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  • A estetizAo dA AlmA pelo corpo no Fdon de plAto

  • Presidente da RepblicaDilma Vana Rousseff

    Universidade Federal do Cear - UFC

    ReitorProf. Jesualdo Pereira Farias

    Vice-ReitorProf. Henry de Holanda Campos

    Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-GraduaoProf. Gil de Aquino Farias

    Pr-Reitora de AdministraoProf. Denise Maria Moreira Chagas Corra

    Imprensa UniversitriaDiretor

    Joaquim Melo de Albuquerque

    Editora UFCDiretor e Editor

    Prof. Antonio Cludio Lima Guimares

    Conselho EditorialPresidente: Prof. Antonio Cludio Lima Guimares

    ConselheirosProf. Adelaide Maria Gonalves PereiraProf. Angela Maria R. Mota Gutirrez

    Prof. Gil de Aquino FariasProf. talo Gurgel

    Prof. Jos Edmar da Silva Ribeiro

    Ministro da EducaoHenrique Paim

  • A estetizAo dA AlmA pelo corpo no Fdon de plAto

    Hugo Filgueiras de Arajo

    Fortaleza2014

  • A estetizao da alma pelo corpo no Fdon de PlatoCopyright 2014 by Hugo Filgueiras de ArajoTodos os direitos reservados

    impresso no BrAsil / printed in BrAzilImprensa Universitria da Universidade Federal do Cear (UFC)Av. da Universidade, 2932, fundos Benfica Fortaleza Cear

    Coordenao Editorial:Ivanaldo Maciel de Lima

    Reviso de Texto:Yvantelmack Dantas

    Normalizao Bibliogrfica:Luciane Silva das Selvas

    Programao VisualSandro Vasconcelos / Thiago Nogueira

    Diagramao:Thiago Nogueira

    Capa:Heron Cruz

    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoBibliotecria Luciane Silva das Selvas CRB 3/1022

    A658e Arajo, Hugo Filgueiras de.A estetizao da alma pelo corpo no Fdon de Plato / Hugo Filgueiras de Arajo. - Fortaleza:

    Imprensa Universitria, 2014.176 p. ; 21 cm. (Estudos da Ps - Graduao)

    ISBN: 978-85-7485-200-3

    1. Filosofia. 2. Filosofia antiga. 3. Platonismo. I. Ttulo.

    CDD 129

  • AGRADECIMENTOS

    Manifesto minha gratido primeiramente aos deuses, fonte de inspirao para os homens. minha famlia, pelo apoio cons-tante, especialmente minha Me, irmos e minha querida pri-ma Deyse Nazareth, pela constante amizade. Agradeo minha av Toinha Marinho (in memorian), que sempre me incentivou ao amor pela leitura e pelos estudos. Como no agradecer aos meus bisa-vs, carinhosamente conhecidos como Mamelinha a Papaidato (in memorian) de quem muitas vezes escutei, sentado aos seus ps, os causos da famlia, que despertaram em mim o gosto pela tradio e pela minha origem?

    Agradeo ao meu amado Andr Luiz, pelo seu companheiris-mo. Grato sou aos inmeros amigos que fiz na minha caminhada de formao acadmica, em especial Anderson Boga, Tedson Braga, Avelino Neto e Maria Risonete. Com gratido lembro dos meus co-legas do Curso de Filosofia da UFCA. Devo muito desse trabalho aos carssimos colegas do grupo de estudos Filosofia da Percepo.

    Aos companheiros e amigos do Curso de Filosofia da UFC em Fortaleza dedico este trabalho, pois me acolheram no colegiado de braos abertos, em especial Maria Aparecida, minha amada amiga, que se dignou fazer a apresentao do meu livro.

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    Grato sou aos colegas do ICA, especialmente na pessoa do Prof. Sandro e da Prof. Ins. Agradeo aos secretrios do Curso de Dou-torado: minha amiga Ftima e os nobres Francisco (Chico) e Paulo.

    Minha gratido ao Programa de Doutorado Integrado em Filo-sofia da UFPB/UFRN/UFPE, na pessoa do Prof. Giovanni Queiroz, coordenador do Doutorado na seleo 2009.3. Agradeo tambm ao Prof. Jos Gabriel Trindade, de quem trago ensinamentos do mestra-do e aos professores que me ajudaram a melhorar o texto: Prof. Jesus Vzquez, Prof. Giovanni Queiroz e Prof. Anderson DArc.

    E de modo todo especial agradeo ao CARSSIMO Prof. Iraquitan Caminha, o meu orientador, responsvel comigo por esse livro, o qual prefacia, e por quem trago uma profunda gratido.

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    , [...]. ,

    ;.,

    Scrates, compe, pratica a arte das Musas [...]A filosofia a mais alta forma de Msica,

    qual outra que no ela era a minha ocupao?Plato, Fdon

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  • 9

    SUMRIO

    PREFCIO ..........................................................................................11

    INTRODUO ...................................................................................15

    O FDON - SOBRE A IMORTALIDADE DA ALMA, DE PLATO .......25Dialogicidade no Fdon .....................................................................26Fdon, um texto apologtico .............................................................28O Plano dramtico do Fdon ..............................................................31O Scrates do Fdon: tranquilidade frente morte ...........................33Morte e filosofia .................................................................................36O sentido de encarceramento da almano corpo e a transposio do Orfismo e do Pitagorismo ...................40O tema da imortalidade da alma ......................................................45As noes de sma e psykh e seu uso ..............................................46O mito do destino das almase a narrativa da morte de Scrates ...................................................58

    CORPO COMO OBSTCULO PARA A ALMA ...................................63Sentido tico-antropolgico: virtude sabedoria ............................68O sentido onto-epistemolgico a instabilidade da sensibilidade ........................................................78Os opostos vida/morte - dos contrrios que nascem os contrrios .....................................81As indagaes naturalistas e a verificao das medidas .....................85Anaxgoras: o esprito o ordenadore a causa de todas as coisas ...............................................................86 Comentando as reflexes autobiogrficas de Scrates ......................87Da observao das realidades sensveisao refugiar-se nos argumentos: a Segunda Navegao ...................89

  • 10

    CORPO COMO AUXLIO PARA A ALMA ..........................................93Corpo, asthesis e cognio................................................................95A teoria das Formas no Fdon ............................................................97A teoria da Anamnese ......................................................................101Asthesis e Anamnese .......................................................................107Da dialtica como mtodo ..............................................................109A teoria da Participao ..................................................................110As grandezas relacionais, o fogo e a neve e os nmeros ..................113A alma no o contrrio do corpo ...................................................116

    A ESTETIZAO DA ALMA PELO CORPO ......................................121Peri Physeos Psykh Sobre a natureza da alma............................123Da mtua relao entre corpo e alma .............................................132Dos modos da alma se relacionar com o corpo ..............................139Philosomathia dos amantes do corpo ...........................................141Philosophia dos amantes do saber ................................................146A autonomia da alma psykhagogia e o domnio de si .................150

    CONCLUSO ....................................................................................155

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................163

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    PREFCIO

    Foi com muita alegria que recebi o convite de Hugo Fil-gueiras de Arajo para prefaciar seu livro, intitulado A Estetizao da alma pelo corpo no Fdon de Plato. Esse livro fruto de sua pesquisa de doutorado em Filosofia, que tive a honra de orientar. O texto faz uma anlise do Fdon, de forma cuidadosa e aprofundada sobre a relao corpo/alma, considerando quais as influncias que alma e corpo se impem e sofrem mutuamente. O autor assume o encargo de utilizar tambm outros dilogos de Plato capazes de dar suporte ao eixo mais central de suas reflexes. Destacam-se o Timeu, o Fedro e a Repblica.

    O tema da relao corpo/alma em Plato j foi bastante pes-quisado e, seguramente, temos inmeros textos j consagrados pela comunidade acadmica sobre o referido assunto. Isso significa que difcil dizer algo de novo sobre um problema to explorado por toda tradio filosfica. Todavia, Hugo no se deixou levar pelos ventos do exaustivamente dito e, com muita ousadia e maturidade, nos pre-senteia com um belo texto que comunica sua posio pessoal sobre o sentido de asthesis, noo tradicionalmente relacionada ao corpo, que foi examinada segundo o ponto de vista da interseo da relao corpo/alma no Fdon.

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    O destaque do texto no fortalecer a distino entre alma e corpo, mas mostrar que a relao alma/corpo pode ser vista como uma espcie de afinidade entre diferentes que se complementam. O autor deixa claro que, sem o corpo e o uso dos sentidos, imposs-vel o trabalho efetivo do logos. O processo cognitivo no se realiza sem os dados sensveis. Logo, o corpo no um obstculo ou uma barreira, mas uma instncia necessria que, todavia, precisa ser ul-trapassada. O desafio treinar a alma para que ela no se deixe iludir pelo carter instvel da sensibilidade, que pode nos induzir ao erro. Contudo, precisamos trilhar pelas veredas do sensvel, caso contr-rio o logos no se realiza.

    O texto chama a ateno para uma assimilao equivocada do pensamento platnico, realizada, sobretudo, por alguns estudiosos cris-tos, que acabaram disseminando de forma deturpada um dualismo corpo/alma. Esses equvocos criaram a viso de que Plato um es-piritualista extremo, defensor de um puritanismo asctico desmedido. possvel redescobrir Plato fazendo uma releitura de sua obra para mostrar a importncia da experincia sensvel para a vida humana.

    Para desenvolver sua compreenso particular sobre a relao alma/corpo em Plato, Hugo faz um percurso detalhando os passos de sua exposio. O autor teve o cuidado de analisar os termos sma e psykh, contextualizando-os no mbito da cultura grega antiga. Inicialmente, considerou uma investigao em Homero e, posterior-mente, as concepes filosficas emergentes no sculo VI a.C., bem como na poesia trgica do sculo V a.C.

    O autor tambm apresenta o carter errante da asthesis, sendo destacado um estudo sobre a noo de prazer, que aponta para a pos-sibilidade de coexistir, em um mesmo sensvel, predicados opostos, possibilitando a defesa da imortalidade da alma. Logo, impossvel a alma portar a morte, restando-lhe, quando o corpo passa pela mor-te, bater em retirada.

    A natureza da alma bastante investigada para revelar a possi-bilidade de nela haver mudana por ser um metax. Por conseguinte,

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    foram tambm analisadas as consequncias que ocorrem na alma quando ela assume as duas posturas que pode ter no corpo: philoso-mathia e philosophia.

    Finalmente, podemos perceber no texto que cabe alma de-terminar o estilo de vida que ter cada corpo, por meio de uma busca constante do domnio de si. Tal perspectiva sintetiza o discurso da filosofia socrtico-platnica, que pretende conferir alma seu esta-tuto de autonomia.

    No h dvidas de que a alma (psykhagogia) necessita alcan-ar o saber e a virtude. A alma no pode cair na desmesura (hbris) e se deixar levar pelas foras dos desejos. Ela deve aprender a satis-fazer os desejos segundo o crivo da razo. Todavia, Hugo mostra com maestria que a educao da alma deve levar consigo a educa-o do corpo. No se pode conceber uma formao isolada da alma. Se ela pode ser afetada pelo corpo de forma negativa, por que no compreender que tambm um corpo educado pela prtica regular da ginstica, por exemplo, pode aprender a privar-se do que no lhe far bem e que tal aprendizagem passe a ecoar na prpria alma? por meio do corpo que a alma aprende a desejar a sabedoria.

    No podemos negar que a postura de Plato frente ao tema da sensibilidade de desconfiana. No h dvidas de que para ele, a sen-sibilidade pode, por vezes, nos atrapalhar na busca pela verdade, misso prpria do filsofo. Mas aquele que procura a verdade no pode negar o seu corpo, que a instncia pela qual a alma tem contato direto com os sensveis (asthesis). Somente por meio desse contato, possvel apre-ender o mundo sensvel, que est ao seu redor, para somente depois inquirir sobre esse mundo e, pela dialtica, rememorar-se das Formas.

    Encontramos no texto de Hugo uma viso clara de que corpo no para alma somente um estorvo, mas o lugar da expresso e o meio pelo qual a alma apreende o mundo sensvel. No lugar do des-prezo do corpo, temos uma leitura que nos leva a uma parceria entre a alma e o corpo. A busca do equilbrio caminho que pode servir de referncia para nossos dias. Em tempos marcados pela tentativa da

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    cincia de querer reduzir a noo de alma a uma mera atividade do crebro, podemos aprender, com esse precioso texto, que o tema da alma humana ainda no morreu.

    Reconhecemos que o corpo, como mero organismo vivo, necessrio para nos tornarmos humanos, mas ele no suficiente. Esse pedao de carne precisa da alma para que possa ter uma bela forma de vida. A alma, por sua vez, no realiza sua nobre misso de conhecer sem ser estetizada pelo corpo. No podemos conceber a alma sem que ela seja afetada pelo corpo. Nesse sentido, conforme afirma Hugo, A alma pode ser afetada porque uma instncia rela-cional, um intermedirio (metax) entre a invisibilidade das Formas e a mutabilidade dos sensveis.

    Recordo-me dos momentos preciosos que passamos juntos discutindo a tese de Hugo em nossas reunies do Grupo de Filoso-fia da Percepo. Ficamos intrigados com a possibilidade de a alma perder sua essncia, caso ela fosse afetada de forma radical pelas ex-perincias sensveis do corpo. Nosso ilustre estudioso de Plato no desejava admitir que a alma fosse apenas influenciada pelo corpo. Sua inteno, mais ousada, era mostrar que a alma era modificada pela sua relao com o corpo. Mas, como admitir que aquilo que deixe de ser? A razo filosfica no suportaria tal contradio. Somente depois de muita discusso, nasceu a proposio de que a alma modificada pelo corpo na medida em que estetizada por ele, possibilitando, assim, que o pensamento e o saber, bem como a razo e a virtude, possam ganhar expresso no mundo sensvel.

    Pscoa de 2013.Iraquitan de Oliveira Caminha.1

    1 Doutor em filosofia pela Universit Catholique de Louvain. Professor Pesquisador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFPB e em Educao Fsica UPE/UFPB. Coordenador do Gru-po de Filosofia da Percepo e do LAISTHESIS Laboratrio de Estudos sobre Corpo, Esttica e Sociedade. E-mail: [email protected]

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    INTRODUO

    Na Histria da Filosofia, as questes referentes existncia humana so de grande relevncia, e de forma particular o entendimen-to das dimenses constitutivas da pessoa humana: o corpo e a alma.

    Observando as diversas concepes do homem no decorrer da histria, da Idade Antiga Idade Contempornea, percebemos que no foram poucos os que tentaram definir corpo e alma. O gran-de momento que inova a definio desses conceitos, sobretudo da psykh, foi o pensamento socrtico-platnico, que deu os matizes do que at hoje dela entendemos. Em diversos dos seus escritos, Plato trata da alma relacionando-a com o corpo, podendo vir a tom-la a partir de um contexto diferente,2 a depender da temtica a ser enfa-tizada em cada dilogo.

    Considerando que os dilogos platnicos foram amplamen-te lidos pela tradio filosfica,3 que influenciaram sobremaneira a

    2 Cf. SANTOS, 1998, p. 17.3 Neles h uma srie de elementos que instigam sua leitura, seja os de cunho histrico, como a

    narrativa da morte de Scrates, por trazer temas interessantes como a morte e vida, relao corpo e alma, ou ainda por trazer a maioria das teorias platnicas.

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    cultura grega e, consequentemente, toda a cultura do Ocidente,4 os diferentes modos de relacionar corpo e alma em seus escritos, bem como interpretaes unilaterais por parte da tradio levaram ao sur-gimento de diferentes vertentes acerca do modo como Plato enten-de o homem como ser constitudo por estas duas entidades sma e psykh; estas, segundo o Fdon, so distintas e podem ser separadas na morte (), fazendo assim dois. Tais vertentes nem sempre surgem nos dilogos no mesmo contexto e/ou com o mesmo senti-do. Plato se serve dessa polivocidade de sentidos dos termos alma e corpo presentes na cultura grega para, no tratamento da questo da mtua relao entre essas entidades, enfocar o aspecto que em cada texto julga ser mais relevante. Assim que o tom conferido a Scrates no Fdon no que tange relao alma/corpo ser bastante distinto daquele encontrado, por exemplo, no Fedro.

    De todo modo, Plato manifesta um discurso que anuncia o cuidado pela alma, por consider-la a fonte do saber e da virtude e at mesmo do prprio eu5 do homem. A valorizao da alma to essencial para Plato que, em alguns dilogos, sobretudo no Fdon, denuncia todos os empecilhos que podem atrapalh-la, chegando a alertar para que se tenha cuidado com o corpo que, por vezes, pode ser um obstculo para a alma que busca a verdade. O argumento sobre o qual Plato se fundamenta para dizer que o corpo pode ser um obstculo para a alma est relacionado, sobretudo, com a ati-vidade da percepo sensvel (asthesis), competncia dos sentidos corpreos, que fornece dados que podem induzir o homem ao erro quando tomados como verdadeiros. Para quem filsofo isso inad-missvel, pois no pode haver a correspondncia tcita entre conhe-

    4 Tornam-se o bero da cultura do Ocidente as culturas greco-romana e a judaico-crist.5 Essa noo comea a transparecer quando Scrates, ao lanar mo da frase dlfica Con-

    hece-te ti mesmo considera que conhecendo sua alma e dela cuidando que o homem se auto-conhece. A referncia que Plato faz da alma ao eu do homem est longe do que a modernidade entende por sujeito; mais uma identificao de que na alma que se encontra a essncia do homem, se assim podemos dizer.

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    cimento e percepo sensvel; s h epistme daquilo que sempre , as Formas (idea). Como asthesis6 se obtm dos sensveis, que so mutveis, no pode ser considerada fonte segura para o saber7, pois dos sensveis se percebem apenas aparncias (phinomai), que geram opinies (doxai), sendo tambm mutveis. Por isso, enquanto a alma estiver unida ao corpo, o homem no alcanar a verdade na sua plenitude, podendo ser desvirtuado desse objetivo.

    Desse modo, Plato sugere que o filsofo deve tomar uma po-sio de desconfiana frente ao corpo, que uma instncia sensvel. Contudo, no deixa de considerar em vrios momentos que, mesmo no sendo fonte suficiente para o conhecimento, pelo corpo e nele que, uma vez estabelecido o composto alma/corpo, comea a busca pela verdade, configurada pela recuperao do saber, pela reminis-cncia, reconhecendo assim o seu papel. A diferena estabelecida por Plato entre alma/corpo e epistme/asthesis segue a lgica da dicotomia Inteligvel/sensveis. O argumento utilizado para justificar que a alma afim das Formas inteligveis fundamenta-se no fato de o corpo no ser capaz de captar o que invisvel, as Formas, restando alma, que lhes semelhante, por ser tambm invisvel, a possibilidade de conhec-las (78e ).

    Essas consideraes at aqui apresentadas, que parecem ser contraditrias, surgem de modo bastante incisivo no Fdon, que, por ser um dos textos mais lidos do corpus platnico no que tange temtica da relao alma/corpo, ocupar um lugar central em nossa pesquisa. O dilogo narra, atravs de um verdadeiro discurso apo-

    6 A asthesis, noo relacionada ao corpo, o ponto de interseo da relao corpo/alma no F-don, que reconhecidamente errante, embora no se deixe de reconhecer a sua necessidade para a alma.

    7 Cf. Teeteto 152dss; Timeu 27ass. Utilizaremos para referir os textos clssicos a indicao dos passos atravs da paginao que comumente utilizada pelos seus estudiosos. Para os dilo-gos de Plato, a paginao Stephanus, que se origina da edio bilngue (latim-grego) de 1578 dos dilogos platnicos, organizada por Henricus Stephanus. Para os fragmentos dos autores pr-socrticos, utilizaremos a referncia Diels-Kranz (DK). Para os textos de Aristteles, ser utilizada a paginao Immanuel Bekker.

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    logtico, a morte de Scrates, enaltecendo assim a filosofia, perso-nificada em sua vida. Desse modo, Plato no poupa artifcio algum para tecer esse testemunho sobre a vida do seu mestre, usando, para compor esse dilogo, uma miscelnea de elementos mitos, men-es s crenas do Orfismo e Pitagorismo, analogias, aluses pre-cariedade das concepes materialistas e outros recursos que so costurados pela narrativa dos ltimos momentos de Scrates e pelos principais argumentos da filosofia socrtico-platnica: contrrios, reminiscncia, teoria das Formas, teoria da participao, etc. Es-ses elementos so utilizados na economia do Fdon como caminhos para demonstrar que a alma imortal (athnaton). Tal concepo capital para esse discurso, pois justifica, em um tom escatolgico, o zelo que Plato anuncia que os filsofos devem ter para com sua alma. Com efeito, alm de a alma persistir aps a morte, alcanando nesse momento a verdade pela contemplao das Formas, sua con-dio imortal garante a possibilidade de vir conhecer enquanto unida ao corpo, atravs da reminiscncia.

    Plato traa, dessa forma, um modus operandi para aquele que exerce a filosofia, ao propor que o caminho do filsofo viver em um treino de morrer e ter morrido. Isso significa ter sua alma afas-tada o tanto quanto possvel for do corpo, quando estiver a racioci-nar, para que no seja desvirtuado da busca pela verdade. O homem que vive em comrcio constante com a sma, deixando por ela ser guiado, acarreta para sua alma consequncias indesejveis que o im-pediro de chegar plenitude da sabedoria que ser alcanada aps a morte. Tais consequncias so descritas por Plato em um tom mtico-religioso, chegando a admitir que as almas dos amantes do corpo (philosmatos) carregam, para alm da vida do corpo, o ele-mento corpreo (somatoeids) ao ponto de serem vistas rondando os tmulos nos cemitrios e, pelo peso que carregam, logo voltam a se encarnar, sendo impedidas do alcance da verdade. Por outro lado, Plato sugere que a alma dos que se dedicaram filosofia (phil-sophos), daqueles que, quando se punham a filosofar, afastavam-se

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    o tanto quanto possvel fosse do corpo, deixando sua alma em si e por si mesma (autn kathautn) para raciocinar, ainda no composto podero se recordar da verdade. Podem, no ps-morte, inclusive ter um bom destino, chegando plenitude do saber. Os filsofos so intermediados pelos sentidos corpreos, servem-se das aparncias, mas no deixam por elas ser enganados, pondo em anlise os dados colhidos pela asthesis, pois compreendem que seu carter errante.

    Ora, essas duas posturas da alma frente ao corpo, que encontra-mos no Fdon, acarretam determinadas consequncias, fazem-nos per-ceber que Plato entendia que a alma no composto influenciada pelo corpo. Declarar que a alma afetada pelo corpo, podendo sofrer certo tipo de mudana (kneses); admitir que num primeiro momento ela ad-quire um estado composto, sendo possuidora de partes; mais que isso, supor que a alma pode chegar ao extremo, de forma violenta, a assumir elementos corpreos (peso, visibilidade, etc.) estranhos sua natureza (visvel), parece algo contraditrio. Isto porque o fundamento que Pla-to usa para estabelecer a relao entre a alma e as Formas a invisibi-lidade, que pressupe imutabilidade, conforme nos apresenta no passo 79a, afirmando que o invisvel () sempre permanece idntico a si mesmo ( ). Entretanto, a contradio aparente, pois Plato relaciona a alma ao invisvel dizendo que h semelhana (ho-moiots) e afinidade (syggignesthai) entre elas, o que significa ter algo que lembra ou ser parecido com, mas no ser idntico a. Plato no Fdon no afirma ser a alma sempre imutvel como as Formas so, o que sugere que em alguns momentos ela pode mudar. Destarte, no Fdon no deixam de aparecer referncias de que, mesmo no sendo imutvel como as Formas sempre so, uma vez separada do corpo, ela poder voltar ao seu estado puro (aut kath aut), que em si e por si mesma, quando novamente estiver em contato com as Formas, suge-rindo Plato que esse o seu estatuto ontolgico mais genuno.

    Diante da possibilidade de a alma sofrer mudana, mas no podendo ser classificada como um sensvel, por ser na sua essncia invisvel, resta-nos explicar: O que a alma? Qual sua natureza?

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    No encontramos essa resposta de forma clara no Fdon, sen-do necessrio buscar duas referncias em dois outros dilogos: 1) no Timeu, na tese da gnese da alma csmica e dos humanos, que so moldados pelo demiurgo, este forja uma mistura de substncias (ou-sia) de naturezas distintas, deixando sobressair a poro Inteligvel; 2) no Fedro, no mito da parelha alada, cujo objetivo demonstrar o carter misto da alma, que tanto divina quanto humana. Com esses passos defendemos que a alma , na filosofia de Plato, uma instn-cia intermediria, um metax, entre a mutabilidade e materialidade dos sensveis e a invisibilidade e imaterialidade das Formas.8 Esse estatuto ontolgico da alma permite que seja entendida como uma realidade que pode estabelecer comunho (koinonia) ao se associar (homilo) com o corpo, ao ponto de mudar, assimilando atributos que distam da sua natureza genuna.9 Todavia, trata-se da aquisio de qualidades (poites) e no mudana substancial (ousa).

    A alma na sua associao com o corpo, em primeira instncia, adqua-se s vicissitudes da condio corprea, sendo a sma o espao e via para o aprendizado, uma vez que pelo contato com os sensveis que poder ascender pela dialtica rememorao das Formas. A expe-rincia da percepo sensvel, apangio do corpo, atividade conjunta da dade psykh/sma, por ser a alma o seu princpio de vitalidade.10 Cabe ao corpo receber as sensaes, enquanto que a alma processa esses dados (da sensao), submetendo-os pelo lgos anlise.

    No tocante s sensaes corpreas, Plato ora diz ser o corpo ora a alma a fonte do desejo (epithymia) e do prazer (hedon). Quan-do no, o filsofo defende que na alma h uma tenso, ou ainda tipos

    8 Plato utiliza a noo de metax no Timeu, quando fala sobre a noo de Khra (49ass), para justificar a participao dos sensveis nas Formas; e tambm na Repblica (510ass), quando versa sobre os nmeros e a geometria, classificando como diania, atividade que um metax entre epistme e doxa. No ltimo captulo aprofundaremos essa questo.

    9 Por natureza genuna chamamos os atributos da alma quando est isolada, a saber: invisibilida-de e imutabilidade. A possibilidade de mudar um interstcio da sua associao com o corpo.

    10 O corpo, para sentir, precisa ser vivificado por uma alma. Sma sem psykh nkros, cadver.

  • 21

    ou partes de alma,11 conforme vemos no Fedro com o j mencionado mito da parelha alada; no Timeu, com a tese de que h uma alma mor-tal; e na Repblica, com a tese da tripartio. Essa associao, que a alma faz com o corpo, que uma condio do composto, chama-mos de estetizao.12 Estetizada pelo corpo, a alma, pelo intermdio dos sentidos, aprende, no ficando fechada sobre si mesma, podendo estar aberta ao conhecimento, cujo ponto de partida justamente o acesso aos sensveis.

    Esse entendimento capital para a filosofia de Plato; pois, caso a psykh no se associe ao corpo, sequer poderia haver apren-dizado e/ou formao do homem (paidia), que consiste em ela se tornar virtuosa, pela aquisio do saber. Contudo, esse processo no pode chegar ao extremo, ao ponto de, em vez de a alma gover-nar o corpo, deixar por ele ser guiada, tomando como verdade os dados sensveis, sem submet-los ao lgos e, como figura Plato no Fdon, tomando para si consequncias pstumas, que seria a assimilao de elementos corporais (somatoeids), por ns tra-duzido por somatizao.13 Todas essas consequncias devem ser evitadas pela alma, pois ela a senhora do corpo. Desse modo, o que Plato sugere um processo de autonomia (autarkhia), de domnio de si.

    11 Podemos considerar modos diferentes de compreendermos a tripartio da alma: um primeiro seria a alma portadora de trs partes, outro seria trs tipos diferentes de alma. Na verdade, acreditamos que h da parte de Plato a necessidade de se empreender um discurso que trate das vrias vicissitudes da alma, quando da sua unio com o corpo, encontrando esse modo de caracteriz-la. Sendo assim, no h problema o uso do entendimento da alma portadora de partes ou que existam trs tipos diferentes de psykh.

    12 Usamos o termo estetizao no seu sentido mais puro, considerando a sua derivao do ter-mo grego aisthsis percepo e sensao. O termo estetizao usado para significar que a alma envolvida pela capacidade perceptiva e pela sensibilidade, sofrendo a influncia do que aisthtikos ou sendo um com ele; como tambm no sentido de que ela se torna perceptvel e pode manifestar-se pelos sentidos (pensamento que prprio da alma manifestado pelo discurso perceptvel pela audio).

    13 Entendemos por somatizao a aquisio, por parte da alma, do carter material do corpo, que a faz se aproximar de um sensvel. Esse o motivo pelo qual Plato tanto alerta os filsofos de que se deve ter cuidado para no se infectar pelo corpo. Veremos isso mais adiante.

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    Na defesa de nossa tese, com relao ao mtodo, preocupamo--nos em apresentar uma anlise do Fdon, utilizando outros dilogos que pudessem dar suporte ao eixo mais central da nossa argumenta-o, por entendermos que, mesmo que Plato no seja um sistemtico e que seus dilogos no apresentem uma evoluo do seu pensamento, os temas e argumentos que surgem nos textos tm uma coerncia entre si, sendo diferentes modos de tratar determinados assuntos, mas com uma sincronia de sentidos. Para isso, recorremos tanto verso grega do dilogo, quanto a tradues em portugus e, quando necessrio, propomos a nossa prpria traduo. Destacamos tambm interpreta-es de renomados comentadores de Plato, assim como tambm nos servimos das obras de alguns helenistas, lanando mo de elementos culturais para contextualizar o pensamento platnico.

    Quanto estrutura do texto, desenvolvemos a escrita em quatro captulos. No primeiro tratamos dos elementos literrios do Fdon, considerando seu estilo dialgico. Destacamos os elementos utiliza-dos por Plato na tessitura do dilogo, como tambm as interfaces temticas, detivemo-nos na anlise dos termos sma e psykh, contextualizando-os no mbito da cultura grega antiga, a comear pelo modo como eram tratados em Homero e, posteriormente, nas concepes filosficas emergentes no sculo VI a.C., bem como na poesia trgica do sculo V a.C. Desse modo, tentamos conferir a de-vida importncia e visibilidade ao carter sui generis da abordagem platnica acerca do assunto. Por fim, fazemos uma anlise do uso do mito no Fdon e de sua importncia para a economia do dilogo.

    No segundo captulo tratamos de analisar minuciosamente os argumentos que Plato utiliza no Fdon para dizer que o corpo obs-tculo para a alma. Essa parte est baseada no carter errante da as-thesis, sendo destacado um estudo da noo de prazer. Analisamos o argumento dos contrrios, bem como as referncias autobiogrficas de Scrates que corroboram a distino entre sensvel e inteligvel. Ter-minamos com a anlise do mtodo da Segunda Navegao, servindo--nos dele para fazer a passagem para o captulo seguinte.

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    O corpo como auxlio para alma o tema do terceiro captulo, no qual nos dedicamos a destacar quais argumentos Plato utiliza para redimir o papel do corpo atravs da teoria da reminiscncia. Analisamos tambm a clebre teoria das Formas e a noo de par-ticipao, tendo como vis de leitura a participao do corpo, pela asthesis, no processo de cognio. Terminamos esse captulo com a segunda verso do argumento dos opostos, sendo que dessa vez Pla-to aborda a possibilidade de coexistirem, em um mesmo sensvel, predicados opostos. Com isso, conclumos a defesa da imortalidade da alma, dizendo ser impossvel alma portar a morte, restando-lhe, quando o corpo for acometido por esse episdio, bater em retirada.

    No ltimo captulo, localizamos o centro da nossa argumentao. Nele tratamos de analisar a relao alma/corpo, considerando quais as influncias que alma e corpo se impem mutuamente. Para isso versa-mos sobre a natureza da alma, com o auxlio do Timeu, do Fedro e da Repblica, entendendo a possibilidade de nela haver mudana por ser um metax. Por conseguinte, analisamos as consequncias que ocorrem na alma quando ela assume as duas posturas que pode ter em associao com o corpo: philosomathia e philosophia. Encerramos o captulo en-tendendo que cabe alma determinar o estilo de vida que ter no corpo, buscando o domnio de si, finalidade j constante na filosofia socrtico--platnica, que pretende conferir-lhe um estatuto de autonomia.

    Nosso estudo pretende provar que em Plato h uma Filosofia da Percepo, que pouco foi estudada pela tradio, que se dedicou a perceber no corpus platnico os argumentos que provam a funda-o de uma metafsica no pensamento do filsofo. Contudo, longe de ns pretendermos fazer o caminho inverso, defender um Plato que aborda o papel da sensibilidade e rechaa a racionalidade, nossa inteno identificar o entrelaamento que h dos planos dos sens-veis e do Inteligvel, entendendo que todo o esforo em sua filosofia de recorrer hiptese do que imutvel, tem por funo explicar o mutvel. Se Plato prope a existncia de uma realidade Inteligvel, para explicar a realidade sensvel.

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    O FDON SOBRE A IMORTALIDADE DA ALMA, DE PLATO

    O Fdon ou Sobre a Imortalidade da alma um dos textos mais conhecidos e lidos de todo o corpus platnico, como tambm um dos que mais suscita interpretaes diferentes, sobretudo no que tange a um dos seus temas principais: a relao alma/corpo.

    Vemos nele uma postura delicada do filsofo frente ao corpo, permeada com afirmaes de que dele a alma deve se afastar, pois pode atrapalh-la na busca da verdade; como tambm, no mesmo texto, no so poucos os momentos em que Plato considera a participao da sma para que a contemplao das Formas, atravs da reminiscncia, acontea. Em outros escritos de Plato vemos algumas posturas se-melhantes, mas nenhuma como a do Fdon, em que permeiam-se, de modo to acirrado, afirmaes de que o corpo obstculo para alma, sem deixar de reconhecer que por seu intermdio que pode haver aprendizado. Defendemos que isso se deve a alguns motivos que, no plano literrio do texto, so interdependentes: ao fato de o Fdon ser um dilogo, ao carter apologtico do texto que permeia o seu plano dramtico e assimilao que o filsofo faz de doutrinas e termos que no so seus. Andrade afirma que se deve ter cuidado na leitura do Fdon, sabendo identificar seus elementos, para poder interpret-lo,

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    [...] o estudioso do Fdon deve estar atento a discernir nesse di-logo a filosofia propriamente platnica, das outras afirmaes no pertinentes a ela. Isto porque, por diversas vezes o filsofo mistura exposies diferentes da sua como se afirmasse, mas na verdade est apenas confirmando com os discpulos as trilhas conhecidas poca sobre o difcil tema alma e corpo, e a reto-mada de teses j sabidas faz parte de seu mtodo dialgico. Em outros momentos, opta por expor e, aparentemente, aceitar o que algumas tradies mais antigas afirmam, mesmo porque um grego no deixaria de corrobor-las (ANDRADE, 1998, p. 128).

    Esses aspectos precisam ser levados em considerao, como um tipo de propedutico nossa defesa, para depois analisarmos mais especificamente o nosso tema.

    Dialogicidade no Fdon

    Sabemos que Plato manifestou certa resistncia transmis-so do saber filosfico por meio da escrita, enaltecendo dessa forma a via oral como meio mais eficaz para esse caminho.14 Porm, mes-mo assim seus escritos dialgicos, que so uma certa documentao da oralidade,15 foram uma via para deixar suas reflexes, o modo pelo qual podemos ter acesso ao seu pensamento e intenes.

    14 Essa afirmao encontrada no Fedro (257ss) e na Carta VII (330ss). Plato tem receio da escrita por defender que ela pode muitas vezes aprisionar os saberes, pois atravs das palavras o conhe-cimento pode parecer reduzido a frmulas, e certos assuntos no poderiam ser transformados em conhecimento esttico. As palavras escritas poderiam ser traioeiras e prejudicar o acesso ao conhecimento pelas pessoas comuns, enquanto as palavras faladas podem ser modificadas medida que se faz necessrio, como forma de esclarecimento. Comentadores e intrpretes de Plato baseiam-se nesses trechos para fundamentar o que denominam de Doutrinas no es-critas de Plato, afirmando que o verdadeiro pensamento platnico no est nos dilogos, mas no testemunho dos seus discpulos da Academia (Cf. REALE, 1997; SZLEZK, 1989; GAISER, 1998; GIRGENTI, 1998; PERINE, 2007).Em contrapartida, h um paradigma, inspirado em Schleierma-cher, que afirma que o modelo de interpretao do pensamento de Plato fundamentava-se, sobretudo, na tese de que os escritos platnicos so autrquicos, ou seja, uma expresso cabal da forma e do contedo do seu pensamento, inclusive dos ensinamentos ministrados na Acade-mia, relegando como secundria e inexpressiva toda a tradio indireta.

    15 Com o estilo dialgico, Plato reafirma a mxima de Scrates de que a melhor forma de fazer filosofia atravs do embate de ideias e argumentos.

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    Em vrias obras, o Mestre Ateniense deixou expressa a descon-fiana com que encarava a reduo da reflexo filosfica es-crita, nomeadamente na forma de composio de tratados. Mas no h dvida de que, ao longo de sua vida, o dilogo passou a ser visto por ele como meio de registrar todo um programa de reflexo e investigao (SANTOS, 1998, p. 10).

    O Fdon, como a maioria dos textos de Plato, um dilogo.16 Diferentemente de como feito um tratado com conceitos e defini-es expostos de forma objetiva e direta, representando o pensamen-to do autor a escrita dialgica segue um estilo literrio diferente. Plato elenca um grupo de personagens, postos em uma determinada situao, geralmente discpulos discutindo com Scrates. nesse in-termeio que surgem os questionamentos, refutaes, teses em um jogo de afirmaes e negaes suscitando novos questionamentos, teses e refutaes, constituindo assim o movimento dialtico. Logo, uma determinada afirmao surgida em algum momento do texto no deve, num primeiro momento, ser tomada como tese platnica, pois pode ser o incio da questo, sua refutao, sua contra-argumen-tao ou ainda a referncia a uma tese ou doutrina j existente, que no ter, necessariamente, a adeso do filsofo.

    Esse fato considerado por muitos comentadores como um certo descompromisso do filsofo em criar teorias.17 Na verdade em

    16 Santos em sua obra Para ler Plato (Volume 1) discute a peculiaridade dos textos platnicos que foram elaboradas em um contexto prprio, que chama de contexto dialtico (2008, p. 38). O contexto dialtico de um dilogo, segundo Santos, a relao nica e irrepetvel que h entre os personagens que colaboram na investigao de um tpico, exprimindo opinies e debaten-do-as. Metodologicamente os dilogos platnicos podem ser entendidos como compostos por dois planos: 1) dramtico, que contextualiza a discusso em um determinado episdio, com um determinado grupo de personagens; 2) argumentativo, que todo o jogo de argumentos que se apresentam nas discusses estabelecidas entre os personagens a fim de se chegar a um conceito ou resolver um problema filosfico.

    17 Aristteles que considera como teoria alguns temas que constantemente aparecem nos tex-tos de Plato, como por exemplo a Teoria das Formas (Met. 999B). No h nos dilogos a expressa inteno de Plato em construir doutrina, ele apenas um grande pesquisador de problemas filosficos. O que leva comentadores a atriburem teorias a Plato a constncia com a qual determinados temas aparecem em seus textos.

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    momento algum vemos Plato em seus textos apresentar uma dou-trina fixa e engessada, apenas compe dilogos que tratam de te-mas que surgem em situaes mais diversas e cotidianas possveis,18 abrindo a possibilidade de que o mesmo assunto tenha abordagens diferentes, dependendo do contexto de cada um.

    Os dilogos, incluindo o Fdon, possuem uma composio literria e filosfica que congrega uma diversidade de elementos de natureza muito diversa: argumentos, debates, interldios dram-ticos e metodolgicos, e ainda mitos.19 Assim, para uma leitura e estudo do dilogo necessrio um cuidado especial, visto que seus argumentos longos e intricados podem se abrir para entendimentos diversos e leituras problemticas que dificilmente tornaro clara a verdadeira inteno de Plato ao escrev-lo.

    Fdon: um texto apologtico

    A diversidade de elementos do Fdon resulta na manifestao de intenes diferentes por parte de Plato. Santos destaca trs in-tenes: consoladora, apologtica e educativa. Consoladora por querer demonstrar que a espera da morte deve ser feita com tranqui-

    18 Nos textos de Plato vemos mais uma postura de quem est preocupado em ensinar como se filosofa ou de exortar o homem constante busca do saber do que em apresentar teorias. Na verdade essa postura totalmente coerente com a proposio na qual Scrates demonstra o seu permanente estado de ignorncia: S sei que nada sei. Nos estudos do grupo Dilogos Platnicos, da Universidade Federal do Cear, por diversas vezes Montenegro afirmou ser Pla-to o primeiro antiplatonista. Essa afirmao baseia-se no fato de que Plato fez exatamente o contrrio do que os platnicos, ou neoplatnicos, afirmam: em vez de criar uma doutrina rgida, prope em seus textos vrios discursos, com abordagens diferentes, at quando tra-ta de uma mesma temtica. Muniz (2011) entende que Plato usa de uma metodologia que ele chama de sistema de ecos e reenvios, tambm denominado de estilo sinfnico, pois o filsofo, ao compor seus dilogos, no apresenta uma tese construda de modo fixo, mas um mesmo tema, tratado de um modo em um texto, sendo ecoado ou reenviado a outro, mas com estrutura, elementos, profundidade e base argumentativa diferentes, sem serem, em termos gerais, contraditrias. Esse carter de versatilidade do discurso demonstra a polivocidade dos logoi, que sempre est em construo, tendo em vista que o que hoje sabemos sempre uma viso aproximada da verdade. Ou seja, o discurso sobre a verdade sempre aproximativo.

    19 Cf. SANTOS, 1998, p. 10.

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    lidade; apologtica, pois defende a vida filosfica como nico meio de salvar a alma dos perigos que a ameaam; e educativa por querer defender a filosofia a partir da exposio da concepo de saber, condensada na Teoria das Formas (SANTOS, 1998, p. 11). Entre es-sas, a inteno apologtica bastante acentuada no Fdon,20 sendo ajudada pelas outras duas, sobretudo porque todo o dilogo permeia os ltimos momentos que os discpulos passam ao redor do mestre Scrates, que quem est tranquilo frente morte (), pois est livre de todos os perigos por ter exercido a filosofia durante sua vida, e o mais interessante que o exerccio da filosofia o que o levou a ser condenado morte pelo Tribunal Ateniense.21

    Um leitor que no consiga detectar as particularidades dos ele-mentos do texto acaba realizando uma leitura superficial do Fdon, por este se achar carregado de simbolismos, e ainda, dentre os textos platnicos, por ser um dos dilogos em que h alguns dos argumen-tos principais da filosofia platnica.

    20 comum em sua obra encontrarmos um vis apologtico; em momentos diversos, vemos Pla-to enaltecer a atividade filosfica como a nica forma de se alcanar a virtude e a sabedoria, percebemos isso se apontarmos, por exemplo, na Repblica, sua posio de que a plis ser justa se governada pelo filsofo-rei. No Sofista vemos a elevao do filsofo em detrimento dos sofistas, mestres de iluses. No Fedro, quele que em vida se dedicou atividade filosfica h a certeza da felicidade no alm-vida, figurada na recuperao das asas. No Fdon, de forma mais dramtica, o filsofo prope a similitude da atividade filosfica com a morte, considerada como a separao corpo/alma, que se configura naquilo que o treino que todo filsofo realiza em vida, separar o tanto quanto for possvel a alma do corpo.

    21 Scrates foi encarado como uma verdadeira ameaa s leis e vida poltica de Atenas. Primei-ramente, porque condenava o uso da retrica pelos sofistas, quando no havia o comprome-timento com a verdade, mas apenas com a arte da persuaso (peith). O discurso contra os sofistas era uma ameaa para a instaurao e consolidao da democracia, pois a persuaso era ferramenta elementar para conquistar a adeso do povo. O assunto do mau uso da retrica foi bastante explorado pelos poetas gregos, Aristfanes, conhecido comedigrafo grego, em obras como As nuvens e As vespas faz uso da temtica de modo satrico; por outro lado, s-quilo, tragedigrafo grego, nas Eumnidas (obra que compe a Orestia ou Trilogia de Orestes - Agamemnon, Coforas e Eumnidas), simula um tribunal para julgar Orestes, que matou sua me, dando a ele o deus Apolo como defensor, que faz uso da arte da persuaso de modo ma-gistral. Falando nos deuses, esse foi outro ponto decisivo para a condenao de Scrates, que, segundo seus acusadores, dizia no crer nas deidades da plis e cultuar algumas estrangeiras (Cf. Memorveis, de Xenofonte e Apologia de Scrates, de Plato).

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    No Fdon encontramos os pilares do platonismo: a Teoria das Formas e a reflexo sobre a imortalidade da alma humana.22 Outros temas ainda surgem no dilogo, tornando-o de grande interesse para qualquer leitor, como o tema da morte, do destino dos homens no ps-vida e de um possvel retorno destes vida transmigrao das almas (metempsycosis).23 Todos esses temas so tecidos no texto por meio da certeza de que a filosofia a via segura para que o homem obtenha o sucesso daquilo que busca, no aqui e no alm: a sabedoria.

    Todos os elementos que aparecem no dilogo surgem a partir do solo contextual, que alguns comentadores convencionaram chamar de plano dramtico,24 que o episdio que suscita as conversas filo-sficas.25 Esse plano tem um papel importante, pois, alm de suscitar as discusses e argumentos, chega a influenciar o modo como sero trabalhados, como, por exemplo, o prprio tema da alma, que tem mo-dos diferentes de se apresentar, dependendo do dilogo e do seu plano.

    A alma abordada no Fdon na perspectiva da vida de um homem: Scrates; na Repblica, em contraposio com a estru-tura poltica da cidade; no Fedro, no contexto de um mito sobre o destino que impende sobre todos os seres vivos; no Timeu, no de uma narrativa raciocinada sobre a origem do mundo e da vida; no Banquete, a partir da relao entre o amor e o saber, para cada homem; finalmente, no Mnon, enquadrada numa in-vestigao sobre a natureza da virtude (SANTOS, 1998, p. 17).

    22 Cornford denomina-as de pilares gmeos do platonismo. Conferir Robinson (1998, p. 59).23 Robinson (2010, p. 104) faz uso do termo metemsomatosis (para alm de vrios corpos) em

    vez de metempsycosis, por entender que a alma que perpassa vrios corpos aps a morte (Fdon 76c11-13; 62b).

    24 Para que todos estes elementos, de diversa natureza, harmoniosamente se conjuguem na finalidade nica da promoo do saber, h ainda que enquadr-los na narrativa dramtica que serve de base ao dilogo (SANTOS, 1998, p. 36).

    25 Goldschmit, em sua obra Os dilogos de Plato (2002, p. 22), escreve que a maioria dos dilo-gos comea a partir de um fato inicial. s vezes tambm um fato inicial que serve de apoio investigao dialtica [...] a questo inicial, na medida em que tiver desempenhado a sua funo de despertar a reflexo, no reter mais a ateno dos interlocutores (2002, p. 27).

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    Contudo, mesmo que um determinado tema surja ou se apre-sente de forma diferente, possvel realizar uma leitura unificada da obra platnica.26 Um dilogo est, de alguma forma, ligado coeren-temente aos outros. Ao ler o Fdon, alm do cuidado em perceber a interligao do tema em estudo com os outros temas do mesmo texto, tambm se deve ter em mente todo o corpus platnico, todo o conjunto dos dilogos, com vista a um entendimento unitrio do que poderamos chamar de uma doutrina de Plato.27

    O Plano dramtico28 do Fdon

    Alm de iniciar a discusso filosfica, o drama harmoniza o di-logo, interligando seus elementos em um nexo lgico, constituindo o primeiro elemento com o qual um leitor de Plato tem contato. No mbito literrio, podemos considerar que a narrativa dramtica relata

    26 No estudo dos textos platnicos, encontramos praticamente trs vertentes de leitura, uma que denominam de unitarismo que entende o platonismo como uma unidade ideolgica; o evolucionismo, que busca na cronologia dos dilogos o princpio de interpretao que suporta a evoluo do pensamento do filsofo; e a tendncia analtica, que prefere concentrar-se em cada texto isoladamente, sem se comprometer em estabelecer relaes entre textos distintos (SANTOS, 2008, p. 36). Optamos por no dar exclusividade a um desses tipos de interpretao. Somos de acordo com a afirmao de Muniz (2011, p. 20) que admite haver nos textos de Pla-to um estilo que garante ecos e reenvios de um mesmo tema, apresentaes do tema que, mesmo se manifestando de modo diverso em textos diferentes, tm uma ligao pontual. Da entendermos que, ao mesmo tempo que um dilogo no pode ser visto apenas isoladamente, sem considerar elementos que existem em outros, tambm no se pode querer encontrar ne-les sempre um mesmo modo de tratar as mesmas questes.

    27 Santos (1998, p. 16) explica que deve haver um cuidado em considerar uma determinada pro-posio nos dilogos platnicos como parte de sua doutrina, visto que eles no exprimem conceitos de forma objetiva, como acontece nos tratados, mas so um jogo de argumentos que caminham para uma soluo, que na verdade nem sempre encontrada. delicado admitir que Plato criou uma doutrina, sobretudo porque sequer ele assume nos seus textos a autoria dos dilogos; no Fdon, por exemplo, admite que estava ausente e no foi testemunha ocular do discurso feito por Scrates antes de morrer.

    28 A narrativa dramtica de um dilogo tem esse papel de despertar a reflexo, servindo tambm como apoio para todo o desenrolar do argumento. Contudo, mesmo que durante o dilogo haja uma retomada, esse plano no o elemento mais importante, pois apenas tem um carter de introduzir a discusso. So os argumentos que surgem no contexto da questo inicial que tero maior relevncia para o estudo das questes filosficas no dilogo.

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    uma histria,29 levando seu leitor ao estado de esprito adequado recepo do ensinamento que lhe dirigido (SANTOS, 1998, p. 38).

    O Fdon tem um arcabouo literrio-filosfico todo especial: a narrativa dos ltimos momentos que antecedem a morte de Scrates. Em outros dilogos a discusso se centra em um tema de filosofia,30 mas no Fdon o que est em questo a filosofia em si, figurada na pessoa do Mestre, por isso, em todo o texto, ele enaltecido. como se sua morte viesse coroar todos os seus ensinamentos, suas ltimas palavras so valiosas, pois nunca podero ouvi-las novamente, so-bretudo porque suas palavras, como no podiam deixar de ser, eram referentes ao velho prazer de se entregarem filosofia.

    Toda a economia do Fdon culmina na morte de Scrates, que o acontecimento central do texto. Esse fato nos faz entender porque no dilogo Plato no poupou artifcios para chegar ao objeti-vo central da discusso que provar a imortalidade da alma, que va-riam desde assimilaes das chamadas doutrinas mistricas, Orfismo e Pitagorismo, at mesmo narrativa de mitos, quando o argumento filosfico se v limitado frente explicitao de certas questes.31

    O jogo argumentativo do texto se configura como um dos mais acirrados dentro de uma dialtica platnica, chegando o mestre a di-zer-se em situao semelhante que esteve frente ao tribunal atenien-se, com a diferena de que dessa vez so os seus prprios discpulos os seus juzes. A matria de sua defesa se configura na justificativa para a sua postura de tranquilidade, frente sua iminente morte.

    29 Aquele [elemento] a que todos tm imediato acesso [...] a narrativa dramtica, que se limita a contar uma histria (SANTOS, 1998, p. 10).

    30 No Teeteto, sobre o conhecimento; na Repblica, sobre a justia na Cidade; no Sofista, sobre a definio do sofista, que repercute no problema do ser e do no-ser etc.

    31 Ao final deste captulo, admitiremos o uso do mito por Plato nos dilogos quando no h possibilidade de, pelo discurso racional, abarcar certas questes.

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    O Scrates do Fdon: tranquilidade frente morte

    O Scrates do Fdon tem a mesma postura do que aparece na Apo-logia, preocupado em anunciar o cuidado pela alma,32 sede da razo e que possibilita o exerccio da atividade filosfica. Tambm h semelhana entre os dois textos pelo modo como o mestre se pe na discusso, em busca de uma defesa daquilo que vive e pratica. Contudo, se em um texto para no iniciados (teletai) na filosofia que a defesa acontece (tribunal de Atenas), no Fdon ela acontece para aqueles que so seus seguidores.

    Adentrando a narrativa, em suas primeiras linhas, percebemos que a cena da morte j havia acontecido, mas estava sendo narrada por um dos discpulos, Fdon, homnimo do dilogo, a um outro que no esteve presente no dia da execuo de Scrates, Equcrates,33 que pede que lhe conte o ocorrido nestes termos:

    Equcrates

    Estiveste l mesmo, Fdon, ao p de Scrates, no clebre dia em que bebeu o veneno na priso, ou contaram-te o que se passou?

    Fdon

    Estive l mesmo, Equcrates.

    Equcrates

    Ora diz-me ento: de que falou ele antes de morrer? E como foram seus ltimos momentos? (Fdon, 57as).34

    32 primeira vista, o Scrates do Fdon ainda o Scrates da Apologia, do Protgoras e do Crton, empenhado em anunciar a importncia da alma e de seu cuidado (ROBINSON, 2007, p. 59).

    33 Os personagens presentes eram: Fdon, Apolodoro, Critbulo, Crton, Hermgenes, Epgenes, Esquines e Antstenes, Ctesipo, Menxeno e mais alguns atenienses. Plato diz que estava au-sente no dia da morte de Scrates. Dentre os estrangeiros estavam: Smias, Cebes e Fedondes, de Tebas; ainda Euclides e Terpson, de Mgara. Cf. Fdon 59d.

    34 A verso em portugus do Fdon que ser utilizada por ns, primordialmente, a de Maria Teresa Schiappa de Azevedo (1988). Por vezes traduziremos, em tempo, alguns trechos.

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    Frente ao pedido de Equcrates, Fdon manifesta seu senti-mento em relembrar os ltimos momentos do mestre.

    Nada, na verdade, me hoje to caro como reviver Scrates, seja pela minha boca seja pela de outro! (Fdon 58d).

    O discpulo expe a indefinvel sensao (asthesis)35 que sentira junto a Scrates nesses ltimos momentos,36 um certo misto singular de prazer e simultaneamente de dor e tambm de como o Mestre se apresentava num estado de felicidade, perante suas atitu-des e palavras que manifestava, diante da nobreza e segurana com a qual encarava sua morte (58e-59a).

    A estranheza que Fdon sentia tambm tomava conta dos dis-cpulos e fora iniciada com uma primeira atitude do mestre, quando, trazido pelo carcereiro, to logo repreendeu sua esposa, pedindo que a levassem para casa37 aps ela ter gritado, aos prantos, dizendo que aque-le era o ltimo momento que os discpulos teriam com o Mestre (60a).

    O pedido de Scrates de que levassem Xantipa manifesta seu desejo de no querer que chorassem sua morte, como era comum na cultura grega, na qual mulheres lamentavam a perda de seus entes queridos, expressando seu amor e sofrimento. Luna, em sua obra Ar-queologia da ao trgica (2005, p. 175), defende que o relato da morte de Scrates por Plato no Fdon, desde o momento em que ele pede que tirem sua esposa e filhos at mesmo com a coragem com a qual a enfrenta, uma manifestao da recusa do trgico. O tom anti-

    35 O tema da sensao (asthesis) que ser central em nossa argumentao, comea a ser tratado no campo literrio por Plato quando narra o estado de comoo dos discpulos e de sua espo-sa. Mais para frente, manifestar estar sentindo uma sensao de prazer, aps a dor provocada pelos grilhes presos aos seus tornozelos. Por fim, tomar esse misto de prazer/dor como pon-tap para tocar em outros assuntos.

    36 A narrativa propriamente dita comea relatando a presena constante dos discpulos de S-crates junto a ele na priso. Ocorre que o cumprimento da sentena no aconteceu logo aps o seu julgamento devido a uma festa que estava ocorrendo em Atenas, cujo costume proibia cumprir mandatos de execuo. A festa era em comemorao da libertao que Teseu deu aos jovens ao matar o personagem mitolgico do minotauro. Enquanto o navio no voltasse ao Pireu, nada aconteceria em Atenas.

    37 Este, olhando ento para Crton: > (Fdon, 60a).

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    trgico do discurso platnico no permite manifestaes emocionais na despedida familiar. Percebemos que Scrates comea por romper um costume, mudando, ressignificando o sentido da morte (thnatos).

    O impedimento da lamentao de sua morte uma manifesta-o do estado emocional no qual o mestre se encontrava (tranquili-dade), e, com outro gesto, que parece ser proposital, ele introduzir a discusso que culminar na justificativa de sua tranquilidade para morrer, conforme veremos.

    Tendo Xantipa sido levada para fora da priso, o mestre S-crates, livre dos grilhes que lhe prendiam as pernas, friccionando--as com a mo, diz:

    Que coisa estranha, amigos, esta sensao a que os homens chamam prazer! espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser o contrrio, a dor! Ambos se recusam a estar presentes ao mesmo tempo no mesmo homem; e todavia, se al-gum persegue e alcana um deles, quase certo e sabido que acaba por alcanar o outro [...] estou em crer que tambm o que se passa comigo: sensao de dor que as grilhetas me pro-vocam na perna, agora o prazer que manifestamente lhe vem no encalo [...] (Fdon 60bc).

    Scrates expe a relao existente entre o prazer38 e a dor, que, sendo distintos, se associam, mesmo que a presena de um re-cuse a do outro; ao alcanar um, logo se alcana o segundo. Sua afirmao, que pressupomos ser intencional, manifesta o contraste que ele mesmo est gerando em meio a um momento de crise e usar essa analogia como ponto de partida para ressignificar a morte.

    38 Noutros momentos do livro, trataremos do tema do prazer, que tem grande importncia na economia do dilogo Fdon.

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    Morte e filosofia

    O tema da morte constante no dilogo e sua reflexo surge no texto a partir de um conselho que Scrates envia para Eveno:39 se tiver juzo, siga-o o mais breve possvel (61bc). Smias, perante a ordem de Scrates, adentra o dilogo manifestando que Eveno no acatar tais conselhos. Porm, Scrates o interpela, questionando se Eveno acaso no filsofo, pois caso seja, acat-lo-; por certo ele quanto qualquer outro que se empenhe a fundo nesta atividade (Fdon 61c).

    Ocorre que, diante da exposio feita, Scrates comea por re-lacionar a sua tranquilidade perante a morte com a atividade filos-fica. Mais uma vez o Mestre se v arguido por Cebes, pois este no entende por que desejar a morte prprio de quem se d prtica da filosofia; e, assim sendo, por que a este no permitido sobre si exercer violncia? (61d). Scrates defende o que afirmara dizendo que a ningum permitido tirar sua prpria vida, visto que esta no se obtm pelas prprias mos (62a), mas pelas de Outrem (os deuses).40 Logo, retir-la tambm no se poderia fazer, mesmo que a morte pos-sa parecer, como concorda Scrates, um bem maior que a vida (62a). Qualquer homem tem sua vida velada pelos deuses e no se deve pr--lhe termo, seno pela vontade divina e com sua permisso (62dc).41

    39 O personagem Eveno surge no dilogo quando Cebes demonstra que fora indagado por ele sobre a re-pentina dedicao do mestre poesia, que a muitos causava uma certa estranheza, uma vez que nunca em sua vida um trecho havia feito. Ocorre que Scrates na priso estava cumprindo um antigo dito das Musas que, em sonhos, lhe mandavam sempre praticar sua arte (musyk), mas logo, ele reconhece que praticava sempre a mais alta forma de msica, a filosofia (60-61a). Esse fato demonstra o interesse do mestre de partir sem ter deixado dvida alguma, sobretudo porque, conforme dir em passos posterio-res no texto, tem a certeza de que estar na companhia dos deuses. Uma mesma postura veremos no final do dilogo quando Scrates manda que paguem o galo que ele deve a Asclpio (118a).

    40 Para justificar que os homens dependem dos deuses e suas prprias vidas somente por eles podem ser tiradas, Plato lana mo da recordao de uma antiga tradio propalada pelos mistrios, a saber: o Orfismo. Recorrentemente no dilogo ele se referir a elas. Mais frente trataremos com mais mincia da transposio e assimilao que o filsofo faz das chamadas doutrinas mistricas.

    41 Percebemos, nestes passos, traos do elemento religioso manifesto na obra platnica. A meno do poder dos deuses e o destino dos homens que est em suas mos demonstra a submisso destes aos primeiros.

  • 37

    Cebes e Smias se encontram satisfeitos com a tese de que o suicdio no lcito, porm no se convenceram ainda com as exposies de Scrates de que a morte deva ser encarada com tran-quilidade pelos filsofos (62cd). Para Cebes, o argumento de que os deuses nos guiam em vida faz com que a morte, na verdade, no seja desejada. Para o discpulo, desejar a morte sinal de insensatez e afligir-se perante ela o que fazem os sensatos.42

    A defesa de Scrates frente insatisfao de Cebes e Smias parece estar na certeza de que, quando morrer, ir para junto dos deuses (63bc), contudo no essa a argumentao com a qual o Mestre se empenhar ferozmente em se defender, mas sim a relao que estabelecer entre a morte e a filosofia (63e-64a).

    Ele est tranquilo e feliz porque [...] o verdadeiro alvo da filosofia [...] um treino de morrer e de estar morto (Fdon 64a).

    O treino para morrer ( ) e o de ter morrido ( ) caracterizam assim o alvo de todo filsofo.43 Mas o que a morte e o que tem de semelhante com a filosofia? Filosofar nada mais que um preparar-se para morrer, pois a morte (thnatos) a separao do corpo e da alma ( ) e isso que durante toda a vida quem se dedica filosofia faz: separar tanto quanto possvel a alma do corpo.

    Acreditamos que a morte alguma coisa? Sem dvida atalhou Smias. Que outra coisa, pois seno a separao da alma e do corpo? E, nesse caso, significa isto mesmo: que o corpo, uma vez separado da alma, passa a ficar em si e por si mesmo,

    42 E assim parece-me, Scrates, que os factos so naturalmente o inverso daquilo que h pouco dizias: so os homens sensatos que tm motivo para se afligir com a morte e os insensatos, para se regozijar (Fdon 62e).

    43 As citaes no original em grego foram tiradas da ed. John Burnet, 1903. Disponvel em: http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/platon/phedongr.htm.

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    parte dela; tal como a alma, uma vez separada do corpo, passa a ficar em si e por si mesma, parte dele. Ou ser a morte algo diverso do que dizemos? (Fdon 64c).

    E mais ainda, Scrates comea a explicar porque a filosofia parte da separao da alma do corpo nesse treino para a morte. Ele parte do pressuposto de que o corpo fonte de prazer (hedon) e ao filsofo no compatvel entregar-se sua satisfao, seja os prazeres da comida e da bebida, seja os sensuais (afrodsion), ou de possuir vestes e calados, de se embelezar com adornos (64d). O verdadeiro filsofo trata de no honrar () tais prazeres44 (64e), que so relativos ao corpo, pois, quando a ele se dedica, sua alma se v impedida de buscar a virtude (aret) atravs da prtica da filosofia. Crs, portanto, sem restries, que os interesses de um homem desta tmpera nada tm a ver com o corpo e que, pelo con-trrio, a ele renuncia at onde lhe for possvel, para se concentrar sobre a alma (Fdon 64e).

    Sendo assim, Scrates explica que alma que o filsofo mais tende, e no ao corpo (64ss). Logo, se a vida do filsofo consis-te neste constante afastamento do que relativo ao corpo, ele estar feliz quando chegar sua morte, pois nela que definitivamente sua alma dele vai se separar. Essa separao tem razo de ser sobretudo quando o filsofo se aplica a adquirir a sabedoria, conforme nos apresentado no passo 65ab:

    E que dizer quanto a adquirir a sabedoria: ou no o corpo um obstculo quando aceitamos associ-lo nessa procura? Mais concretamente: h alguma dose de verdade naquilo que os ho-mens apreendem, por exemplo, atravs da vista e do ouvido ou

    44 Alguns tradutores traduzem por renegar e ainda desprezar, optamos traduzir por no honrar, no prestar culto ou ainda menosprezar (prezar menos ou no prezar mais que o de-vido) por entendermos que o termo vem da expresso tim, que significa honra. A conotao do termo desprezar negativa e compromete o que acreditamos que Plato est querendo dizer no texto.

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    (como at os poetas por a repetem saciedade...) nada do que vemos e ouvimos seguro? E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido, porque, se estes no so seguros e exactos, os outros muito menos o so, dado serem, suponho, ainda mais fa-lveis. Ou no achas?

    O corpo visto nesses passos como um obstculo, quando o fil-sofo a ele se associa na busca pela sabedoria. a alma a entidade que o filsofo valoriza enquanto amante do saber, pois somente ela pode lhe oferecer o conhecimento do real (65c), porm, enquanto estiver presa ao corpo, correr o risco de ser dispersada pelos seus sentidos (pelo ouvido ou pela vista) e outras vicissitudes (sofrimentos ou prazeres de qualquer espcie). A alma vai se encontrar na melhor condio de racio-cinar quando se isolar o mais possvel do corpo, em si e por si mesma, e no mais estiver suscetvel a ser enganada pela sensao (asthesis).45

    Afastando-se daquilo que impede a alma de chegar sabedo-ria, o filsofo est treinando o estado de emancipao total que ter do corpo, quando definitivamente dele se separar na morte. Enquan-to possuirmos um corpo e a semelhante flagelo estiver a nossa alma enleada, jamais conseguiremos alcanar satisfatoriamente o alvo das nossas aspiraes: e esse, dizemos ns que a verdade (Fdon 66b).

    A alma precisa manter-se separada do corpo, na medida do pos-svel, porque, enquanto a ele estiver unida, no conseguir alcanar a plenitude da sabedoria sua capacidade de aquisio estar limitada.

    O texto apresenta um discurso que pe a alma sob a custdia do corpo (en phourai), sendo a morte sua libertao. Aparecem no Fdon termos que do ao corpo um sentido de ser uma priso, um crcere para alma. Buscaremos entender o sentido de encarceramento, que por vezes no Fdon encontramos, da alma em relao ao corpo.

    45 No prximo captulo trataremos de analisar de forma mais detalhada os motivos pelos quais Plato diz ser necessrio o afastamento da alma no composto alma/corpo na busca da filosofia, mas de antemo percebemos que so dois os princpios que geram essa necessidade: o prazer (hedon) e a sensao (asthesis).

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    O sentido do encarceramento da alma no corpo e a transposio do Orfismo e Pitagorismo

    Analisando no Fdon o discurso de Scrates, percebemos que um ponto importante para compreendermos a relao entre corpo e alma o sentido de encarceramento, que surge no dilogo. Tentare-mos entender, a partir de alguns passos, qual a inteno de Plato ao estabelecer no texto tal conceito.

    No passo 62bc, quando ainda se iniciava o argumento da morte (mais especificamente na tese de que o suicdio no permitido a um filsofo) Plato j havia exposto, ao citar uma doutrina propalada nos Mistrios, a teoria de que vivemos como se essa vida fosse um crcere (phrura).46 Segundo Maria Tere-za Schiappa,47 o termo grego empregado por Plato pode tanto designar posto, no sentido de que dele no devemos desertar, como tambm o sentido de priso, defendido por Hackforth, visto que esse termo tem uma equivalncia com desmotrio (rela-tivo a priso), que encontramos em outros momentos do dilogo.

    Nesse passo percebemos a semelhana que o encarceramento tem com a tradio das doutrinas Mistricas, tanto o Orfismo48 quan-to o Pitagorismo, porm no se pode afirmar categoricamente que o

    46 SCHIAPPA, nota 12 de sua traduo do Fdon (1988).47 Ibidem.48 Orfismo era uma religio de mistrios no antigo mundo grego, difundido a partir dos sculos

    VII e VI a.C. Seu fundador teria sido o poeta Orfeu, que desceu ao Hades e retornou. Os rficos tambm reverenciam Persfone (que descia ao Hades a cada inverno e voltava a cada primave-ra) e Dioniso ou Baco (que tambm desceu e voltou do Hades). Como os mistrios de Elusis, os mistrios rficos prometiam vantagens no alm-vida. Esses cultos de mistrios, que prometiam uma vida melhor aps a morte, parecem ter influenciado o incio do cristianismo. O Pitagoris-mo, enquanto escola filosfica, tambm era visto como uma religio mistrica, trazendo em sua regra vrios elementos rficos. Na verdade era visto como um dos vrios Orfismos existen-tes na poca, considerando que eram vrios. Recentemente Bernab escreveu uma obra na qual analisa a relao entre o platonismo e o Orfismo, traduzindo, na mesma obra, os versos rficos dos Papiros de Dervenin (BERNAB, 2011). Sobre outras anlises do Orfismo (DODDS, 1951; SNELL, 1997; ROHDE, 1973).

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    que Plato escreve tem ligao direta com elas. Ele mesmo assume parecerem absurdas as teorias dessas doutrinas.

    Assim, por estes termos prosseguiu Scrates , a coisa pa-rece absurda, mas talvez tenha a sua razo de ser. A propsito disto, uma doutrina propalada nos Mistrios, segundo a qual ns, homens, estamos como que num crcere, donde ningum deve libertar-se ou evadir-se (Fdon 62b).

    Segundo Robinson (1998, p. 63), o argumento que nos garante que h uma distncia entre o pensamento platnico e as Doutrinas Mis-tricas que a abordagem, seja da purificao ou do encarceramento que elas pregam, foi transformada pelo intelectualismo socrtico, que prope a vivncia da virtude, como o verdadeiro processo de kathrsis, e a inteli-gncia como algo que purga.49 Bernab (2011, p. 200) considera, em v-rias partes de sua obra, que, mesmo que sejam recorrentes as referncias de Plato s crenas rficas50, sempre o faz de modo alusivo, como quem tem apenas conhecimento de sua existncia ou acesso aos seus escritos, pois utiliza-se de expresses do tipo como se (), parece-me ( ) no Crtilo 397-400e , e ainda outras como pode parecer absurda, mas talvez tenha a sua razo ( ), trata-se de uma grande ideia, a meu ver, embora no se possa ver claramente ( , no Fdon 62b.

    49 Em relao semelhana entre a doutrina platnica e as religies mistricas, h controvr-sias entre alguns estudiosos, como o caso de Burnet que em sua obra A aurora da Filosofia Grega admite que o Fdon um dilogo manifestamente inspirado na doutrina pitagrica (2006, p. 103).

    50 Termos e crenas como iniciao (teletai), purificao (kathrsis), transmigrao das almas (metempsycosis) etc so incorporados nos textos platnicos, mas manifestadamente modifica-dos no seu sentido. Bernab (2011, p. 365) chama esse mtodo utilizado por Plato de trans-posio, que o uso de termos e argumentos, adequando-os ao que se quer defender. No nos preocuparemos em nossa argumentao em defender se Plato era adepto ou no das crenas rficas, mas apenas em perceber quais elementos ele transps e que importncia tem a relao corpo/alma.

  • 42

    Outro termo que tambm manifesta o sentido de encarceramen-to da alma pelo corpo eirgmos () (82e)51 que significa priso ou cadeia. Schiappa (1988) comenta a associao que Plato faz no Crtilo (400c) da imagem da priso do corpo com a mesma empregada pela doutrina rfica e pitagrica, sobretudo ao fazer o jogo de palavras, no grego semelhantes, corpo/sepultura (sma/sma),52 similarmente no Grgias encontra-se um passo (493a) que tambm relaciona corpo a uma sepultura (sma/sma). Os dois passos do Crtilo e do Gr-gias aparentam uma semelhana com a tese rfica, porm Dodds recusa qualquer paternidade dessa doutrina ao que Plato prope.53

    Robinson (1998, p. 62) corrobora com a defesa de que no h uma relao entre a doutrina platnica com as religies mistricas:

    A verdadeira purificao a filosfica (= o amor pela sabe-doria, filosofia), o amor pelo aprendizado ou a : todos resultam numa mesma coisa. O que quer que os credos filosficos possam ter ensinado, a noo transformada em algo novo pelo intelectualismo socrtico [...] Scrates conse-guiu transformar a tica rfica.

    Embora os termos sejam realmente relativos noo de cr-cere, podemos ainda considerar que h um outro significado, menos negativo, para o sentido de encarceramento, pois a expresso , pode ser traduzida por sob a custdia, fazendo o corpo ter a funo de guardio da alma. Contudo, uma vez estando sob a sua tutela, tudo que se possa fazer deve ter a sua permisso.54

    51 Traduzimos por como se fosse uma priso.52 No prximo captulo retomaremos a anlise do jogo de palavras que Plato faz entre sma e

    sma e a possvel transposio do Orfismo, como tambm a resignificao que Plato faz com o uso do sema como manifestao (do verbo seimanei).

    53 Cf. Plato. Gorgias, Oxford, 1959.54 Podemos nos recordar da famosa Alegoria da Caverna na Repblica, e da imagem que a nar-

    rativa traz dos prisioneiros que esto em uma habitao subterrnea em forma de caverna (514a), estando presos por correntes (514b). A caverna chamada de desmotrio em 515b e 579b, Plato reconhece assim que tambm um lugar que pode impor limites aos que l

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    Essa viso da alma enquanto guardada no corpo, como se este fosse um invlucro importante para nossa defesa, visto que en-quanto ela no se liberta do mundo, o corpo o espao que, ao mes-mo tempo que lhe impe limitaes, a supre com os instrumentos necessrios (os sentidos) para se comunicar com o exterior, dando--lhe possibilidades de se manifestar.

    Diante disso, resta ao filsofo seguir, na sua atividade, o caminho para a libertao, que somente na morte alcanar, pois sua alma no mais estar sob a guarda do corpo. No em um mbito religioso que o sentido de encarceramento se apresenta, mas no processo pela busca do saber. necessrio que a alma se desprenda do corpo por lhe impor obs-tculos, quando na atividade filosfica o homem dele se utiliza (83a).

    A alma, segundo esses argumentos, necessita libertar-se do corpo, libertao que se dar de forma plena na morte, qual a fi-losofia se antecipa, quando, na investigao filosfica, a alma ten-ta dele se apartar. A libertao pretendida por Scrates no dilogo refere-se tambm a um certo tipo de purificao (kathrsis),55 pois a alma, estando separada do corpo, se encontraria numa situao em si e por si mesma, sem mistura alguma, pura.

    Mas a questo que vem se desenrolar no plano argumentativo no Fdon, para dar fundamento oposio da alma ao corpo, surge a partir da questo epistemolgica: Como se pode conhecer? Como se pode atingir a sabedoria? por esta abordagem que Scrates quer explicar a seus discpulos o motivo de sua alegria perante a morte. O filsofo deseja a morte, porque esta o far chegar verdade, objeto de seus desejos, sem empecilho algum e de forma plena.

    Para convencer Smias e Cebes, Scrates entrev um grande caminho dialtico, estabelecendo uma oposio entres essas duas en-

    esto. O que interessante que o cenrio de toda a discusso do Fdon tambm acontece em um desmotrio, que a priso de Scrates, mas que de modo algum, espacialmente, limita o mestre de exercer o seu ofcio: o filosofar. Outra imagem interessante a do corpo-concha da alma-ostra, encontrada no Fedro 250c.

    55 No ltimo captulo iremos analisar como Plato entende a purificao.

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    tidades: seja no campo tico, em que a alma est para a virtude (aret) e o corpo para o prazer (hedon); ou no epistmico, em que a alma , por vezes, impedida de raciocinar porque o corpo se deixa levar por tais prazeres, tomando-os como fonte de verdade, ou sendo acometido por vicissitudes como doenas e paixes, que atrapalham a alma em sua busca.56

    A fim de justificar sua morte e valorizar a filosofia, no Fdon, Scrates vai enaltecendo a alma, pondo-a numa posio prioritria em relao ao corpo. interessante percebermos que o contexto da morte do Mestre, em vista da valorizao da filosofia, totalmente oportuno para a valorizao da alma, visto que ela, e no o corpo, a entidade relativa razo.57

    Provar que a morte separao de alma/corpo58 no tem im-portncia para o argumento que se segue se no acreditar na persis-tncia da alma aps essa separao. Isso j est implcito no discurso socrtico quando diz acreditar no seu destino feliz junto aos deuses; alm disso, tambm era comum entre os gregos a crena de que a alma permanece aps a morte, condio dos humanos, indo ao Ha-des para fazer cumprir o seu destino. Mas Plato ousa em sua filoso-fia, atribuindo alma humana uma propriedade que outrora somente alma dos deuses era cabvel: a imortalidade ().

    56 No Fedro (248e-249b) claro o entrelaamento do campo epistmico com o tico na relao corpo/alma, sobretudo no que tange correspondncia do corpo com o prazer e da alma com virtude. Nesse dilogo, Plato aponta que a maior recompensa pela vida virtuosa, no mito da palindia, a recuperao das asas da alma, e isso alcanado por aquele que dedicou a sua vida filosofia, renunciando aos prazeres oriundos do corpo, por um perodo de 10 000 anos.

    57 O cuidado e o zelo pela alma so prprios da doutrina socrtico-platnica e nesse intuito o filsofo no mede palavras para apresent-la como entidade acima do corpo, podendo, a um leitor que no tenha esse conhecimento, parecer que h um certo tipo de desprezo por ele. So muitos os motivos que fazem com que haja a necessidade de valorizar a alma, a comear pelo plano dramtico.

    58 A morte encarada como esse estado em que o corpo se encontra em si e por si separado da alma ( ) e a alma encontra-se separada em si e por si do corpo ( [] ). A expresso em si e por si ora empregada ao corpo ( ), ora alma ( ), como afirma Robinson (2007, p. 59), manifesta que a morte seria o momento em que estas duas entidades se encontram num estado de separao, sem estar misturadas uma outra.

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    O tema da imortalidade da alma

    A ressignificao que Plato faz da morte no Fdon tem como ponto culminante as provas da imortalidade da alma. Na antiguidade clssica grega, acreditava-se que aps a morte havia uma continuidade da alma, que ela no perecia, no se dispersava como o corpo, mas os gregos no atribuam aos humanos o qualificativo athnaton. Imortali-dade era uma qualidade dos deuses, que significava no apenas o no perecimento, mas a divindade. No Hades, para onde os gregos acredita-vam que iam as almas (psykhai) dos mortos, os homens vagavam como cabeas inanes, conforme diz Homero (Odissia. 10.521). O filsofo, ao dizer que a alma humana imortal, no entender dos gregos, estava dizendo que no somente mantm a vida e a capacidade de sentir, mas que tambm divina, j que athnatos qualificador dos deuses, em oposio aos mortais (thneti).59 Desse modo, essa viso era nova.

    Eis o motivo da estranheza e resistncia de Cebes e Smias60 (69e-70a) de aceitar os argumentos expostos por Scrates para pro-var que a alma imortal.61 Mais ainda, esse o escopo que justifica toda a tranquilidade do mestre para encarar seu destino e cuja de-fesa ser apoiada pelos argumentos mais significativos da filosofia socrtico-platnica, como tambm dos elementos transpostos das doutrinas mistricas e at dos mitos.

    A doutrina da transmigrao das almas62 tambm transposta do Orfismo por Plato, sendo a libertao da roda do nascimento, aos moldes do Pitagorismo, alcanada por aquele que na vida encarnada foi filsofo. Na verdade, essa tese acaba sendo utilizada por Plato para corroborar a hiptese das Formas e a tese do aprendizado como

    59 Cf. BERNAB, 2011, p. 171.60 Smias e Cebes so tebanos e ao que parece possveis adeptos das doutrinas mistricas.61 Semelhante dificuldade manifestada pelo jovem Glauco na Repblica (608d), cujo discurso

    sobre a imortalidade tambm aparece.62 Cf. BERNAB, 2011, p. 172.

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    uma Reminiscncia.63 Tais teorias so lanadas no Fdon como meios de se provar a imortalidade da alma, perpassando a todo momento a distino e a certa oposio que vai sendo feita entre alma e corpo, cuja temtica constante no dilogo. No to simples entender essa relao no Fdon, visto que os termos corpo e alma so usados no dilogo com sentidos diversos, sobretudo em se tratando da psykh.As noes de sma e psykh e seu uso

    Adentrando a relao ou as formas como corpo e alma se re-lacionam na filosofia de Plato, mister atentarmos para o fato de que esses termos so tratados tendo como foco o outro, seja em um discurso que acentua sua diferena, ou em outro que se remete sua mtua complementaridade.

    Nos dilogos, deparamo-nos sempre com um Plato mais preocupado em anunciar a importncia da psykh () e do seu cuidado do que em esclarecer qual a sua natureza (ROBINSON, 2007, p. 59). Logo, todo o empreendimento do filsofo ao escrever sobre o tema percorre essa inteno de priorizar a alma, o que sugere o detrimento do corpo.64 Portanto, ao tratar dessa relao o filsofo pouco definiu o que seria corpo, na verdade o corpo sempre visto, no Fdon, tendo em vista a compreenso da noo de alma.

    Em Plato, categoricamente, o corpo visto como algo ma-terial, visvel, sensvel. Essa compreenso perpassa os mbitos tra-

    63 H vrias posies a respeito da afirmao de Plato acreditar ou no numa vida ps-morte e num processo de sucessivas reencarnaes. Vamos nos abster de defender se ele cr ou no, apenas iremos consider-las como artifcios usados pelo filsofo para fundamentar e preen-cher lacunas de suas teorias, que talvez o lgos no conseguiria, por serem experincias que no cabem ser explicitadas pelo conhecimento racional.

    64 Em trabalho anterior, refletimos sobre a dualidade corpo/alma no Fdon, defendendo que, por mais que o dilogo mostre que Plato demonstra uma certa desconfiana com o corpo, essa posio no pode ser vista de forma radical, pois isso inviabilizaria at mesmo o processo de cognio em sua filosofia. Se em alguns momentos o corpo visto como algum tipo de priso (eirgms) para a alma na aquisio do saber e tambm visto como um entrave quando os sentidos do corpo a atra-palham, em cinco momentos posteriores, no mesmo dilogo (74c, 75a, 75b, 75e e 75e-76a), Plato remete-se ao fato de ser atravs da experincia sensvel, que realizada atravs do corpo em seus sentidos, que se tem a recuperao do saber. Nossa pesquisa refutou uma constante conveno em atribuir a Plato um desprezo radical pelo corpo e pela sensao (ARAJO, 2009, p. 41).

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    balhados por Plato em seus argumentos. No plano epistemolgico o corpo a instncia que percebe o sensvel (as coisas sensveis); j no mbito moral visto como uma coisa m, mortal, passvel de corrupo (66bss) que, por vezes, impede a alma de chegar ao pleno conhecimento da verdade (por ser fonte de prazeres e dores, paixes e desejos, que afastam o homem da filosofia, dispersando-o). Essa viso material do corpo era provinda da tradio e com Plato o cor-po perdeu uma das referncias que mudariam o seu entendimento, o eu real do homem. Se outrora Homero via o corpo como o eu, Plato cuidou de refutar essa viso e colocar definitivamente a alma como candidata a portar tal classificao eu, e at mesmo a de pessoa (FDON, p. 116-117).

    Fazendo uma discusso etimolgica do termo corpo, dois termos eram utilizados na cultura clssica, por Homero, para referir-se ins-tncia material do homem: dmas (), simbolizando o corpo vivo; e sma (), significando cadver; mas nenhum dos dois, quando utilizados pelo poeta, tinha a mesma amplitude de significao que ter em Plato (SNELL, 2001, p. 7), sendo necessrio que esses termos vies-sem seguidos de outros para significar os aspectos aos quais se referia.65

    Bernab (2011, p. 185) desenvolveu uma pesquisa, na qual afirma que o uso de sma, para referir-se ao que entendemos por corpo vivo, foi preferencial em Plato, tendo ele dado continuidade ao uso que os rficos j vinham fazendo do termo. O autor tam-bm analisa um passo do Crtilo 400c, dizendo que Plato lana mo da conhecida crena rfica de ser a sma uma sma (sepultura) para a alma, apresentando trs possveis significados: 1) que a alma est sepultada no corpo, no podendo dele se apartar, enquanto nele est; 2) que a alma d sinais ou se manifesta atravs do corpo; 3) que a alma, por estar no corpo que priso, est salva, para nele expiar o que deve. autntica essa posio de Bernab, visto

    65 Como por exemplo guia ou mlea para membros corpreos, drma para referir-se estatura do corpo (SNELL, 2001, p. 6).

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    serem esses os sentidos da palavra sma: sinal, sepultura66 e ainda salvamento. O autor sugere que foram os rficos que comearam a utilizar o termo sma de forma mais constante, ao invs de , comumente usado por Homero, pois o novo termo (mais prximo do sentido de cadver) mais condizente com a proposta rfica, de que estamos nesse mundo apenas temporariamente presos a um corpo morto (2011, p. 200). Esses significados se devem ao fato de haver uma relao entre os termos - como originados dos termos (salvar) e (indicar, sinalizar, d sinais), sendo que na relao com esse ltimo termo derivador, para significar sequer precisa trocar uma letra, como conclui S-crates, em seu discurso no Crtilo. Plato, ao estabelecer que vem de , reinterpreta o papel do corpo em um sentido mais positivo, como sendo protetor da alma.67 Como dissemos outrora, desse modo o sentido do encarceramento da alma ( , F-don 62b4) no tem apenas um sentido negativo; a expresso estar aprisionado significa, assim, tanto a impossibilidade de se libertar sozinha, como tambm o estar guardado, sob a tutela, s podendo realizar algo atravs do ou pelo corpo.68

    66 No Grgias 493a, Plato faz uso do sentido do corpo como sepultura: E ns na realidade talvez estejamos mortos; pelo menos eu ouvi de algum dos sbios que ns agora estamos mortos e que o corpo para ns uma sepultura" (Fedro 250c).

    67 Encontramos uma posio semelhante em Muniz (2011, p. 199) afirmando haver uma polivo-cidade sobre a noo de corpo:

    O Crtilo (400b-c) relaciona trs acepes da palavra corpo, mas deixa claro que ela tem uma grande riqueza de sentidos (h muito o que dizer da palavra corpo, diz Scrates) [...] As trs acepes correntes so as seguintes: (i) o corpo o tmulo da alma, no sentido de que, nesta vida, ela est enterrada nele; (ii) o corpo um sinal porque a alma significa, por meio do corpo, o que quer que queira significar; (iii) o corpo um invlucro da alma que a mantm guardada, semelhana de uma priso, at que a penalidade seja paga. Esse sentido rfico faz de sma, sem mudar uma letra, o guardio da alma.

    Destarte, Muniz no concorda com o ltimo sentido, que defendido por Goldschmidt (2002, p. 119).

    68 Guthrie (1968, p. 311) diz que no h diferenas substanciais entre os sentidos de corpo como sepultura e como priso, visto manifestarem a doutrina de que a alma alheia ao corpo. Casa-

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    Quanto noo de corpo, na verdade com a filosofia plat-nica, no houve tantas mudanas, contudo foi a alma a entidade mais carregada de sentidos por Plato; percebemos isso sobre-tudo quando lemos o Fdon. Dodds (1951, p. 179) nos aponta uma questo de relevncia sobre os sentidos da psykh quando diz que a poca clssica herdou uma srie completa de retratos inconsistentes da alma ou eu. Se Dodds isso afirmou, podemos perceber que no Fdon Plato compilou muitas delas.69

    Etimologicamente psykh70 derivado regressivo do verbo pskhein, soprar, emitir um sopro. Pskho, verbo, eu sopro, deixo escapar o ar, origina-se, provavelmente, da forma no sufixada pso, soprar, que possui sua origem no indo-europeu. Esta composio assemelha-se a pskho, eu sopro ou a outras parecidas como psgo, eu esfrio, refresco e seus derivados psykhrs e psykhos. Contudo, nem sempre esse foi o nico termo utilizado para designar a dimen-so interior do homem, que na filosofia entendida como o princpio de vida, que anima os corpos, conforme empreenderam os fisicalistas (Tales, Anaxmenes, Anaxgoras, Pitgoras, Herclito, Demcrito etc)71 e posteriormente os socrticos (Plato e Aristteles). H vises em Homero, bem como na poesia trgica do sculo V a.C, que ante-cedem as concepes filosficas emergentes no sculo VI a.C.

    Comeando pela poesia homrica, psykh, ao ser usada pelo poeta, vem algumas vezes acompanhada de outros termos correlatos

    dio (1987, p. 389), por sua vez, acredita serem complementares tais sentidos, sendo metforas que expressam com gradaes diferentes o mesmo conceito. A viso do Timeu (45ab) de que o demiurgo ps no corpo todos os instrumentos da providncia da alma tambm ajuda nesse entendimento. Retomaremos esse passo no ltimo captulo.

    69 Entre essas imagens da alma, esto algumas noes que foram assimiladas das religies mis-tricas (Orfismo e Pitagorismo). Mesmo que alguns desses sentidos tenham sido assimilados de doutrinas anteriores, h de convir que a filosofia socrtico-platnica trouxe uma novidade no entendimento do que o homem, ou melhor, do que seja o eu real do homem.

    70 No nosso estudo utilizamos para consulta etimolgica e filolgica os dicionrios de termos gre-gos de Bailly (2000), Chantraine (1983), e Malhada (2006). Ainda utilizamos o dicionrio de ter-mos f