um documento equivalente ao original (ouoriginais), mas modificado em seus processos discursivos; tal prticalana mo de uma retrica que procura no reformular o ncleo centralpara preserv-lo de toda alteridade. O autor destaca como atividades dereformulao a traduo, a reescritura, a exposio didtica, o discursorelatado e a parfrase. Todas essas presentes tanto nos (tele)jornais quantona escola.

    Brey (1984) defende que a atividade de reformulao de textos,que em sntese uma atividade de transposio didtica, fundamentalpara dominar um conceito, ou seja, para o seu pleno entendimento pelodomnio pblico, e isto resulta na (re)organizao de reas e de saberes apartir de reformulaes sucessivas. Tal dominao , na viso do autor,uma ao ativa, que consiste, primeiramente, em reconhecer aespecialidade qual o conceito se aplica. Em segundo lugar, consiste emutilizar o conceito em domnios diferentes deste primeiro, difundindo-o,numa verso adaptada a destinatrios com diferentes nveis de ateno eacolhida.

    Em suma, os estudos da lingstica aplicada vm a explicaocomo uma atividade lingstica estruturada sobre dois eixos: o cognitivo e

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    5/14

    o interacional. Para os autores da escola de Neuchtel, esse segundo eixoquase sempre prevalece. Para os estudos de comunicao social,particularmente os do Newsmaking, a explicao uma atividade inerente atividade jornalstica de informar; o resultado da transformao detextos-fontes em textos de divulgao, tal trabalho tem sempre em vista oconsumidor, seja ele leitor, telespectador ou ouvinte.

    2. Anlise dos dados

    A anlise de dados revela que no obstante as diferenas

    ideolgicas, editoriais e de formato, os dois telejornais focalizados nestetrabalho se mostram semelhantes no tratamento dado construo daexplicao do tema crise de energia. A semelhana se revela tanto naposio enunciativa que assumem para construir a explicao quanto notipo de recurso explicativo utilizado. Neste trabalho, apenas algunsaspectos relacionados a semelhanas enunciativas e atividade dereformulao textual em forma de traduo vo ser apresentados. Parauma viso mais ampla do assunto, consulte Lino de Arajo (2004).

    De acordo com a anlise, a posio enunciativa e os recursoslingsticos mobilizados para a explicao se mostram como aspectosindissociados. No corpus analisado, os dois telejornais assumem umaposio enunciativa do tipo professoral no que diz respeito ao repasse dasregras do racionamento, i.e, assumem a posio enunciativa em que semanifestam no s como quem ensina quais so as metas de consumo deestabelecidas pelo governo, aspecto comum ao JN e JR, mas tambmcomo quem ensina a outrem como atingir essas metas, aspecto maiscomum ao JN. Assim, os dois telejornais procuram estabelecer ascondies favorveis apresentao de uma explicao, eles tomam comoponto de partida a existncia de uma situao de desequilbrio deconhecimento, em que de um lado, h a determinao de metas por partedo governo, e, de outro, h a populao que desconhece ou no entendeessas metas. Eles se apresentam, ento, como mediadores e tradutores.Simulam dvidas, suscitam contextos potencialmente problemticos epassam a dar instrues de sobre a operacionalidade do plano, tendocomo referncia uma possvel falta de informao por parte do pblico.Como atividade principal, transformam as informaes em reportagens ecomentrios didatizados, conforme demonstram os dois exemplosapresentados neste trabalho.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    6/14

    O JR assume uma posio enunciativa do tipo professoral, que semostra mais claramente nos comentrios do que nas reportagens. Essascumprem a funo de cobrir a pauta governamental, apontando asmudanas no plano e os desdobramentos polticos da crise. A explicaopropriamente dita, i.e, o desdobramento de um tpico, apresentando osaspectos com os quais se relaciona e o ponto sob o qual deve serentendido, uma tarefa desenvolvida no comentrio to somente peloncora do telejornal, o jornalista Boris Casoy. As incurses de Boris noscomentrios fazem lembrar situaes escolares de apresentao deconceitos durante exposies orais, como indica o exemplo a seguir.

    Os comentrios apresentados no JR tm vrios objetivos, masneste trabalho apenas um deles ser apresentado. Trata-se do objetivo de

    traduzir determinadas informaes para o pblico, como serdemonstrado a seguir.

    Exemplo 1 - Comentrio apresentado em 25 - 054

    Boris (comentrio):Estado de emergncia outra coisa. No tem nada aver com 1energia eltrica. O ministro, evidentemente, quis falar que vivemosuma situao de emergncia. Olha, o cdigo de defesa do consumidor uma lei que funciona, tem rapidez e est em dia com a realidade de cadaum de ns, da populao, por isso, tem uma tremenda estima popular.Mexer nessa lei atravs de uma medida provisria de supeto tem sabor atde sacrilgio. extremamente positivo o fato de o presidente determinar oreestudo do assunto e mudar essa MP a::: cuja alterao provocou asreaes que todos ns conhecemos. Entretanto, at porque, os jornaismostraram informalmente que a maioria dos ministros do supremo v pelomenos parte dessa medida provisria, esse artigo 25, como inconstitucional.O momento delicado. O racionamento precisa, j tem, mas precisa termais apoio da populao e o governo no pode errar mais ainda em cima dagente. Fatos como esse, indecises e titubeios fazem desabar acredibilidade de qualquer governo em qualquer lugar. Credibilidade essa, nonosso caso, j afetada pela prpria falta de energia eltrica.

    Este comentrio apresentado na 15 fala de uma longareportagem (330) sobre as conseqncias jurdicas e financeiras doplano de racionamento e incide, num primeiro momento, sobre umadeclarao de um ministro de estado sobre o fato de que com o plano deracionamento o pas encontrava-se em estado de emergncia, embora nodeclarado. A atividade explicativa inicia-se pela negao do que seja

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    7/14

    estado de emergncia - Estado de emergncia outra coisa. No tem nada aver com energia eltrica mas na seqncia a explicao se perdeexatamente porque no diz o que estado de emergncia, ou seja, o textoperde de vista a contextualizao do termo e a sua especificao. Ojornalista parece tentar concluir a explicao iniciada, mas fica apenasnuma interpretao das palavras do ministro - O ministro, evidentemente,quis falar que vivemos uma situao de emergncia. Este insucesso leva asupor que pelo menos essa primeira parte do comentrio no foidevidamente planejada, como demonstra ser o restante do trecho. Estecaso, se observado pelo ngulo ideacional, demonstra que tentativa deexplicar no se consolida, pois a exposio no atende ao requisito daexplicao racional. Todavia, esse um bom exemplo para demonstrar

    que as explicaes apresentadas em telejornais se aproximam bastante deexplicaes apresentadas na vida cotidiana, nas quais o que interessa,muitas vezes, no a explicao racional do fato, mas to somente aapresentao de um trao distintivo em relao ao evento posto emquesto. Em sntese, o que parece ter ocorrido neste trecho especfico foiuma explicao que no se efetivou plenamente e s amalgamou maisinformaes s j apresentadas. Pode-se pensar tambm que esse comeodo comentrio no estava devidamente programado, e, como disse Boris,certa vez numa entrevista, baixou na hora, tornando-se, portanto, ummicroevento relativamente no planejado dentro de um evento maior,planejado e bem sucedido, - o comentrio que segue sem maioresproblemas. O exerccio de traduo no teve, portanto, o xito esperadonesse primeiro momento.

    Na seqncia, o comentrio parece enveredar por uma outralinha. um comentrio mais didtico, discorre sobre a lei de defesa doconsumidor e tenta apontar duas razes para o fato de o presidente daRepblica ter feito um recuo estratgico, admitindo a possibilidade dereviso da medida provisria que decretara o racionamento e estabelecerao prazo de 48 horas para a realizao dos cortes por parte dasconcessionrias de energia, aps a constatao de consumo residencialacima do estabelecido. Ambas as razes so de natureza poltica, sendo aprimeira relativa ao desgaste da imagem do presidente e do governo junto opinio pblica, por afrontar uma das leis mais efetivas na garantia dosdireitos do cidado no pas, e a segunda relativa provvel derrotapoltica e jurdica que a medida sofreria no Supremo Tribunal Federal jque os ministros desse Tribunal, conforme declara o jornalista, j tinhaminformalmente se manifestado contrrios a tal medida exatamente noartigo que alterava a lei do consumidor e o fornecimento de energia, que um servio bsico garantido pela Constituio.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    8/14

    O comentrio prossegue ainda com uma espcie de resumo domomento poltico e econmico - O momento delicado - e s pode serentendido se o telespectador fizer um rpido flash back dosacontecimentos. O momento era delicado por que, do ponto de vistaeconmico, se o apago se concretizasse seria um desastre para aeconomia que j estava em crise, agravada pela alta constante do dlar,pelas crises no Senado (violao do painel do senado na votao dacassao do senador Luiz Estevo, renncia dos senadores Jos RobertoArruda e Antnio Carlos Magalhes, e CPI contra o presidente do SenadoJader Barbalho), pela crise Argentina que j estava em curso, muitoembora s no segundo semestre de 2001 tenha se tornado incontrolvel.Era tambm delicado aquele momento, do ponto de vista poltico, porque

    o apago polarizou, num primeiro momento, interpretaes do poderexecutivo, do legislativo (oposio) e do judicirio.

    Finalizando o comentrio, o ncora toma uma das raras posturasde adeso explcita ao plano de racionamento, conclamando a populao aapoiar ainda mais, todavia, faz tambm crticas ao governo pelasindecises quando medida provisria mencionada.

    Esse um comentrio longo, de um minuto e meio, que parecequerer traduzir a crise para diferentes tipos de telespectadores. Dirige-se, primeiro, aos que no sabem o que Estado de Emergncia, mas quetambm no ficam sabendo de fato o que ; depois, aos que precisam deelementos para entender a possvel mudana na medida provisria a quese referiu o presidente da Repblica; na seqncia, dirige-se populaocomo um todo e, por fim, ao prprio governo. O saldo de tudo isso umadisperso de informaes que devem ser ordenadas pelo telespectador.

    No JN, diferentemente do JR, s muito raramente aparecemcomentrios. Neste outro telejornal, as reportagens so o principalinstrumento de informao e de esclarecimento. A anlise dos dadosrevela que a posio enunciativa do principal jornal da Rede Globo emrelao ao plano de racionamento foi uma posio nitidamente escolar,i.e, desde as primeiras notcias, esse informativo apresentou uma srie dereportagens que exemplificavam as metas estabelecidas pelo governo ouapresentavam exemplos prticos de como se adaptar situao. Noexemplo a seguir, ser apresentado um extrato do corpus no qual,comparativamente escola, ocorre uma espcie de traduo do textofonte, ou seja, apresenta-se uma reportagem que procura didatizar asmetas determinadas pelo governo, como demonstra o exemplo a seguir.

    Exemplo 2 - Reportagem exibida em 18 05

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    9/14

    1. William Bonner: /.../ veja agora como faz cada famlia com a meta deconsumo a ser cumprida para evitar o aumento na conta de luz.

    2. Ar i Peixotoem off: No apartamento da consultora de moda SandraSchimidt, a conta este ms foi de assustar: um consumo de 1210 kWh.Para este especialista em desperdcio, os motivos do gasto so os 4aparelhos de ar-condicionado, o forno de microondas e o ferro eltrico.S ele consome 12 kWh se usado 3 horas por semana. Reduzindo ouso destes equipamentos, a economia pode chegar a 20%.

    3. Jos Abrantes: Eles vo conseguir ao todo reduzir aproximadamenteem torno de 250 kWh. Com todas essas economias. O principal vilo o ar-condicionado.

    4. AP: Quanto que eles economizariam a em quilowatts?5. JA: Em torno de 150, 180 kWh.6. Sandra Schimidt: T reduzindo dentro do possvel e reeducando as

    pessoas da minha casa, talvez at mesmo me reeducando.7. APem off: Na casa da atriz Andra de Castro, o consumo chegou a

    300 kWh.8. Andra de Castro: Eu parei de usar a cafeteira, a torradeira eu diminu

    o... a quantidade de uso, n, quer dizer, e... mquina de lavar duasvezes por semana s, que eu diminu tambm...

    9. APem off: A mquina de lavar, por exemplo, consome 18 kWh por msse for usada 3 horas por semana. No apartamento conjugado, ondevive com uma neta, D. Maura tem um consumo mdio de 150 kWh porms. O peso maior do gasto fica com o chuveiro eltrico. Meia hora debanho por dia significa 53 kWh na conta de energia.

    10. Maura Miranda: Tenho f que d certo, entendeu? Se Deus quiser,n?

    11. AP: Os brasileiros que esto na menor faixa de consumo podem teruma boa surpresa nos prximos meses. Dependendo da economia quefizerem, os consumidores que gastam at 100 kWh por ms podem atter a conta de luz paga pelo governo.

    12. AP em off: 39% dos brasileiros que vivem nas regies Sudeste,Centroeste e Nordeste esto nesta faixa, como D. Maria Eugnia. Eleteve um consumo mdio nos ltimos trs meses de 43 kWh.

    13. D. Maria Eugnia Silva: Eu economizo mais que posso. Eu no... nouso nada nada nada mais/ a mais.

    14. APem off: O bnus para essa faixa de consumo de 2 reais para cadareal economizado. Se ela deixar desligado o ventilador de teto e usarmenos o chuveiro eltrico, pode reduzir o consumo a 28 kWh nosprximos meses. A a conta vai sair de graa.

    15. MES: Se no pagar, melhor. Eu acho uma boa idia.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    10/14

    Essa uma reportagem de didatizao, pois as metas de

    racionamento fixadas pelo governo so retomadas a partir de exemplos.Em primeiro lugar, apresentado o caso de uma consumidora que estavainserida na chamada quarta faixa de consumo, i.e, a faixa acima de 501kwh ms, qual se aplicavam as seguintes regras do racionamento: (1o)reduo do consumo em 20%, como os demais consumidores, exceto o da1a. faixa; (2o) sobretaxa de 50% sobre o consumo entre 201 kwh e 500kwh; (3o) sobretaxa de 200% sobre o que excedesse a 501 kwh.

    Para exemplificar, a reportagem apresenta o caso de SandraShimidit, cujo consumo de energia era da ordem de 1210 kwh (vide asfalas de 1 a 6 acima). Verifica-se nesse excerto que a nfase reca sobre o

    ferro eltrico, um aparelho essencial vida domstica, sobre o forno demicroondas e sobre os aparelhos de ar condicionado, pea tambm chavenum numa cidade de clima quente como o Rio de Janeiro. De todos essesutenslios, talvez os ltimos fossem os nicos que pudessem ficardesligados durante o inverno.

    Em segundo lugar, apresentado o caso de um consumidor daterceira faixa, ou seja, aquele a quem se aplicavam duas das regras doracionamento, a saber: (1o) reduo do consumo em 20%, como osdemais consumidores, exceto o da 1a. faixa; (2o) sobretaxa de 50% sobreo consumo entre 201 kwh e 500 kwh.

    Na traduo do texto, Andra Castro foi tomada como conedos consumidores de mdio poder aquisitivo. A nfase dada para areduo do uso de aparelhos domsticos como a cafeteira, a torradeira e amquina de lavar (fala 8 - Andra de Castro: Eu parei de usar a cafeteira, atorradeira eu diminu o... a quantidade de uso, n, quer dizer, e... mquina delavar duas vezes por semana s, que eu diminu tambm...).

    Depois, apresentado o caso de D. Maura, uma consumidora dasegunda faixa, at 200 kwh. Ela estava compelida, como os das demaisfaixas, a economizar 20% do consumo, mas seria beneficiada com R$1,00 para cada real economizado. Sobre essa faixa do consumo noincidia a sobretaxa. Nesse caso, o vilo foi o chuveiro eltrico,conforme indicado na fala 9 (O peso maior do gasto fica com o chuveiroeltrico. Meia hora de banho por dia significa 53 kWh na conta de energia).

    Por fim, apresentado um consumidor da primeira faixa, ou seja,at 100 kwh; este no era obrigado a economizar mas o que economizasseseria recompensado na relao de R$ 2,00 para cada 1,00 economizado.Uma senhora cujo consumo era de apenas 43 kwh foi a protagonista desteltimo exemplo.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    11/14

    Como se v, as ilustraes exemplificam as faixas de consumode energia eltrica estabelecidas pelo governo durante a vigncia do planoe se integram num plano de narratividade para apresentar o contedo.Nesse caso, as caractersticas do jornalismo didtico, previstas porDoumazone (1985) o formato da narrativa, hierarquizao deenunciadores, experts, testemunhas so encontradas no texto montadopelo reprter, que uma espcie de narrador onisciente, sendo capaz dedescrever o consumo das faixas sem usar nenhum verbo discendi oudeclarandi. Quanto presena de especialistas, veja que h o curioso casode um especialista em desperdcio (sic!) como o denomina o reprter,embora nos crditos das imagens esse mesmo aparea nomeado comoespecialista em energia, o que parece mais adequado. Esse especialista s

    opina quanto reduo na maior faixa de consumo. E j aparece a relaomaior faixa de consumo e expert para orientar os consumidores destafaixa. Os demais casos so ilustrados com a participao das testemunhas.Observa-se que elas cumprem a funo de dar um reforo tese dereduo nos gastos com energia, conforme demonstram as falas 3, 6, 8 10,13 e 15 acima apresentadas.

    Neste exemplo, o papel de tradutor das medidas parece ter sidolevado s ltimas conseqncias, pois no lugar da exposio eapresentao das regras entra a narratividade e a exemplificao. Areportagem, como um todo, uma espcie de grande narrativa, cujoobjetivo exemplificar as faixas de consumo determinadas pelo plano deracionamento. Nesse caso, explicar X a algum, para o telejornalfocalizado, equivale a contar uma histria. Dito em outras palavras,quando o JN se outorga o papel de explicador de um tema que parecejulgar fora do horizonte de conhecimento do explicatrio (ostelespectadores) utiliza-se de estratgias de apresentao e traduo dotema. A apresentao ocorre nas diversas reportagens expositivas, ou seja,naquelas em que as informaes so apresentadas sem o apoio detestemunhas, infogrfico ou qualquer outro recurso de ilustrao.Compe-se basicamente de offe passagem do reprter e, s vezes, de umasonora. Depois dessas reportagens que, normalmente, so veiculadas asreportagens didticas, que tm como um dos objetivos a traduo dasinformaes. Do ponto de vista lingstico, uma das formas de concretizara didatizao narrar histrias.

    No caso em pauta, lamentavelmente, a narrao perdeu adimenso humana do processo quando o reprter acrescentou um adendoao ltimo caso relatado. Na fala 16, ele afirma que, para ganhar o bnus eter a conta zerada, D. Maria Eugnia poderia deixar desligado oventilador e o chuveiro eltrico, dessa forma o consumo cairia para 28

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    12/14

    kwh. Enquanto exemplificao de uma regra matemtica, pareceadequado o clculo hipottico de reduo de consumo, mas, do ponto devista humano e sociolgico, este seria um bom exemplo para mostrarcomo esse consumidor que praticamente s usufrua de lmpadas acessas(e poucas lmpadas) se acatasse as regras seria o mais penalizado noprocesso. Com isso, a reportagem teria feito uma crtica ao bnus no quediz respeito ao fato de que para ser conquistado ele impunha sacrifciosainda maiores. Todavia, essa no a perspectiva, a lio do professortermina na verso das informaes e no vai adiante em busca dareflexo. Momentos como esses so recorrentes no corpus.

    3 - Consideraes finais.

    Este trabalho teve como objetivo responder a pergunta:como os telejornais (JN e JR) explicam temas que requisitam aapresentao, o desdobramento, a complementao e a ampliao deinformaes? A resposta se apresenta em etapas correlacionadas. Emprimeiro lugar, os dados demonstraram que houve uma coincidnciaquanto posio enunciativa assumida por ambos os noticirios ao longoda cobertura do tema. Os dois telejornais comportaram-se como umaespcie de professor. Enquanto o JN parece se dirigir a alunos sriesiniciantes que precisam de orientao quanto a formas de reduo doconsumo domstico de energia, o JR parece se dirigir a alunos de sriesmais adiantadas, que buscam a inter-relao entre causa e efeito. Comisso, os telejornais criam uma situao em que h um desequilbrio deconhecimento, o que prprio de uma situao de ensino, e eles secolocam na posio de quem explica X(a crise energtica) para algum(os telespectadores). Em segundo lugar, o delineamento dessa posioenunciativa parece influenciar de modo decisivo a escolha de recursos eestratgias lingsticas utilizadas pelos explicatrios. Em terceiro lugar, osdados demonstram que entre as formas mais recorrentes para a explicaoesto certas estratgias de traduo, que se mostram (1) na verso deconceitos da forma expositiva para a forma narrativa e (2) na explicitaode conceitos e/ou inter-relao de fatos. A primeira dessas estratgias recorrente no JN e a outra mais empregadas no JR, e apenas noscomentrios, pois na estrutura desse telejornal no cabe s reportagensapresentar explicaes. Assim, no que diz respeito crise energtica de2001, os telejornais traduzem as informaes porque se sentemprofessores, dessa forma o tratamento dado ao tema pelos telejornais

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    13/14

    lembra a abordagem escolar de vrios contedos. Quem explica a criseenergtica um professor e o faz tendo em vista diferentes tipos dealunos. Para isso, utiliza-se preferencialmente de certas estratgias detraduo. Por fim, cabe dizer que, examinado o tema luz dos estudosacima apresentados, verifica-se ainda mais o enviesamento ideolgico dostelejornais.

    4 - Notas

    1Organizador Nacional do Sistema.2Como a traduo do texto de uma editora portuguesa, muitas vezes precisobuscar palavras mais prprias do uso do portugus brasileiro. Entre ns, a

    traduo mais usual seria algo como: ....as condies em que a explicaopreenche as lacunas do conhecimento.3 Adoto aqui a noo apresentada por Fairclough (2001:99), segundo a qual aprtica discursiva no se ope a prtica social: a primeira uma forma particularda ltima. Em alguns casos, a prtica social pode ser inteiramente constituda pelaprtica discursiva, enquanto em outros pode envolver uma mescla de prticadiscursiva e no-discursiva.4Neste trabalho, em funo do limite de pginas, no ser apresentada a descriodas imagens que segue a cada uma das sonoras. Para uma viso mais completa,consulte a referncia indicada na nota de rodap do ttulo deste artigo.5 Medida de exceo constitucional, que era tomada pelo presidente da Repblica,com a participao do Congresso Nacional, quando exigidas providnciasimediatas, em caso de guerra, bem como para impedir ou reprimir medidassubversivas. Foi abolida pela Constituio Federal de 1988. (cf. DicionrioHoussais 2001).

    5 - Referncias Bibliogrficas.

    AMSTERDAMSKI, S. Explicao. In. Enciclopdia Einaudi. Vol 33. Lisboa:Imprensa Nacional, 1996. pp. 156 193.

    BOREL, Marie-Jeanne. Discours Explicatifs. In.: Travaux du Centre deRecherche Smiologiques Quelques rflexions sur lexplication N. 36, p19 37, Fevrier. 1980.

    ______________. Raisons et explication. Rvue europenne des sciencessocialesXIX (56), p. 37 68, 1981.

    BREY, Christian. Les travaux pratiques de reformulation. In.: Langue Franaise.n. 64, p. 69 79, Dcembre. 1994.

    DOUMAZANE, Franoise. Tlvision scolaire et tlvision scolarise. Lexemplede Vive La Crise. In: tudes de linguistique aplique. n. 38. p. 27 34,avril/juin, 1985.

  • 7/22/2019 A Explicao Da Crise Energetica Segundo Os Telejornais

    14/14

    EBEL, Mariane. L explication: acte de langage et lgitim du discours. Rvueeuropenne des sciences socialesXIX (56), p. 7 14. 1981.

    GRIZE, Jean-Blaize. Un point de vue smiologique sur lexplication. In.:Travaux du Centre de Recherche Smiologiques Quelques rflexions surlexplicationN. 36, p. 1 17, Fevrier. 1980.

    LINO DE ARAJO, Denise. Um professor no horrio nobre: estudo dasexplicaes em telejornais. Tese de doutoramento. Indita. Faculdade deEducao, USP, 2004.

    PEYTARD, Jean. Problmatique de l alteration des discours. Reformulation ettranscodage. In.:Langue Franaise. n. 64, p 5 27. 1984.

    RAFAEL, Edmilson. L. Construo dos conceitos de texto e de coesotextual: da lingstica sala de aula. Campinas, Unicamp, 2001. Tese dedoutoramento. Instituto de Estudos da Linguagem.

    REINALDO, Ma. Augusta G. M. A formulao textual na explicao de textosacadmicos. Recife: UFPE, 1994. Tese de Doutorado. Centro de Artes eComunicao.

    ROSA, Luiz Pinguelli.Apago: Por que veio? Como sair dele?. Rio de Janeiro:Revan. 2001. 128 p.

    SIGNORINI, Ins. Explicar como fazer X em situaes dialgicas assimtricas.In. Trabalhos de Lingstica Aplicada, no. 18, p . 127 155, Jul/Dez. 1991.

    SOLNIK, Alex.A guerra do Apago. A crise da energia eltrica no Brasil.SoPaulo: Editora Senac, 2001. 128 p.

    _____________ Pedir informaes/explicar: estratgias comunicativas eminteraes assimtricas letrado/no letrado. In. DELTA,vol 10, no. 1, p. 29 46. 1994.