a experiência com ayahuasca sob a perspectiva da psicopatologia
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A EXPERIÊNCIA COM AYAHUASCA SOB A PERSPECTIVA DA
PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
CREMASCO, M.V.F (UFPR1, RIBEIRO, C. S. (UFPR)2 , ELER, J. F. T (UFPR)3
A beberagem mais conhecida como Ayahuasca é uma infusão vegetal psicoativa daAmazônia que é produto da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e das folhas do arbustoPsichotria viridis. Tal infusão é conhecida por provocar estados alterados de consciência(EAC) que resultam em intensas experiências visionárias, assim como alterações nosdemais sentidos; “alucinações em todas as modalidades de percepção” (Shanon, 2003).Essas experiências, geralmente, são de caráter místico e espiritual, abrangendo catarses,insights, sensações extáticas, alterações no processo de pensamento, concentração,memória, sensação de temporalidade, entre outras.
Partindo da hipótese de que trazer tais fenômenos à luz da compreensão científicapode servir como um elemento motivador para novos estudos envolvendo a complicadaquestão da fronteira entre fenômenos ritualísticos, psicoterapia e estados alterados deconsciência, este estudo possui como objetivos: descrever as experiências vivenciadas coma beberagem conhecida como Ayahuasca por intermédio de depoimentos e compreender einterpretar clinicamente suas possibilidades terapêuticas. As etapas do método consistemem: 1)Descrição das experiências por depoentes; 2) Descrição dos contextos ritualísticos e3) Análise de casos clínicos.
1. Introdução:
Apesar de sua enorme importância, as experiências anômalas, místicas, religiosas e
“paranormais” têm sido amplamente negligenciadas pela pesquisa e prática psiquiátrica
(Almeida & Lotufo, 2003). Freqüentemente, as publicações científicas têm considerado tais
vivências como fenômenos raros, vestígios de “culturas primitivas” ou indicadores de
psicopatologia (Freud, 1969; Horton, 1974; Mulhern, 1991; Lukoff, 1992).
Apesar de negligenciados esses fenômenos (experiências dissociativas e outros EA
ou EAC) são muito freqüentes (Ross, Joshi e Currie, 1990, 1992) e são descritos em todas
as civilizações de todas as eras, constituindo-se muitas vezes elementos importantes na
1 Doutora em Saúde Mental (Unicamp/2002), Professora no Departamento de Psicologia da UFPR,Coordenadora do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Humano – UFPR. Membro da AssociaçãoUniversitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. E-mail: [email protected]. End:Praça Santos Andrade, 50 – 2 andar – sala 211 – 80060-240- Curitiba, PR2 Acadêmica de Psicologia da UFPR, bolsista de Iniciação Científica (UFPR/TN) do Núcleo de Estudos sobreo Desenvolvimento Humano NEDHU- UFPR. Coordenadora do grupo de estudos sobre Psicanálise e dogrupo de estudos sobre Ayahuasca do NEDHU UFPR. E-mail: [email protected]. Rua Carlos de Carvalho,827. apto. 801. Centro, Curitiba- PR. Telefone: (41) 32030255.3 Acadêmico de Psicologia da UFPR, voluntário de Iniciação Científica do Núcleo de Estudos sobre oDesenvolvimento Humano NEDHU- UFPR. Coordenador do grupo de estudos sobre Ayahuasca do NEDHUUFPR. E-mail: [email protected]. Rua Chichorro Jr, 244, apto. 07. Cabral. Curitiba- PR.
história das sociedades e, principalmente de suas religiões (Almeida & Lotufo, 2003). As
dimensões religiosas e espirituais da cultura estão entre os mais importantes fatores que
estruturam as crenças, os valores, os comportamentos e os padrões de adoecimento
humanos, ou seja, a experiência humana (Lukoff e Turner, 1992).
A Ayahuasca é considerada pelas entidades usuárias como um instrumento de
acesso ao “mundo espiritual” (Labate e Araújo, 2002; MacRae, 1992). Esta é capaz induzir
estados alterados de consciência (EAC) assim como experiências anômalas (EA) que,
segundo Charles Tart (1972), são “uma alteração qualitativa no padrão global de
funcionamento mental que o indivíduo sente ser radicalmente diferente do seu modo usual
de funcionamento”. Os EAC têm um profundo impacto, tanto na vida daqueles que os
vivenciam diretamente quanto naqueles que os acompanham próximos (Almeida & Lotufo,
2003).
Esta pesquisa busca uma aproximação dos pesquisadores em relação às experiências
vivenciadas pelos usuários da Ayahuasca para que se possa compreender o que são tais
fenômenos. Tal aproximação implica também focalizar o contexto religioso em que se
utiliza o chá psicoativo e suas implicações na experiência proporcionada pela bebida.
A importância de se ressaltar o papel da religiosidade enquanto possibilidade
terapêutica se verifica em muitos dos resultados positivos (“curas e soluções de problemas
pessoais”) em experiências com a beberagem e são entendidos, segundo o CONAD4, como
“atos de fé” – “contatar o divino” no vocabulário das entidades usuárias. Segundo Koenig,
Larson e Larson (2001) a ênfase na relação – com “Deus”, com outras pessoas e consigo
mesmo – pode ter conseqüências importantes na saúde mental, especialmente no que diz
respeito a lidar com as difíceis circunstâncias da vida que acompanham a saúde precária e
as deficiências crônicas. “As crenças e práticas religiosas podem reduzir a noção de perda
do controle e desamparo que acompanham as doenças [...]” (Koenig, Larson e Larson,
2001).
Tal estudo se justifica, primeiramente, pela ausência de pesquisas científicas com o
objetivo de compreender e de discutir possibilidades terapêuticas utilizando-se da
4 Segundo o CONAD (Conselho Nacional Anti-Drogas): “Com fundamento nos relatos dosrepresentantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções de problemaspessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões: enquantoatos de fé (grifo nosso), sem relação necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca e curaou soluções de problemas.”
experiência ritualística com a Ayahuasca. Segundo a resolução do CONAD (Conselho
Nacional Anti-Drogas) que aprovou o uso religioso da Ayahuasca:
Qualquer prática que implique utilização de Ayahuasca com fins estritamente
terapêuticos, quer seja da substância exclusivamente, quer seja de sua associação com
outras substâncias ou práticas terapêuticas, deve ser vedada, até que se comprove sua
eficiência por meio de pesquisas científicas realizadas por centros de pesquisa vinculados a
instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas. Desse modo, o
reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da Ayahuasca somente se dará após a
conclusão de pesquisas que a comprovem.
Outro argumento interessante a ser considerado neste momento é o de que os
profissionais de saúde mental não recebem formação ou treinamento adequados para lidar
com a questão das EA e dos EAC – mesmo no caso destas serem utilizados como
complementos e/ou facilitadores terapêuticos, “mas, como elas ocorrem na prática clínica,
estamos atuando fora dos limites de nosso treinamento profissional” (Almeida & Lotufo,
2003). Sabe-se que, dependendo da abordagem realizada, uma mesma vivência
(experiência de quase morte) pode ser utilizada como estímulo para o crescimento pessoal
ou reprimida como um evento bizarro, indicador de instabilidade mental (Turner et al.,
1995).
Sendo assim, este estudo busca primeiramente compreender o que é a experiência
com Ayahuasca para que esta possa ser focalizada sob a luz do conhecimento científico.
Após esta compreensão poderão ser investigadas as suas possibilidades terapêuticas como
ampliação e continuidade deste estudo. Trazer tais fenômenos à luz da compreensão
científica pode ser um elemento motivador para novos estudos envolvendo a complicada
questão das fronteiras entre fenômenos ritualísticos, psicoterapia e estados alterados de
consciência.
2. A Ayahuasca e seu uso:
A beberagem conhecida como Ayahuasca é uma infusão vegetal psicoativa da
Amazônia que é produto da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e as folhas do arbusto
Psichotria viridis5. A Ayahuasca é conhecida em diferentes culturas pelos seguintes nomes:
yajé, caapi, natema, pindé, kahi, mihi, dápa, bejuco de oro, vine of gold, vine of the spirits,
vine of the soul e a transliteração para a língua portuguesa resultou em hoasca. Também é
conhecida amplamente no Brasil como “chá do Santo Daime” ou “vegetal” (Luna &
Amaringo, 1991; Grob et al., 1996). Etimologicamente, a palavra Ayahuasca é de origem
indígena. Aya quer dizer “pessoa morta, alma, espírito” e waska significa “corda, liana, cipó
ou vinho”. Assim a tradução, para o português, seria algo como “corda dos mortos” ou
“vinho dos mortos” (Labate e Araújo, 2002).
A infusão é conhecida por provocar estados alterados de consciência que resultam
em intensas experiências visionárias, assim como alterações nos demais sentidos;
“alucinações em todas as modalidades de percepção” (Shanon, 2003). Essas experiências,
geralmente, são de caráter místico e espiritual, abrangendo catarses, insights, sensações
extáticas, alterações no processo de pensamento, concentração, memória, sensação de
temporalidade, entre outras.
O uso da Ayahuasca – inicialmente restrito aos povos indígenas – passou a ser
incorporado pelas civilizações e vilarejos da Amazônia Ocidental, surgindo o vegetalismo
(medicina popular de civilizações rurais do Peru e da Colômbia, que mantém elementos
antigos sobre plantas, absorvidos das tribos indígenas e influências do esoterismo europeu
dos colonizadores) (Labate e Araújo, 2002).
Atualmente três principais grupos religiosos fazem uso da Ayahuasca: Santo Daime,
União do Vegetal e a Barquinha. Existem mais alguns grupos independentes que realizam a
utilização da bebida baseada no status religioso de seu consumo.
3. Psicopatologia Fundamental e Psicanálise:
Na criação de um discurso sobre as paixões, sobre a passividade, sobre o
sofrimento, enfim, sobre o sujeito trágico encontramos a essência de “Psicopatologia”: o
conhecimento da paixão, do sofrimento, psíquico.
Diante de uma pluralidade de psicopatologias, surge a Psicopatologia Fundamental
(termo proposto em meados dos anos oitenta por Pierre Fedida, em Paris) cujo interesse5 As diversas preparações geralmente contem talos socados da Banisteriopsis caapi ou espéciescorrelatas mais as folhas da Psichotria viridis. As plantas adicionadas à Ayahuasca ajudam amaximizar as experiências de estimulação visual e as sensações de contato com forças e locaissobrenaturais e divinos.
repousa no sujeito trágico que não é racional nem agente e senhor de suas ações, o qual
possui sua mais sublime representação na tragédia grega. A preocupação central da
Psicopatologia Fundamental é a de contribuir para a redefinição do campo do
psicopatológico, propondo uma reflexão crítica dos modelos existentes e uma discussão dos
paradigmas que afetam nossos objetos de pesquisa, nossas teorias e práticas. A
Psicopatologia Fundamental é um projeto de natureza intercientífica; que visa a construção
de um espaço teórico-clínico, com fundamentos próprios, que permita a coexistência, o
diálogo e o intercâmbio, dos diferentes modelos conceituais tanto no interior da própria
psicopatologia quanto os de outras ciências - neurociências, imunologia, farmacologia,
oncologia e outros tantos que lidam com o pathos. A psicopatologia Fundamental é o fórum
de toda a metapsicologia. (Ceccarelli, 2003)
A proposta da Psicopatologia Fundamental é pensar a questão páthica, a paixão
como dimensão inerente do Ser. Trata-se de criar uma psicopatologia própria para cada
sujeito, que lhe permita transformar em experiência as manifestações de seu pathos.
Pathos, então, não nasce no corpo, pois vem de longe e de fora. Mas passa necessariamente
pelo corpo, brotando sem dele fazer parte intrínseca, e rege as ações humanas. (Berlinck,
2000)
No epicentro da Psicopatologia Fundamental, cujo campo conceitual organiza-se em
torno da referência psicanalítica, encontra-se o patei mathos esquileano: aquilo que o
sofrimento ensina. Trata-se de resgatar o pathos, como paixão, e escutar o sujeito que traz
uma voz única a respeito de seu pathos transformando aquilo que causa sofrimento em
experiência, em ensinamento interno. Transformar o pathos em experiência significa
também transcendê-lo, considerá-lo não apenas como um estado transitório mas, e talvez
sobretudo, como “algo que alarga ou enriquece o pensamento”. (Berlinck, 2000) Quando a
experiência é, ao mesmo tempo, terapêutica e metapsicológica, estamos no âmbito da
Psicopatologia Fundamental.
Para a Psicopatologia Fundamental, o pathos manifesta uma subjetividade que é
capaz, através da expressão em palavras, de transformar a paixão em experiência servindo
para a existência do próprio sujeito. Levando-se em consideração o importante pressuposto
de que nenhum conhecimento especializado é capaz de esgotar a compreensão do
sofrimento psíquico, as pesquisas realizadas no âmbito da Psicopatologia Fundamental
visam encontrar palavras que exprimam, de forma a mais compreensiva possível, o pathos
psíquico que se manifesta na clinica psicoterapêutica. “O psicopatológico, então, não
solicita um discurso racional, mas mito-poiético epopéico que, à medida que produz
experiência, é terapêutico”. (Berlinck, 2000, p.20) Assim, o psicopatológico contém uma
terapéia, que em grego, quer dizer o cuidado exercido sobre Eros doente.
Assim, a experiência constitui-se como uma possibilidade de se pensar aquilo que
ainda não foi pensado; estando a Psicopatologia Fundamental interessada em suscitar uma
experiência que seja compartilhada pelo sujeito.
Segundo Queiroz (2002), a posição do pesquisador em psicopatologia fundamental
deve ser a de envolver-se na escuta do pathos do outro participando desta experiência, e
dando conta dela pela “dis-posição” de pesquisar sobre o pathos.
A psicopatologia fundamental possui como característica singular a
transdisciplinaridade. Segundo Queiroz (2002): “A transdisciplinaridade constitui essa
comunidade discursiva que integra conhecimentos especiais e singulares numa rede de
significações mais amplas na qual cada especificidade ou disciplina aporta suas diferenças
pondo em evidência uma concepção ética comum que recoloca as éticas particulares.
Assim, a novidade da posição transdisciplinar está em se sustentar numa concepção ética
própria que perpasse todos os saberes particulares e permita a abertura de um campo
discursivo capaz de produzir interações, transportes e construções metafóricas”. (Queiroz,
2002, p.23) A mesma autora afirma que os laboratórios de Psicopatologia Fundamental têm
tentado se aproximar deste modelo.
Como dito anteriormente, o arcabouço conceitual da psicopatologia fundamental
organiza-se em torno do referencial teórico psicanalítico.
A psicanálise nasceu em um paradigma no qual o racionalismo positivista e a lógica
clássica ditavam os critérios de cientificidade e a validação dos fenômenos; assim em
numerosas passagens Freud manifestou sua aspiração de que a psicanálise permanecesse
dentro desses parâmetros. Apesar de Freud querer harmonizar a psicanálise com as ciências
de seu tempo e lhe conceder um estatuto científico que lhes equivalesse, há em sua teoria
aspectos que escapam ao paradigma cientificista de seu tempo. (Singer, 2002)
Tratamento e investigação estão na essência do método psicanalítico. Desde seus
anos iniciais, a psicanálise incluiu a pesquisa em sua própria definição, pois com tal nome
Freud propunha designar: "1) um procedimento para a investigação de processos mentais
que são quase inacessíveis por qualquer outro método; 2) um método (baseado nessa
investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos; e 3) uma coleção de informações
psicológicas obtidas ao longo dessas linhas e que, gradualmente, se acumulam numa nova
disciplina científica" (Freud, 1923).
Queiroz (2002, pg 24), afirma que “para a psicanálise realidade e fantasia ou origem
externa e interna do acontecimento tem o mesmo valor, pois ambas vão adquirir existência
para o sujeito quando se representam na realidade psíquica”; também que “o psiquismo não
é observável em si, senão por meio dos seus efeitos e processos que se manifestam no
discurso por intermédio dos conteúdos e da fenomenologia da linguagem, como sintomas,
atos falhos, sonhos” Queiroz (2002, pg 24).
Segundo Botella (2001), é inútil procurar entre os modelos científicos, um método
de pesquisa em psicanálise, a especificidade desta última é inseparável de sua práxis.
No momento atual o mundo analítico está perturbado pelo conflito em torno da
definição clara de pesquisa em psicanálise. A corrente dos defensores de uma pesquisa que
se apóie no modelo próprio das ciências da natureza (repetibilidade, verificação,
previsibilidade, quantificação, etc) se defrontam com a corrente dos defensores de uma
psicanálise tida como disciplina realmente específica, a qual exigiria a definição de critérios
de pesquisa próprios, e da qual um dos princípios seria deixar de considerar os modelos já
estabelecidos de pesquisa científica como os únicos possíveis. Com dificuldade para se
poder definir a psicanálise por seu conteúdo conceitual, e por ser imprescindível frear a
eclosão de diversas formas diferentes que a psicanálise começou a adquirir, aplicar um
rigor dito científico pareceu ser a solução ideal para se sair desse estado de inflação e, para
esse efeito, foi criada pela IPA uma comissão de pesquisa permanente em psicanálise
(Standing Research Committee), na dupla esperança de desenvolver a psicanálise e de lhe
devolver a unidade a partir da pesquisa. (Botella, 2001)
Podemos ainda diferenciar a pesquisa psicanalítica propriamente dita, ou seja,
aquela que é efetuada com o método psicanalítico em si, dentro da sessão ou do processo
analítico, e a pesquisa em psicanálise, ou seja, aquela que usa conceitos psicanalíticos e os
diferentes métodos de investigação para testá-los ou aplicá-los em outros cenários clínicos
ou teóricos.
A pesquisa clínica é a matéria prima por excelência da psicanálise, tanto através dos
estudos de caso único como de seqüências de casos - talvez o método de pesquisa mais
adequado ao objeto de investigação - e é dela que provém a maioria dos insights obtidos até
o momento. Por sua vez, a pesquisa conceitual permite refinar, precisar e examinar com
minúcia o desenvolvimento e as transformações de conceitos e suas complexas interações
com os sistemas teóricos que habitam ou co-habitam.
Uma atividade de pesquisa pressupõe a criação e a manutenção de certa distância
entre o sujeito e o objeto da pesquisa e comporta, em contrapartida, um empenho em
reduzir essa distância. Ou seja, para que uma pesquisa científica transcorra e se desenvolva,
é preciso que estejam preservados tanto o espaço da ignorância como o desejo de conhecer.
(Figueiredo, 2002)
Assim, apesar dos conflitos e indefinições quanto a metodologias precisas de
pesquisa em psicanálise, ela mostra-se como um referencial teórico que muito pode
contribuir em investigações e pesquisas acadêmicas. Além de sua versatilidade, por trazer a
visualização das zonas entre aquelas que superam os limites que cada disciplina outorga a si
mesma, pelas características de seu objeto e de sua reflexão, a psicanálise traz uma
experiência de extraterritorialidade, de interdisciplinariedade que deve também ser
compreendida como “extra” - disciplinariedade: como saber possível que vai além do saber
de cada disciplina, e do não saber que lhe é inerente. (Singer, 2002).
Uma compreensão da experiência com Ayahuasca dentro de contextos ritualísticos
utilizando-se do referencial teórico psicanalítico será muito rica, pois este abarca
amplamente facetas do desamparo humano, o que poderá ser confrontado com a questão de
que “as vivências rituais, apresentando-se de maneiras muito diversas, confrontariam a
pessoa com a fragilidade e finitude da sua matéria e com um inequívoco sentimento de
eternidade e unidade com todo o universo” (Pelaez, pág 483). Além de que a premissa da
psicanálise é a de que existe algo além do nosso estado ordinário de consciência: o
inconsciente.
Geralmente não percebemos que nosso estado ordinário de consciência é apenas um
dentre os muitos possíveis de interpretar e interagir com o ambiente, com suas vantagens e
limitações. Cada estado de consciência pode trazer informações adicionais, ajudando-nos a
ter uma compreensão mais global de nós mesmos e do mundo em que vivemos (Almeida &
Lotufo, 2003). Então, o autor faz um desafio: O método científico será expandido para a
investigação dos estados de consciência ou o imenso poder dos EAC continuará a ser
deixado nas mãos dos diversos cultos e seitas? (Tart, 1972).
4. Objetivos:
Os objetivos deste estudo consistem em: descrever as experiências vivenciadas com
a beberagem conhecida como Ayahuasca por intermédio de depoimentos e compreender e
interpretar clinicamente suas possibilidades terapêuticas.
5. Método:
Na área das EA, estamos claramente num período pré-paradigmático no sentido
kuhniano, pois “não há qualquer conjunto-padrão de métodos ou de fenômenos” que todos
os estudiosos da área “se sintam forçados a empregar e explicar”, havendo quase tantas
teorias quanto o número de pesquisadores em atividade na área (Kuhn, 2000).
A metodologia deste estudo irá seguir os parâmetros das diretrizes metodológicas
para investigar estados alterados de consciência (EAC) e experiências anômalas (EA)
propostos pelos psiquiatras Alexander Moreira Almeida e Francisco Lotufo Neto6, as quais
enfatizam a necessidade criativa para elaboração de novos métodos para investigação
destes fenômenos.
As diretrizes metodológicas consistem em:
1. Evitar o preconceito dogmático;
2. Buscar uma teoria que guie o estudo, a coleta de dados e sua interpretação;
3. Revisão exaustiva da literatura existente;
4. Evitar patologizar o diferente de anômalo;
5. Avaliar os EAC sob critérios adequados;
6. Investigar populações clínicas e não clínicas;
7. Desenvolvimento de instrumentos adequados para avaliação das crenças e
experiências, procurando realizar uma avaliação multidimensional dos EAC;
8. Cuidados na escolha dos termos que descrevem a experiência e no estabelecimento
de nexos causais;
6 Fundadores do NEPER (Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos) da FMUSP(Faculdade de Medicina da USP)
9. Distinguir entre a experiência vivenciada e suas interpretações;
10. Considerar o papel da cultura;
11. Postura do pesquisador neutra mais empática;.
12. Estudos longitudinais;
13. Levar em consideração a complexidade da relação entre EA e EAC e
psicopatologia;
14. Avaliar a confiabilidade e a validade dos relatos;
15. Criatividade e diversidade na escolha dos métodos.
Para que os objetivos sejam alcançados será necessário dividir esta pesquisa em três
etapas principais. São essas etapas: 1) Descrição das experiências vivenciadas pelos
ayahuasqueiros por intermédio de seus depoimentos; 2) Descrição dos contextos
ritualísticos da beberagem; 3) Análise de casos clínicos.
Primeiramente será feita uma aproximação dos pesquisadores em relação ao fenômeno
proporcionado pela Hoasca e às comunidades ayahuasqueiras para melhor compreensão
tanto do fenômeno como do contexto ritualístico no qual ele se manifesta, posteriormente
serão realizadas entrevistas com voluntários sobre suas experiências e vivências. As
perguntas referentes à primeira e à segunda etapas são: Como se caracteriza a experiência
proporcionada pela Ayahuasca descrita pelos depoentes? Como o contexto cultural,
ritualístico e religioso influi na experiência psicoativa com o chá?
Concomitantemente será disponibilizado atendimento clínico, dentro da abordagem
psicanalítica, a pessoas que utilizam a bebida – tais atendimentos serão realizados no CPA
da UFPR por alunos quintanistas, durante 12 meses, sob supervisão da Prof. Orientadora do
presente estudo.7 Serão definidos os critérios de triagem para tais atendimentos, tais como
tempo mínimo de um ano consumo da bebida, periodicidade no mínimo mensal.
A divisão proposta se justifica pela dificuldade metodológica existente no estudo dos
estados alterados de consciência. As perguntas referentes à primeira etapa descritiva são: O
que é a experiência proporcionada pela Ayahuasca de maneira geral? Como o contexto
cultural, ritualístico e religioso influi na experiência psicoativa com o chá? A segunda
etapa de atendimentos clínicos será realizada ao longo de um ano com registros das sessões
pelos estagiários e acompanhamento dos atendimentos em supervisões semanais. As
7 Os atendimentos serão realizados no Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UniversidadeFederal do Paraná (UFPR).
descrições dos casos e utilização do material clínico será feita com consentimento pós-
informado dos pacientes e os dados publicados focalizarão os objetivos da pesquisa,
respeitando as normas éticas de pesquisas com humanos.
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