a expansao do patrimonio - novos olhares

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13 A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desafios…* IZABELA TAMASO** Resumo: Nas últimas décadas assistimos à expansão significativa da afeição pelo patrimônio. Unesco e Iphan ampliam as políticas públicas para os patrimônios com objetivo de atender ao vasto repertório de expressões culturais e à pluralidade das identidades sociais. O decreto que instituiu o registro dos “bens culturais de natureza imaterial” tem provocado especial interesse dos antropólogos. Se as “referências culturais” são o que se considera “cultura”, elas sempre foram o objeto de registro mais caro dos folcloristas e antropólogos. Contudo, uma diferença há e não é de objeto, mas sim epistemológica. Importa refletir sobre a responsabilidade social dos antropólogos inventariantes, que ao participarem do processo de inventário e/ou registro de um bem cultural realizam laudos culturais sobre grupos específicos. Analogias com as práticas de antropólogos indigenistas são oportunas. Reflexões antropológicas de ordem teórica e ética se impõem ante o novo desafio. Palavras-chave: patrimônio cultural; antropologia; políticas públicas; laudos; ética. Nas últimas décadas, pudemos observar a crescente velocidade com a qual se espalharam mundialmente as obsessões com o passado e, sobretudo, com o que nós costumamos chamar de “patrimônio” (Canclini, 1994; Certeau, 1994; Jeudy, 1990; Lowenthal, 1998a, 1998b). As aten- ções voltaram-se para as raízes e as coleções tomaram conta do Ocidente, e espalharam-se por todo o restante do mundo: 95 % dos museus nasceram no pós-guerra e os sítios históricos multiplicam-se aos milhares (Lowenthal, 1998b). A nostalgia pelas “coisas velhas”, em muitos lugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo. A “onda universalizante da Unesco” torna- se cada vez mais um valor para inúmeras cida- des que agora percebem que “moderno é ser antigo” (Tamaso, 2002). O desenvolvimento pode ser buscado por causa do patrimônio. Se antes o patrimônio funcionava como obstáculo do desenvolvimento, agora ele é fundamento deste. 1 Certeau ressalta que as “coisas antigas [que] se tornam importantes”, inquietando uma ordem produtivista e seduzindo “a nostalgia que * O presente artigo, revisto e ampliado, foi inicialmente apresentado com o título “Patrimônio imaterial: velhos objetos, novos desafios”, no Simpósio Memória, Cidades, Patrimônio, na 54 a SBPC, em Goiânia, no ano de 2002. Agradeço a Alcida Rita Ramos e Klaas Woortmann a leitura atenta, os comentários e as sugestões, lembrando que o argumento aqui desenvolvido é de minha exclusiva respon- sabilidade. A Letícia Vianna agradeço, além da leitura, o estímulo para que este artigo fosse publicado. ** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS – DAN/UnB e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected] 1. A maior parte das reflexões que compõem este artigo é decorrente da experiência etnográfica na cidade de Goiás (GO), reconhecida pela Unesco em 2001 como “patrimô- nio mundial”. O tombamento do núcleo histórico pelo Ins- tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) data de 1978. Antes disso, na década de 1950, algumas edificações foram tombadas, como monumentos isolados, pelo antigo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Os dados coletados durante o trabalho de campo, realizado entre 2000 e 2002, estão sendo interpre- tados na tese de doutoramento em Antropologia pela UnB, em fase de finalização.

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Patrimonio

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    A expanso do patrimnio: novos olhares sobrevelhos objetos, outros desafios*

    IZABELA TAMASO**

    Resumo: Nas ltimas dcadas assistimos expanso significativa da afeio pelopatrimnio. Unesco e Iphan ampliam as polticas pblicas para os patrimnios comobjetivo de atender ao vasto repertrio de expresses culturais e pluralidade dasidentidades sociais. O decreto que instituiu o registro dos bens culturais de naturezaimaterial tem provocado especial interesse dos antroplogos. Se as referncias culturaisso o que se considera cultura, elas sempre foram o objeto de registro mais caro dosfolcloristas e antroplogos. Contudo, uma diferena h e no de objeto, mas simepistemolgica. Importa refletir sobre a responsabilidade social dos antroplogosinventariantes, que ao participarem do processo de inventrio e/ou registro de um bemcultural realizam laudos culturais sobre grupos especficos. Analogias com as prticas deantroplogos indigenistas so oportunas. Reflexes antropolgicas de ordem terica etica se impem ante o novo desafio.

    Palavras-chave: patrimnio cultural; antropologia; polticas pblicas; laudos; tica.

    Nas ltimas dcadas, pudemos observar acrescente velocidade com a qual se espalharammundialmente as obsesses com o passado e,sobretudo, com o que ns costumamos chamarde patrimnio (Canclini, 1994; Certeau, 1994;Jeudy, 1990; Lowenthal, 1998a, 1998b). As aten-es voltaram-se para as razes e as coleestomaram conta do Ocidente, e espalharam-sepor todo o restante do mundo: 95 % dos museusnasceram no ps-guerra e os stios histricosmultiplicam-se aos milhares (Lowenthal, 1998b).A nostalgia pelas coisas velhas, em muitoslugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo

    desenvolvimento. Ou melhor, redireciona odesejo.

    A onda universalizante da Unesco torna-se cada vez mais um valor para inmeras cida-des que agora percebem que moderno serantigo (Tamaso, 2002). O desenvolvimentopode ser buscado por causa do patrimnio. Seantes o patrimnio funcionava como obstculodo desenvolvimento, agora ele fundamentodeste.1

    Certeau ressalta que as coisas antigas[que] se tornam importantes, inquietando umaordem produtivista e seduzindo a nostalgia que

    * O presente artigo, revisto e ampliado, foi inicialmenteapresentado com o ttulo Patrimnio imaterial: velhosobjetos, novos desafios, no Simpsio Memria, Cidades,Patrimnio, na 54a SBPC, em Goinia, no ano de 2002.Agradeo a Alcida Rita Ramos e Klaas Woortmann a leituraatenta, os comentrios e as sugestes, lembrando que oargumento aqui desenvolvido de minha exclusiva respon-sabilidade. A Letcia Vianna agradeo, alm da leitura, oestmulo para que este artigo fosse publicado.** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS DAN/UnB e professora da Universidade Federal de Gois(UFG). E-mail: [email protected]

    1. A maior parte das reflexes que compem este artigo decorrente da experincia etnogrfica na cidade de Gois(GO), reconhecida pela Unesco em 2001 como patrim-nio mundial. O tombamento do ncleo histrico pelo Ins-tituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan)data de 1978. Antes disso, na dcada de 1950, algumasedificaes foram tombadas, como monumentos isolados,pelo antigo Servio de Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional (Sphan). Os dados coletados durante o trabalho decampo, realizado entre 2000 e 2002, esto sendo interpre-tados na tese de doutoramento em Antropologia pela UnB,em fase de finalizao.

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    TAMASO, IZABELA. A expanso do patrimnio: novos olhares...

    se apega a um mundo a ponto de desaparecer,so trazidas de volta pela economia protecio-nista que, em perodos de recesso, semprese renova (Certeau, 1996, p. 190). As ilhotasde passado surgem em meio cidade moder-nista, um espectro que agora ronda o urbanis-mo e multiplica os investimentos no mercadode antiguidades. Segundo Certeau, esse fan-tasma esconjurado sob o nome de patri-mnio e sua estranheza convertida emlegitimidade (Certeau, 1996, p. 190). As rel-quias, bens culturais que nos remetem aopassado, so ento identificadas, classificadas,restauradas, expostas, protegidas, ressigni-ficadas. O recurso ao arquivismo abusiva-mente usado. As culturas so postas em mu-seus, literal ou metaforicamente, enquantoregistros de patrimnio vo sendo realizados.

    Essa ampliada afeio pelo patrimnio teminmeras conseqncias. Patrimnio trazbenefcios. Dentre eles, propicia a ligao entreas vrias geraes (dos nossos descendentesaos nossos ancestrais) (Jeudy, 1990; Lowenthal,1998b); cria vnculos entre os cidados por fazerreferncia aos smbolos que so representativosda coletividade, ou bens coletivos (Canclini,1994; Gonalves, 1996; Fonseca, 1994; Rubino,1991; Santos, 1992), acionando portanto o senti-mento patriota; propicia o desenvolvimentoeconmico ao atrair o turismo cultural (Choay,2001), e aumenta a auto-estima do grupo portadore herdeiro daquele legado. O patrimnio de todaa espcie, ao acumular, contraria a transito-riedade das coisas. Salvando da eroso e dodescarte, ns procuramos o equilbrio entre oefmero e o permanente (Jeudy, 1990). Mas aacumulao a que temos assistido por todo omundo algo muito recente e cabe refletir sobreo contexto no qual a reteno das coisas dopassado se torna cada vez mais possvel edesejada.

    Segundo Lowenthal, o patrimnio expande-se especialmente porque a maioria das pessoascomea a ter (e ser) parte nesse patrimnio:em tempos passados, apenas uma pequenaminoria procurava por seus antepassados,acumulava antiguidades, desfrutava dos velhosmestres, ou excursionava por museus e stioshistricos (Lowenthal, 1998b, p. 10). De algu-

    mas dcadas para c, tais propsitos passarama atrair um nmero muito maior de pessoas, queolhando, vivendo, reconhecendo e valorizandoo patrimnio dos outros, de outros povos,comearam a desejar transformar suas histrias,seus monumentos, suas manifestaes culturaisem patrimnio.

    importante considerar que, se o aciona-mento da categoria patrimnio trouxe inmerosbenefcios, trouxe tambm danos a alguns grupossociais. O reconhecimento do valor arquitetnicoe histrico desencadeou, em muitos casos, oprocesso de gentrification, que se configurapor empreendimentos econmicos em espaosselecionados da cidade, transformando-os emsetores de investimentos privados e pblicos(Featherstone, 1995; Harvey, 1992; Leite, 2001).So to valorizadas as construes localizadasnesses espaos, que sofrem um aumentosignificativo em seu valor imobilirio. As popula-es nativas desocupam suas casas, ruas ebairros, reocupados por outras pessoas, queobviamente imprimem a eles outros valoressimblicos e de usos.

    Para Certeau, tal processo subtrai a usu-rios o que apresenta a observadores, na medidaem que

    faz passar esses objetos de um sistema deprticas (e de uma rede de praticantes) a umoutro. Empregado para fins urbansticos, oaparelho continua fazendo esta substituiode destinatrios; tira de seus usurios habituaisos imveis que, por sua renovao, destina auma outra clientela e a outros usos. A questoj no diz mais respeito aos objetos restaurados,mas aos beneficirios da restaurao. [] Arestaurao dos objetos vem acompanhada deuma desapropriao dos sujeitos. (Certeau,1996, p. 195-196)

    Os laos sociais existentes nesses lugarestornam-se valores irrelevantes se comparadosao poder econmico e poltico que entra em cena,quando os lugares transformam-se em patrim-nios. Alm disso, muito embora constituampatrimnios nacionais ou mundiais, e issoremeta propriedade cultural coletiva e global,o patrimnio quase sempre acionado pelaselites, que freqentemente inclina-o para finsespecficos e nem sempre democrticos.

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    A noo de legado universal autocon-traditria; limitar a posse a alguns, enquantoexclui outros, est na razo de ser do patrimnio(Lowenthal, 1998b). Talvez seja por isso que asclasses marginalizadas sejam mais aptas a noreconhecerem com tamanha grandeza o valordos bens materiais imveis. Preservar casasantigas gera a ameaa de terem sua vizinhanae seus bairros tomados pelo processo de gentri-fication. No caso dos bens materiais mveis,correm o risco de verem seus bens culturais parte de suas trocas simblicas cotidianas ourituais apropriados pelos museus e centrosculturais. De alguma maneira, o bem materialcorre sempre o risco de ser apropriado pelaselites, que caminham com desenvoltura peloscorredores dos museus, das instituies preser-vacionistas, dos ministrios e de organizaesno-governamentais.

    Nesses dois casos, cabe ressaltar que quasenunca o valor atribudo, pelo grupo portador, aobem cultural corresponde ao valor atribudo pelasinstituies oficiais de preservao. A plurali-dade de valores e significados, somados ao no-reconhecimento dos valores locais, umaquesto que nos remete aos debates da relaoe da complementaridade dos valores materiaise imateriais de todas as coisas, recorrentementeobnubilados pelas (e nas) polticas pblicas depreservao, que se fundamentam no institutodo tombamento.

    H alguns anos a fragilidade dos Profetasde Aleijadinho, imagens esculpidas em pedra-sabo, que compem parte do drio de So BomJesus dos Matosinhos, em Congonhas doCampo,2 ganhou notoriedade. Por essas escul-turas estarem sofrendo com a ao do tempo, esem dispor de uma tecnologia especfica paraproteg-las no prprio local em que sempreestiveram, tornou-se pblica a idia de que osProfetas de Aleijadinho fossem removidospara um provvel museu. No local seriam colo-cadas rplicas. H algumas dcadas tcnicosem conservao e restauro, autoridades epopulao local vm debatendo o problema.Prova que moldes para rplicas j foram feitos

    h mais de 30 anos.3 Os especialistas em con-servao pedem pela proteo da obra sacra.Os devotos pedem pela manuteno dosProfetas como parte indissocivel das trocassimblicas que ali se do. Tanto o valor artsticoatribudo pelos especialistas quanto o valorsimblico atribudo pelos devotos so expressesdo carter intangvel do bem material. No seest disputando o objeto, mas o que ele significa,para uns como obra de arte, para outros comosmbolo de devoo e pea fundamental nastrocas simblicas cotidianas e rituais. Aqui,ento, a disputa baseia-se no domnio do intan-gvel.

    Arantes chamou ateno e, provavel-mente, tenha sido o primeiro antroplogo noBrasil a faz-lo para o fato de que a defesado passado para os propsitos do patrimnio

    se estrutura em torno de intensa competio eluta poltica em que grupos sociais diferentesdisputam, por um lado, espaos e recursosnaturais e, por outro (o que indissociveldisso), concepes ou modos particulares dese apropriarem simblica e economicamentedeles. (Arantes, 1984, p. 9)

    O conflito , pois, constitutivo das polticasde preservao dos patrimnios culturais(Tamaso, 1998). Segundo Lowenthal, o conflito endmico ao patrimnio (1998b, p. 234). Osvalores atribudos ao bem cultural, quandoentram em disputa, revelam um processo dehierarquizao. Um valor ser selecionado comomais importante e mais legtimo; os outrospermanecero como seus opostos complemen-tares: valor artstico/valor da f. O grupo queestiver de posse da gesto daquele bem culturalestabelecer seus valores como mais legtimos.Na arena de disputa, os outros no podero serconsiderados. Se decidirem que os Profetasdeixaro seu lugar original, a populao ser maisuma vez expropriada de seu prprio patrimnio.

    H, contudo, um patrimnio que ainda nofoi expropriado do grupo que o produziu e lheatribuiu valores: o patrimnio imaterial. Este um domnio no qual a agencialidade dos sujeitos

    2. Inscrito no Livro do Tombo de Belas Artes pelo Iphanem 1939 e reconhecido como Patrimnio Mundial pelaUnesco em 1985. (In: http://www.iphan.gov.br)

    3. Conferir reportagem intitulada Deteriorando Aleijadi-nho, na Folha de S. Paulo, 2 fev. 2000. Folha Ilustrada,p. 1.

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    sociais ainda no sofreu impacto. A culturatradicional e popular crenas, comida, dana,procisses, folias, expresses, msica etc mantm-se com relativa autonomia, no queconcerne ao dos realizadores e participanteslocais.

    Os bens de natureza imaterial

    Para atender clientela ampliada e diver-sificada, o patrimnio, antes da elite, dos bensmateriais, de um passado remoto, dos monu-mentos e dos grandes heris, passa agora a sertambm aquele das classes populares, de umtempo mais recente, da arquitetura vernaculare da cultura intangvel das vrias etnias (Lowen-thal, 1998b). Torna-se, segundo Lowenthal,mais substancial, mais secular, e mais social(1998b, p. 14). Uma observao atenta scartas e recomendaes da Unesco sufi-ciente para acompanhar a transformao.

    Desde 1964, j havia sido insinuada umamudana nos critrios de seleo dos stioshistricos. A noo de monumento histrico foiento ampliada na Carta de Veneza e passoua compreender no apenas as grandes criaes,mas tambm s obras modestas, que tenhamadquirido com o tempo uma significao cultural(1964, apud Cury, 2000, p. 92). Vrias foram ascartas patrimoniais redigidas pela Unesco ou porrgos a ela ligados que cuidaram de aprofundaro debate e as recomendaes sobre as culturastradicionais e populares.

    A preocupao com a herana culturalpassou a recair sobre as idias e imagens e noapenas sobre as coisas. Essa transformaoreflete, em parte, a influncia das culturas queno compartilhavam com a mania ocidental debens materiais como patrimnio.

    A Polnia, por exemplo, apesar de terreconstrudo suas edificaes arrasadas pela 2aGuerra Mundial, porque entendia que eramimportantes para a identidade nacional, atual-mente se preocupa mais com o patrimniocomposto pelos pensamentos e memrias queas construes evocam, do que com as cons-trues em si. O patrimnio, na China, enfatizamais as palavras do que as coisas. A idiachinesa de que stios antigos tornam-se stios depatrimnio pelo passado de palavras e no por

    suas pedras remete idia do valor atribudo coisa e no coisa em si. A preservao, nessecaso, mais das memrias e histrias sobre osstios e monumentos do que de suas estruturas(Lowenthal, 1998b, p. 20). No Japo, segundoOgino (1995), a arte tradicional exprime-se maispor sua reatualizao do que por conservarfielmente o patrimnio do passado. Alm disso,a poltica japonesa j havia incorporado h tempolide de trsor national vivant, que consisteem conservar seus ofcios ou hbitos: os bensimateriais (Ogino, 1995, p. 57).

    Esta era a nica esfera da herana culturalque ainda no tinha sido acionada pelo Estadobrasileiro, no que concerne s polticas pblicasde preservao do patrimnio cultural. Aindaque a preservao da cultura tradicional epopular brasileira j fizesse parte das intenesdo grupo que participou da criao do Serviode Patrimnio Histrico e Artstico Nacional(Sphan),4 e que posteriormente tenha sidoavidamente retomada pelo grupo do CentroNacional de Referncia Cultural (CNRC) e daFundao Nacional Pr-Memria (FNPM), osinstitutos de proteo legal em vigor no mbitofederal no se mostraram adequados proteodo patrimnio cultural de natureza imaterial(Fonseca, 1994). Contudo, os trabalhos, estudose reflexes desses grupos garantiram a amplia-o do conceito de patrimnio, que j na Consti-tuio Federal de 1988 foi definido como sendoconstitudo pelos bens de natureza material eimaterial, tomados individualmente ou emconjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos forma-dores da sociedade brasileira [] (apud Iphan,2000, p. 33).

    O documento da Unesco Recomendaosobre a salvaguarda da cultura tradicional epopular, de 1989, ampliou as possibilidades, aoapontar formas jurdicas de proteo s mani-festaes da cultura tradicional e popular. Em1997, o Iphan realiza em Fortaleza um seminriointernacional com o propsito de refletir sobreformas de proteo ao patrimnio imaterial, doqual decorre a Carta de Fortaleza. Em 1998, formada uma comisso, com a finalidade de

    4. Conferir o anteprojeto de Mrio de Andrade para a cria-o do Sphan (Andrade, 2002).

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    elaborar uma proposta de acautelamento dopatrimnio imaterial (Iphan, 2000, p. 12).5

    Havia que se aguardar o momento no qualo trabalho (de dcadas) de inmeros intelectuais,artistas e cidados sensibilizados pela riquezada pluralidade cultural brasileira daria finalmenteorigem ao Decreto n. 3551, de agosto de 2000,que institui o Registro dos Bens Culturais deNatureza Imaterial.6 Como instrumento dapoltica de preservao praticada no pas peloInstituto do Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional (Iphan), o decreto visa reconhecer osvalores de bens que tm relevncia nacionalpara a memria, a identidade e a formao dasociedade brasileira (Iphan, 2000a, p. 25).

    A nova poltica de preservao tem pro-vocado interesse de inmeros pesquisadores. Osantroplogos, sobretudo, tm olhado para o pa-trimnio imaterial como mais uma possibilidadeno mercado de trabalho. O que so os patrim-nios imateriais? O prprio Iphan (2000a) reco-nhece que o maior problema no qualificativoimaterial de que, ao enfatizar mais o conhe-cimento, o processo de criao e o modelo, ten-dem a desconsiderar as condies materiais desua existncia, no dando conta, portanto, detoda a complexidade do objeto que pretendemdefinir. SantAnna, coordenadora do Grupo deTrabalho do Patrimnio Imaterial (GTPI), consi-derou a distino operativa medida que deli-neia o conjunto dos bens culturais que no vinhasendo oficialmente reconhecido como patrimnionacional (SantAnna, 2000, p. 13). Debatessemnticos parte, os patrimnios imateriaisso, segundo Arantes, as referncias das iden-tidades sociais, so as prticas e os objetospor meio dos quais os grupos representam,realimentam e modificam a sua identidade elocalizam a sua territorialidade (Arantes, 2001,p. 131). Os patrimnios imateriais so sentidosatribudos a suportes tangveis, s prticas eaos lugares.

    Ento, eles sempre foram o objeto mais carodos folcloristas e dos antroplogos. Milhares depginas j foram escritas sobre a cultura brasi-leira (imaterial/material). Entretanto, muitopouco se refletiu sobre o que significa inventariarum bem imaterial e, ao inseri-lo em um dos livrosde registro, atribuir-lhe o estatuto de PatrimnioCultural do Brasil.

    Uma diferena h e no de objeto, massim epistemolgica. Transforma-se o modo comose olha para o objeto. Manifestaes culturais(dana, msica, poesias, crenas, expresses,tcnicas etc.), encaradas por folcloristas, sofolclore, fato folclrico, manifestaofolclrica. Aos olhos dos antroplogos, socultura. Atualmente, a tendncia de ambos de perceb-los como patrimnio; ao menospelo fato de que, ao serem potencialmente benspatrimoniais, ampliam as possibilidades profis-sionais de ambos.

    oportuno lembrar que os folcloristas viramdesabar seus planos para a constituio de umadisciplina autnoma, quando da constituio dascincias sociais no Brasil, como um saberlegtimo e cientfico, pelo no-reconhecimentodo folclore como um tema relevante (Vilhena,1997). Ao comparar o trabalho de identificaoda nao, realizado pelos folcloristas, com aquelefeito pelos agentes preservacionistas, Tamasoenfatiza que, no caso dos folcloristas, a identi-ficao produzida por intermdio da culturapopular, enquanto no caso dos agentes preser-vacionistas, em parte contemporneos dosfolcloristas, tal identificao produzida porintermdio da idia de memria e tradio, nosentido da cultura erudita e dos bens monu-mentais (Tamaso, 1999, p. 313). Assim, en-quanto agentes do folclore encomendavampesquisas sobre a cultura popular, os agentespreservacionistas protegiam os monumentosrepresentativos das classes dominantes (1999,p. 313). Com o qu se entretinham os antrop-logos? No exatamente com debates em tornoda preservao dos patrimnios culturais. Aomenos, no at a dcada de 1980, quando algunspoucos trabalhos comearam a surgir.7

    5. Sobre o processo histrico da categoria patrimnio cul-tural e patrimnio imaterial, conferir Gonalves, 1996;Fonseca, 1994; Santos, 1992; Rubino, 1991, alm do Dossifinal das atividades da Comisso e do Grupo de TrabalhoPatrimnio Imaterial (Iphan, 2000).6. Registro que se pode fazer em um dos seguintes livros:Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Cele-braes, Livro de Registro das Formas de Expresso e Livrode Registro dos Lugares.

    7. Dentre eles e, sobretudo, as reflexes de Antonio AugustoArantes (1984) e, posteriormente, Marisa Veloso MotaSantos (1992), Silvana Rubino (1991) e Jos Reginaldo San-tos Gonalves (1996).

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    TAMASO, IZABELA. A expanso do patrimnio: novos olhares...

    Contudo, como folclore ou cultura, obem cultural observado era apenas inventariadoe registrado do ponto de vista da pesquisa, fossefolclrica, fosse etnogrfica. O inventrio e oregistro em cadernos de campo, fitas de udioe vdeo e filmes fotogrficos no implicavamuma ao de poltica pblica de reconhecimentoe salvaguarda do bem cultural. J o inventrio eo registro do bem de natureza imaterial cons-tituem uma ao deliberada do Estado-nao,que pode ser intermediada por antroplogos. sobre a responsabilidade dessa ao que vourefletir. Antes, contudo, importante retomaras polticas pblicas estabelecidas e declaradaspela Unesco e pelo Iphan, respectivamente sobreas culturas tradicionais e populares e os bensde natureza imaterial. Informo que no farei umacronologia das aes, uma vez que ela pode serencontrada em outros trabalhos.8 Destacareideclaraes que sejam teis para complexificaro lugar a ser ocupado pelo antroplogoinventariante categoria que passarei a usarao me referir ao antroplogo que executa qual-quer funo no Inventrio Nacional de Refe-rncias Culturais, seja pesquisa, trabalho decampo ou coordenao de inventrios ,entrecortando-as com anlises que possamcontribuir para o entendimento da problemtica.

    Iphan e Unesco: as polticas pblicaspara o reconhecimento de bens culturais

    Nas Cartas Patrimoniais redigidas por oca-sio das reunies da Unesco, freqentementefaz-se referncia necessidade de associar ospatrimnios culturais s polticas de desenvol-vimento do turismo. J em 1969, a Carta deQuito, preocupada com a valorizao dopatrimnio cultural, discorreu sobre a impor-tncia de incorporar a um potencial econmicoum valor atual; de pr em produtividade umariqueza inexplorada, mediante um processo derevalorizao (1967 apud Cury, 2000, p. 111).

    Especificamente preocupada com a preser-vao dos patrimnios monumentais, a Cartade Quito salienta ainda que

    se os bens do patrimnio cultural desempenhampapel to importante na promoo do turismo, lgico que os investimentos exigidos parasua restaurao e habilitao especficasdevem ser feitos simultaneamente aos quereclama [sic] o equipamento turstico. (1967,apud Cury, 2000, p. 113)

    A Unesco revela a prioridade a ser dadanas escolhas para os projetos de restauro ehabilitao: devem atender demanda turstica,uma vez que do ponto de vista exclusivamenteturstico, os monumentos so parte do equipa-mento de que se dispe para operar essa inds-tria numa regio determinada (1967, apud Cury,2000, p. 115). Considerados como equipamentosda indstria do turismo, os patrimnios culturaisedificados so a ela adaptados. E os patrimniosculturais de natureza imaterial? Como serousados para atender lgica do mercadoturstico?

    O processo de mercantilizao pelo qualalgumas culturas populares tradicionais passa-ram, antes mesmo de se verem referidas comopatrimnio cultural, um indicador de que, seantes o mercado j agia no sentido de lucrarcom artefatos ou prticas culturais tradicionais,como sero os passos aps o reconhecimentofeito pelo Estado-nao do valor patrimonialdo bem de natureza imaterial?

    importante, nesse caso, reconhecer aambivalncia dos efeitos da mercantilizaonas culturas populares tradicionais, que se, porum lado, tm seus produtos artesanais (emmaior ou menor grau) deteriorados pela inserodo valor de troca, tm tambm suas tradiesprodutivas e culturais reativadas, muitas vezespela incorporao de seu artesanato no mercadoturstico (Canclini, 1994, p. 101).

    Pesquisadores e tericos das culturas popu-lares (Arantes, 1998; Brando, 2000; Canclini,1997; Carvalho, 1989; Cavalcanti, 2001; Segato,2000) crticos das concepes romnticas sobreas culturas j superaram h algumas dcadasos pares de opostos que serviam para pensar asculturas populares na modernidade: hegemnico/subalterno, culto/popular e moderno/tradicional.

    Canclini cuidou de rechaar eficientementevrias anlises equivocadas afirmando que: (1)o desenvolvimento moderno no suprime as

    8. Dossi Final das Atividades da Comisso e do GTPI (2000);Garcia (2004).

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    culturas populares tradicionais; (2) as culturascamponesas e tradicionais j no representama parte majoritria da cultura popular; (3) opopular no se concentra nos objetos; (4) opopular no monoplio dos setores populares;(5) o popular no vivido pelos sujeitospopulares como complacncia melanclica paracom as tradies; (6) a preservao pura dastradies no sempre o melhor recurso popularpara se reproduzir e reelaborar sua situao(Canclini, 1997, p. 215-238).

    No obstante haver concordncia para comas refutaes feitas por Canclini (1997), no queconcerne s concepes sobre cultura populartradicional, no se pode deixar de considerar opapel que desempenhar o antroplogo inven-tariante ao ser parte do processo de inventrioe registro de bens de natureza imaterial. Ou seja,ao passar do papel de pesquisador de polticas erecepo de prticas patrimoniais para o deinventariante de patrimnios culturais. Ademais,h que se considerar a presena de antroplogosno Conselho Consultivo do Iphan. Para estescaber a tarefa, junto aos demais conselheiros(que no tm nenhuma obrigao para com asreflexes antropolgicas), de reconhecer comoprocedente (ou no) o pedido de registro de umdado bem cultural.

    Em 1989, a 25a Reunio da Unesco reco-mendou aos Estados-membros que tomassemas medidas necessrias relativas salvaguardada cultura tradicional e popular. Definiu cul-tura tradicional e popular como

    conjunto de criaes que emanam de umacomunidade cultural fundadas na tradio,expressas por um grupo ou por indivduos eque reconhecidamente respondem s expec-tativas da comunidade enquanto expresso desua identidade cultural e social; as normas evalores [que] se transmitem oralmente, porimitao ou de outras maneiras. Suas formascompreendem, entre outras, a lngua, a lite-ratura, a msica, a dana, os jogos, a mitologia,os rituais, os costumes, o artesanato, a arqui-tetura e outras artes. (1989, apud Cury, 2000,p. 294)

    Observe-se que a recomendao da Unes-co para a salvaguarda das culturas tradicionaise populares no se limita aos bens de natureza

    intangvel. Recomendou ainda a Unesco que acultura tradicional e popular, enquanto expres-so cultural, deveria ser salvaguardada pelo epara o grupo (familiar, profissional, nacional,regional, tnico etc.) cuja identidade exprime(1989, apud Cury, 2000, p. 295). Orientou nosentido de que os Estados-membros da ONUrealizassem inventrios, criassem sistemas deidentificao, registro, conservao, difuso eproteo das culturas tradicionais e populares.O que foi feito no Brasil, sob responsabilidade,dentre outros, do antroplogo Antonio AugustoArantes.9

    Recomendou tambm que a difuso dacultura tradicional e popular deveria sensibilizara populao para a importncia da cultura tradi-cional e popular como elemento de identidadecultural e ainda que numa difuso deste tipo,contudo, deve-se evitar toda a deformao, afim de salvaguardar a integridade das tradies(1989, apud Cury, 2000, p. 297-298).

    A difuso de um dado bem cultural esttambm prevista no Decreto 3551/2000. Oregistro dos bens culturais de natureza imaterialassegura ao bem cultural ampla divulgao epromoo,10 por parte do Ministrio da Cultura.Quais conseqncias podem advir da ampladivulgao dos bens culturais? Se os criadores,participantes e responsveis pelos bens culturaisdesejam que suas prticas sejam divulgadas, porcerto pleiteiam o reconhecimento do valor cultu-ral do grupo. Contudo, o valor simblico atribudoquela referncia cultural, ao ser amplamentedivulgado, desencadeia ou potencializa a incor-porao de valor econmico.

    No sentido econmico, segundo Gorz, ovalor designa sempre o valor de troca de umamercadoria na sua relao com outras. Refe-rncias culturais tradicionais no podem sertrocadas porque, obviamente, no tm sentidono valor econmico (Gorz, 2005, p. 30).Contudo, Gorz salienta que

    se no podem ser apropriadas ou valorizadas,as riquezas naturais e os bens comuns podemser confiscados pelo vis das barreiras artifi-

    9. Conferir o Manual de aplicao para o Inventrio Na-cional de Referncias Culturais (Iphan/Minc, 2000).10. Decreto 3551, de 4 de agosto de 2000.

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    ciais que reservam o usufruto delas aos quepuderem pagar um direito de acesso . Aprivatizao das vias de acesso permitetransformar as riquezas naturais e os benscomuns em quase-mercadorias que propor-cionaro uma renda aos vendedores de direitode acesso. (Gorz, 2005, p. 31)

    O controle do acesso aos bens patrimoniais,como uma forma privilegiada de capitalizaodas riquezas imateriais (Gorz, 2005, p. 31), temestado freqentemente no controle das elitesculturais.

    Ao refletir sobre as atribuies de valor aosbens culturais, Arantes reconhece dois eixossobre os quais se estruturam as mudanasproduzidas pelas polticas de patrimnio sobreas culturas locais: um valor de uso, referente natureza simblica, e um valor de troca, referente natureza alegrica (Arantes, 2001, p. 134).Seriam dois aspectos dos mesmos bens culturais.Em um aspecto, o bem patrimonial representaum smbolo (unidade sensorial entre signo ereferente) e, por isso, constantemente trans-formado pelo trabalho social de produosimblica. O segundo aspecto do bem patri-monial, o valor de troca, o modo como acultura participa da poltica de identidade e dosjogos de mercado (Arantes, 2001, p. 134).

    Tal distino feita por Arantes pode sermelhor compreendida em outro artigo de suaautoria, no qual ele faz uma distino conceitualentre patrimnio-referncia e patrimnio-recurso (Arantes, 1999). Na economia simb-lica do patrimnio, o primeiro seria relativo aobem patrimonial como smbolo sentidosenraizados na vida coletiva e o segundo comoalegoria, no qual o signo no intrinsicamenteassociado a um referente, fazendo a ele apenasuma aluso icnica. Nesse aspecto da signifi-cao que Arantes (1999) denomina de aleg-rico, estariam contidos a preferncia esttica eo prazer ldico. Entendo que a natureza alegricado bem patrimonial tambm simblica, namedida em que o consumo de um bem cultural seja esttico, seja ldico implica usos eprocessos de apropriao de signos.11 Contudo,

    a distino entre elas operativa a fim decolaborar para a distino do valor de uso dosbens patrimoniais, para o valor de troca deles.Assim, o bem patrimonial est sujeito s conse-qncias das polticas de patrimnio, que parti-cipam ativamente desse complexo processo deconstruo e atribuio de sentido s atividadesconsideradas (Arantes, 2001, p. 135).

    Evidente que, se a preservao das culturastradicionais populares e/ou intangveis entra naagenda dos rgos nacionais e internacionais depreservao, simultaneamente surgem as possi-bilidades de impacto sobre elas, em conse-qncia das prprias polticas pblicas. Assimcomo no caso dos centros histricos, que tmsido tomados pelas polticas pblicas, em geral,muito mais pelo seu aspecto alegrico do quepor sua dimenso simblica, os bens de naturezaimaterial podem ser estimulados a prticas quevalorizem sobremaneira seu aspecto alegrico.E aqui a pergunta feita por Arantes, ao refletirsobre os centros histricos, se apresenta tooportuna:

    e sobre as identidades sociais e pessoais, quaisas conseqncias dessa tendncia que quertornar soft as diferenas culturais, quer tornarfast o soul tnico, lisos os territrios existenciaise o nosso velho mundo um incuo parquetemtico? (Arantes, 1999, p. 131)

    O texto de apresentao da metodologiado Inventrio Nacional de Referncias Culturais(INRC), que consta do Manual de aplicaodo INRC, assinado por Arantes, revela o desa-fio de natureza poltica a ser enfrentado: aresponsabilidade social de pesquisadores etcnicos, uma vez que se prev que o INRCpoder produzir conseqncias na formao ereconfigurao das identidades dos grupos ecategorias sociais envolvidos. O inventriopoder provocar, por sua reflexividade, impac-tos sobre estratgias polticas e de mercadoassociadas ao patrimnio dos grupos envolvidos(Iphan, 2000b, p. 27).

    Em outra publicao, Arantes chamou aateno para o fato de que

    emanando de centros de deciso que trans-cendem o plano local, as medidas de acaute-lamento necessariamente repercutem (ou

    11. Sobre o assunto conferir artigo de Rogrio ProenaLeite, Patrimnio e Consumo Cultural em CidadesEnobrecidas, publica nesse mesmo volume da Revista So-ciedade e Cultura.

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    causam impactos) sobre os sentidos/senti-mentos localizados reforando-os, redefinindo-os, legitimando-os ou, negativamente, silen-ciando-os. (Arantes, 2001, p. 133-134)

    Revelando que seu objetivo refletir sobreos aspectos da metodologia do INRC, a fim deaprofundar a problemtica relativa ao chamadopatrimnio imaterial, Arantes finaliza o textocom o item Conseqncias e recomendaes,no qual, dentre outras reflexes importantes,indica: a necessidade de envolvimento da popu-lao local, na medida do possvel, no trabalhode pesquisa e elaborao dos dados, a promo-o de aes educativas para estudantes, e anecessidade de prever e atuar sobre o impactocausado pelo INRC nas estratgias polticas ede mercado, mitigando-os ou maximizando seusefeitos, conforme seja o caso, visando aosinteresses da populao (Arantes, 2001, p. 138).

    A Carta da Unesco, para a salvaguardadas culturas tradicionais e populares, reco-mendou que os Estados-membros tomassemmedidas a fim de proceder adequada difusodas culturas tradicionais e populares. Dentreeles, a criao de emprego de horrio integralpara especialistas em cultura tradicional epopular que se encarregariam de fomentar ecoordenar as atividades voltadas para o temana regio (1989, apud Cury, 2000, p. 298).Sugeriu que os empregos fossem criados emnvel municipal, regional ou em grupos ouassociaes que tratem do tema.

    Ao indicar a necessidade de um especia-lista, em contato direto e sistemtico com ogrupo, a Unesco indica que o trabalho noterminaria com um provvel registro e difusoda cultura tradicional e popular. A recomen-dao previu efeitos que apenas a presena deum profissional especialista e compromissadoseria capaz de evitar. O compromisso maior doEstado-nao no terminaria na ao do registro,do reconhecimento e da difuso da culturatradicional e popular, mas, ao que me parece,deveria comear na difuso e acompanhar osseus efeitos. Funcionaria esse profissional comoum tradutor de sistemas culturais discursivos,no sentido dado por Oliveira (2004)?

    Outra recomendao foi no sentido deestimular a comunidade cientfica internacional

    a adotar um cdigo de tica apropriado relaocom as culturas tradicionais e o respeito quelhes devido (1989, apud Cury, 2000, p. 299).A vagueza do termo comunidade cientficainternacional problemtica, uma vez queatribui responsabilidade a um grupo indefinido,vago e perdido em meio s mais variadas reasdisciplinares com compromissos, responsa-bilidades e tica das mais diversas. Prova disso o debate contemporneo dos associados daAssociao Brasileira de Antropologia (ABA),no que concerne Resoluo 196, instituda pelaComisso de tica em Pesquisa (Conep) doMinistrio da Sade, que visa regular a pesquisacom seres humanos em geral.12

    Uma vez que a nova poltica de preservaodos patrimnios amplia as possibilidades detrabalho para os antroplogos, qual a respon-sabilidade deles diante dessa nova atividade? OManual de aplicao do Inventrio Nacionalde Referncias Culturais informa que asequipes tcnicas, encarregadas do planejamentoe da coordenao dos trabalhos de inventrio,devem ser compostas por profissionais quesejam provenientes das cincias sociais comdestaque para a antropologia , histria, letras,geografia, museologia e arqueologia (Iphan,2000b, p. 35). O nmero e a proporo variamem virtude do contexto referente a cada stio.13

    No manual so listadas questes consi-deradas espinhosas, por exemplo, comoidentificar e delimitar os sentidos enraizados nasprticas cotidianas ou que aspectos seropertinentes para sua identificao, dentreoutras. Assim, h a preocupao para com acaracterstica das investigaes que, por seremamplas, limitam a possibilidade de profundidade.A soluo dada para resolver tal limitao acooperao entre os encarregados do inven-trio e os especialistas das reas de conhe-cimento relevantes (Iphan, 2000b, p. 30). Apesquisa etnogrfica, apesar de complexa, indicada como uma das metodologias a seremusadas, desde que ela se conforme a padres,como o de limitar-se a aspectos da vida social

    12. Conferir Luis Roberto Oliveira (2004) e Alcida RitaRamos (2004).13. Entendido como configurao socioespacial (Iphan,2000b)

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    que sejam mais imediatamente reconhecveispelos atores e que se proponha a registrar osdados que sejam mais imediatamente apreen-sveis por meio de roteiros e formulrios padro-nizados14 (Iphan, 2000b, p. 30).

    Lembrando que eticamente o antroplogoest compromissado com o grupo estudado,15como atender devidamente o interesse do con-tratante, quando este for conformado por institui-es pblicas de cultura e preservao? Aindaque, em meio s instituies pblicas, existamrepresentantes do grupo que apiem tanto ostrabalhos do INRC quanto um doravante regis-tro como reconhecimento do valor cultural dogrupo, como equacionar os conflitos internos aogrupo, que nem sempre chegam at as institui-es pblicas de preservao ou nem sempreso por elas considerados? Estou me referindoespecificamente questo da representativida-de. Um exemplo pode esclarecer a problemtica.

    O objeto do Inventrio Nacional de Refe-rncia Culturais (INRC) descrito e exempli-ficado no Manual do INRC: (1) Celebraes,(2) Formas de Expresso, (3) Ofcios e Modosde Fazer, (4) Edificaes e (5) Lugares. Em doisdeles, h exemplos referentes cidade de Gois(GO).16 No item Celebraes, h referncia Procisso do Fogaru e, no item Edificaes,a referncia feita Casa de Cora Coralina.Tenho dvidas de que ambas referncias feitasno Manual do INRC sejam referncias cultu-rais no sentido apresentado no prprio manual(Iphan, 2000b) como sendo objetos, prticas elugares apropriados pela cultura na construode sentidos de identidade e, ainda, o quepopularmente se chama de raiz de uma cultura(Iphan, 2000b, p. 29). No obstante seremcitadas apenas como exemplos do que poderser inscrito nos respectivos livros de registro,tanto a Procisso do Fogaru como a Casa de

    Cora Coralina merecem uma incurso etnogr-fica, ainda que breve.

    A Procisso do Fogaru raramente citadapelo vilaboense como sendo uma das manifes-taes religiosas mais importantes. Ao pedir queescolhessem uma procisso, a que eles atribuemmais significado e que tm maior afeio,raramente obtive como resposta a Procisso doFogaru. Outras trs procisses so muito maiscitadas, muito mais esperadas. So aquelas comas quais o vilaboense perde seu tempo: aProcisso do Encontro, a Procisso dos Passose a Procisso da Paixo de Cristo. Qualquerpequeno detalhe, qualquer modificao, qualquerausncia (por doena ou morte) de um dosintegrantes so intensamente vividos pelosmoradores. Consideram que uma delas, a Pro-cisso do Encontro, por acontecer em umasegunda-feira, a procisso dos vilaboenses,pois participam dela apenas os vilaboenses, queso moradores da cidade de Gois. Por noatender ao mercado turstico, no recebe inter-ferncia dos de fora.17 como uma festa paraos mais ntimos. Ela especialmente referidapelos vilaboenses.

    No caso da Casa de Cora Coralina, levantotambm uma dvida. Minha etnografia em Goisrevelou que a Casa de Cora, como um lugar(atribudo no item Edificao), no nem omais querido, nem o mais lembrado, nem omais belo. H mesmo crtica veemente departe dos moradores do centro histrico pelasistemtica presena da Casa de Cora, quandose fala de Gois.18 Defendem a importncia deoutros lugares exemplo o Chafariz deCauda como mais representativo de Gois.

    14. Ressalta que a adaptao da pesquisa etnogrfica aoINRC no seria uma tentativa de transformar o inventrionum sucedneo simplificado de pesquisa etnogrfica (Iphan,2000).15. Conferir o Cdigo de tica do Antroplogo (http://www.abant.org.br). Tambm disponvel em Vctora et al.(2004, p. 173-174).16. Foram realizados levantamentos pelo Departamentode Identificao e Documentao em Gois (GO) e emDiamantina (MG) em 1998, e em Serro (MG), em 1995(Manual de aplicao do INRC, Iphan, 2000b).

    17. Nem mesmo os vilaboenses ou filhos de Gois que resi-dem em Goinia ou outras cidades, e que costumam freqen-tar as festas e procisses da cidade de Gois, tm disponibi-lidade de participar dessa Procisso do Encontro, por serrealizada em uma segunda-feira. Com exceo para os apo-sentados. Filhos de Gois categoria nativa usada paraqueles que ou nasceram na cidade de Gois, ou so filhos devilaboenses, mas que residem em outras cidades (a maioriaem Goinia, outros no interior do estado de Gois ou emBraslia). Em geral, mantm residncias na cidade de Goise vm cidade em todos os eventos religiosos, culturais oucvicos importantes.18. Delgado (2003) analisa o discurso sobre o qual a poetisaCora Coralina (sua casa e museu) tomada para auxiliar naconstruo de Gois como cidade histrica e patrimniomundial. A batalha das memrias ponto central do tra-balho de Delgado.

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    Assim, se referncias culturais so as fes-tas e os lugares a que a memria e a vida socialatribuem sentido diferenciado: so as mais belas,so as mais lembradas, as mais queridas (Iphan,2000b, p. 29), nem a Procisso do Fogaru (comocelebrao), nem a Casa de Cora Coralina(como edificao) o so. Ao menos no paraos moradores do centro histrico; aqueles quemais densamente (tanto temporal quanto espa-cialmente) atribuem sentido e valores, sobretudoos mais idosos.

    Mas se alguns defenderem a idia de que,para os jovens, a Casa de Cora e a Procissodo Fogaru constituem referncias culturaisimportantes, como ficaro as polticas depreservao em meio s diferentes formas deapropriao dos bens? Como compatibilizarapropriaes que tomam como mais belas,mais lembradas e mais queridas coisas noapenas diferentes, como por vezes at anta-gnicas?

    No estariam sendo, tanto a Procisso doFogaru quanto a Casa de Cora, refernciasculturais construdas pelas agncias gover-namentais e no-governamentais preserva-cionistas local, regional e nacionalmente? Oumelhor, no estariam as polticas de preservaoredefinindo ou ao menos legitimando algunsbens culturais, enquanto simultaneamentesilenciam outros, conforme j foi alertado porArantes (2001)? Quais agentes sociais dacidade de Gois participam ativamente dosprocessos de seleo dos bens culturais? Comopensar na questo da representatividade quandoa elite cultural transita melhor e mais freqen-temente pelos corredores do Iphan, das agnciasgovernamentais estaduais e federais?

    Arantes recomenda que a sociedade parti-cipe da definio das polticas e particu-larmente na seleo dos bens a serem identi-ficados e, sobretudo, registrados. So dois osmotivos que justificam a importante participaoda sociedade:

    (1) o fato dessas aes modificarem os valoresconstrudos e atribudos a esses bens, porque,resultando de atividades correntes em gruposlocalizados, a sua continuidade depende dodesempenho criativo dos seus executantes, que balizado por conhecimentos e concepes

    estticas que so propriedade intelectualdessas comunidades, e principalmente (2) pelofato das referncias serem sempre funo dosvalores diferenciados que cada grupo atribuinum determinado onde e quando a alguns bensculturais do seu repertrio. (Arantes, 2001,p. 135)

    No obstante a declarao dessas reco-mendaes, como antroplogos, no podemosdesconsiderar que o diferencial de atribuio devalor, e a conseqente apropriao diferenciadapelos diversos grupos, se d em meio a conflitossobre a construo das identidades, dos smbolose do acesso a determinados bens culturais. Nopodemos esquecer que a luta pelo poder denomear o patrimnio antes de tudo uma lutapelo poder de pr em destaque uma memria,uma histria. Os vrios grupos servem-se deestratgias de relaes de foras que suportame so suportadas por tipos de saber (Foucault,1995).

    O problema apresentar-se-ia ao antro-plogo no exclusivamente quando da execuodo INRC em um dado stio, mas tambm, apsesse processo, da escolha do bem a ser indicadopara o registro. O bem cultural proposto paraser registrado o mais representativo para osmembros daquela comunidade? Ou maisrepresentativo para alguns, que, por seremdetentores de algum saber legitimado pelamaioria em geral o poder de falar em nomedo grupo sobre a histria local (os memorialistas), impem um dado bem cultural sobre todos osoutros? No seria esse o caso da Procisso doFogaru?19 Ao escolher um bem cultural para oregistro, qual dimenso do bem patrimonialestar sendo valorizada pelo INRC: a simblicaou a alegrica? E como equacionar o conflitointerno a cada uma dessas dimenses?

    A Unesco tambm tratou de implantar umapoltica de reconhecimento do patrimnioimaterial. Em maio de 2001, realizou a primeiraProclamao dos Obras-Primas do PatrimnioOral e Intangvel da Humanidade. Foraminscritos dezenove bens culturais dentre teatro,

    19. Carneiro analisa as vrias percepes sobre a Procissodo Fogaru e confirma a pluralidade de discursos, enfatizandoque a Procisso do Fogaru vista como mero marketingda cidade, atrao turstica (Carneiro, 2005, p. 111).

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    msica, rituais etc. Tem como objetivo identificar,preservar e promover as expresses culturais.Os critrios de incluso na lista so uma forteconcentrao de patrimnio cultural intangvelde excepcional valor ou uma expressocultural tradicional e popular de excepcional valordo ponto de vista histrico, artstico, etnolgico,sociolgico, antropolgico, lingstico ou lite-rrio.20 Outros critrios relacionados com aimportncia do fenmeno cultural, como afir-mao de identidade, razes histricas, exce-lncia, podem ser considerados. Pode tambmpesar sobre a deciso o atestado de risco dedesaparecimento, seguido de um plano de aopara a preservao.

    O antroplogo Peter J. M. Nas (2002)levantou algumas questes concernentes poltica da Unesco para os bens intangveis queso, em alguma medida, as reflexes que vimosfazendo no Brasil a propsitos da poltica paraos bens de natureza imaterial. Nas observou queo fenmeno da variedade cultural colocadona agenda mundial em um caminho prtico echamou a ateno do pblico e dos mass media.Questiona, por exemplo, por que se deveriapreservar e revitalizar esse tipo de fenmenocultural. possvel preservar cultura e folclore?O que acontece quando eles so politizados porprogramas de proteo governamental nacionale internacional? Nenhuma pergunta nova, seestamos atentos para os debates em nvel nacio-nal. No entanto, continuam pululando em meios aes de inventrio e registro que tm sidopraticadas.

    Nas (2002) destaca ainda o paradoxo dadono programa, que enquanto se baseia no fato deque a urbanizao, modernizao e globalizaoconstituem o grande perigo para a variedade dasculturas humanas, terminam por globalizar ofenmeno para reagir mesma globalizao. Aglobalizao e a localizao, por estarem criandouma crise de identidade, acabam por gerar novasformas de identidades. Essa luta pela identidade o que segundo Nas (2002) constitui o foco dacrise social contempornea e a iniciativa daUnesco. Alguns casos inscritos pela Unescocomo Obras Primas do Patrimnio Oral e Intan-gvel da Humanidade (OPPOIH), so citados

    como sendo ou um tipo de legitimao deidentidades (Jongmyo Jerye na Coria), ou delegitimao e resistncia (Garifuna) e outrosainda, como representao mais de conservao(Zpara e Jamael-Fina), do que de construode identidades. importante ressaltar que a idiado risco de desaparecimento est presente nasformulaes que indicam conservao, legi-timao e resistncia.21

    Nas enfatiza a importncia de os antro-plogos examinarem de perto o programa considerado uma interveno transnacional euma forma de experimento de poltica culturaldo mundo moderno , a fim de alcanarem seuimpacto nas comunidades envolvidas (Nas, 2002,p. 143). Contudo, a onda universalizante daUnesco aumentou sua cobertura de ao.Ampliando a Conveno do Patrimnio Materialde 1972, a Unesco realizou, em 2003, a Con-veno para Salvaguarda do Patrimnio CulturalImaterial. Seguem as normas dadas por essaconveno alguns programas que j tinham sidocriados e estavam em execuo pela Unesco,como Obras-Primas do Patrimnio Oral eIntangvel da Humanidade, o Tesouros HumanosVivos, Traditional Music of the World. OEndangered Languages foi criado simulta-neamente conveno.22 Com a ampliao dacobertura, amplia-se igualmente o importantetrabalho de observao antropolgica junto aosgrupos criadores e portadores desses bens.

    Arantes tem tomado alguns pontos comorelevantes. Afirmou que os impactos devemser avaliados com a participao da populaoafetada e cujo monitoramento parte importanteda responsabilidade social das instituies envol-vidas (Arantes, 2001, p. 135). O fato de que

    20. Site http//:www.unesco.org.fr

    21. Em Sandroni (2005), possvel acompanhar as refle-xes sobre a candidatura do samba brasileiro como Obra-Prima do Patrimnio Imaterial da Humanidade. Apresentaparte do dilogo institucional entre Unesco e MinC, reve-lando a inteno da Unesco em apoiar a candidatura,sugerindo, porm, que o objeto do apoio fosse trocado,uma vez que o samba no estaria, segundo a Unesco, emrisco de desaparecimento (apud Sandroni, 2005, p. 45).22. O programa Traditional Music of the World teve incioem 1961. O programa Tesouros Humanos Vivos foi formu-lado em 1993. O OPPOIH foi criado em 1998 e teve aprimeira proclamao em 2001. Outras duas proclamaesj foram feitas. Na segunda foi inscrita, dentre os 28 esco-lhidos, Expresses Grficas e Orais dos Wajapi, do Brasil. Oltimo programa a ser criado foi Endangered Languages,em 2003. Site: http//:www.unesco.org.

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    faa referncia populao afetada no significativo? A voz passiva no remeteria idia de que a agncia no est dada na popu-lao e sim noutros sujeitos sociais? H possi-bilidade de que as instituies envolvidas assu-mam de fato a responsabilidade de monitora-mento? Poderiam manter antroplogos emconstante contato com o grupo? Qual a viabi-lidade dessa orientao no que concerne operao prtica e econmica demandadas?

    A propsito dos OPPOIH, Handler (2002)23prope que um escrutnio lista dos dezenoveinscritos na primeira proclamao pode revelarque alguns so mais poderosos e institucional-mente mais defendidos que outros e que, prova-velmente, h um favorecimento das expressesfolclricas e marginais em detrimento dosfenmenos culturais mais eruditos ou dos massmedia. Indica que nossa ateno deve se voltarpara conhecer como influncias polticas dosproponentes podem interferir ou, ao contrrio,como pouca influncia poltica pode ser razopara justificar sua proposio. Fenmenosculturais hegemnicos esto sendo propostos?Handler est particularmente chamando aateno para as diferenas de resultado quepodem ser analisadas em relao aos poderesdiferenciados.

    No Brasil, Simo (2005) demonstrou quesuas preocupaes caminham na mesmadireo exposta por Handler (2002). A autoraprope uma dupla trajetria para a reflexosobre os instrumentos de registro:

    primeiro, deve-se problematizar, luz da teoriaantropolgica contempornea, a relaosujeito/objeto do conhecimento, que vai refletirno posicionamento do antroplogo em campo,na sua postura reflexiva diante dos dadoscoletados, ao questionar as continuidades, ospoderes e interesses envolvidos no campo eseus reflexos na escrita etnogrfica. Numsegundo momento, devem-se investigar osvnculos institucionais e as interlocues entreantroplogos, agentes e agncias, que voestabelecer os elos, os recursos e os aliadosdisponveis (Latour, 2000, p. 104) para a

    flexibilizao das fronteiras do patrimnio.(Simo, 2004, p. 61)

    Arantes, revelando que o olhar e a abor-dagem antropolgica orientavam sua condutacomo presidente do Conselho de Defesa doPatrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico eTurstico de So Paulo (Condephaat), no incioda dcada de 1980, expunha sua preocupaocom os impactos causados pelas polticaspblicas de preservao:

    Ns produzimos uma cultura de certa maneirasui generis em relao s outras, uma culturaespecfica de preservao. [] Ns, de certamaneira, inventamos esse tipo de memria, essaforma de preservao, ao usarmos institutosjurdicos. Isto posto, de que maneira asociedade digere isso? Quais so os problemasque essa digesto coloca? E como elareeelabora, como eventualmente se apropria ouno dessa cultura? (Arantes, 1984, p. 81)

    Referindo-se, na ocasio, especificamenteaos bens de natureza material, uma vez que osoutros no tinham ainda entrado para o crono-grama e as diretrizes das instituies preser-vacionistas, Arantes chamava ateno pocapara o fato de que, ao se efetuar a poltica depreservao (inventrio, seleo e tombamentodo bem), os responsveis estavam de fato intro-duzindo, no processo de produo da cultura,um dado novo, um elemento novo que a culturaproduzida por ns, intelectuais, tcnicos, pesqui-sadores, polticos (Arantes, 1984, p. 81).

    Entendo que o alerta de Arantes (1984)serve, aps vinte anos, para os bens de naturezaimaterial. Qual cultura, ns antroplogos, esta-remos selecionando e, por conseqncia, produ-zindo? importante lembrar que, no processode seleo, tombamento e preservao do bemcultural de natureza material, os profissionais (ochamado corpo tcnico) que produziam cultu-ra eram quase exclusivamente provenientes deoutras reas disciplinares, como a arquitetura ea histria. Ao possibilitar ao antroplogo ser co-participante e, portanto, co-responsvel peloprocesso de produzir cultura, a nova polticaimpe a urgncia de reflexes que semprenortearam e diferenciaram os profissionais daantropologia.

    23. Os comentrios de Handler foram feitos a propsito dacomunicao feita por Peter J. M. Nas (2002) no Forumon Anthropology in Public, organizado pela CurrentAnthropology, v. 43, n. I, fevereiro de 2002.

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    TAMASO, IZABELA. A expanso do patrimnio: novos olhares...

    Por uma antropologia da prtica:etnlogo orgnico, antroplogoativista e antroplogo inventariante

    O antroplogo, ao realizar o trabalho decampo, realiza um registro dos dados observadose, aps um trabalho analtico, imprime-o em suasdissertaes, teses, livros, artigos. Do registroetnogrfico, para o registro etnolgico/antro-polgico.

    Ao efetuar o inventrio e o registro de umbem cultural de natureza imaterial, seja apedido de instituies governamentais muni-cipais, estaduais ou federal ou no-gover-namentais, seja a pedido dos grupos criadores eportadores do bem a ser inventariado (e quiregistrado), o antroplogo estar participando deuma terceira modalidade de registro. O registroque se far no INRC e talvez no Livro de Regis-tro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial.Um registro no mais antropolgico, agora, maisdo que nunca, poltico. Alguns contra-argumen-taro lembrando que qualquer trabalho antropo-lgico foi sempre poltico. Ramos, por exemplo,afirmou que no Brasil, como em outros pasesda Amrica Latina, fazer antropologia um atopoltico (1992b, p. 155). Um ato poltico que,segundo Debert, termina por exigir

    posicionamentos quanto proibio exercidapelo governo s entradas e pesquisas em reaindgena; indicao de profissionais para aemisso de laudos periciais; elaborao deregulamentaes; controle de questes ticasque envolvem os antroplogos, e pronuncia-mentos nos meios de comunicao de massa.(Debert, 1992, p. 14)

    No entanto, tais participaes (registros emteses, laudos, mdia etc) visam ao conhecimentoe ao reconhecimento de singularidades culturaise de legitimao da diversidade cultural, por meioda divulgao cientfica, seja no meio acadmico,seja para a sociedade de maneira ampla. Assim,os antroplogos no apenas no processam umahierarquizao de culturas, como ainda secomprometem em colaborar para a garantia e asalvaguarda dos grupos estudados. Significa quese comprometem responsavelmente por cola-borar, caso necessrio, na preservao daquiloque for sinalizado como importante pelo grupo.

    Lembrando que o grupo pode reconhecer comoimportante a parcial destruio (reatualizao)como prtica de preservao de uma tradio.Exemplo disso o j citado caso do Japo(Ogino, 1995).

    Canclini prope que se observe o patrimniocomo um espao de disputa econmica, polticae simblica, que contempla a ao de trstipos de agentes: o setor privado, o Estado e osmovimentos sociais. Para Canclini, h umarelao imediata entre a forma de interaodesses setores e as contradies nos usos dopatrimnio (Canclini, 1994, p. 100).

    A antropologia, como rea disciplinar,cuidou de refletir sobre as contradies e os con-flitos em torno dos patrimnios, acompanhandoo discurso (Gonalves, 1996; Santos, 1992) oua ao (Arantes, 1984; Fonseca, 1994; Rubino,1991; Garcia, 2004) de um ou mais agentes, oua relao entre eles (Arantes, 1984, 1999, 2001;Lewgoy, 1992; Tamaso, 1998; Leite, 2001).

    Contudo, no caso da participao do antro-plogo no processo de inventrio e registro deum bem cultural, para atender s polticaspblicas culturais, ele no est transitando emmeio aos trs setores: setor privado, Estado emovimentos sociais. Ele entra como parte inte-grante de um dos setores. Ou seja, desloca-sedo papel de antroplogo que reflete sobre aspolticas e prticas preservacionistas e sobreos impactos destas para os grupos portadoresde bens patrimoniais para o papel de antro-plogo inventariante; o que no significa quea participao do antroplogo seja nesse casoilegtima. Deve, contudo, pautar-se pelo exer-ccio da reflexo sistemtica sobre a prticaantropolgica, no sentido metodolgico e terico,como garantia de participao responsvel etica. Haver que relativizar sua prpria parti-cipao.

    Na situao atual em que se encontram osdebates sobre a relao do antroplogo com aspolticas de preservao dos patrimnios ima-teriais,24 oportuno lembrar de uma caracte-rstica da antropologia brasileira marcada pelafreqente atuao poltica de antroplogos em

    24. Reflexes sobre a relao entre a antropologia e o INRCpodem ser encontradas em Simo (2003) e Fonseca et al.(2004).

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    defesa de causas de grupos indgenas, negros,quilombolas etc. Os antroplogos brasileiros tmassumido o importante papel de mediadores emsituaes de conflito de interesses ou, segundoOliveira (2004), no mbito da comunicaointertnica ou do agir comunicativo.

    A ABA tem demonstrado especial inte-resse nos debates sobre tica e responsabilidadesocial, diante dos novos desafios: a grandediversificao da atividade profissional dosassociados da ABA (Funai, Procuradoria Geralda Repblica, Fundao Palmares, ONGs,instituies privadas de ensino etc); a existnciade contralaudos, que afirmam a posio dife-renciada de antroplogos em campos polticose econmicos em disputa; a relao entre aantropologia e outras reas disciplinares comoo direito e as cincias da sade, estas ltimas,sobretudo, no que concerne s normatizaesvinculadas ao Conselho Nacional de Sade(CNS), pela Comisso Nacional de tica emPesquisa (Conep).25

    No caberia somar a todos esses desafiosa recente incorporao do antroplogo notrabalho do Inventrio Nacional de RefernciasCulturais? No deveria a insero do antro-plogo nesse novo campo ser tambm consi-derada como tema para a reflexo sobre ticae responsabilidade social? Convicta de que aresposta positiva problematizarei um poucomais sobre esse novo papel, o do antroplogoinventariante, no a fim de imobilizar-lhe a ao,mas a fim de ampliar-lhe os horizontes etno-grficos e tericos.

    De maneira geral, farei uma anlise compa-rativa das demandas de ao dadas aos antrop-logos indigenistas, com aquelas propostas maisrecentemente para o antroplogo inventariante.De maneira especfica tratarei de criar paralelos sempre resguardando as diferenas entre aquesto indgena e a questo patrimonial entreo laudo pericial e o inventrio, como documentosproduzidos sob responsabilidade de antroplogos,com poder seno de transformar, pelo menosde causar impacto em maior ou menor grau,positiva ou negativamente, sobre os grupos nelese por eles tratados.

    Tomarei por base especialmente antro-plogos indigenistas que vm h algum tempoproblematizando a questo da tica e daresponsabilidade social do antroplogo, no queconcerne s demandas dos direitos indgenas.

    Chamando a ateno para as situaes nasquais a pesquisa antropolgica vai, como disseOliveira, alm da construo de conhecimentose se v enleada em demandas da ao (2004,p. 22), Cardoso Oliveira cita sua prpria expe-rincia etnogrfica como um exemplo no qual asaudvel combinao de etnlogo e de indi-genista acabou por impor formas de ao aoprocesso de pesquisa. O antroplogo pesquisadorse viu tambm na condio de etnlogoorgnico;26 ou seja, na condio de pesquisadorumbilicalmente ligado a uma entidade, umaclasse social, um setor de classe ou um dossegmentos desse setor (2004, p. 24). Seu antigovnculo como etnlogo do Servio de Proteoao ndio (SPI) teria condicionado de tal maneiraseu fazer antropolgico que o pesquisador emcampo assumia, vez por outra, a postura doindigenista.27

    O etnlogo orgnico, intermedirio naelucidao de situaes equivocadas, cumpriria,segundo Oliveira (2004) o papel de intrpretede idiomas culturais em confronto. Assim, aantropologia prtica deve se pautar pelomodelo de eticidade de Groenewold da macro,meso e microesfera28 , considerado por Oliveira

    25. Conferir Antropologia e tica: o debate atual no Bra-sil, livro que resultou de encontros, oficinas e simpsiosorganizados pela ABA.

    26. Faz referncia expresso gramsciana.27. Um dos exemplos relatados por Oliveira (2004) refere-se a uma situao de contato intertnico na cidade deMiranda. Um casal de ndios terena aguardava para ser aten-dido pelo proprietrio de uma casa de comrcio, quando oantroplogo e outros fregueses entraram. No obstante es-tarem esperando h mais tempo, o proprietrio do comr-cio foi atendendo os outros, desconsiderando o casal dendios. O antroplogo, imbudo da postura indigenista, in-dagou sobre o motivo em no atender os ndios que haviamchegado antes e, ouvindo do comerciante uma respostaetnocntrica esses bugres no ligam por esperar, eles notm pressa, o tempo para eles no conta como para ns , comeou a discutir com o comerciante; mesmo cientede que deveria estabelecer boas relaes com as reascircunvizinhas s reservas ternas, para o bom andamentode sua pesquisa. Posteriormente, ao retomar suas anotaesde campo, leu a seguinte frase: Ser que mais do que brigar,no deveria eu devotar-me a elucidar (2004, p. 24-25).28. Sendo a microesfera o espao das particularidades, amacroesfera o espao do universal e a mesoesfera o lugardos Estados nacionais, cujo papel seria o de mediar as esfe-ras locais e globais (2004, p. 26).

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    como til para orientar os nossos passos noterreno da moral (2004, p. 28). A interme-diao entre as esferas, em termos de uma ticadiscursiva, s se realiza quando o pesquisadorparticipa do dilogo entre as partes.

    Assim, Oliveira entende que, em demandasde ao, acionadas por conflitos entre as esferassociais, o etnlogo orgnico no s pode comodeve agir junto aos grupos estudados sempresob o signo da solidariedade sendo estasolidariedade o modo pelo qual iluminamos o teorde nossa imparcialidade e, esta, sob o signo dajustia (Oliveira, 2004, p. 28).

    O agir comunicativo de que trata Haber-mas retomado por Oliveira, uma vez que paraele sempre que estivermos voltados para a reali-zao do trabalho etnogrfico, tambm estare-mos abertos para as questes que a prpriaprtica indgena nos propuser (Oliveira, 2004,p. 21). Descartando a antropologia aplicada,por no se orientar pelo dilogo com aquelessobre os quais age, e a antropologia da ao,por ser demais reflexiva, Oliveira prope umanoo de prtica nos termos de uma tradioinerente filosofia moral (2004, p. 21). Retomao conceito de prtica de Lvy-Bruhl (1910),como aquela que designa as regras da condutaindividual e coletiva, o sistema de direitos edeveres, em uma palavra as relaes morais doshomens entre si (apud Oliveira, 2004, p. 22).Oliveira especifica ainda que confere as rela-es morais um sentido moderno, como o dasrelaes dotadas de um compromisso com odireito de bem viver dos povos e com o deverde assegurar condies de possibilidade deestabelecimentos de acordos livremente nego-ciados entre interlocutores (2004, p. 22).

    Alcida R. Ramos tambm tem refletido halgumas dcadas sobre responsabilidade sociale tica no trabalho do antroplogo (1992a;1992b; 2004). Em O antroplogo como atorpoltico (1992a), a autora levanta algumasquestes relativas crescente demanda de parti-cipao dos antroplogos indigenistas que meparecem bastante oportunas para o debate atualsobre os patrimnios imateriais:

    [] o que acontece quando somos chamadospelos poderes estabelecidos a pr o conhe-cimento que acumulamos a servio daquilo que

    geralmente criticamos? At onde podemosempurrar a lana, no raro quixotesca, do rela-tivismo cultural e do respeito absoluto famosaalteridade? Quando nossas sugestes pisamnos calos dos interesses desenvolvimentistas,somos acusados de querer guardar os ndiosem zoolgicos. Quando aceitamos dialogar comesses interesses, corremos o risco de acusaesde cooptao, ou de sermos francamentecooptados, o que no indito entre ns. Restaento perguntar: ser possvel que o ethosantropolgico irremediavelmente incom-patvel com uma participao mais direta comaqueles que traam as diretrizes da nao? Noser uma contradio em termos advogar alegitimidade das diferenas e engajar-se emnegociaes com quem sistematicamente negaessa legitimidade? []Que Estado nacionalseria suficientemente esclarecido para acatar avocao relativizadora da antropologia? Ou,inversamente, que antropologia seria suficien-temente despojada de relativismo para suportarcompromissos realistas com o Estado?(Ramos, 1992a, p. 156-157)

    Seriam compromissos realistas, porexemplo, o processo de hierarquizao para aseleo das manifestaes culturais brasileiras?O antroplogo ativista, para Ramos, tem o papelde ator poltico do qual no pode se eximir.Prope encarar essas questes sem falsasexpectativas e sem um niilismo paralisante(1992a, p. 157). Penso que os antroplogosinventariantes encontram-se no mesmo ponto:nem devem se imobilizar diante das novasdemandas sociais (participao e/ou coorde-nao em INRC), nem descartar a posturacrtica, relativizadora e tica da prtica antro-polgica. Como manter o equilbrio em meio sretricas desenvolvimentistas e globalizantes dosEstados-naes membros da ONU e co-part-cipes das decises das Unesco para o patri-mnio mundial?

    Como ator poltico, h outra analogiapossvel entre o antroplogo ativista (e etnlogoorgnico) e o antroplogo inventariante: dizrespeito aos laudos antropolgicos, ressalvadasas diferenas especficas, que sero analisadas.O laudo antropolgico pericial uma das provassolicitadas a um antroplogo por um juiz queesteja dirigindo um dado processo judicial.Implica, portanto, a existncia de conflitos de

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    interesses, que devem ser resolvidos de acordocom a lei. A percia judicial solicitada a fim deapurar um fato ou situao cuja resoluodepende de conhecimento tcnico ou cientfico(Santos, 1994). So exemplos de perciaantropolgica a investigao do grau deentendimento de um grupo indgena quanto eliminao da vida humana (criminal) e areconstituio da memria tribal sobre possede determinada terra (civil) (Santos, 1994, p.22). O laudo antropolgico o resultado dediligncias periciais, compostas por observaesde campo. Compe-se, em geral, de um relatrio,resumo dos fundamentos, respostas aos quesitose apndice cientfico (Santos, 1994).

    Ainda que o laudo antropolgico no seconfunda com pesquisas de carter acadmico,a qualidade das informaes etnolgicas, comoaspectos da cosmologia, demografia, atividadeseconmicas e rituais, organizao social etc., fundamental para garantir a fora de argu-mentao. Sendo assim, Valado levanta umaquesto com relao aos laudos antropolgicosque penso servir para pensar a situao atualdo antroplogo inventariante:

    pode um antroplogo que no tenha estudosacumulados relativos ao grupo indgenaenvolvido no processo responder satisfato-riamente ao quesitos propostos dentro do prazode um ou dois meses determinado pelo juiz,considerando-se especialmente que deveroser envolvidas pesquisas especficas para aconstruo do laudo? (Valado, 1994, p. 40)

    Valado informa que a ABA, at aquelemomento, havia indicado para percias antropo-lgicas apenas antroplogos conhecedores dosgrupos envolvidos nos processos, entendendoa medida como prudente a considerar-se ainexistncia de metodologia e culturas prprias produo dessas pesquisas/documentos, bemcomo das responsabilidades para com osresultados dos trabalhos (1994, p. 40, grifo daautora).

    O que chama a ateno que as preocu-paes de Valado so em parte as que tminquietado os antroplogos que vm refletindosobre o INRC. O que h de significativa dife-rena que, no caso do reconhecimento dosbens de natureza imaterial, o Estado-nao

    (Iphan/Minc) criou a metodologia e a culturaprprias produo das pesquisa/docu-mentos: a metodologia dada no Manual deaplicao do INRC. Sendo assim, a princpio,eliminar-se-ia a necessidade de participao deum antroplogo conhecedor do grupo envolvido;sobretudo se pensarmos que o INRC prev aanexao de pesquisas acadmicas antropo-lgicas e outras no levantamento bibliogrfico aser feito sobre o stio e os bens inventariados.Porm, Valado cita o fator responsabilidadepara com resultados dos trabalhos e, nesseponto, o problema se apresenta da mesma formapara ambos os campos: indgena e dos gruposportadores de bens patrimoniais a serem reco-nhecidos.

    Proponho tambm que se reflita sobre acapacidade do INRC de captar valores e signi-ficados dos mais diversos grupos para almdaqueles que em geral respondem pela histriado grupo. O prprio Manual de aplicao doINRC indica que os pesquisadores (inventa-riantes) procurem por aquelas pessoas quetenham um conhecimento aprofundado dacultura local (Iphan, 2000, p. 35). Mesmo nose resumindo ao conhecimento dessas pes-soas, o INRC prope que se comece por elasque, ao meu ver, podem de incio direcionar ogrupo inventariante para referncias culturaisque no so apropriadas como valores maissignificativos pelo grupo como um todo, masantes por parte do grupo que detm o poder sobrea construo da memria local. Como tratar ascontradies sociais, que freqentemente atin-gem os embates sobre a memria, se o que oINRC pretende buscar apreender os signi-ficados e valores que os grupos sociais atribuemaos seus bens culturais, para, em seguida, seconsiderar pertinente, indicar o registro dedeterminado bem cultural.29 No seria o antro-plogo especialista no grupo o mais adequadopara interpretar as contradies inerentes prtica da memria ou ao processo sobre o qualse do as narrativas sobre o passado e o tempo?Mas o que seriam antroplogos especialistas?

    29. Ainda que seja uma das fases do registro, o inventriono se limita a ele. O INRC tem por objetivo fazer o le-vantamento, atualizao e organizao dos dados sobre de-terminada realidade cultural territorialmente delimitada(Garcia, 2004, p. 78)

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    Ramos levanta questes importantes sobreo papel de testemunhas desempenhado pelosantroplogos que realizam laudos periciais.Questiona primeiramente a categoria espe-cialista:

    At que ponto sou especialista em Yanomami?[] a pequena parte da vida indgena queconseguimos assimilar em nossas investi-gaes ser suficiente para que tenhamosaquela viso, ao mesmo tempo global eespecfica, que nos habilite a fazer afirmaesque, ao passar do domnio da lei, serometamorfoseadas em fatos e verdades jur-dicas? (Ramos, 1992b, p. 55-56)

    Outro ponto importante tratado por Ramos,e que pode ser trazido para iluminar os debatessobre a nova poltica de preservao dos patri-mnios culturais, que, como autores de laudospericiais, somos, ao fim, uma vicissitude conjun-tural na trajetria intertnica dos ndios.Parafraseando Ramos, a participao dos antro-plogos inventariantes uma contingnciahistrica e, como tal, deve ser avaliada (Ra-mos, 1992b, p. 56). Tais consideraes levamRamos a tocar na incmoda questo do pater-nalismo (no campo do indigenismo), da qualfreqentemente so acusados a Igreja e o Esta-do, mas que, quando o antroplogo o acusado,sente seus brios feridos (Ramos, 1992b, p. 56).

    Para alm das limitaes do especialistaou perito, Ramos levanta questes importantessobre o processo pelo qual nos tornamosexperts, ou seja, o modo como pensamos aantropologia. Ao irmos para o campo carre-gamos conosco tanto nossa existncia anteriorquanto posturas tericas, mtodos e ferramentasanalticas que moldam de tal forma os dadosque recolhemos, que tanto funcionam no sentidode ampliar quanto de estreitar nossa percepo.Segundo Ramos, domesticamos a realidadecom categorias que nos so familiares, tanto emtermos de nossa socializao cultural como denosso treinamento profissional (1992b, p. 56).Nossa vivncia de campo transformada emuma linguagem que no pertence quela reali-dade e que vai sendo reproduzida em nossosescritos, que podero incluir, entre outrascoisas, laudos periciais, declaraes oficiais oupblicas etc. (1992b, p. 56). Ramos enftica

    em afirmar que no devemos nos iludir, pois essalinguagem acadmica, aparentemente neutra,no sempre inofensiva (1992b, p. 56).

    As reflexes de Ramos objetivam lanarluz sobre a complexidade do trabalho antropo-lgico que, para alm dos limites acadmicos,deve manter uma ponte constantemente esten-dida entre o rigor profissional e o compromissopoltico (1992b, p. 59). Critica uma posturaingnua, segundo a qual os laudos periciais seriamcapazes de salvar os grupos humanos doflagelo, afirmando que o simples fato de seacreditar que o conhecimento antropolgico deveservir a alguma coisa mais do que academia motivo para que enfrentemos os desafios.

    O desafio que est sendo imposto nomomento aquele de refletir sobre a relaoentre vrios atores sociais entre o antroplogoinventariante e o grupo portador do bem cultural;entre o grupo portador do bem cultural e asinstituies pblicas de preservao; as relaesinternas ao prprio grupo; as relaes entre oantroplogo inventariante e as instituiespreservacionistas; entre os antroplogos e osprogramas de ps-graduao em gesto dosbens culturais; entre os antroplogos inventa-riantes e a academia no que concerne s estru-turas hierarquizadas de saber e poder, tanto nocorpo do Estado quanto nas universidades einstituies financiadoras de pesquisa. Assim, oantroplogo inventariante antes de tudo sujeitoe objeto do seu prprio trabalho (Ramos, 1992b).Deve cuidar para no ser surpreendido porsituaes contraditrias, nas quais a ao comoautoridades em determinado assunto imobilizeo trabalho como antroplogo.30

    Entendo, pois, que essa nova modalidadede atuao registrar primeiramente noinventrio, com o objetivo de registrar finalmenteno Livro de Registro pode ser comparada coma atuao em laudos periciais antropolgicos,os quais Silva considerou como sendo locusprivilegiado de acmulo dos vrios papis porparte dos antroplogos : (1) cientista e traba-lhador acadmico; (2) pesquisador de campo;

    30. Exemplo disso dado por Ramos (1992b), quando otrabalho em laudos periciais realizados a pedido do PoderJudicirio desencadeia a proibio por parte do Executivode regressar ao campo para dar continuidade ao trabalhoantropolgico de pesquisa.

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    (3) militante, e (4) profissional com competnciamuito especfica, mas com profisso no regu-lamentada (1994, p.60). Esse antroplogoinventariante do patrimnio, de certa forma,estar efetuando o que passo a chamar a partirde agora de um laudo cultural: que se constituidos resultados das pesquisas iniciadas no INRC,sendo concludo com a indicao de registro deuma dada referncia cultural, ou apenaslimitado indicao de registro.31 O antroplogodever estar ciente de que estar mettant enscne todos os papis acima relacionados.

    Alguns podero alegar uma diferena, emprincpio, entre o laudo pericial antropolgico eo laudo cultural do qual participaria, dentre outrosprofissionais, o antroplogo. Refutando essapossvel linha argumentativa, apresento ascaractersticas do laudo pericial para em seguidarevelar que uma provvel defesa da diferenaentre eles seria equivocada e sem valor heu-rstico maior.

    O laudo pericial antropolgico acionadopela justia e efetuado pelo antroplogo32 pararesolver situaes de conflito de interesses. OINRC seria uma espcie de laudo cultural que,no entanto, no teria como objetivo a resoluode conflitos de interesses, no sentido judicial.Os conflitos seriam internos ao grupo criador eportador do bem cultural. Seriam resultado dadisputa pelo passado, pelas marcas identi-trias. Haveria, ento, um conflito de ordemno-judicial, uma disputa simblica para imporuma narrativa sobre o passado como maislegtima. A disputa pelos valores atribudos aosbens deveras importante e pode, por vezes,colocar na arena valores simblicos em disputacom alegricos.

    Ademais, o prprio fato que antroplogosrealizem um inventrio que, em ltimainstncia visa, averiguar o potencial patri-monial de dado bem cultural configura-se umaespcie de laudo. Ao enviar ao ConselhoConsultivo do Iphan uma proposta de registro, orelatrio baseado em um dossi dever declarare comprovar o valor inventariado. No cons-titui, pois, um laudo cultural? E no seria o prpriolaudo pericial, antes de tudo, um laudo cultural?Convicta de que a resposta positiva passo apartir de agora a me referir ao antroplogoinventariante como aquele que realiza um laudocultural em algum momento do processo dereconhecimento oficial de um bem cultural denatureza imaterial.

    Assim, um mesmo antroplogo poderpraticar uma ou mais de uma das vrias formasde registros: registro no decorrer da pesquisapara o INRC, no parecer de solicitao deregistro ao Conselho Consultivo do Iphan e noprprio registro, que a inscrio em um dosLivros de Registro. Registros que desencadea-ro, conforme j previu Arantes (2001), impactosque devem ser considerados pelo trabalhoantropolgico prtico e/ou intelectual, quese pretenda socialmente responsvel e tico.

    Considerando-se todas as observaesfeitas at o momento, penso que os antroplogosque lidam com questes relativas aos patrimniosculturais devem balizar suas aes e reflexesna direo de alguns pontos que considerocruciais. Alguns deles j foram parcialmentetratados pelos profissionais que se debruaramsobre a nova poltica de preservao dos patri-mnios (Decreto 3551/2000, INRC, ProgramaNacional de Patrimnio Imaterial).

    Primeiramente importante ressaltar queno basta estarmos de posse dos conhecimentosde uma dada manifestao cultural. O nossoolhar antropolgico deve estar atento s cate-gorias que esto entrando em cena: inventrio,referncia cultural, patrimnio imaterial,registro e interpretar criticamente os usos aosquais eles tm servido nos mais variados lugares,uma vez que, como enfatizou Canclini, oproblema mais desafiante, agora, so os usossociais do patrimnio (1994, p. 102). Casocontrrio, correremos o risco de nos depararmoscom uma postura ingnua dos antroplogos

    31. No primeiro caso, enquadram-se os casos nos quais umdado stio foi inventariado com base na metodologia de-finida pelo Manual de aplicao do Inventrio Nacionalde Referncias Culturais (INRC) e de cujo inventrio de-correu a indicao do registro de uma determinada refe-rncia cultural, por exemplo, o registro da viola-de-cocho(MT). No segundo caso, a solicitao de registro no decorrente da aplicao da metodologia do INRC. Exemplo o registro da arte grfica e pintura corporal dos Waipi,cuja documentao que amparou a solicitao de registro de autoria da antroploga Dominique Gallois.32. O antroplogo pode requerer ao juiz um auxiliar da reaque considerar necessria, para a realizao dos trabalhos depesquisa visando elaborao do laudo pericial (Santos,1994).

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    diante de um fenmeno social, econmico epoltico.

    No basta j ter exaustivamente analisado,compreendido ou interpretado uma determinadamanifestao cultural. necessrio se informarcomo as polticas de patrimnio se do, a fim desaber como a idia de patrimnio ser incor-porada quela manifestao cultural, ou comoas polticas de patrimnio a englobaro. Oconhecimento prvio do grupo fundamental,mas o conhecimento dos debates mais atuaisdos patrimnios, sobretudo aqueles que inter-pretam a recepo das prticas e polticas depreservao por parte dos grupos portadores debens patrimoniais, condio bsica se oantroplogo deseja realizar um trabalho res-ponsvel.

    De posse de uma compreenso mais espe-cfica do fenmeno patrimnio no mundo, hque se considerar, em segundo lugar, que nootem o grupo a ser inventariado, da idia depatrimnio cultural brasileiro. Como o grupoa incorpora no cotidiano de suas prticas? Comopensa em fazer uso dessa categoria e o queespera dela? Questes que remetem no apenas idia de apropriao, mas sobretudo como osbens apropriados como patrimnio podemdeflagrar posies polticas distintas. Ou seja,por meio desses bens, as pessoas passariam ase definir em constantes contrastes identitriosem relao a posies de poder, tenso com oEstado, auto-imagem criada tendo comoreferncia o olhar dos de fora (turistas, porexemplo). Nesse caso, penso que cabe especi-ficamente ao antroplogo ser capaz de avaliarresponsavelmente, juntamente com o grupo aser inventariado, o impacto que, porventura, oregistro possa vir a trazer futuramente.

    No processo da candidatura do ttulo depatrimnio mundial da cidade de Gois, muitasforam as campanhas que tiveram como propsitoesclarecer a opinio pblica sobre o que signi-ficava ser patrimnio mundial e quais bene-fcios o ttulo traria para a cidade. Vendo a cidadetoda em obras, para a instalao da fiaosubterrnea e da rede de esgoto (antes inexis-tente), muitos entenderam que toda a cidadereceberia o mesmo benefcio que se tributavaao centro histrico. Alm disso, os debatessempre foram norteados pelos impactos posi-

    tivos: incremento do turismo seguido do conse-qente aumento de empregos para cobrir essademanda; maior escoamento dos produtosartesanais e comidas tpicas; possibilidade demais cursos tanto de capacitao para garons,recepcionistas, cozinheiras e guias tursticos,quanto universitrios em nvel de graduao eps-graduao.

    Os impactos negativos no foram sequeradmitidos no momento da campanha: aumentoda violncia; significativa alta do custo de vida;concentrao de poder quanto gesto dosrecursos do patrimnio em grupos especficossem participao popular efetiva e hierar-quizao dos patrimnios (temporal e espacial-mente), da qual decorrem ofertas para quemoradores tradicionais, de certas ruas, vendamsuas casas para que estas atendam a fins cultu-rais. Estes so apenas alguns dos inmerosimpactos com os quais os vilaboenses se depa-raram, aps a conquista do ttulo de patrimniomundial e j os colocaram em um nvel discur-sivo.33 O exemplo dos patrimnios materiais nopode ser desconsiderado pelos antroplogos quetrabalharo com os patrimnios intangveis.Porque a intangibilidade destes termina exata-mente onde comeam os inmeros interesseseconmicos e polticos. Se h diferena deobjeto, no creio que haja diferena de riscos.

    A tradio que fundamenta o bem intan-gvel, os laos sociais que so alimentados porele, as trocas simblicas que dependem damanifestao cultural para acontecerem, arelao que o bem cultural estabelece temporale espacialmente, nada disso se situa apenas nonvel do intangvel. Como j foi deveras ressal-tado (Iphan, 2000a), os caracteres imateriais dobem cultural s podem s-lo se contarem comum apoio material: vestimenta, instrumentos,msica, ornamentos, objetos, espao fsico, sereshumanos etc. Creio que, quando os impactos sedo no mbito da esfera material da mani-festao cultural, porque, de alguma maneira,j atingiram a esfera do intangvel e vice-versa.No so dois caracteres distintos. So caracteresinterdependentes: um s existe pelo e para ooutro. Os impactos, quando afetam um sistema

    33. Dados coletados no trabalho de campo realizado nacidade de Gois entre 2000 e 2002.

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    SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36

    cultural, fazem-na tanto do ponto de vista mate-rial quanto do intangvel. E creio ainda que osfuturos patrimnios imateriais, pela sua feioparticular, de manifestaes culturais em cons-tante dinmica, ficam ainda mais sujeitos aosimpactos advindos das polticas de patrimnio.

    O terceiro ponto a ser considerado dizrespeito relao entre os antroplogos e ogrupo a ser inventariado. Penso que os antro-plogos que se disponham a realizar o INRCno devem perder de vista que o compromissodo antroplogo para com o grupo estudado, eque este no deve ser suplantado para atenderaos interesses das agncias estatais, no-governamentais ou privadas que porventura ostenha contratado. oportuno citar a perspectivacrtica de Carvalho ao chamar a ateno para ofato de que a crise do Estado brasileiro podeafetar tambm a perspectiva dos pesquisadores,gerando novas ambivalncias de adeso emesmo de identidade social e poltica (2004,p. 11).

    Sendo assim, o quarto ponto a ser consi-derado seria uma indicao de que os antro-plogos se comprometessem a acompanhar ogrupo inventariado aps o registro, a fim decolaborarem para impedir rupturas e desinte-graes no desejadas pelo grupo, naquelesistema cultural, em conseqncia da divulgaoe promoo deste.

    Os projetos de desenvolvimento tm sidorecorrentemente debatidos e acompanhadospelos antroplogos h algumas dcadas. Osantroplogos tm sido chamados por empresaspblicas e privadas, tanto para elaborar projetosde desenvolvimento quanto para avaliar seusefeitos (Arantes et al., 1992). A maior preo-cupao para com os vrios sistemas culturais,que podem ser absolutamente transformados porprojetos, que tm como mote o desen-volvimento da regio. Os projetos de desen-volvimento, no caso dos bens culturais intangveis,so projetos tursticos. Os bens culturais no soobstculo para esse tipo de desenvolvimento.So antes a sua razo de ser (Lowenthal, 1998b).Ao invs de desconsideradas pelo Estado-nao, as manifestaes culturais sero reco-nhecidas como patrimnio cultural brasileiroe sero divulgadas com um nico interesse,dentre outros, de que as polticas de preservao

    do pas, finalmente, reconheam a importnciados vrios grupos tnicos formadores da culturabrasileira. Uma demonstrao do espritodemocrtico. um bom motivo. Mas quemarcar com os riscos?

    Estou certa de que, se um novo mercadode trabalho se abre para o antroplogo, tambmsurgiro novos objetos de estudo, oriundos datransformao das manifestaes culturais nosmais recentes patrimnios culturais brasileiros.Pois se a atribuio do valor patrimonial passaa ser cada vez mais desejada, se a afeio pelopatrimnio se alastra pelo mundo, ns antro-plogos devemos tentar entender o contextosocial no qual tal aceitao se d e quaisconseqncias podem surgir do investimento naidia de patrimnio e nas prticas de preser-vao dos patrimnios. Qual contribuio osantroplogos podem dar aos gestores daspolticas e prticas de preservao dos patri-mnios, mas, sobretudo, aos grupos que estarosendo inventariados e talvez registrados?

    Entendo que devemos acompanhar osprocessos de atribuio do valor patrimnioem casos especficos, a fim de observar proxi-mamente os resultados da insero dessa novacategoria. Como a categoria patrimnio apropriada pelos vrios grupos sociais? A quaisgrupos ela melhor serve ou melhor opera-cionalizada? Quais grupos, por dificuldade dese apropriar dessa categoria, so excludos doprocesso? Quais expectativas so geradas pelainsero da idia de patrimnio e pela ascen-so das polticas pblicas a ela relacionadas?

    O quinto ponto a ser considerado dizrespeito questo da representatividade naesfera cultural. Quanto a isso, vale lembrar quea Unesco enfatiza a importncia do papel a serdesempenhado pelos grupos criadores e porta-dores dos bens culturais, que devem ser agentesdo processo de solicitao, registro e aesposteriores ao reconhecimento. Tambm noBrasil esta uma preocupao. Arantes (2001)recomenda que o acompanhamento dosimpactos deve ser feito com a participao dapopulao afetada. H, pois, que se proble-matizar mais a questo da representatividadena esfera cultural de pases onde a democraciano foi efetivamente instituda e a cidadania estainda por ser conquistada.

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    TAMASO, IZABELA. A expanso do patrimnio: novos olhares...

    Vianna, esclareceu que a realizao deinventrios e registros tem por objetivo propor-cionar ampla base de dados no sentido deorientar as polticas pblicas de preservaocultural e regulamentao de direitos para ascomunidades criadoras dos bens culturais emquesto (2001, p. 97). Preocupada que estoucom a questo da representatividade e daagencialidade dos criadores e portadores dosbens culturais, pergunto: como (e quem vai)garantir que os prprios criadores